O homem e sua hora - Mário Faustino I – BIOGRAFIA DO POETA Mário Faustino dos Santos e Silva nasceu em Teresina, no dia 22 de outubro de 1930. Deixou o Piauí aos 10 ano de idade, passando a residir em Belém do Pará. Ali, com Benedito Nunes e Haroldo Maranhão fundou a revista literária Encontro (1948). Ainda em Belém, foi chefe de redação do Jornal ―A Folha do Norte‖. Residindo posteriormente no Rio de Janeiro, a partir de 1956, desenvolve intensa atividade jornalística, como editorialista do Jornal A Tribuna da Imprensa e do Jornal do Brasil. No Suplemento Literário do Jornal do Brasil (SDJB), criou a página Poesia-Experiência, dedicada exclusivamente à Poesia. Para Benedito Nunes, o lema de Poesia-Experiência, ―repetir para aprender, criar para renovar traduzia o sadio empirismo que orienta as investigações de longo alcance. Ao propósito teórico da página concernente ao conhecimento do fenômeno poético, estética e historicamente considerado, juntava-se à finalidade de ensinar poesia.‖ (NUNES, 1966, p. 4) Essa página circulou de 23 de setembro de 1956 a 1º de novembro de 1958 e era dividida em seções, assim denominadas: Poeta Novo (destinada a divulgar poemas de autores jovens) – O Melhor em português (dedicada à publicação de clássicos portugueses) É preciso conhecer (divulgava poetas modernos estrangeiros, através de traduções) Clássicos vivos (apresentava textos de poetas antigos de épocas e nacionalidades diversas) Subsídios de crítica , ou Textos Pretextos para discussão (teoria poética de poetas críticos, como Eliot, Pound e outros) Pedras de toque (fragmentos selecionados pelo poeta, os quais considerava exemplificadores da linguagem de alto nível) – Diálogos de oficina, Fontes e correntes da poesia contemporânea e Evolução da Poesia Brasileira (as três séries de artigos ensaísticos). (1) II – PRODUÇÃO LITERÁRIA DO AUTOR Mário Faustino foi um polígrafo. Escreveu sobre vários assuntos. Produziu poesias, contos, crônicas, ensaios de poética, críticas literárias e cinematográficas, tendo ainda traduzido poetas de várias nacionalidades: franceses, espanhóis, ingleses e norte-americanos. O Homem e sua Hora é o único livro publicado em vida do poeta, pela Editora Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1955. No Balanço sobre a página que dirigia no Jornal do Brasil, Mário Faustino referiu-se a O Homem e sua hora como uma ―espécie de relatório de meia dúzia de anos de aprendizado poético‖ (Poesia-Experiência, p. 278). PUBLICAÇÕES PÓSTUMAS: - Poesia de Mário Faustino (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966, org. por Benedito Nunes) Constam além do livro O Homem e sua Hora alguns fragmentos que constituem parte do chamado poema longo, preconizado pelo poeta; - Cinco ensaios sobre poesia de Mário Faustino (Ensaios sobre poética, org. por Assis Brasil, Rio de Janeiro – Edições GRD, 1964); - Poesia-Experiência (Ensaios de poética e estudos sobre poesia. Org. por Benedito Nunes, São Paulo, Editora Perspectiva, coleção Debates, 1977) - Poesia Completa – Poesia Traduzida. São Paulo, Editora Max Limonad, 1985. Nessa edição encontramos um longo poema que o poeta deixou incompleto: ―A Reconstrução‖. Esse poema teria 8 poartes. Apenas a primeira foi feita. - Os melhores poemas de Mário Faustino (Seleção de Benedito Nunes, publicada pela Global Editora, São Paulo, 1985); - Evolução da Poesia Brasileira (Estudo crítico de nossa poesia colonial, de Anchieta a Santa Rita Durão – obra incompleta, com apresentação de Benedito Nunes, publicada pela Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador - BA, 1993); - O Homem e sua Hora e outros poemas, Mário Faustino.