Um corpo em revista1
Leidimar Ferreira Porto Barroso
Universidade Católica de
Brasília
O objetivo desta comunicação é analisar a linguagem da mídia na sociedade
brasileira moderna, em seu funcionamento para produzir novas significações, tendo como
tema desencadeador de reflexão o corpo, ou melhor, o imaginário sobre o corpo.
Utilizarei para este trabalho o referencial teórico e metodológico da Análise do
Discurso da linha francesa, criada por Michel Pêcheux, na década de 60 do século XX.
Antes acredito necessário destacar as bases teóricas da Análise do Discurso que estão em
sua constituição: a lingüística, principalmente a de Saussure, o materialismo histórico de
Marx/Althusser e a Psicanálise de Freud/Lacan, as quais conferem a Análise do Discurso
possibilidades de produzir um conhecimento para interpretação dos mais variados tipos de
textos, desde os políticos até os literários.
Para a AD, a análise deve partir da materialidade lingüística, ou seja, da tomada de
palavras ou expressões “ditas”, e das imagens que as acompanham no caso da mídia, para
chegar ao discurso, definido como “efeito de sentido entre locutores” por Pêcheux (1990),
desde o primeiro modelo proposto em 1969. “Este efeito de sentido entre locutores”, quer
dizer que no discurso o sentido está na relação entre sujeitos e não nas palavras, assim
como na mídia, o sentido está na relação entre produtor(es) e leitor(es). E mais, o sujeito
está para o discurso no plano da constituição, assim como o autor está para o texto
enquanto uma unidade com começo meio e fim, no plano da formulação. O grande
questionamento que AD coloca, segundo Eni Orlandi (2001), é: como o texto significa?
Para responder, como já dissemos, a AD produz um conhecimento a partir do
próprio texto, para chegar à ordem significante e compreender o discurso, o seu objeto de
estudo, que tem uma espessura semântica, quer dizer, que é atravessado por significados
que se produzem a partir de diferentes formações discursivas e ideológicas, e que passa a
ser um mediador entre o homem e a sua realidade natural e social. Esse gesto de leitura da
linguagem verbal e não-verbal - palavras e imagens -, permite uma reflexão sobre o
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Comunicação apresentada na IV Semana Universitária da Universidade Católica de Brasília, em 2003.
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funcionamento (e movimento) dos sentidos e que aparecem na mídia marcados pela
sucessão e simultaneidade de palavras e imagens.
Nessa comunicação, tomei como corpus para esta análise uma revista feminina
denominada “Cosmopolitan Nova”, popularmente conhecida pelo simples nome de
“Nova”. A edição trabalhada foi a de nº 07, do mês de julho de 2000, ano 28.
“Nova” é uma revista elaborada para o consumo de pessoas do sexo feminino, da
classes média, média alta e alta, tomando como referência principalmente o seu valor de
venda: R$ 6,90, e o preço dos bens de consumo que ali aparecem. Embora este seja o seu
público-alvo, as edições de Nova circulam entre classes sociais menos privilegiadas, pois
podemos facilmente encontrá-las em salões de beleza e barbearias da periferia, academias,
salas de espera de consultórios médicos e até em lanchonetes mais simples, uma vez que
essas revistas são descartadas após serem lidas pelos sujeitos das classes sociais mais altas.
Uma primeira folheada na revista revela que um dos principais temas aí explorado é
o do comportamento humano e seus relacionamentos afetivos, através da exposição e da
exploração do corpo. O corpo humano, portanto, não significa, aqui, apenas como algo
natural, mas como um corpo significante. Essa exploração do corpo pelos meios visuais de
comunicação, como TV, jornais e revistas, divulgando o culto à beleza física e oferecendo
principalmente uma nova cultura das sensações e do prazer, está ligada ao consumo.
Consumo que ajuda a construir um imaginário para o sujeito se significar e significar os
outros, a criar sentidos que irão afetar as relações afetivas e sociais dos cidadãos de uma
sociedade. O que pode desencadear conflitos, angústias, depressão, quando o sujeito é
confrontado a realidade de seu corpo, mesmo que inconscientemente, com valores bastante
distintos dos de sua formação, tendo-se, pois, de se submeter, a uma ordem ética
estabelecida em outros lugares, como o do mercado, que transforma o cidadão – homem ou
mulher – em mais um objeto de consumo. Lembrem-se de que anteriormente já disse que a
Revista acaba por circular em diferentes classes sociais.
Dado o tempo disponível para esta apresentação, escolhi trabalhar com a capa, o
sumário da revista e com alguns títulos das matérias, atendo-me ao funcionamento da
linguagem verbal. Vamos, pois, à descrição e à análise.
Observando a organização do sumário e a maneira como são e foram dispostos os
assuntos, pudemos ir fazendo uma outra leitura e compreendendo os discursos ali presentes.
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A partir de pequenas observações da forma material da Revista pude, gradativamente,
analisar o Sumário e explicitar seus principais dispositivos de condução do comportamento
feminino na sociedade, com especial destaque para o corpo como objeto, como coisa.
Chama a atenção logo de início que o Sumário não obedece a uma seqüência lógica
quanto a enumeração das páginas e que os títulos das matérias não correspondem, quase
sempre, às imagens selecionadas para o assunto em destaque. Há aí, parece, uma relação de
intertextualidade a ser explorada em outro trabalho. Os assuntos em destaque na capa, os
títulos do sumário, as frases que acompanham as imagens e a enumeração sumária remetem
a vários discursos – o sexual, o afetivo, o econômico, o familiar, o jurídico - e têm uma
certa relação “ordenada”, funcionando como manobras de sedução da leitora. Essa
seqüência entre capa, sumário e imagens se mantém em algumas outras revistas femininas
que circulam no mercado, como pudemos observar de forma ainda não sistemática.
