Precisamos de cidadãos do mundo Formar alunos com consciência democrática e internacional é a única maneira de garantir a construção de um mundo de justiça e paz Paola Gentile ([email protected]) Foto: Renata Ursaia Nos anos 90, o filósofo e educador colombiano Bernardo Toro sintetizou as sete competências básicas que devem ser desenvolvidas nos alunos. Dominar as linguagens utilizadas pelo homem, saber resolver problemas, analisar e interpretar fatos, compreender o entorno social e atuar sobre ele, receber criticamente os meios de comunicação, localizar e selecionar informações, planejar e decidir em grupo. Esses saberes tornaram-se o norte da educação contemporânea em diversos países. Recentemente, ele acrescentou uma oitava: criar no estudante uma mentalidade internacional: "Quando esse jovem chegar à idade adulta, seu campo de ação não será apenas o bairro ou a cidade: será o mundo". Por isso, a escola deve ensinar o convívio na democracia, cuja base é a tolerância. Nesta entrevista à editora Paola Gentile, ele fala sobre os caminhos para o professor atingir esse objetivo e dá sugestões práticas de como criar um ambiente democrático dentro da sala de aula. NOVA ESCOLA - Qual o papel da escola na construção de uma sociedade democrática? Bernardo Toro - Ela tem a obrigação de formar jovens capazes de criar, em cooperação com os demais, uma ordem social na qual se possa viver com dignidade. A democracia caracteriza-se como o regime em que as leis e as normas são elaboradas pelas mesmas pessoas que vão obedecê-las. É o sistema mais rigoroso que existe, porque não é natural ao ser humano. As normas devem dar autonomia e liberdade aos cidadãos e, ao mesmo tempo, garantir a ordem social. Pode parecer paradoxal, mas não é. Só a ordem construída em conjunto produz liberdade. NE - Como se ensina a convivência democrática? Toro - É preciso envolver a instituição como um todo. Se um colégio quer melhorar a disciplina, deve chamar os alunos para um acordo sobre o comportamento mais adequado. A participação na elaboração das normas faz com que as pessoas as obedeçam e se sintam livres. Leis impostas são sempre burladas. Na sala de aula, o fundamental é ter um enfoque pedagógico igualmente democrático. Por isso, a única saída que vejo é incentivar trabalhos em grupos cooperativos. Meninos e meninas que estudam e trabalham desde pequenos em mesas com outras seis crianças aprendem a buscar soluções em grupo. NE - Qual é a melhor maneira de o professor conduzir essas atividades? Toro - Uso sempre a experiência da Colômbia. Lá, toda segunda-feira as turmas têm de dividirse em equipes para as atividades da semana. Não é o professor que organiza os estudantes. Eles mesmos formam os grupos, decidem o que vão estudar e como querem trabalhar. Cada aluno se impõe um objetivo: um menino quer tirar excelente em Matemática, mas não faz questão de ter nota máxima em Espanhol; outro precisa de nota em Ciências Naturais e quer apenas obter o mínimo em Matemática. Com isso, todos aprendem que existem interesses, afetos, expectativas e capacidades distintas. Apesar disso, cada um deve se esforçar para atingir sua meta. As classes têm bibliotecas com cerca de 100 volumes para consultas – enciclopédias, livros de fotografias e paradidáticos. Um professor orienta e indica caminhos para 54 alunos, que resolvem os problemas em conjunto. São turmas grandes, mas os jovens trabalham o tempo todo e têm excelente rendimento. Formam-se pessoas democráticas, com grande capacidade de organização e de decisão, que sabem buscar a informação. Interessante também é o trabalho feito em relação à produção de textos. Todo dia, antes de voltar para casa, o estudante tem de escrever seis linhas sobre qualquer assunto. Em um ano, todos escreveram pelo menos mil frases. Em cinco, cada um tem um livro pronto. Assim, o nível de leitura e escrita é fabuloso. NE - Como o professor deve se preparar para fazer da sala de aula um lugar de convivência democrática? Toro - O segredo é formar o professor em diferentes métodos pedagógicos. Infelizmente, os cursos de capacitação e de formação são mais discursivos que práticos e a educação é uma ciência aplicada, que precisa de muitos saberes para resolver as questões. Por isso, formar-se é um processo difícil. É preciso ter um leque muito grande de opções para atender às diversas necessidades de aprendizado. Para planejar uma boa aula são necessárias pelo menos 20 ou 30 horas de trabalho de uma equipe pedagógica. É quase impossível exigir isso do professor, hoje em dia. Ele precisa ter à disposição bons modelos de aulas, testados e avaliados em diversas comunidades. NE - Mas dessa forma ele não vira um mero executor? Toro - De jeito nenhum. Com esse banco de aulas, ele pode fazer as adaptações necessárias às suas turmas com base em métodos já aprovados, o que não toma mais do que 15 ou 20 minutos. Essa sistematização deveria ser conduzida pelas secretarias de Educação ou pelas próprias instituições de ensino, mas sempre por pessoas experientes. NE - A criatividade dos docentes pode ficar prejudicada, não? Toro - As exigências do século 21 são inúmeras e a educação tem de se adaptar a elas. Pedir para um professor desenvolver, sozinho e com os próprios recursos, toda semana, quatro ou cinco boas aulas é como falar para um médico que ele precisa fazer pesquisas antes de ministrar um remédio ao paciente, o que é um absurdo. Se ele conhece as informações da bula – resultado dos estudos feitos pelo laboratório –, apenas adapta o medicamento às características do doente. NE - O senhor acredita que mudar