(Pesquisa e organização de Maria Eugênia Boaventura. Edição Companhia das Letras, 2002. Inclui além dos textos de O Homem e sua hora, poemas esparsos de Faustino, publicados na imprensa, a partir de 1948, e inéditos cedidos por Benedito Nunes). Inserem-se nessa obra o ensaio de Maria Eugênia Boaventura, ―Um militante da poesia‖ e o depoimento crítico-literário de Benedito Nunes: ―A poesia de meu amigo Mário.‖ - De Anchieta aos Concretos, Mário Faustino (Organização de Maria Eugênia Boaventura, o livro reúne textos sobre a poesia brasileira de quatro séculos – São Paulo, Companhia das Letras, 2003); - Artesanatos de Poesia: Fontes e correntes da poesia ocidental (Reúne textos de Mário sobre poetas da modernidade, como Edgar Allan Poe, Baudelaire, Pound e outros; organização de Maria Eugênia Boaventura, São Paulo, Companhia das Letras, 2004). III – ESTILO DE ÉPOCA (SITUAÇÃO HISTÓRICO-LITERÁRIA) No quadro literário brasileiro, Mário Faustino pertence ao grupo de poetas que se situam entre a geração neomodernista de 1945 e as experiências vanguardistas da década de 1950. Manuel Bandeira e Walmir Ayala denominam esse momento de ―Poesia até agora & Vanguardas‖. Para Assis Brasil, esses poetas, ―conformados‖ entre a geração pós-modernista (1945) e as experiências de vanguarda, pagaram um tributo demasiado longo ao que denomina ―Tradição da imagem.‖ Mesmo durante o período de vigência das vanguardas brasileiras (Concretismo, 1956; Tendência, 1957; Neoconcretismo, 1959; Práxis, 1962; Violão de Rua, 1962; Poema Processo, 1967 e Tropicalismo, 1968 – sendo estes dois últimos movimentos deflagrados após a morte de Faustino), os poetas dessa geração, embora receptivos aos avanços da arte poética, absorvendo tranquilamente os experimentos dessas vanguardas, mantêm-se irredutíveis quanto ao modo de produção, isto é, absolutamente autônomos na resolução de uma experiência pessoal marcada por um lirismo metafísico e acima de tudo metafórico, dentro de uma evolução nitidamente linear e inteiramente independentes da geração de 1945. São poetas desse movimento: Mário Faustino, Homero Homem, Walmir Ayala, Alberto Costa e Silva, Marly de Oliveira, Affonso Ávila, Affonso Romano de Sant’Anna, dentre outros. (BRASIL, 1973, p.25 e BANDEIRA; AYALA, 1996, p.129). IV – FASES LITERÁRIAS DO POETA. Convém mencionar que o estudo das fases literárias de Faustino, embora tenham como ponto de partida o trabalho de Augusto de Campos, ―Mário Faustino, o último ―Verse Maker‖, de 1978, na Seleta que organizamos e que foi publicada pela Editora Corisco e Academia Piauiense de Letras, (EULALIO, 2000, p. 43), por circunstâncias didáticas, propomos: 1ª FASE: Inicial ou pré-moderna. Anterior ao Concretismo. Poemas publicados entre 1948 e 1955. Augusto de Campos denomina essa fase ―A da integração da tradição no moderno‖. Nela o autor inclui o livro ―O Homem e sua Hora‖ e mais 14 outros poemas que constituem a primeira parte dos ―Esparsos e Inéditos‖ (divulgados por Benedito Nunes após a morte do poeta). CARACTERÍSTIAS da 1ª Fase: Formas poemáticas tradicionais: canção, ode, balada, soneto; os poemas em geral são expressos em sonetos; predominam os versos decassílabos, refletindo a preocupação com o metro tradicional; linguagem metafórica, com repetições anafóricas, elipses e paronomásias; exercício reiterado da função emotiva da linguagem. 