Risco, Promoção de Saúde, Estilos de vida: Caso do tabagismo Ana Luísa Porfírio Nº 27207 email: [email protected] Aluna da Universidade de Évora – Curso de Sociologia Resumo: Este artigo pretende demonstrar de que forma com a evolução das sociedades para a pós-modernidade se metamorfoseou em uma sociedade de risco, introduzindo no discurso societário a noção de risco. Podendo o risco pode ser encarado em diferentes perspetivas da vida, acaba mais vincado no que concerne à própria saúde e sua promoção. O conceito de risco tem pautado a sociedade, levando à criação de mecanismos para a sua predição e eventual, controlo. A vida gira hoje em dia em torno do conceito de risco, daí que seja importante saber como este afeta as próprias vivências tanto individuais como coletivas, trazendo para a arena da discussão, conceitos como liberdade individual e controlo social. Palavras-chave: risco; promoção de saúde; saúde pública; estilos de vida Abstract: This article aims to show the way in which society’s evolution into a postmodernity metamorphosed it into a society of risk, introducing this concept into the social discourse. Since risk can be seen in several aspects of life, it is perhaps more intimately connected with one’s health and health promotion. Thus, having been an integral part of society, the concept of risk has led to the creation of mechanisms to predict it and eventually control it. Today’s life, orbiting around this key concept, makes it crucial to realize how it affects the individual experiences as much as the collective ones, bringing into focus the notions of individual liberty and social control. Key-words: risk; health promotion; public health; lifestyles 1 1. Introdução Graças ao desenvolvimento tecnológico e à própria incerteza que o conhecimento gera hoje em dia, assistiu-se a uma mudança do paradigma social, uma passagem da modernidade para a pós-modernidade. Com tal, houve uma série de agravantes, não observáveis em épocas anteriores, como por exemplo o caso do “risco”, fator causador de incertezas e ignorância sobre o que há de vir. É caracterizado como um conceito ambivalente, estar em risco é a forma de estar e de ser no mundo da pós-modernidade, encontrar-se em constante risco global é a condição humana do século XXI (BECK, 2008). A sociedade moderna (e por ventura pós-moderna) tornou-se uma sociedade de risco na forma como é ocupada e gerida pelo debate constante de prevenção e controlo dos riscos que ela própria produz. Devido às diversas publicações de ULRICH BECK (2008), tais como, “Sociedade de Risco” e “Modernização reflexiva”, este conseguiu introduzir no seio académico a noção de risco na modernidade tardia ou pós-modernidade, em que os riscos são potencialmente atraídos. O risco ao ser um termo bastante recente e essencialmente moderno, é pautado e conotado com ironia em torno da sua própria definição, no que toca à natureza sarcástica, em que o crescente desenvolvimento tenta antecipar, o que “não pode” ser antecipado. Ele é reflexo da reorientação das relações das pessoas com eventos futuros, numa espécie de “domesticação dos eventos vindouros” Se antes da época moderna o perigo implicava fatalidade, agora ele (re)construiu-se em controlo possível. 2. O conceito de risco Em que termos se coloca então o conceito risco? Vários autores (GIDDENS 2000; BECK 2006; 2008) defendem que o risco pode ser a produção de danos gerados por decisões humanas por oposição ao perigo que importa à produção de danos imputáveis a causas alheias ao próprio controlo, externas à decisão e afetando o entorno, sejam de origem humana ou natural. BECK ao celebrizar a expressão, “definições de relações” (sendo esta análoga às relações de produção de MARX), caracteriza os riscos como construídos socialmente e catastroficamente manufaturados, através da opinião pública e também graças à intervenção dos mass media espalhando a mensagem, globalizando-a. Engloba nestas ditas relações todas as instituições, sejam