Essa ordenação parece funcionar também como um caminho, uma chave de leitura
para a leitora, que em um primeiro momento lerá os títulos da capa, observará a imagem
central da modelo que cobre toda essa capa em primeiro plano, e começará um processo de
identificação com os temas ali apresentados e soltará sua imaginação em direção à
satisfação de suas curiosidades, o que criará condições para buscar respostas para os seus
supostos problemas e necessidades. Vejamos as matérias de capa deste número, que
parecem sempre se repetirem, em uma paráfrase constante.
Os homens discutem a febre da cirurgia plástica que está mudando o corpo das
mulheres.
O novo visual de Scheila. ( dançarina do grupo É o tchan )
Sua pele está envelhecendo mais rápido que você ? Faça o teste e acerte o relógio. Já,
agora, neste minuto!
Moda para ficar com cara de rica.
A polêmica sobre a licença-maternidade. Como esse direito fundamental está afetando
sua carreira.
SEXO , especial lacrado, Só para mulheres experientes! (ou para aquelas que
querem ser experts )
Um verdadeiro jogo de aquecimento. Uma verdadeira aula de física , biologia e
história que vai mudar sua vida sexual.
Grupo de Estudos Discursivos – www.ged/letras/ucb.br
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Os truques do cinema para um cenário perfeito.
O mapa para tocar o corpo de um homem nu.
O manual da especialista em pênis com fotos didáticas e realistas .
9 superposições para quem é craque no assunto.
Retomando o que dissemos sobre a proposta da Revista quanto à chave de leitura,
pela ordenação e relação que estabelece entre a organização e o funcionamento da capa, do
sumário e das imagens, podemos pensar em certas questões que a leitora poderá se pôr e
que a encaminharão para a leitura das matérias propriamente ditas. Será o que eles acham
da cirurgia plástica? Envelheço mais do que posso imaginar. Então não é só minha pele
que envelhece! Sexo só para mulheres experientes? Mas elas precisam ser interessantes?
Estas questões podem ser tomadas como um “primeiro efeito” do discurso sobre o sujeito
leitor.
A partir daí, desencadeia-se um trabalho na rede de memória da leitora afim de que
ela se interesse por determinada matéria, partilhe essa ordenação que, na verdade, é uma
outra ordem de significação com seus efeitos ideológicos. A capa funciona como um présumário do verdadeiro sumário que rompe com a noção tradicional de sumário, de índice,
estabelecendo a relação de sentido em outro lugar.
Mas, observamos, contudo, que, quase sempre, a ação da leitora ao pegar uma
revista é folheá-la desde o início, ignorando o sumário. Ao agir assim, a leitora segue uma
outra ordem sumária que não está explícita nem na capa e muito menos no próprio sumário,
o que pode significar a possibilidade de ruptura, de outros sentidos. Contudo, observamos
ainda, que, neste folhear supostamente aleatório, o sujeito-leitor irá se envolvendo não mais
com os temas das matérias, mas com as propagandas que não estão no sumário. Não há,
pois, como o sujeito não estar submetido a esse discurso: modos de gerenciar, de significar
e sustentar os significados de uma cultura do corpo, modos de disciplinarizar
uma
subjetividade (Foucault, 1984).
Um outro ponto que gostaríamos de também analisar, mesmo que parcialmente
aqui, é o da relação do sujeito leitor com o outro, seu semelhante, e o Outro considerado
como a história, a diferença.
Uma revista, como veículo dos fenômenos da cultural de cultura de massa, centrada
no corpo da mulher, conduz a leitora a assimilar conceitos, comportamentos, atitudes, em
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uma ordem supostamente crescente que irá alterar suas relações com o outro em uma
sociedade dada. As propagandas, por exemplo, principalmente as de cosméticos, colocam
em funcionamento um discurso miraculoso, alienante, pois “juram” fazer milagres com a
pele, cabelo, unhas, dentes entre outras partes do corpo, levando o sujeito leitor a acreditar
que algo realmente precisa ser reparado em seu físico. Qualquer coisa serve para que essa
mudança se opere: até a cor dos olhos ou do cabelo. Que efeitos de sentido aí se produzem?
Ora os enunciados da capa já deixaram evidente que esses são os primeiros passos para que
você chegue ao objetivo máximo: agradar o outro. Ela quer, ou melhor, precisa adotar a
nova cultura do corpo para se sentir completa e, aí, amada. Na exploração deste sentimento
de ser incompleta, de não ser perfeita o suficiente para agradar o outro – a fragilidade da
condição humana - está a matéria-prima da mídia para aumentar seus lucros e manter a
estrutura econômica inalterada.
A mídia (a revista Nova) dita padrões, sugere e apresenta novos (ou serão velhos?)
caminhos para recriar um novo corpo e até uma nova mente dando novos significados a
sua vida e desconsiderando que o sujeito já significa a si e ao mundo de determinada
maneira: um modo de transformá-lo em uma coisa, de des-historicizá-lo.
Assim, com estas imagens gerenciadas e o sumário “organizado”, que a Revista
propõe, procuramos com a AD compreender como os objetos simbólicos produzem
sentidos e seus efeitos, não por um processo de decodificação (que supõe uma língua
plenamente controlável, um instrumento já pronto), mas como um procedimento que
desvenda a historicidade contida na relação entre sujeitos. Se a mídia des-historiciza o
corpo, nosso objetivo é hsitoricizá-lo.
Referências Bibliográficas
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Trad. Lígia M. Pondé
Vassallo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.
ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP:
Pontes, 2001.
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F. e HAK, T.
(orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Trad. Bethânia Mariani ... [et al.]. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1990, 61162.
Grupo de Estudos Discursivos – www.ged/letras/ucb.br
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