2ª FASE: Moderna ou experimental. Posterior ao Concretismo. Poemas escritos entre 1956 e 1958. Essa fase consta de apenas oito poemas ou fragmentos (2ª parte dos Esparsos e Inéditos), sendo o primeiro poema intitulado 22.10.1956 (data de aniversário do poeta). CARACTERÍSTICAS da 2ª Fase: Formas livres, poesia espacial; objetividade; ruptura com a fase anterior; emprego da fragmentação; associação sem conexões sintáticas (livre combinação de vocábulos); preferência pela coordenação (parataxe); poesia sob a influência do Concretismo, cujas formas livres substituem o soneto. 3ª FASE: Pós-Moderna a da integração do moderno na tradição – conforme Augusto de Campos. Compreende os poemas escritos entre 1959 e 1962. Essa fase podemos também denominá-la ―Fase dos fragmentos.‖ CARACTERÍSTICAS da 3ª Fase: Produção de fragmentos; fase de definição estética do autor; predominam poemas de circunstância; fragmentos sem títulos; presentes ainda temas das fases anteriores: amor, morte, tempo e eternidade; esboço do projeto literário e existencial do poeta: o poema longo. Os textos refletem uma obra em progresso, à qual deveria acompanhar a vida do poeta até a morte, daí o sentido do termo ―poema longo‖, atribuído pelo autor. Pretendia reunir um bom número de fragmentos e publicá-los de cinco em cinco anos. V – ESTILO INDIVIDUAL A linguagem poética de Mário Faustino é altamente elaborada, com senso de disciplina e ritmo preciso. Por essa razão é tida por alguns como hermética. Ao construir poemas, em formas tradicionais, a exemplo dos bons poetas da língua, entendia a forma como possibilidades de novas estruturas. Daí a capacidade que possuía de transitar da forma tradicional para variantes poemáticas próprias. Exemplo do que afirmamos são suas experiências com o soneto. Manejou o enjambement com muita fluência. Mário Faustino foi um poeta cuja experiência criadora alternou-a com a experiência reflexiva de crítico, produzindo por conseguinte inúmeros poemas metalinguísticos que questionam o fenômeno da criação literária. Tinha predileção pela metáfora e por construções anafóricas. Valoriza o emprego de substantivos e verbos. Por contenção verbal, restringe o emprego de adjetivos. VI - CARACTERÍSTICAS DO AUTOR • O autor pertence a Geração de 45 e representava temas frequentemente melancólicos, agregando metáforas e mitos colhidos na tradição clássica e cristã. • Escrevia sob o no lema ―repetir para aprender, criar para renovar‖, baseado nas lições do poeta americano Ezra Pound. Também recebeu influência de Jorge de Lima. • Quando o livro O Homem e Sua Hora foi publicado em 1955, o panorama literário brasileiro passava por uma confluência de estéticas. De um lado, o pós modernismo ou a geração de 45; do outro, o surgimento de vanguardas brasileiras (Concretismo, Poesia Práxis, Poema Processo,...). • O autor de O Homem e Sua Hora (1955) só publicou esta obra em vida. Sua intenção era fazer um longo poema. Esse projeto ambicioso consistiria na reunião de vários poemas menores (fragmentos) que seriam justapostos, criando uma unidade poética. • É o próprio autor que ressalta a sua forma de criação literária em carta ao crítico Benedito Nunes: "Conto-te como trabalho. De certo modo estou procurando fazer em poesia aquilo que, em mística, os santos chamam de oração contínua. Isto é: penso (quando verdadeiramente penso...) já em estado de poesia. Se posso, se estou sozinho, se tenho papel e lápis à mão, vou escrevendo em bruto , da mesma maneira que em cinema se tomam takes que mais tarde serão montados . Essa parte do meu trabalho se confunde com a minha vida , i. e., com minha verdadeira vivência". • Poesia é trabalho técnico e também um instrumento de comunicação com a humanidade e a revelação dessa mesma humanidade na sua essência para o próprio homem. • É um autor hermético (fechado, difícil) produtor de textos marcadamente subjetivos com metáforas