elas ciência, tecnologia, estados, entre outras, e as capacidades de estruturar e definir os riscos. Numa versão redutora do conceito de risco, aparece caracterizado como a possibilidade ou probabilidade sobre a ocorrência de eventos 2 futuros associados a uma certa ambiguidade decorrente das diversas dinâmicas do mundo social, “o que pode acontecer”. “Risks such as those produced in the late modernity differ essentially from wealth. By risks I mean above all radioactivity, which completely evades human perceptive abilities, but also toxins and pollutants in the air, the water and foodstuffs, together with the accompanying short and long-term effects on plants, animals and people. They induce systematic and often irreversible harm, generally remain invisible, are based on causal interpretations, and thus initially only exist in terms of the knowledge about them.” (BECK, 1992 cit. COTTLE, 1998:7) O risco não implica necessariamente a condição de catástrofe, mas sim a sua antecipação. Existe permanentemente num estado de “virtualidade” (está lá, mas não se vê) e tornou-se capilar no que toca à forma como se estende, propaga-se e é antecipado. Segundo GIDDENS (2000) há uma virtualização da sociedade, embora não exista no mundo físico, ele encontra-se no virtual, tornando assim passível de se “materializar”. “Risco não é real, ele torna-se real” (JOOST VAN LOON cit. BECK, 1998) O risco é um fenómeno socialmente (“definições de relações”) construído. Se as formas simbólicas de representação, as formas de visualização e os mass media, não existissem, os próprios riscos não existiriam. Ou seja, não haveria forma de propagá-los e dá-los a conhecer às sociedades. Denota-se assim um cruzamento entre sociedade de risco e globalização no que toca aos riscos com o seu caráter democrático e a-fronteiriço ele afetará tanto diversas nações como as próprias classes sociais. As desigualdades sociais existentes dão grande força a como os atores maximizam os riscos para os outros e os minimizam para “eles próprios”, existindo claramente um jogo de poder na gestão de risco, onde existe uma relativa linearidade evolutiva entre a sociedade de classes e a sociedade de risco. O risco nas sociedades antigas era encarado como dependendo da vontade de Deus e na incapacidade total do ator individual controlar ou prever. VAN LOON (cit. BECK, 2006) quando se refere à expressão “God leaves it” sugere que o risco só apareceu da necessidade do humano ter controlo sobre algo, gerando o conceito de risco para ele próprio. Agora assiste-se à evolução de novos tipos de riscos, onde as fundações e alicerces das ditas sociedades pós-modernas e modernas são abaladas 3 pela antecipação global das catástrofes. Os riscos têm vindo a tomar a sua preocupação no sentido em que o risco passa a ser a expressão central da sua preocupação, quando os mesmos dão origem a desastres, acidentes graves ou quando não existe consenso sobre o efeito que eles possam produzir. Há sempre cenários de incerteza, onde os resultados não estão garantidos à partida. Segundo DOUGLAS e WILDAVOSKY (1982, cit. AREOSA 2008) o risco, ao ser socialmente construído, por vezes afigura-se como algo incontrolável, visto que nós nem sempre conseguimos saber se aquilo que estamos a fazer é suficientemente seguro para prevenir a ocorrência de acidentes ou efeitos indesejados. Os riscos dependem também dos contextos, emoções e sentimentos percecionados dos mesmos, todo o mundo é um local repleto de riscos insuspeitos dependendo claro, da sua natureza cultural. “Nada é certo além da incerteza.” ULRICH BECK “As incertezas são fabricadas na sociedade reflexiva.” BECK e GIDDENS LUHMANN (1993, cit. AREOSA 2008) encara o risco como sendo um conceito versus ao perigo. O perigo é encarado como sendo as consequências ou prejuízos de um determinado acontecimento ocorrerem de forma independente da nossa vontade. Ou seja, se a origem do evento provir de fontes externas. Por sua vez, o risco é um ato em