Brasil, 500 anos de Males e Esperanças Maria Yedda Leite Linhares Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professora no Mestrado da Universidade Severino Sombra. Resumo Despojado do aparato de erudição acadêmica, o ensaio discute algumas questões relativas ao Quinto Centenário do Brasil. Ao considerar que apesar dos esforços desenvolvidos no século XVI pela Coroa portuguesa de dotar a nova terra de instrumentos jurídicos e administrativos, a partir de 1580, com a união das Coroas Ibéricas, embora Portugal conservasse certos direitos no tocante ao povoamento e à administração do Brasil, é indiscutível a supremacia espanhola na primeira metade do século XVII nas terras antes descobertas e ocupadas pelos portugueses. A coroa portuguesa, ao retomar sua independência face à Espanha (1640), terá nos Braganças uma dinastia competente e disposta a reaver para Portugal o prestígio perdido. A reconquista de Pernambuco e áreas do Nordeste então ocupadas pelos holandeses foi o primeiro passo decisivo para a recuperação portuguesa. O segundo passo, traduziu-se no massacre das populações indígenas. Palavras-chave colonização – demografia – povoamento R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 241-266, 2000 267 Brasil, 500 anos de Males e Esperanças N o momento em que se pretende comemorar o Quinto Centenário do Brasil, a pergunta é mais do que cabível face às pesquisas recentes realizadas por arqueólogos, etno-historiadores, antropólogos, ecólogos e geneticistas, brasileiros e estrangeiros. Tais estudos vêm trazendo evidências, cada vez mais numerosas e convincentes, sobre o povoamento do território hoje brasileiro ao longo de, pelo menos, dois milênios, por grandes contingentes demográficos, estáveis, dotados de conhecimentos técnicos adequados e compatíveis com a vida em comunidades socialmente organizadas. Por outro lado, mesmo considerando-se tão-somente a tradição historiográfica convencional de que o Brasil foi descoberto, em l500, por Pedro Alvares Cabral que saíra de Lisboa, rumo à Índia, capitaneando uma pequena frota, e, ainda, a cronologia da ocupação da terra pela Coroa portuguesa, segundo a qual a primeira expedição com intenções colonizadoras foi a de Martim Afonso de Sousa, de l530-l532, torna-se claro que, por essa época, as terras que serão depois denominadas de Brasil pertenciam, então e por muito mais tempo ainda, aos índios seus milenares ocupantes. Durante dois anos, Martim Afonso de Sousa desempenhou missão guarda-costa, face à constante presença de navios de outras nacionalidades no litoral, sobretudo do Nordeste, além de fundar São Vicente, numa ilha ao sul, e uma segunda vila, a nove léguas de distância, no planalto, às margens do Rio Piratininga. Era um início de tomada de posse da terra, sem dúvida, embora o primeiro instituto jurídico de colonização e exploração tenha sido o das Capitanias Hereditárias, R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 269 Maria Yedda Leite Linhares l534-l536, seguido na segunda metade do século pelo estabelecimento de Governos-Gerais (Regimento de Tomé de Sousa, l548). Acrescente-se, outrossim, o fato de que, em l580, foi declarada extinta a Dinastia de Aviz, cujo penúltimo rei, Dom Sebastião, havia sido morto na batalha de Alcácer-Quebir numa cruzada contra os Árabes, passando então o trono a seu tio, o Cardeal Dom Henrique que faleceu dois anos depois, sem deixar saudades nem glorias. Nesse ano, é celebrada a chamada união das monarquias ibéricas, o que significou, na prática, a perda da independência do Reino de Portugal, assumindo a Coroa o Rei de Espanha, Felipe II. A Restauração Portuguesa só ocorrerá em l640 com a aclamação do Rei Dom João IV, em Lisboa, o que assinalou o início da Dinastia Bragança, esta, sim, muito coerente e competente nos seus desígnios coloniais com relação ao Brasil. A união das coroas ibéricas amainou a secular rivalidade entre Castela e Portugal, contribuindo para tornar cada vez mais simbólica a linha de Tordesilhas de l494 que havia lançado as bases da expansão marítima lusitana e representara o triunfo da política do então Rei de Portugal D. João II (l455-l495). Naqueles sessenta anos de domínio espanhol, no entanto, verificou-se a expansão da ocupação das zonas da mata litorânea da Bahia (Recôncavo), de Pernambuco e da Paraíba. Verificou-se, também, na segunda metade do período e estendendo-se até l654, a ocupação da maior parte desse território pelos