inusitadas. • Uso constante da metalinguagem e da intertextualidade. • Preferência pelo decassílabo; presença da mitologia cristã e pagã; dá maior importância à melodia, ritmo, criação de metáforas do que à elaboração de um discurso racional. • Recebeu influências do Simbolismo (metáforas sugestivas, aliterações, assonâncias, universo místico) e do Barroco (fusão entre elementos opostos – mitologia cristã e pagã). VII - CARACTERÍSTICAS DA OBRA • Pode-se perceber um fio condutor de sua poesia. Depois do anúncio da manhã (no poema PREFÁCIO que sugere o nascimento da própria poesia), temos a obra dividida em três partes: • Primeira – A experimentação própria da juventude em disjecta membra (membro partido, esquartejado). A expressão lembra o poeta Horácio. São 13 poemas em que o autor faz experiências com a forma do verso testando diversos metros. • Escolha de assuntos conhecidos como a morte, o amor e o tempo. Repetição de imagens como a de Cristo, do sol e do ouro. • Segunda – A maturidade dos sete sonetos de amor e morte. • Um soneto é normalmente dividido em estrofes, mas o autor prefere não fazer essa divisão. • Terceira - Tempo de morte e renascimento: o homem e sua hora. • Essa parte é constituída de apenas um poema (O homem e sua hora) com 235 versos em tom triste: ―Esta é outra estação, é quando os frutos / apodrecem e com eles quem os come‖. VIII – A OBRA ―O HOMEM E SUA HORA‖ O livro constitui-se de 22 poemas, incluindo o soneto ―Prefácio‖ que antecede aos demais textos. A obra é dividida em três partes: 1ª parte – DISJECTA MEMBRA (título inspirado nas palavras de Horácio, célebre poeta latino, que viveu no ano 65 a.C., autor do famoso tratado de poesia ―Arte Poética‖. A frase original, retirada da obra Sátiras é: ―Disjecti membra poetae: ―Os membros do poeta esquartejado‖, completáveis assim: não seriam reconhecíveis se lhes desfizéssemos o ritmo e a disposição da frase.‖ Compõe-se de 13 poemas: Mensagem, Brasão, Noturno, Vigília, Legenda, Romance, Vida toda linguagem, Estrela Rocha, Alma que foste minha, Solilóquio, Mito, Sinto que o mês presente me assassina e Haceldama. 2ª parte – SETE SONETOS DE AMOR E MORTE (todos em decassílabos e escritos à maneira inglesa: os quatorze versos são compactados numa só estrofe): O mundo que venci deu-me um amor,Nam sibyllam (do latim, é certo Sibila), Inferno, eterno inverno, quero dar, Agonistes (do grego, lutador, atleta), Onde paira a canção recomeçada, Ego de Mona Kateudo (do grego pelo latim: e eu jazo sozinha),Estava lá Aquiles que abraçava. 3ª parte – Constituída por um único texto que a que deu o título à obra. Trata-se do poema O homem e sua hora. Contém 235 versos, decassílabos na quase totalidade. É a síntese do projeto poético de Mário Faustino. Determinados trechos são difíceis de compreendê-los, pois exigem do leitor conhecimentos sobre mitologia, literatura bíblica e greco-latina. Trata-se de um longo diálogo do poeta com o mundo, sugerindo mais do que afirmando. A intertextualidade se faz presente através de referências aos livros do Antigo e do Novo Testamento, passando por Homero, Safo, Confúcio, Virgílio, Homero, Dante, Pound, Mallarmé, Eliot, Jorge de Lima etc. Os versos surgem numa cadeia sintática descontínua e reticente, instaurando no texto o pensamento fragmentário e analógico, tornando o tom ambíguo cada vez mais saliente no poema. É também propósito do autor enunciar, ao longo do poema, princípios da linguagem poética que devem nortear os seus versos, privilegiando os pressupostos de Ezra Pound: fanopeia (atribuição de imagens à imaginação visual), logopeia (a dança do intelecto entre palavras) e melopéia (musicalidade). IX – PRINCIPAIS TEMAS DO LIVRO ―O HOMEM E SUA HORA‖ O autor desenvolve os seus temas de modo antagônico. Para Benedito Nunes, ―Amor e morte, tempo de eternidade, sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e perdição, pureza e impureza, Deus e o homem, passam e repassam, sob diferentes nomes e em diferentes situações, nos versos do livro O Homem e sua Hora.