que teve lugar em decisões próprias. Por sua vez DOUGLAS (1982, cit. AREOSA 2008), encara o risco como sendo o mesmo que perigo. Mas, tanto numa conceção de risco como em outra, o conceito relata apenas factos negativos e indesejáveis, e nunca factos positivos. (MENDES, 2002). Por exemplo, quem fuma aceita o risco de morrer de cancro embora para quem inala o fumo dos outros o cancro, pode ser visto como um perigo. Segundo AREOSA (2008), o risco é um desvio à norma. Não há decisões ou comportamentos livres de risco. Se não arriscarmos nada não podemos perder nada, pois apenas a ação é suscetível de constituir risco. DEAN (s/d, cit. AREOSA 2008) refere-se ao risco como sendo uma forma de racionalidade passível de acionar uma panóplia de técnicas que aspiram a tornar o incalculável em calculável. O discurso em torno do risco tornou-se uma estratégia política e uma forma dialética de negociar entre os perigos públicos e os medos privados, dando ênfase 4 assim mais uma vez à questão do jogo de poder. No risco existe um paradoxo entre o progresso humano juntamente com o desenvolvimento industrial, visto que estes além de todas as vantagens que acarretam são também criadores de sistemas prejudiciais para o ambiente, gerando por sua vez ansiedade e cinismo face ao progresso visto que os riscos afetam globalmente tanto no presente como no futuro. 3. Risco e Promoção de Saúde Pública A gestão dos riscos é um fenómeno novo, uma forma de governar populações, caracterizando o fim da sociedade disciplinar, ou da modernidade clássica, e o princípio da modernidade reflexiva, a sociedade de risco. Para cada risco identificado, criam-se agências governamentais reguladoras com a contratação de especialistas e a formação de comissões técnicas responsáveis pela avaliação dos riscos. Por exemplo, a Comissão Europeia elaborou orientações importantes para ajudar os EstadosMembros, os empregadores e os trabalhadores a cumprirem os seus deveres no âmbito da avaliação de riscos, estando estas em conformidade com a Diretiva-Quadro 89/391 (legislação comunitária importante em matéria de avaliação de riscos). Pelas mãos de COVELLO e MUMPOWER (1985, cit. FREITAS 2002) em abordagem histórica de análise e gerenciamento de riscos, principalmente nos Estados Unidos, apontaram como sendo nove os fatores importantes, para a compreensão das transformações que levaram ao modo contemporâneo de pensar e enfrentar os riscos nos países centrais da economia mundial. Como decorrência, uma nova área de conhecimento é estabelecida com centros de pesquisa, associações científicas e periódicos especializados. O risco existe, só porque existe a noção de controlo. A biomedicina e a epidemiologia (baseia-se em probabilidades sem certezas do resultado, pode-se questionar tanto a incerteza das suas previsões bem como as origens dos procedimentos simbólicos e políticos sem a perceção e a aceitabilidade do risco) dizem quais os comportamentos de risco e os indivíduos que estão em risco. A avaliação dos riscos que se encontram ligados aos estilos de vida dos sujeitos e que resultam de opções individuais, é usada entre a saúde pública para aconselhar os sujeitos sobre a prevenção de ameaças à sua saúde física, para promover conhecimentos sobre os potenciais perigos associadas às opções dos estilos de vida e depois motivar os sujeitos para participarem na promoção de saúde e nos programas de educação para a saúde. Dá-se a perceção da suscetibilidade de risco sobre a doença de forma a motivar e agirem consoante as políticas de saúde pública mandam. Segundo LUPTON (1995, cit MENDES 2002), o processo de se sujeitar à 5 determinação social do risco assemelha-se a uma confissão religiosa. Os sujeitos são incitados a revelarem os seus pecados aos profissionais de saúde, ou então os seus corpos são testemunho mudo para a sua indulgência. Assim quando a determinação do risco é finalizada, a sentença é comunicada aos sujeitos e são prescritas as penitências de forma a repor a