holandeses, rivais de Castela. Coube, no entanto, aos portugueses garantir, militarmente, contra franceses e holandeses, a posse efetiva do território ao norte - do 270 R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 Brasil, 500 anos de Males e Esperanças Maranhão ao delta do Amazonas -, com inegável tenacidade, pensando compensar a perda do Nordeste açucareiro e por em prática a exploração dos produtos da Amazônia. Esses dois movimentos de colonização e conquista, no Nordeste açucareiro e no Norte, foram estrategicamente fundamentais para o estabelecimento de uma política colonial por parte dos portugueses, entre l580 e l654, data esta correspondente, nos primeiros 60 anos, à União das Coroas ibéricas, sob Felipe II e seus sucessores, bem como à ocupação e subsequente expulsão dos holandeses de Pernambuco, pelo esforço coligado da nova Dinastia de Bragança e dos residentes na Colônia, nativos e portugueses de origem. Tais movimentos, de colonização e conquista, significaram o genocídio de milhões de índios que culminou nas duas últimas décadas do século XVII com a erroneamente apelidada guerra dos bárbaros, além do extermínio dos quilombos (então chamados de mocambos), entre os quais o maior e mais famoso foi o de Palmares. São conhecidas as tentativas dos jesuítas de resguardar as populações indígenas das regiões de plantation do Recôncavo e de Sergipe, como também do Norte (Maranhão e Belém), da sua apropriação pelos novos donos da terra, sesmeiros e senhores de engenho vindos do Reino. Daí, o projeto jesuita, de que nos fala S. Schwartz, de transformar o índio no trabalhador rural produtor de alimentos, um protocamponês, em complemento ao escravo vindo da África e comprado no mercado para ser os braços e os pés do senhor da terra, do lado de cá do R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 271 Maria Yedda Leite Linhares Atlântico sul. No entanto, ele não vingou e não chegou a fazer frente ao projeto social e político da nascente plutocracia colonial no mundo aberto à conquista européia, capitaneada por uma certa burguesia mercantil de comerciantes e soldados, – ou seja, ganhar dinheiro, isto é fortuna e poder, graças ao tráfico humano. Se, para os portugueses, o século XVII, sobretudo na sua segunda metade em diante, foi, por excelência, um século português no tocante ao Brasil, no restante do império marítimo Aviz construíra com tanto afinco –, – que a Dinastia de ele significou uma inexorável decadência. Para a Espanha, o século XVII, a partir da morte de Felipe II, o século de ouro, nas riquezas e nas artes, significará, também, a diminuição das riquezas coloniais e a perda de prestígio militar. Ao se completar a separação das duas coroas ibéricas, caberia a Portugal, com seus reis e seus comerciantes, refortalecido pela instauração da nova dinastia, centrar suas energias na América, garantir o alargamento das fronteiras políticas além da linha de Tordesilhas, assegurar o controle da navegação amazônica e, para tanto, a política de povoamento e incentivos econômicos na região cuja importância adquiria renovada dimensão estratégica. A viagem de Pedro Teixeira de Belém a Quito e seu retorno ao Pará (l637-l639), que nos é relatada pelo jesuíta espanhol Cristóbal de Acuña (Edição brasileira, Editora Agir, l994, sob o título, Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas, l641) tornava-se, pois, parte desse desígnio lusitano não declarado. O relato de Acuña é 272 R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 Brasil, 500 anos de Males e Esperanças informativo sobre o enorme interesse que a região começava a despertar e confirma, embora indiretamente, dados do Padre Antônio Vieira (l608l697) sobre a densidade do povoamento indígena e a política de extermínio ao longo desse século. Vieira foi, sem dúvida, a consciência crítica de sua época., no tocante à realidade colonial nos trópicos, ao sul do Equador. A conjuntura colonial então vivida aparecia, a partir do advento dos empreendedores Braganças, como uma busca desesperada de novos recursos para a reconstrução do Reino e a recompensa pelas perdas do século anterior. Nessa perspectiva, as imensas terras da América, povoada de índios arredios, eram uma esperança a ser transformada em realidade. Crítico e, ao mesmo tempo, apóstolo, Vieira exerceu influência junto ao Poder Colonial de seu tempo, sem, no entanto, mudá-lo, amigo que era, partidário e defensor da dinastia