PSICANÁLISE E INSTITUIÇÃO:
UM LUGAR POSSÍVEL NA CLÍNICA DAS PSICOSES
A clínica das psicoses tem interrogado continuamente os conhecimentos da
medicina , da psicologia e da psicanálise nas formas de tratá-la. O século XIX e
grande parte do século XX deram ênfase ao tratamento dentro de hospitais
psiquiátricos. Na década de 60, o modelo manicomial foi duramente criticado pela
sua ineficácia terapêutica e por seus efeitos iatrogênicos na exacerbação e
cronificação dos sintomas negativos da esquizofrenia, na cronificação de crises
psicóticas em sujeitos neuróticos e na exclusão social. Buscou-se , então, um modelo
menos opressor e mais humanizado de tratamento em nova modalidade institucional.
Surgiu a comunidade terapêutica. Seu princípio básico era a criação de um ambiente
social dentro do espaço institucional marcado por um funcionamento democrático e
participativo dos usuários. Para tanto, foram criados dispositivos institucionais
baseados numa vida ideal de relações sociais como grupos operativos, assembléias,
entre outros, acreditando que o convívio com tais dispositivos fosse capaz de tratar e
educar o psicótico na direção da inserção social. Ao longo da reforma psiquiátrica,
tanto na mudança do tempo de internação mais breve nos hospitais psiquiátricos,
como nos processos de desconstrução dos grandes asilos psiquiátricos e tentativas de
reinserção social via comunidade terapêutica, constatou-se a resistência não apenas
da sociedade, mas de muitos pacientes em se manterem muito tempo longe dos
muros institucionais. Ou seja, a vida dessas pessoas permanecia marcada por
entradas e saídas intermitentes de instituição para casa e de casa para instituição.
Diversas são as explicações para este fenômeno, que vão desde o rechaço
social ao convívio com o psicótico, passando pelas dificuldades próprias desta
clínica e de seus modos de tratamento. Elas não deixam de ter razão, nossa
sociedade é intolerante à diferença do modo de ser psicótico, principalmente quando
ele aponta ao neurótico onde pode chegar o fantasma da autonomia absoluta, do
discurso da liberdade sem fronteiras. Porém, a psicanálise nos mostra que esta
dificuldade de convívio social não é unilateral. O sujeito psicótico sente-se
estrangeiro nos grupos sociais cuja regulação simbólica se dá sob o primado do falo.
A forclusão da metáfora paterna faz com que o encontro desse sujeito com a
demanda fálica do Outro seja fonte de incomensurável sofrimento. Não é sem razão
que as primeiras crises psicóticas surjam em momentos cruciais da vida onde o
sujeito se defronta com a questão “o que o Outro quer de mim”, como na primeira
saída de casa para escola na infância, na adolescência onde o édipo dá nova volta na
assunção de uma posição sexuada, ou no jovem adulto que ingressa no mercado de
trabalho, tendo que prestar contas de sua suficiência fálica para sustentar a si e a
família que o Outro espera que ele venha constituir.
Foi pensando nas contribuições da psicologia social, nos avanços da reforma
psiquiátrica, mas atravessando-os pelas contribuições da psicanálise, que se pensou
na criação de uma outra modalidade de instituição. Se parece insistência vincular o
tratamento da psicose numa modalidade institucional, isso se dá pensando na
importância que um lugar de arrimo, onde sua loucura tenha espaço de acolhimento
e de reconhecimento na tentativa de uma ordenação subjetiva, tem na vida dessas
pessoas. Nessa direção criou-se o CAIS Mental-8 (Centro de Atenção Integral à
Saúde Mental do distrito sanitário 8 de Porto Alegre).
Do nome do serviço, aproveita-se a homofonia para situar a instituição como
um lugar de referência, mas de passagem. Como é o cais do porto para o marinheiro.
Pensamos com isso que o vínculo que o paciente pode estabelecer com a instituição
não passe pela reificação, por parte da instituição, da impossibilidade do sujeito
psicótico em constituir um lugar de saber. De outra forma, o serviço estaria
funcionando como uma Mãe de psicótico cujo fantasma diz que a única coisa que
importa é aquilo que à Mãe interessa. Por isso incorporamos o conceito que Maud
Mannoni implementou em Bonneuil, o da instituição que se implode, para fugirmos
do risco que tem as instituições de acabar se fechando em torno do próprio umbigo.
Dito de outra forma, nos colocamos como transicional nos momentos cruciais da
vida do psicótico, acolhendo-o na crise, para logo ajudá-lo a encontrar um caminho
na direção de outros lugares possíveis de convívio social.