moral e a integridade do corpo (LUPTON, 1997). Por outras palavras, aquando o término do diagnóstico médico ao paciente, é-lhe informada da sua condição física e daí, recebe um receituário onde são prescritas drogas/medicamentos restaurando-lhe assim a moral e a condição física “ideal”. A “nova” Saúde Pública surgiu criando um elevado enfâse nas questões da promoção da saúde, bem como no incentivo à própria autonomia do público para tomadas de decisão sobre a saúde, através da intervenção nos seus condicionantes estruturais. Contudo a educação em saúde permanece geralmente centrada na responsabilização individual da prevenção das doenças. A nova visão de saúde pública surgiu nos anos 70 às mãos de MARC LALONDE 1 aquando da publicação do seu artigo “The new perspetives on the health of canadians”. Com ele, ressurgiu um novo ar dando influência de fatores ambientais, dos comportamentos individuais e os modos de vida (estilos de vida), na ocorrência de doenças e morte. A promoção de saúde visa nesse documento as melhorias ambientais e as mudanças de comportamento de forma a evitar a doença. Segundo a OMS, a promoção da saúde tende para a redução das desigualdades sociais, construção da comunidade ativa e empowered. O indivíduo deve ser estimulado a tomar decisões sobre a sua própria vida, gerando uma noção de autonomia que cria um ideal de autogoverno do self. A abordagem preventiva da educação em saúde trabalha com a ideia de que os modos de vida dos indivíduos – regime alimentar defeituoso, falta de exercício físico, tabagismo – são as principais causas de falta de saúde. Hábitos insalubres são tidos como consequência de decisões individuais e equivocadas. A falta de saúde do indivíduo é caracterizada como uma falha moral do próprio existindo em torno dele um discurso de culpabilização da “vítima” pelo seu próprio infortúnio. O conceito de risco individualiza-se no que MENDES (2002) denomina “Auto gerenciamento”: supõe-se que as pessoas, valendo-se de informações suficientes, adotem comportamentos propícios à sua saúde, eliminando todos os riscos da sua vida de forma a alcançarem a saúde plena. 1 (Minister of National Health and Welfare entre November 27, 1972 - September 15, 1977, no Canadá) 6 A saúde pública e a promoção da saúde trouxeram um novo discurso sobre a moralidade do risco. Há uma distinção moral entre aqueles que estão em risco e os que “são um risco” para os outros. O risco no campo da saúde individual e coletiva poderá ser visto como “pecado”? Segundo DOUGLAS (s/d, cit. AREOSA 2008), o pecado é diferente de risco no que concerne às forças que o provocam enquanto as forças exteriores atuantes sobre o indivíduo constituem o risco aqueles perigos que ele próprio coloca à sociedade constituem o pecado. O risco penetra na sociedade, na vida social e individual, moraliza e politiza todos os comportamentos e perigos. Por sua vez nos estilos de vida há uma subversão do discurso, em que os perigos para a saúde estão fora do controlo do indivíduo. Acarreta uma responsabilização dos sujeitos, de forma a evitarem riscos e a cuidar da saúde como se fosse o maior bem. Os sujeitos que ignoram os riscos de saúde colocam-se em perigo, adoecem, afastando-se da normalidade e do desejável desempenho das suas funções. Poderão incorrer em encargos para o resto da sociedade em que se encontram inseridos e podem também expor os outros ao seu próprio mal (por exemplo, fumar em lugares públicos, ou com outras pessoas por perto). Entre o risco e pecado, há uma relação simbólica que é invertida quando o ator não tem força de vontade, moral fragilizada ou preguiça para atuar de forma contrária. Os sujeitos em risco tornam-se assim pecadores, são os chamados risk takers caracterizados como irracionais e irresponsáveis, incapazes de dominar o self (por exemplo, pessoas propensas a doença cardiovascular, fumadores, obesos e com stress, suportam-na e sustentam-na). Uma forma de solidariedade social da modernidade tardia é o próprio