‖ (NUNES, 1966, p. 5). O tempo: misto de efêmero e de eterno, de ilusão e realidade. Há também o tempo que destrói e consome nossa existência, em momentos de solidão e angústia. Sua poesia sempre espelha a consciência de um estado em crise. Seja no âmbito literário (ex.: o soneto Prefácio), seja na esfera pessoal (ex.: o soneto O mundo que venci deu-me um amor). A poesia, o poeta e o poema são temas presentes em todo o livro. Poesia com fins didáticos. O poeta ora é visto como artista e artesão, ora como cantor inspirado e fecundador. O poema é concebido como produto da inspiração e do intelecto. Há também momentos em que o autor, a exemplo de João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, teoriza sobre a poesia dentro do próprio poema, estabelecendo a fusão entre as funções poética e metalinguística. É oportuno ressaltar que todos o temas assumem diferentes matizes ou subtemas. X – POEMAS DO LIVRO ―O HOMEM E SUA HORA‖ (SELETA) PREFÁCIO Quem fez esta manhã, quem penetrou À noite os labirintos do tesouro, Quem fez esta manhã predestinou Seus temas a paráfrases do touro, A traduções do cisne: fê-la para Abandonar-se a mitos essenciais, Desflorada por ímpetos de rara Metamorfose alada, onde jamais Se exaure o deus que muda, que transvive. Quem fez esta manhã fê-la por ser Um raio a fecundá-la, não por lívida Ausência sem pecado e fê-la ter Em si princípio e fim: ter entre aurora E meio-dia um homem e sua hora. BRASÃO Nasce do solo sono uma armadilha Das feras do irreal para as do ser - Unicórnios investem contra o Rei. . Nasce do solo sono um facho fulvo Transfigurando a rosa e as armas lúcidas Do campo de harmonia que plantei. Nasce do solo sono um sobressalto. Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelos Corcéis da fuga de ouro que implorei. E nasce nu do sono um desafio. Nasce um verso rampante, um brado, um solo De lira santa e brava – minha lei Até que nasça a luz e tombe o sonho, O monstro de aventura que eu amei. MENSAGEM Em marcha, heroico, alado pé de verso, busca-me o gral onde sangrei meus deuses: conta às suas relíquias, ontem de ouro, hoje de obscura cinza, pó de tempo, que ele os venera ainda, o jogral verde que outrora celebrou seus milagres fecundos. Dize a eles que vinham tecer silentes minha eternidade que a lava antiga é pura cal agora e queima-lhes incenso, e rouba-me farrapos de seus mantos desertos de oferendas onde possa chorar meu disfarce ferido. Dize a eles que tombem Como chuvas de sêmen sobre campos de sal sem mancha, mas terríveis que desçam sobre a urna deste olvido e engendrem rosas rubras do estrume em que tornei seus dons de trigo e vinho. Segue, elegia, busca-me nos portos e nas praias de Antanho, e nas rochas de Algures os deuses que afoguei no mar absurdo de um casto sacrifício. Apanha estas palavras do chão túmido onde as deixo cair, findo o dilúvio: forma delas um palco, um absoluto onde possa dançar de novo, nu contra o peso do mundo e a pureza dos anjos, até que a lucidez venha construir um templo justo, exato, onde cantemos. SETE SONETOS DE AMOR E MORTE I – O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMOR O mundo que venci deu-me um amor, Um troféu perigoso, este cavalo Carregado de infantes couraçados. O