a prática pedagógica e facilitar o acesso a essas ferramentas traria melhores resultados em pouco tempo? Toro - Em educação, qualquer transformação se dá de forma muito lenta. Uma decisão tomada hoje vai produzir efeitos daqui a dez ou vinte anos. Por isso, é necessário que toda alteração seja muito bem fundamentada, aproveitando-se as experiências de sucesso. Uma pesquisa feita nos anos 90 com especialistas da América Latina chegou à conclusão de que algumas modificações poderiam ser implementadas sem novos investimentos. As principais são: colocar os melhores profissionais nas séries iniciais; usar todo o tempo do ano letivo para atividades com os alunos, porque o tempo pedagógico é deles e não dos docentes; e não mudar de professor durante o ano letivo. São decisões que não necessitam de leis e estão ao alcance de qualquer diretor de escola. Elas podem dar resultados em prazo mais curto. NE - O senhor se baseou em algum sistema de educação específico para elaborar os sete saberes básicos para a educação do século 21? Toro - Tirei importantes conclusões quando conheci o sistema educacional de Cuba. Os números lá são impressionantes. Esteja você de acordo ou não com o regime do governo cubano, eles conseguiram coerência entre projeto político, educação e formação de educadores. A educação, em si mesma, não serve para nada. Ela tem de servir a um projeto de sociedade. A Coréia do Sul, por exemplo, tinha 60% de analfabetismo nos anos 50. Quando o país definiu um projeto, reformou muito rapidamente seu sistema de ensino, que hoje em dia é de alta qualidade. NE - O seu país, a Colômbia, já atingiu esse estágio? Toro - Nenhum país da América Latina vive ainda uma democracia como se gostaria. Todos começaram a repensar sua sociedade há somente vinte anos, com o fim das ditaduras. Existe um longo e árduo caminho a percorrer, pois é preciso rever as instituições que nos foram impostas, repensá-las e, se for esse o caso, reconstruí-las. A educação tem de se encaixar nesse projeto político, sem ser partidária. Nos anos 70 houve uma aversão à política. Tudo se despolitizou, inclusive a educação. Por isso, ela se tornou sem sentido, sem objetivos. Uma das características fortes dos países desenvolvidos é a formação política de seus alunos. Nós negamos a formação política e ficamos com uma formação equivocada. A escola tem de refletir o projeto político da nação, porque a educação não é para um colégio nem para uma comunidade. É para um país. NE - Essa é também uma maneira de construir um espírito nacionalista? Toro - Sim, mas isso não é o mais importante. O fundamental mesmo é que esse projeto seja de natureza continental. Se não conseguirmos avançar em conjunto, não será possível um projeto democrático nem de desenvolvimento. Na educação é igual. É preciso tomar cuidado com os textos didáticos, principalmente os de Geografia e História. Geralmente, um país procura se afirmar negando ou desmerecendo os outros. Isso tem de acabar. Deve-se escolher textos que mostrem a diversidade latino-americana, que somos África, América e Europa. Isso tem de estar também na arquitetura, nos espaços e nos símbolos. Ser mestiço tem uma grande vantagem: nada é estranho, porque temos tudo dentro de nós. NE - Se essa cultura diversificada estivesse presente na sala de aula em todos os países, atentados como os que ocorreram nos Estados Unidos poderiam ser evitados? Toro - Com certeza. Quando os jovens convivem com a diversidade, se tornam adultos mais tolerantes e sabem resolver conflitos sem violência. Este é o oitavo saber para o século 21: criar no estudante uma mentalidade internacional. Ver o outro como sendo da mesma espécie é um estado superior de humanização. Se eu sei que o meu próximo é igual a mim, eu não o mato, não o destruo, não deixo que seja pobre, não deixo que tenha fome. Por isso existem as sete aprendizagens básicas para a convivência social. Elas são para todos os dias, para toda a vida. NE - Quais são elas? Toro - Aprender a não agredir seus congêneres, a comunicar-se, a interagir, a decidir em grupo, a cuidar de si próprio, a cuidar do seu entorno e a valorizar o saber cultural. A convivência social se aprende e se constrói. NE - Por que o senhor, um educador, está à frente de organizações nãogovernamentais que visam diminuir as diferenças sociais na Colômbia? Toro - Meu país está preocupado com a pobreza e os direitos humanos. Chegamos à conclusão de que somente a educação poderá reverter esse quadro. Uma das instituições que dirijo é subsidiada exclusivamente por bancos e empresas do setor financeiro, e tem por objetivo oferecer serviços e produtos para a população carente. E uma das maiores preocupações é justamente com a formação dessas pessoas. NE - Em sua opinião, quais os principais valores que devem ser desenvolvidos na escola? Toro - Em primeiro lugar, a solidariedade, ou seja, a capacidade de trabalhar bens e serviços que serão desfrutados por alguém que não sou eu. Porque se você e eu fizermos algo apenas para nós dois, isso vai se chamar máfia. O segundo é a ternura: a capacidade de perceber-se tal como se é e de receber os outros da maneira como eles são. A ternura é a base da convivência democrática. É um conjunto de valores pessoais e sociais que precisa estar fundamentado na pessoa. Finalmente, a capacidade de construir ordem para a dignidade de todos, colocando os direitos humanos como bússola ética para todas as ações, sem exceção. A democracia não crê em iluminados nem em messias. Ela acredita em pessoas comuns, capazes de criar a ordem na qual elas mesmas desejam viver.