medo do risco que leva à formação de uma coesão social, lutando para manter a homeostase física de todos os indivíduos societários, incorrendo em proibições que possam prejudicar além dos próprios (e muito acima deles), terceiros que se vejam envolvidos, gerando desigualdades de comportamentos e criando em alguns, certas frustrações relativas a todos os constrangimentos. A promoção de saúde e a saúde pública atuam sobre os indivíduos, coagindoos de forma a terem comportamentos saudáveis ou mesmo considerados comportamentos compatíveis com a saúde, saúde que eles próprios definem como “boa” ou “má” a partir de critérios próprios. Há um acentuar do individualismo e do behaviorismo, em que o individualismo não pensa, não relaciona, nem reflete sobre os fatores sociais que originam todos os comportamentos, mas sim no próprio indivíduo, 7 reduzindo a sua saúde ao próprio self, como se todos vivessem nas mesmas condições estruturais e em igualdade de circunstâncias, capazes de tratar de si. Por sua vez, o conceito de behaviorismo transforma o comportamento humano na sua constante interação entre o social e o self. (COTTLE, 1998) “A proliferação contemporânea de campanhas educacionais focadas no tema de saúde – Faça sexo seguro! Faça exercícios regulares! Não fume! Não dirija depois de beber! - destinadas a promover escolhas livres e informadas no campo da saúde pessoal, é revelador da importância das prescrições médicas para o projeto da educação em saúde nos dias de hoje. Apesar dos novos propósitos da saúde pública, a maioria das ações de educação em saúde têm sido desenvolvidas no contexto internacional, permanecendo centrada na prevenção de doenças e focada na responsabilização individual.” (OLIVEIRA, 2005:427) O ambiente é limitador e constrangedor da ação. Saúde é mais que a ausência de doença, embora nas sociedades ocidentais a educação para a saúde e a própria promoção seja muito vocacionada para a prevenção de doenças. Indivíduos pertencentes à mesma classe social encontram-se no mesmo patamar, provocando uma certa homogeneidade de comportamentos no que toca à saúde, BOURDIEU (s/d) define esses comportamentos como habitus, sendo traduzido em a sociologia da saúde como estilos de vida. Os estilos de vida vão influenciar os comportamentos, as atitudes dos indivíduos, perante a saúde e a doença. Segundo LUPTON (1997), tal como nos tempos pré-modernos, a base simbólica das nossas incertezas é a ansiedade criada pela desordem, pela falta de controlo sobre os nossos corpos, o nosso relacionamento com os outros, os nossos estilos de vida e a forma como conseguimos exercer a autonomia no nosso quotidiano. (MENDES, 2002). O controlo do corpo surge não apenas como uma questão técnica mas como uma questão moral e política. (SFEZ 1997, cit. MENDES, 2002) Self pelo self “Associados às condições objetivas da realidade exterior, os estilos de vida, são de natureza mais subjetiva, vão traduzir-se numa resultante que é a saúde estatisticamente diferenciada dos grupos sociais” (SILVA, 2004:79) A ênfase na aptidão física e no “não às drogas e ao álcool” serve, com efeito, para encorajar as pessoas ativas a aderirem, no seu tempo livre, a determinadas atividades em detrimento de outras. O estilo de vida tal como é avaliado nos 8 programas de medicina do trabalho, inclui o domínio privado como um bem público. (MENDES, 2002). A saúde e os estilos de vida são uma problemática complexa que não pode ser reduzida à própria individualidade todos os atores do sistema são afetados em um ciclo de atitudes e comportamentos. A ação dos estilos de vida é fruto da reciprocidade de fatores sociais e individuais. O estilo de vida tende a ser classificado, agrupado em categorias e estereotipado, distinguindo diversos grupos sociais. Se sai fora da norma, há uma necessidade de correção, hoje em dia através da enorme medicalização (neste caso, há uma aceitação social da medicina como fonte legítima da verdade tal como do medicamento como pilar