mundo que venci deu-me um amor Alado galopando em céus irados, Por cima de qualquer muro de credo, Por cima de qualquer fosso de sexo. O mundo que venci deu-me um amor Amor feito de insulto e pranto e riso, Amor que galga o cume ao paraíso. Amor que dorme e treme. Que desperta E torna contra mim, e me devora E me rumina em cantos de vitória... II– NAM SIBYLLAM Lá onde um velho corpo desfraldava As trêmulas imagens de seus anos; Onde imaturo corpo condenava Ao canibal solar seus tenros anos; Lá onde em cada corpo vi gravadas Lápides eloquentes de um passado Ou de um futuro arguido pelos anos; Lá cândidos leões alvijubados As brisas temporais se espedaçavam Contra as salsas areias sibilantes; Lá vi o pó do espaço me enrolando Em turbilhões de peixes e presságios Pois na orla do mundo as delatantes Sombras marinhas, vagas, me apontavam. III – INFERNO, ETERNO INVERNO, QUERO DAR Inferno, eterno inverno, quero dar Teu nome à dor sem nome deste dia Sem sol, céu sem furor, praia sem mar, Escuma de alma à beira da agonia. Inferno, eterno inverno, quero olhar De frente a gorja em fogo da elegia, Outono e purgatório, clima e lar De silente quimera, quieta e fria. Inverno, teu inferno a mim não traz Mais do que a dura imagem do juízo Final com que me aturde essa falaz Beleza de teus verbos de granizo; Carátula celeste, onde o fugaz Estio de teu riso - paraíso? IV - AGONISTES Dormia um redentor no sol que ardia O louro e a cera, dons hipotecados Da carne postulada pelo dia; Dormia um redentor nos incensados Lençóis que a lua póstuma cobria De mirra e de açafrões embalsamados; Dormia um redentor no navegante Das mortalhas de escuma que roía O verme de seus sonhos abafados; E até no atol do sexo triunfante Do mar e da salsugem da agonia Dormia um redentor: e era bastante Para acordá-lo o verso que bramia No cérebro do atleta e lá morria. V – ONDE PAIRA A CANÇÃO RECOMEÇADA Onde paira a canção recomeçada No capitel de acanto de teu lar? Onde prossegue a dança terminada Nas lajes de meu tempo de chorar? Rapaz, em minhas mãos cheias de areia Conto os astros que faltam no horizonte Da praia soluçante onde passeia A espuma de teu fim, pranto sem fonte. Oh juventude, um pálio de inocência Jamais se estenderá sobre outra aurora Mais clara que esta clara adolescência Onde o lupanar da noite hoje devora: Que vale o lenço impuro da elegia Sobre teu rosto, lúcida alegria? VI – EGO DE MONA KATEUDO Dor, dor de minha alma, é madrugada E aportam-me lembranças de quem amo. E dobram sonhos na mal-estrelada Memória arfante donde alguém que chamo Para outros braços cardiais me nega Restos de rosa entre lençóis de olvido. Ao longe ladra um coração na cega noite ambulante. E escuto-te o mugido, Oh vento que meu cérebro aleitaste, Tempo que meu destino ruminasse. Amor, amor, enquanto luzes, puro, Dormindo é claro, eu velo em vasto escuro, Ouvindo as asas roucas de outro dia Cantar sem despertar minha alegria VII – ESTAVA LÁ AQUILES, QUE ABRAÇAVA Estava lá Aquiles, que abraçava Enfim Heitor, secreto personagem Do sonho que na tenda o torturava; Estava lá Saul, tendo por pajem Davi, que ao som da cítara cantava; E estavam lá seteiros que pensavam Sebastião e as chagas que o mataram. Nesse jardim, quantos as mãos deixavam Levar aos lábios que o atraiçoaram! Era a cidade exata, aberta, clara: Estava lá o arcanjo incendiado Sentado aos pés de quem desafiara; E estava lá um deus crucificado LEGENDA No princípio Houve treva bastante para o espírito Mover-se livremente à flor do sol Oculto em pleno dia. No princípio Houve silêncio até para escutar-se O germinar atroz de uma desgraça Maquinada no horror do meio-dia. E