Pode-se objetar que essa forma de pensar seja contraditória com o que foi
antes exposto sobre a relação que o psicótico costuma desenvolver com a sociedade
e com o lugar de refúgio(nem sempre agradável) que a instituição pode lhe oferecer.
E é bem verdade que estamos continuamente nos questionando para não cair nesta
lógica. Por isso buscamos criar uma equipe interdisciplinar com psiquiatras,
psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistente social, enfermeiras, bem como o
pessoal de apoio administrativo, de cozinha, de serviços gerais e de segurança. A
baliza desta equipe é o saber psicanalítico, e a possibilidade de que o mesmo possa
circular entre as diferentes disciplinas conduzindo suas práticas de forma articulada
na mesma direção de cura .
Na psicose, conforme se dá a inscrição primordial, podemos aventar duas
possibilidades como vetor do trabalho clínico. Ou há a possibilidade da inscrição da
metáfora paterna, como pode ocorrer na infância, ou nos resta dirigir a cura no
sentido da suplência, fazendo do sintoma uma amarra ortopédica entre os registros
soltos do real, do imaginário e do simbólico, o que não é pouco , nem tão fácil.
Como trabalhamos com uma clientela de adolescentes e adultos, ficamos com a
segunda opção.
Para tanto, criamos dispositivos institucionais que articulam o que é
trabalhado no gabinete psiquiátrico e psicológico com o que é desenvolvido junto ao
serviço social, nos grupos de conversa, nas oficinas de expressão, de teatro, de
biblioteca(onde se produz um jornal de circulação interna), de literatura, de
beleza(uma das mais concorridas),de cinema, com as atividades no ambiente que
visam propiciar a livre circulação de significantes sociais, como a hora do chá, mas,
também, permitindo falas e escutas mais particularizadas. Os pacientes podem ficar
um tempo dentro da instituição que varia de um dia inteiro (Centro de Atenção
Diária I), passando por alguns turnos durante a semana(Centro de Atenção Diária II),
até chegar a modalidade ambulatorial onde eles vem especificamente para algumas
oficinas de terapia ocupacional e consultas com seu psiquiatra e/ou psicólogo.
Alguns pacientes se beneficiam do trabalho de acompanhamento terapêutico
desenvolvido por estagiárias de psicologia da UFRGS, que fazem ponte entre a
organização da vida cotidiana e as atividades desenvolvidas no serviço. A
permanência de um paciente em CAD I, CAD II ou ambulatório depende da
intensidade necessária ao atendimento, dos riscos que a crise lhe impõe e do grau de
autonomia de circulação social que o sujeito tem.
Na medida em que o sujeito vai podendo articular um sintoma que lhe permita
um certo trânsito no meio fálico, busca-se espaços sociais, geralmente vinculados a
área da cultura, da participação em organizações comunitárias, do trabalho, em
outras oficinas fora do âmbito institucional, ou no próprio núcleo familiar, onde ele
possa seguir sua vida, sabendo que quando precisar poderá buscar novamente a
instituição.
Ainda que não tenhamos mensurado de forma objetiva, observamos uma
redução significativa no número de novas internações psiquiátricas em muitos dos
usuários do serviço. No entanto, o apego à instituição como lugar de referência
parece persistir mesmo naqueles que já não vem ali com tanta freqüência. Isso nos
faz pensar que lugar a instituição pode ocupar na transferência com pacientes
psicóticos. Para alguns, a instituição acaba se constituindo num lugar de pertença, de
filiação. Porém, até que ponto essa filiação pode se sustentar no caráter significante
do nome, ou necessita da presença real da estrutura institucional como suporte da
produção de uma metáfora delirante? O objeto transicional, que nos serve de
metáfora para a passagem da instituição do lugar do corpo materno na direção da
circulação para o mundo externo, poderia em algum momento prescindir do seu
suporte imaginário? Poderia haver resolução do laço transferencial sem que fosse
dissolvido o sintoma capaz de costurar, de forma ortopédica, uma subjetividade ali
onde a crise psicótica espalhou fragmentos? A permanência da ligação de alguns
pacientes com a instituição não estaria vinculada a impossibilidade de encontrar um
lugar de reconhecimento fora do âmbito institucional? Sabemos que tal ligação
segue sustentando alguma forma de circulação social viável para essas pessoas.
Diferente seria se a instituição seguisse atribuindo-se o lugar inequívoco de saber.
Operaria o retorno à lógica manicomial, mesmo que sua roupagem fosse nova. Tais
questões seguem sendo trabalhadas pela equipe para que ela possa se colocar como
mais um recurso numa rede pública de serviços hierarquizada nos seus vários níveis
de complexidade.
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texto - Nilson Sibemberger - ensaio