da correção do indivíduo de volta para a saúde) dos indivíduos. As políticas conservadoras instauram pressupostos aos indivíduos, levando a que os comportamentos desviantes dos seus próprios estilos de vida sejam alvo de correção e os riscos à ordem requeiram controlo, além de uma elevada culpabilização da “vítima”. (SILVA, 2004) Debaixo de uma ótica de cultura do consumo as suas preferências são determinadas por uma pluralidade de fatores sociais interagindo de formas complexas no discurso da promoção pública (nova aproximação dos cuidados de saúde). A medicina do período moderno é caracterizada por ser: curativa, institucional, construída sob um grupo de peritos, requer um elevado investimento dirigido relativamente a indivíduos passivos. A saúde pública tardia, incluindo a promoção da saúde é preventiva, não institucional, não especializada, baixo custo, focada no grupo, participativa, epidemiologia, risco e modernidade tardia (BUNTON; BURROWS; NETTLETON, 1996). A prevenção de acidentes tornou-se a chave para a promoção da saúde, contudo não nos podemos esquecer que graças à complexidade que o próprio risco acarreta existem riscos que não são passíveis de serem revistos e partem de uma ação “sem intenção”, eles encontram-se “out of the blue” e “ninguém” pode ser culpado (BUNTON; BURROWS; NETTLETON, 1996). Os comportamentos perante a saúde e o seu risco não se representam mais que uma espera, espera para saber o que acontece, se vão sofrer realmente das doenças de que foram advertidos. O quotidiano transforma-se na incerteza residente na espera. (OLIVEIRA, 2005) 9 3.1 Risco: Caso do Tabagismo Quanto, até recentemente, se falava em tabagismo, circunscrevíamo-nos ao caso dos fumadores. Agora, graças a recentes estudos sobre poluição do ar, como os que se referem à projeção do fumo do tabaco para o ambiente, constatou-se que 85% é projetado diretamente para o ar, os fumadores passivos adquiriram um novo estatuto no caso do tabagismo. “De 100% do fumo do tabaco, só cerca de 15% a 10% permanece no corpo do fumador, indo o restante parar ao ar que todos respiramos” (JACKSON cit. BUNTON; BURROWS; NETTLETON, 1996). Ao existirem “agora” 2 tipos de fumo considerados, há uma produção de novos atores, considerando-se uns ativos e outros passivos, tornando-os um caso significante e relativo para a saúde pública. O tabaco deixou de estar confinado a um corpo individual. Atualmente o fumo não só diz respeito ao ator individual (o fumador) mas, um ator coletivo é representado nesta imagem produzindo-se uma nova vertente entre os diferentes corpos e diferentes espaços. As fronteiras do tabagismo viram-se assim alteradas e reescritas, tais como as maneiras de pensar e atuar em relação aos próprios não-fumadores. “There’s mounting scientific evidence that passive smokers face not just a social but an atual threat to health” (JACKSON cit. BUNTON; BURROWS; NETTLETON, 1996) O tabagismo é colonizado hoje em dia pelo discurso do risco, na tentativa de construção de novos caminhos, muito mais favoráveis aos profissionais de saúde. O entendimento que se tem sobre o tabagismo é que este deve ser controlado (exemplo, proibição de fumar em locais públicos, espaços fechados, e recentemente em lugares abertos como parques – relevância sobre o ator coletivo). A promoção da saúde pautou esta ação como sendo algo a evitar e completamente indesejável. Contudo esquece-se do inconsciente desejo e da expressividade pessoal, que possa advir do ato de fumar. Lembre-se os primeiros episódios do Lucky Luke2, a personagem era caracterizada com um cigarro ao canto da boca (e patrocinada pela Marlboro fornecendo uma imagem de “bad boy”, rebelde, tal como o James Dean, fora da lei e 2 Banda desenhada criada na década de 40 na Bélgica pelas mãos de Morris. 