A coluna feminina: observações sobre gênero e ethos Luiz André Neves de Brito Universidade de São Paulo (USP) [email protected] Abstract. The aim of the following paper is to show how a female column is textual organized, and in this column we analyze a text which could be classified as an editorial. To argue this, we use the gender and ethos definitions proposed by Dominique Maingueneau. Keywords. Female column; discourse genre; ethos. Resumo. O objetivo do presente artigo é mostrar como se dar a organização textual de uma coluna feminina, além de analisar o texto “uma mulher esclarecida” que apresenta um caráter editorial. Para realizar a análise, utilizamos o aparto teórico proposto por Dominique Maingueneau acerca das questões ligadas ao gênero e ethos. Palavras-chave. Coluna feminina; gêneros do discurso; ethos. 1. Considerações iniciais Retomando as palavras de Foucault em A ordem do discurso, “gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e (...) ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível (...) bastaria então que eu encadeasse, prosseguisse a frase (...) em seus interstícios”. É, então, nesse interstício da frase, ou melhor, do enunciado que desejo penetrar. Trago para esse artigo uma coluna feminina escrita por Helen Palmer (pseudônimo utilizado por Clarice Lispector) e que fora publicada no Correio da manhã em 21 de agosto de 1959. Essa coluna foi a primeira das muitas escritas por Lispector entre agosto de 1959 e fevereiro de 1961. Mas qual era a finalidade dessas colunas? Utilizando um tom de conversa entre amigas, a jornalista tratava de problemas íntimos, revelando segredos domésticos e aconselhando a leitora sobre padrões de beleza. Vê-se, então, que os temas abordados eram de interesse da leitora cujo perfil era o da mulher burguesa dos anos 50. Pretendemos, então, expor a organização desse gênero dentro da imprensa escrita. Ou seja, como podemos conceber a cena genérica da coluna feminina, mais precisamente do texto de abertura dessa coluna? Respondida essa questão, procuraremos observar a relação existente entre gêneros do discurso e ethos, uma vez que ambos devem estar afinados com a conjuntura ideológica. Diante dessa problemática, a análise se fundamentará teoricamente nas questões propostas por Bakhtin e, principalmente, por Maingueneau. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 111-122, 2005. [ 117 / 122 ] Sabemos que muitas das descrições de gêneros desenvolvidas nas duas últimas décadas tiveram por base os estudos realizados por Mikhail Bakhtin (2003), cujo conceito de gênero está ligado ao conceito do enunciado concreto (unidades reais da cadeia verbal que não devem ser estudadas separadas do curso histórico das enunciações). Portanto, a concepção dos gêneros de discurso é determinada pela situação social imediata e o meio social mais amplo. Ou seja, a situação dá forma à enunciação, ou melhor, aos gêneros de discurso. E o interessante dos estudos propostos por Bakhtin é, justamente, o não encobrir a natureza lingüística dos enunciados, pois é preciso comunicar o extra-verbal (social) e o lingüístico. Essa articulação do lingüístico com o social está também presente nas reflexões teóricas de Dominique Maingueneau sobre os gêneros do discurso, pois segundo o pesquisador (2000: 61), “os gêneros de discurso pertencem a diversos tipos de discurso associados a vastos setores de atividade social”. Mas essa questão, ao ser abordada, é associada a uma cena enunciativa, pois “a teoria do discurso não é uma teoria do sujeito antes que este enuncie, mas uma teoria da instância de enunciação” (1997: 33). Ao dizer que os textos estão inseridos em uma cena enunciativa, Maingueneau (2000) propõe uma tripla interpelação: a cena englobante (que corresponde ao tipo de discurso), a cena genérica (que corresponde a um gênero, a uma instituição discursiva) e a cenografia (que não é imposta pelo gênero, mas constituída pelo próprio texto). E segundo ele, a classificação dos gêneros dar-se-á a partir da relação estabelecida entre a cena genérica e a cenografia. Surge então a primeira pergunta qual é, então, a cena de enunciação do texto a ser analisado? Pensando nessa classificação proposta por Maingueneau, podemos dizer que a leitora da coluna encontra-se simultaneamente envolvida nas três cenas, pois será interpelada ao mesmo