Bragança, na pessoa de seu fundador, D. João IV. Após l654, com a vitória militar sobre os holandeses do Nordeste açucareiro, restava encontrar no Novo Mundo a recompensa pelas riquezas perdidas. No final do século, até o término do reinado de D. Pedro II (l706), é lícito mencionar a instalação de instrumentos administrativos e políticos para a fixação portuguesa no Brasil, a começar pela ampliação do instituto das sesmarias que garantisse a posse efetiva da terra pelos colonos vindos do Reino. A ocupação, com processos brutais de caça ao gentio e resultados desastrosos para as populações americanas, tal foi a marca da colonização do homem branco europeu e moderno. Abria-se, assim, espaço, – a partir do vazio demográfico -, para a criação de companhias de comércio, tanto em Pernambuco como no Grande R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 273 Maria Yedda Leite Linhares Norte, pontas-de-lança da Modernidade em ascensão do outro lado do Atlântico Norte. Por toda a parte, o objetivo era incentivar novos cultivos, gerar novos recursos, multiplicar o número de colonos que vivessem dos frutos da terra. Quanto a quem caberia ser o braço forte e resistente dos donos da terra que aportavam de além-mar, a mão-de-obra operosa das novas plantações, a não ser os índios tornados escravos e os negros importados da África, a mercadoria rendosa do mundo que se recriava? Os efeitos dessa investida sobre as populações locais foram imediatos e simultâneos, tão logo ficou assegurado o domínio português na América: o genocídio das nações cariri e caetê, no sertão nordestino, do Ceará a Bahia, - seus números ainda são desconhecidos embora não seja arriscado afirmar que, ao serem incluídos os Tupinambá mortos ao longo da costa desde o século anterior, eles devem ser acima, somente na região mencionada, dos dois milhões de seres humanos; na região Norte, os dados são ainda mais assustadores, ou seja, uma estimativa de dez milhões ao longo de todo o período de instalação e império dos atributos da civilização moderna. As informações de Vieira confirmam esses cálculos. Desse massacre praticamente inexistem registros documentais escritos ou mesmo na memória popular. Os Tupinambá, ao menos, tiveram em Gonçalves Dias o seu bardo isolado. talvez único e tardio: Da tribo pujante/, Que agora anda errante/ Por fado inconstante/ Guerreiros, nasci:/ Sou bravo, sou forte/ Sou filho do Norte/ Meu canto de morte/ Guerreiros, ouvi.! Salvo na toponímia pouco resta dessa memória, hoje sertaneja e nordestina. As favelas do Rio, de São Paulo e outras cidades ditas grandes, modernas e ricas (!!!), centros industriais e financeiros, 274 R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 Brasil, 500 anos de Males e Esperanças estão repletas dos descendentes desses que conseguiram sobreviver. Está aí a marca da desigualdade e da exclusão. As estimativas demográficas da região amazônica, a partir do contato com o europeu conquistador, têm merecido sofisticados e numerosos estudos conforme as minuciosas análises de antropólogos americanos e cientistas diversos (ver, especialmente, em Ciência Hoje, SBPC, o número especial sobre a conquista e a colonização da América, l992, e o artigo de Michael Heckenberger, da Universidade de Pittsburgo, A Conquista da Amazônia). Publicações do Museu Goeldi do Pará têm enriquecido esses conhecimentos ao trazerem os resultados de estudos realizados por cientistas brasileiros, como Francisco Salzano e sua equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em biologia e ecologia humana, e de Walter Santos, hoje em São Paulo, ao lado da competência e da seriedade de arqueólogos, como Anna Roosevelt, além das pesquisas já reveladas por Emilio Moran, James Neel, Stephen Beckerman, entre outros, nos vários campos da Antropologia mais avançada. Hoje, a realidade do povoamento amazônico se apresenta de forma bem diversa daquela que predominou desde o século XVIII: é refeita a imagem do deserto demográfico e do atraso que seria a marca registrada dos índios aqui encontrados, com destaque especial para a sua propalada incapacidade de se adaptar ao trabalho dos civilizados! Hoje, já é possível afirmar que os índios da várzea amazônica ostentavam uma organização tribal estável, praticavam uma horticultura adaptada ao meio R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 275 Maria Yedda Leite Linhares ambiente, produzindo tubérculos tropicais, além de dominarem a