10 adorado pelas mulheres) e posteriormente esse símbolo foi substituído por uma palha, devido a políticas de saúde pública e promoção de saúde, tendo o próprio desenhador MORRIS recebido o reconhecimento da OMS por tal ato. Ou seja, a atração pelo risco que exercia aquele cigarro como fonte de prazer, escape à rotina diária, ao quotidiano e das próprias proibições diárias, foi substituído por um mero objeto, que simbolicamente não representará “nada” aos olhos de quem vê ao mesmo tempo isto pode incumbir em uma transformação no que é o ideal de masculinidade adulta. Tom Sawyer3 por sua vez mastigava uma palhinha, contudo só os adultos eram representados como fumadores. Por sua vez, nos anos 20, fumar era um grito de igualdade das mulheres, um desafio à divisão sexual da sociedade. Hoje parece ser nelas um vício ainda mais reprovável que neles. O discurso antitabagismo quer transmitir a ideia que o prazer de se fumar um cigarro pode ser reorganizado mentalmente com base no imperativo do risco. Este discurso também assume e defende a capacidade dos processos disciplinados na construção de um corpo capaz de obter prazer nessa nova forma de disciplina. Contudo, falha ao considerar que o comportamento não é atomizado mas socialmente contextualizado. Em nosso entender o tabagismo é hoje em dia um ato coletivo, culturalmente condicionado. 4. Notas conclusivas Com o paradigma médico-legal, o vício, a falha de caráter, postula-se como tendo um fundo biológico, mesmo genético, que cobria o indivíduo num manto de incapacidade: ele era o que a biologia lhe havia ditado e todos esses “idiotas” ou “degenerados” só poderiam gerar uma prole idêntica. Esta abordagem parece-nos um fruto da ascensão da ciência como o modo privilegiado de decifrar e catalogar o mundo. As doenças mentais saem do domínio da religião, para a esfera de responsabilidade da medicina. No entanto, a decifração do código genético ainda está longe, e o imperativo biológico é difícil de contrariar. Perante o irremediável a ciência tem pouco a oferecer. No entanto, ao longo do século XX assistimos à emergência do conceito de “risco”, intimamente associado e quiçá indissociável do conceito de “comportamento”. Ao mesmo tempo, a centralização de poderes dos Estados, o surgimento de sistemas 3 Personagem criada por Mark Twain no século XIX. 11 de saúde universais, pode bem ter feito do século XX o século da saúde pública. Encarada nesta ótica, a problemática da doença entra numa dinâmica que opõe o indivíduo com comportamentos “problemáticos” à sociedade para a qual ele representa um perigo, de contágio, de repercussão. Será importante não esquecer que na questão do risco, está subjacente a ideia de “jogo de poder”, ora se tal se encontra vinculada na sua própria avaliação, como poderá o ator individual estar ciente que realmente o risco existirá para ele e não será fruto da manipulação alheia dos “maiores”, de outros atores com poder suficiente para criarem a ilusão da sua presença? A incerteza é característica dominante da época moderna, para tal, todos os “riscos” são possibilidades e não certezas. Vejamos o exemplo das agências de rating, as suas avaliações são meramente especulativas e os estados-membros e nações de todo o mundo, só terão de seguir as suas ideias se quiserem, se os favorecerem. Como se tem assistido agora na União Europeia, as agências têm conotado muito por baixo do que seria ideal, certos estados-membros. Como tal verifica-se um acentuado “boicote” e descredibilização das mesmas, quando em um passado não longínquo estas eram consideradas como detentoras da verdade. Poder-se-á questionar então, se somente o “risco” existe enquanto for favorável (maioritariamente por fatores económicos) para determinados setores? No campo da promoção da saúde assistiu-se à libertação do indivíduo do determinismo genético, este não vem sem consequências: a vítima da genética do paradigma médico-pedagógico, passa a (ir)responsável pelas suas ações. Consequentemente, a sua insistência num comportamento reprovável resulta num discurso culpabilizante. Não obstante, os manuais psiquiátricos consideram ainda que a adição (a uma substância, a um comportamento) é