havia, no princípio, Tão vegetal quietude, tão severa Que se estendia a queda de uma lágrima Das frondes dos heróis de cada dia. Havia então mais sombra em nossa via. Menos fragor na farsa da agonia, Mais êxtase no mito da alegria. Agora o bandoleiro brada e atira Jorros de luz na fuga de meu dia — E mudo sou para contar-te, amigo, O reino, a lenda, a glória desse dia. ROMANCE Para as Festas da Agonia Vi-te chegar, como havia Sonhado já que chegasses: Vinha teu vulto tão belo Em teu cavalo amarelo, Anjo meu, que, se me amasses: Em teu cavalo eu partira Sem saudade, pena ou ira; Teu cavalo, que amarraras Ao tronco de minha glória E pastava-me a memória, Feno de ouro, gramas raras. Era tão cálido o peito Angélico, onde meu leito Me deixaste então fazer, Que pude esquecer a cor Dos olhos da Vida e a dor Que o Sono vinha trazer Tão celeste foi a Festa, Tão fino o Anjo, e a Besta Onde montei tão serena Que posso, Damas, dizer-vos E a vós, Senhores, tão servo De outra Festa mais Terrena – Não morri de mala sorte, Morri de amor pela Morte O HOMEM E SUA HORA* (Fragmentos) ...Et in saecula saeculorum: mas Que século, este século – que ano Mais-que-bissexto, este – Ai, estações – Esta estação não é das chuvas, quando Os frutos se preparam, nem das secas, Quando os pomos preclaros se oferecem. (Nem podemos chamá-la primavera. Verão, outono, inverno, coisas que Profundamente, Herói, desconhecemos...) Esta é outra estação, quando um mês tomba, O décimo-terceiro, o Mais-que-Agosto, Como este dia é mais que sexta-feira E a Hora mais que sexta e roxa. ........................................................................ Nox ruit, Aenea, tudo se acumula Contra nós, no horizonte. As velas que ontem Acendemos ou brancas enfunamos O vento apaga e empurra para o abismo. ........................................................................ Em cemitérios amorosos, eu, Pigmalion, talharei a nova estátua: Estátua de marfim, cândida estátua, Mulher primeira, fêmea de ar, de terra, De água, de fogo – Hephaistos, sobe, ajuda-me A compor essa estátua; fácil corpo, Difícil Face, Santa Face – falta O sopro acendedor de tua esperta Inspiração... ........................................................................... Pronta esta estátua, agora, os deuses e eu Miramos o milagre: branca estátua De leite, gala, Galateia, límpida Contrafação de canto e eternidade... (,,,) Tomba a noite, Mas pronta é nossa estátua, armada e tão Plácida, prestes, pura quanto Pallas Bordando seus bordados sem brandir Égide aterradora. Parte, estátua, Na terra cor de carne as vias fremem Duras de sangue e seixos – vai aos homens Ensinar-lhes a mágica olvidada: Ensinar-lhes a ver a coisa, a coisa, Não o que gira em torno dela, (...) Vai, estátua, levar ao dicionário A paz entre palavras conflagradas. Ensina cada infante a discursar Exata, ardente, claramente: nomes Em paz com suas coisas, verbos em Paz com o baile das coisas, oradores Em paz com seus ouvintes, alvas páginas Em paz com os planos atros do universo – ..................................................................... (...) Retorna a mim, que passarei mil anos A contemplar-te, ouvir-te, cogitar-te. Vênus fará de teu marfim fecunda Carne que tomarei por fêmea, carne Feita de verbo, cara carne, mãe De Paphos, filho nosso, que outra ilha Fundará, consagrada a tua música. Teu pensamento, paisagem tua. Ilha sonora e redolente, cheia De pios templos, cujos sacerdotes Repetirão a cada aurora (hrodo, Hrododáktulos Eos, brododáktulos!) ** Que Santo, Santo, Santo é o Ser Humano -Flecha partindo atrás de flecha eterna Agora e sempre, sempre, nunc et semper...