técnica da fabricação de cerâmica já desde o terceiro milênio A.C. Em nossos dias, face ao avanço da ciência física, social e antropológica não é mais concebível manter-se a crença na inferioridade de culturas para justificar a dominação de uns sobre outros e, menos ainda, sonegar informações de natureza histórica, ou de qualquer natureza, para mascarar o passado e dominar o presente. Para os que desejam comemorar 500 Anos de Brasil respondemos com uma interrogação. Afinal, o povoamento da terra é milenar; os dez milhões que habitavam a várzea amazônica, por exemplo, ao se estabelecer o primeiro contato com os estrangeiros brancos estão, hoje, reduzidos a menos de duas centenas de milhares, sendo que o processo de extermínio se deu ao longo dos três primeiros séculos. O mesmo ocorreu com as densas populações ao longo da costa atlântica, embora a tradição tenha teimado em afirmar que elas foram dizimadas por doenças infecciosas. Acrescentamos – foram também vítimas, no contato com o europeu, de doenças infecciosas e epidemias. Hoje também a aids. Todos os projetos de origem jesuíta que tentaram salvá-las da escravidão colonial, sem resultados substanciais, tiveram o efeito de levantar os colonos contra a Ordem de Inácio de Loyola. Lamentavelmente, porém, a atuação, digamos, ilustrada (com verniz humanista e certa conotação racista ligada à noção de superioridade do homem europeu e sua cultura), posição essa defendida por setores da Ordem Jesuita, a partir de meados do século XVII, seria a justificativa do colonialismo moderno – a carga do 276 R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 Brasil, 500 anos de Males e Esperanças homem branco (the white man’s burden) – recoberta de humanitarismo e cinismo, ao longo do século XIX. Por outro lado, o peso do projeto português de fundar aqui uma Colônia só virá a se firmar após a expulsão holandesa, quando então, assegurada a supremacia sobre o conjunto do território, afastada a resistência indígena no Nordeste e esmagado o quilombo de Palmares, com o apoio do braço armado dos colonos - os bandeirantes paulistas -, foi possível destruir as resistências ao avanço das fazendas de gado pelo sertão e ao efetivo monopólio da terra pelos senhores de escravos e cabedais. O mesmo movimento se verifica no Grande Norte das Drogas do Sertão e das Companhias de Comércio, Maranhão. Grão Pará e Amazonas. O século XVII se encerra com o anúncio da descoberta das riquezas das minas e dos diamantes. Ao ocorrer a Independência de l822, a tradição de administração colonial chegava a pouco mais de um século e meio de experiência acumulada. A construção do Brasil foi obra complexa, realizada por brasileiros que aqui fixaram suas raízes. Aprendemos a renegar os males do passado e a renovar as esperanças do futuro, sem sempre com sucesso. A colônia portuguesa na América, no fundo, resultou de um conjunto de forças, objetivos atingidos e fracassados, de políticas cada vez mais dirigidas, ora eficazes, freqüentemente ineficazes, nos propósitos de comerciantes, reis mais ou menos competentes, alguns tenazes ministros e auxiliares ilustrados, ou meramente vorazes, outros. Acreditamos que a R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 277 Maria Yedda Leite Linhares História pode nos ajudar a compreender tanto os males do presente quanto as esperanças do futuro. 278 R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 Brasil, 500 anos de Males e Esperanças Abstract This essay intends to suggest the development of historical researches on colonial Brazilian history, especially towards the second half of the XVIIth. Century, which includes the efforts to extend Portuguese hold on the territory. The colonial settlements and the effective control over the territory result from the combined efforts – colonial administration and settlers – in order to assure both the survival of the Dinasty and the prosperity of the Kingdom. As the XVIIth. Century closes the colonial population (indians not included) was estimated at 300.000. On the eve of Independence (1822) Brazilian population had reached 4.000.000 inhabitans both free and slaves. According to the Author, the driving force in the making of a Country is found along the second half of the XVIIth, century: land expropriation and expansion of colonization. Key words colonization – demography – population growth R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 3, p. 267-280, 2000 279