uma psicopatologia. A dialética entre afeção mental dos manuais psiquiátricos, ou comportamento reprovável, perigoso, para as autoridades de saúde pública, leva portanto a questionar se existe de facto uma liberdade individual, à medida que grupos de indivíduos são sequencialmente subtraídos à sociedade mais global e catalogados, categorizados, em função da perigosidade dos seus comportamentos privados para o bem público. Em consequência, o paradigma da saúde pública adquire a forma efetiva de um controlo social, em que se padronizam comportamentos e hábitos individuais, submetendo-os à régua da autoridade médica. Gera-se eventualmente um paradigma, a partir do momento em que a própria medicina gera efeitos colaterais e nefastos a partir das drogas que receita. A diferença fundamental será talvez quem, ou que 12 instituição possui a autoridade para fazer a distinção entre o legítimo e o ilegítimo, do ponto de vista da saúde pública. O que por seu turno levanta questões quanto aos efeitos adversos da medicação e da diferença entre conduzir sob o efeito de ansiolíticos vs sob o efeito do álcool. Será importante em futuras análises descortinar a ideia aqui subjacente. E no entanto, temos de nos perguntar se, nesta ótica, a saúde pública não é efetivamente um conceito volátil, facilmente adaptável e alterado às necessidades de controlo social de determinada sociedade em dado momento, muito para lá da solidez da evidência científica que dê como facto concreto o nefasto de dado comportamento. No caso do tabagismo, poderá ser igualado ao percurso que sofreu o opiómano ao longo dos séculos. Com o passar do tempo o conceito de opiómano passou a ser conotado como licencioso, vicioso, lascivo e desempregado. O tabagista também passou de rebelde, alguém com estilo, sendo agora visto como se algo negativo, graças às mudanças de paradigmas societários. 5. Referências Bibliográficas [1] AREOSA, João (2008) – O risco no âmbito da teoria social. Apresentado no VI Congresso Português de Sociologia realizado na Universidade Nova de Lisboa entre os dias 25 a 28 de junho de 2008. Disponível em <> Consultado dia: maio de 2012 [2] BECK, Ulrich (2008) - Risk society’s “Cosmopolitan moments”. Harvard: Lecture at Harvard University, November [3] BECK, Ulrich (2006) – Living in the world risk society in Economy and Societa, vol. 35, number 3, August, pp.329-345 [4] BUNTON, Robin; NETTLETON, Sarah; BURROWS, Roger (1996) - The Sociology of health promotion: critical analyses of consumption, lifestyle and risk. London: Routledge [5] COTTLE, Simon (1998) – Ulrick Beck, “Risk society” and the media in European Journal of Communication, London: SAGE, Vol. 13, pp.5-32 [6] FREITAS, Carlos Machado de (2002) - Avaliação de riscos como ferramenta para vigilância ambiental em Saúde in Informação Epidemiológica v.11 n.4, Brasília dez. 2002 13 [7] GUIVANT, Julia S. (2001) – A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico e a profecia in Rio de Janeiro: Estudos Sociedade e Agricultura, abril, pp. 95-112 [8] HAMMERSCHMIDT, Denise (2002) - O risco na sociedade contemporânea e o princípio da precaução no direito ambiental in Revista Sequência, nº 45 – dezembro, pp.97-122 [9] MENDES, Felismina (2002) - Risco: um conceito do passado que colonizou o presente in Promoção da Saúde, vol. 20 nº2 – julho/dezembro, pp.53-62 [10] LUPTON, Deborah (2009) - Risk. London: Routledge [11] LUPTON, Deborah (1997) - The imperative of health: public health and the regulated body. London: Sage Publications [12] LUPTON, Deborah (1999) - Risk and sociocultural theory: new directions and perspetives. Cambridge: University Press of Cambridge [13] OLIVEIRA, Dora Lúcia de (2005) – A “nova” saúde pública e a promoção da saúde via educação: entre a tradição e a inovação in Revista Latino Enfermagem, nº13, maio/junho, pp.423-431 [14] SILVA, Luísa Ferreira da (2004) – Sócio-Antropologia da Saúde: Sociedade, Cultura e Saúde/Doença. Lisboa: Universidade Aberta, pp. 77-165 14