Universidade Federal do Pará
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-graduação em Psicologia
Título: Medeia, Lilith, Eva e Maria: mitos enlaçados pelo HIV-aids
Autora: Ocilene Fernandes Barreto. i
Os mitos são narrativas que oferecem representação ao nosso
conteúdo psíquico, que é fundado na sexualidade do pequeno perverso
polimorfo. E graças ao desamparo a ontogênese reinscreve a
filogênese: “a psychê é alada; mas a direção que ela toma lhe é dada
pelo pathos [...] As paixões atestam nossa dependência ao Outro.”
(CECCARELLI, 2005, p. 371).
Não obstante, a transmissão vertical parece recordar outras
representações identitárias femininas: Eva e Lilith, as párias do mítico
Éden. A maternidade santificada de Maria servirá para absolver a mulher
da culpa de Eva e da luxúria de Lilith.
Ao oferecer um ordenamento simbólico, os mitos forjam nossas
referências identitárias, repetindo o mesmo estatuto de nossos sítios
psíquicos. O mito fundador está para cultura como o mito individual
está para o sujeito (CECCARELLI, 2012).
Para além do físico, a aids é uma grave ferida narcísica na qual
tóxicos ideais persistem no imaginário social: a insígnia da morte e a
associação a amoralidades. E na transmissão vertical, quando a mãe
HIV+ pode infectar o filho na gravidez, parto ou amamentação; o
ataque narcísico é agravado pela intrusão dos ideais associados à
síndrome, ameaçando ao mito do amor materno.
Eva, a mulher feita da costela de Adão, representa a inferioridade
feminina, pois quando Agostinho “sexualiza” o pecado original e aponta
a concupiscência como causa da danação ao fogo do inferno, inocentará
ao homem e culpabilizará a mulher pela queda da humanidade.
Na visão de Agostinho, o prazer sexual, que escurece a mente e desobedece à vontade, degrada a
reprodução humana ao nível dos animais [...] A honra que era outorgada a uma concepção despojada
de prazer pode ser observada na Virgem Maria. Sua imagem foi elevada ao que era e continua sendo
o ideal celibatário: concebeu Jesus em estado virginal, sem ser envergonhada pelo desejo, e por esse
motivo também deu a luz sem sentir dor (Enchiridion 34). As outras mulheres, infelizmente, ficaram
com a maldição da queda... (RANKE-HEINEMANN, 1996, p. 105)
Segundo Laraia (1997) e Pires (2008), Lilith, a primeira mulher, criada
da sujeira da terra, por sua luxúria foi banida do idílico Éden. Ao
questionar sua submissão no ato sexual tacitamente reivindica sua
sexualidade, não aceita o argumento da “natureza” dos sexos e foge para
o Mar Vermelho, onde irá se relacionar com demônios, transformando-se
na prostituta de Samael, o demônio. Ela é demonizada, ilustrada como
uma vampira ou criatura da noite que atormenta e seduz aos homens
através da poluição noturna, e atenta contra a família. Na forma de
serpente, Lilith seduzirá Eva.
O mito do amor materno constituiu-se como um dos mais fortes
capitais míticos identitários atribuídos às mulheres (BADINTER,
1980), alçando Maria, a mãe do filho de Deus, como figura icônica.
Mas na transmissão vertical há um atentado contra o mito do amor
materno, e a mulher ao transmitir o HIV parece recordar Medeia.
Influenciada por Hera, Medeia apaixona-se por Jasão e o ajuda a
reaver seu direito ao trono, mas passado alguns anos e com interesses
outros, Jasão a abandona, e preterida, a feiticeira mata os próprios
filhos (BRANDÃO, 1987). O excesso pulsional atenta contra o
narcisismo e o mito do amor materno.
Sendo o Eu uma superfície de representação e a identificação como a
mais antiga ligação afetiva entre o Eu e o outro, corroborando o verbo ser
antes do verbo ter na esfera psíquica, não causa desconforto algum a
repetição de conteúdos fantasmáticos identitários nas representações
míticas do sujeito através da identificação. O sofrimento da mulher na
transmissão vertical pode recordar o fracasso do mito do amor materno,
uma grave ferida narcísica, mas também parece recordar o conflito da
mulher entre a maternidade, a sexualidade e a culpa“... a coisa não pode
ser tão simples, devido à incongruência entre as ideias e os atos das
pessoas e à diversidade dos seus desejos” (FREUD, 1930, p 14).
Referências:
BASTOS, LIANA ALBERNAZ de MELLO; Eu-corpando: o ego e o corpo em Freud. São Paulo: Escuta, 1998.
A fome de amor ou a fome de ser amada recrudesce na mulher a
marca do desamparo, ao invés do medo da perda do objeto é o medo
da perda do amor, a reação da mulher diante à ameaça de perda de
amor é tão selvagem que desconhece a castração (SCHAFFA , 2009).
Medéia não transgrediu a lei, em verdade, ela jamais a conheceu.
BRANDÃO, JUANITO de SOUZA; Mitologia grega, v. III. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987.
CECCARELLI, PAULO ROBERTO; Mitos, sexualidade e repressão. In.: Ciência e Cultura. São Paulo, 64, p. 31-35, 2012.
_________; Mitologia e processos identificatórios. In: Revista Tempo Psicanalítico. Rio de Janeiro, V.XXXIX, p.179-193, 2007.
_________; O sofrimento psíquico na perspectiva da psicopatologia fundamental. In.: Psicologia em Estudo. Maringá, V. X, P. 471-477, 2005.
CECCARELLI, PAULO ROBERTO; SALLES, ANA CRISTINA TEXEIRA DA COSTA; A invenção da sexualidade. In: Reverso, Revista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Belo Horizonte, XXXII, n. 60, p. 15-24, 2010.
FREUD, SIGMUND (1905); Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. VII. 1996.
____________ (1914); À guisa de introdução ao narcisismo. In: Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2004.
____________ (1921); Psicologia das Massas e análise do Eu. In.: Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
i. Psicóloga, Mestre em Psicologia/UFPA. Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia
Fundamental /UFPA. E-mail: [email protected]
LARAIA, ROQUE de BARROS; Jardim do Éden revisitado. In.: Revista de Antropologia USP, São Paulo, V. 40, nº1, 1997.
PIRES, VALERIA FABRIZI; Lilith e Eva: imagens arquétipos da mulher na atualidade. São Paulo: Summus, 2008.
RANKE-HEINEMANN, UTA; Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a igreja católica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.
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