tempo como uma mulher burguesa dos anos 50 que busca ser mãe, esposa e dona-de-casa (cena englobante – o tipo de discurso feminino vigente na época), como uma leitora preocupada em seguir os conselhos (cena genérica) e como interlocutora e amiga de uma mulher que deseja partilhar tais conselhos (cena construída pelo texto). Mas as questões ligadas à situação de enunciação não param por aí. É preciso ir além, pois todo produto dessa enunciação (o enunciado) é sustentado por uma voz, um ethos. E assim o sentido do texto vai se impondo, se construindo, pois esse ethos que está associado a imagem de um fiador permite ao leitor se identificar com um corpo investido de valores sociais. No caso do texto sob análise permite a leitora se identificar com “uma mulher esclarecida”. Dessa perspectiva, a análise será, então, conduzida em dois momentos: num primeiro instante, abordaremos como o gênero coluna feminina pode ser concebido; num segundo instante, partimos da organização textual de ‘uma mulher esclarecida’, texto de caráter editorial que abre a coluna feminina, para chegar às questões enunciativas-discursivas (questões ligadas à cenografia e ao ethos). 2. A coluna feminina: como conceber esse gênero? Em espaço vertical, a coluna apresentava cerca de treze notas por publicação. E o planejamento visual da primeira publicação serviu de modelo para as demais. Esse espaço ocupado pela coluna era flutuante, pois ora se situava à esquerda, à direita ou no centro da página. Ainda com relação à diagramação, podemos notar na parte superior da Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 111-122, 2005. [ 118 / 122 ] coluna o título “Correio feminino”, que indica a secção feminina do jornal. Logo abaixo, na segunda linha, temos um sub-título “Feira de utilidades”. Em seguida, alinhado à direita, o nome da colunista, Helen Palmer. Isso nos permite dizer que essa coluna apresenta um quadro cênico fixo, isto é, a coluna é um gênero de discurso cuja cena de enunciação se reduz a cena englobante e a cena genérica. Em suma, ela se conforma às rotinas de uma cena genérica fixa. Mas, se observarmos, no interior da coluna feminina, há uma série de textos que pertence a gêneros de discurso diferentes. Isso nos leva a classificar a coluna como um suporte de gêneros, ou melhor, como um gênero englobante, cuja cena genérica é invariável, pois a coluna é um tipo de gênero que se limita ao cumprimento de uma cena genérica. Partindo desse gênero englobante, vamos agora penetrar nos interstícios de um dos textos englobados. Trata-se de um texto cuja composição é diferente dos demais, ou seja, enquanto os demais textos fazem parte dos gêneros de informação, o texto inicial que abre a coluna faz parte dos gêneros de comentário. Segundo Adam (1997), os textos de comentário se caracterizam por fazerem valer uma opinião, uma idéia e, também, por sua enunciação promover uma aproximação da leitora, ou melhor, um engajamento da leitora. Diante dessa classificação, arriscaríamos a classificar o texto inicial da coluna como tento um aspecto de editorial, de croniqueta. E uma das funções do editorial é o de expor a imagem do jornal como um todo, no texto sob análise a função é o de expor a imagem da coluna como um todo, ou melhor, a imagem que o enunciador espera da sua leitora, assim como a imagem que o próprio enunciador constrói de si... a imagem de uma mulher esclarecida. O que diz, então, o editorial? Essa coluna foi escrita para uma mulher esclarecida e se a leitora é uma mulher esclarecida ou pretende ser uma, lerá essa coluna como algo que as tornarão esclarecida. 3. Uma mulher esclarecida: gênero editorial? “Uma mulher esclarecida” (ver anexo) é o título do texto de abertura que permite à leitora se confrontar com uma cenografia e não com um quadro cênico, ou seja, nesse texto a cenografia leva o quadro cênico a se deslocar para segundo plano. E por que a cenografia ocupa esse plano primeiro? Por ser o gênero editorial, um gênero que mobiliza cenografias mais movediças, ou seja, exige a escolha de uma cenografia por meio de cenas de fala validadas. Mas como conceber essa cenografia? Para responder a questão acima, é preciso observar como se dá a organização textual, ou seja, quais são as marcas formais desse gênero. Surge, então, a seguinte pergunta: quais são os recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua que selecionados? A escolha desses elementos está intimamente relacionada com a cena de enunciação, mais precisamente à cenografia que se pretende instituir. Lendo a coluna nos deparamos com um léxico que se insere em um universo feminino: companheira do homem, mãe, educadora, boneca mimada, bonequinho mimado, embelezadores, tricô, quitutes, bate papo com vizinhas etc. Vê-se, então, que para estabelecer o diálogo com sua leitora faz-se a seleção do léxico que é própria desse discurso, uma vez que o sistema de coerção restringe o universo lexical que o enunciador será levado a utilizar para marcar sua posição no campo discursivo (Maingueneau, 1984). Em suma, é importante darmos um tratamento semânticodiscursivo no caso do léxico. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 111-122, 2005. [ 119 / 122 ] Assim, ao utilizar tal campo semântico, o enunciador constrói seu discurso visando o seu co-enunciador (a mulher dona-de-casa, pertencente a uma classe burguesa) que se reconhece na voz do outro. Ocorre, então, uma comunhão dos valores. Ou seja, tanto o enunciador, quanto o co-enunciador pertencem a uma mesma formação discursiva. Um fato interessante é que ao utilizar tais vocábulos, o enunciador busca negar alguns traços que não são compatíveis com sua formação discursiva, mas não os larga por completo a fim de construir uma nova identidade para essa leitora. E para construir essa identidade é preciso que algo seja negado, mas não por completo. Diríamos que o processo de intercompreensão ocorre parcialmente, uma vez que são mantidos elos com a formação discursiva dominante na década de 50 (na ideologia dos anos dourados, maternidade, casamento e dedicação ao lar faziam parte da essência feminina, assim era considerado o destino natural das mulheres, ser mãe, esposa e dona de casa). Mesmo assim, isso nos leva a crer que a identidade é marcada pela diferença e que esta é sustentada pela exclusão, ou seja, o que é incluído e o que é excluído? O que vai determinar o que deve ser incluído ou excluído na produção de identidade são as FDs, que determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada. Assim, acredito que “as posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades”. E para estabelecer essa nova identidade, o enunciador, através do advérbio de negação “não”, sacrifica todos aqueles valores atribuídos a mulher nos anos dourados que ele acredita não fazer parte da sua forma de ver o mundo, do seu posicionamento ideológico. Tudo isso pode ser visto nos excertos abaixo: 1. Uma “mulher esclarecida” não é, como algumas querem fazer crer, e muitos homens sabidos teimam em convencê-las, sem escrúpulos e sem preconceitos... 2. que é companheira do homem e não sua escrava, que é mãe e educadora e não boneca mimada a criar outros bonequinhos mimados. Vê-se nitidamente que essa identidade criada é a parte do sentido que o discurso precisou sacrificar. E ao sacrificar parte do sentido, o enunciador se posiciona dentro de uma FD (chamaremos essa FD de FD1) que vê a mulher esclarecida sob um ângulo diferente da FD vigente (chamaremos essa FD de FD2). Inserido em FD1, o enunciador precisa explicar à leitora o que é ser ‘uma mulher esclarecida’, por isso o enunciador no primeiro parágrafo se utiliza das aspas para mostra ao seu co-enunciador que ele está falando de uma posição diferente, e o atributivo esclarecida significa uma mulher que estuda, que lê, que é moderna e interessante sem perder seus atributos de mulher, esposa e mãe; que não tem necessariamente de trazer um diploma e um título, mas conhece alguma coisa mais além do seu tricô, dos seus quitutes e dos seus bate-papos com as vizinhas; que cultiva, especialmente, a sua capacidade de ser compreensiva e humana. Tem coração. Despojase do sentimentalismo barato e inútil, e aplica sabiamente a sua bondade e a sua ternura. É mulher. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 111-122, 2005. [ 120 / 122 ] Esse discurso polêmico pode ser encontrado nos ‘editoriais’ das outras colunas. Ou seja, o enunciador ao se inserir em FD1, nega sempre FD2. Com isso, será recorrente a seguinte fórmula: Ser “x” (estando ‘x’ inserido em FD1) não é ser “y” (estando ‘y’ inserido em FD2), mas é preciso que “x” apresente alguns traços de “y”. Essa fórmula nos mostra que há um embate de formações discursivas, e que FD1 apenas nega algum traços de FD2, ou seja, FD1 mantém alianças com FD2 pois uma vez que se trata de uma página feminina e não de um manifesto, o objetivo do enunciador não é subverter o gênero, mas através desse gênero mostrar que a mulher pode “conhece alguma coisa mais além do seu tricô, dos seus quitutes e dos seus batepapos com as vizinhas”. Um outro recurso utilizado na construção do ‘editorial’ é que nos três primeiros parágrafos, o enunciador utiliza a terceira pessoa (uma mulher esclarecida, ela etc) para mostrar seu posicionamento e, além disso, podemos observar que todos os verbos estão, predominantemente, no presente do indicativo o que institui uma verdade incontestável. O enunciador ao se utilizar desses recursos estabelece o que é ser uma mulher esclarecida, cabe à leitora aderir ou não a essa verdade. Já no último parágrafo, a estratégia é diferente uma vez que o enunciador se dirige diretamente ao seu interlocutor através do pronome ‘você’ e do sintagma nominal ‘minha leitora’. Aqui a cena de uma conversa entre amigas é validada, uma conversa em que uma amiga aconselha a outra. E esse ethos conselheiro perpassa por todo o texto. Se observarmos com atenção, veremos que o tom de conselho está presente de foram indireta, pois ao enunciar “a mulher esclarecida sabe disso. Ela estuda, ela lê, ela é moderna e interessante sem perder seus atributos de mulher, esposa e mãe” corresponde a você leitora para ser uma mulher esclarecida precisa estudar, lê, ser moderna e interessante, mas não pode perder seus atributos de mulher, esposa e mãe. E como dissemos logo no início desse capítulo, o gênero editorial exige a escolha de uma cenografia por meio de cenas de fala validadas. Tais cenas estão instaladas na memória discursiva da leitora. É, então, o último parágrafo que valida o texto como pertencente a uma imprensa feminina uma vez que nele encontramos termos que são recorrentes desse tipo de imprensa: o diálogo direto com a leitora (você, minha leitora; e você é uma ‘mulher esclarecida’, não é mesmo?), como se fosse uma conversa entre amigas. Essa manipulação só é bem sucedida porque o sistema de valores é compartilhado tanto pelo enunciador-manipulador quanto pelo enunciatáriomanipulado. 4. Considerações finais Podemos observar durante toda análise o quanto a imprensa escrita é um espaço simbólico das representações coletivas, um veiculador de ideologia e de investimento de valor, fundamento no conhecimento de mundo. No que toca à questão da mulher, esperamos ter mostrado como a mulher é vista pela impressa escrita (coluna feminina dos anos 50) e por ela representada. Associada a essas questões ideológicas, vimos como as questões relacionadas ao gênero do discurso nos ajudaram a levantar questões Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 111-122, 2005. [ 121 / 122 ] ligadas à subjetividade, pois se a AD busca resolver as questões em torno desse sujeito ideológico, acreditamos que o primeiro passo é partir da problemática do gênero uma vez que esse é, também, ideológico. Partindo do gênero, podemos observar os aspectos formais, descrever a estrutura textual dessas colunas, salientando as estratégias dialógicas utilizadas pela escritora para se comunicar com a leitora cujo estereótipo era o da mulher doméstica, consumidora e sedutora. Só assim é possível compreender como essas páginas produzem sentido e quais os seus efeitos, observando como a linguagem reflete e refrata as condições de produção, trazendo em sua materialização, nos enunciados, as marcas das formações sociais, ideológicas e discursivas de uma época, ou seja, como se dá a relação entre a linguagem e a historicidade. 5. Referências bibliográficas ADAM, J. - M. Unités rédactionnelles et genres discursifs: cadre general pour une approche de la presse écrite. In: Pratiques. n. 94. Paris, Juin 1997. p. 3-18. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal [Trad: Paulo Bezerra]. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-306. MAINGUENEAU, D. Genèses du discours. Bruxelles: Mardaga, 1984. _____. Novas tendências em análise do discurso. [Trad: Freda Indusky]. 3 ed. Campinas: Pontes editores, 1997. _____. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2000. Anexo Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 111-122, 2005. [ 122 / 122 ]