UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS STRITO-SENSU SUBÁREA DE LITERATURA COMPARADA NO “CALDEIRÃO DA HISTÓRIA”: A REALIDADE LABIRÍNTICA NAS NARRATIVAS DE KAFKA, COETZEE E CHICO BUARQUE ILMA DA SILVA REBELLO Orientador: Prof. Dr. PAULO AZEVEDO BEZERRA NITERÓI 2011 2 ILMA DA SILVA REBELLO NO “CALDEIRÃO DA HISTÓRIA”: A REALIDADE LABIRÍNTICA NAS NARRATIVAS DE KAFKA, COETZEE E CHICO BUARQUE Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Literatura Comparada. Área de Concentração: Estudos de Literatura. Niterói 2011 3 ILMA DA SILVA REBELLO NO “CALDEIRÃO DA HISTÓRIA”: A REALIDADE LABIRÍNTICA NAS NARRATIVAS DE KAFKA, COETZEE E CHICO BUARQUE Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Literatura Comparada. Área de Concentração: Estudos de Literatura. Aprovada em _________________ de _______. BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________ Prof. Dr. PAULO AZEVEDO BEZERRA – Orientador UFF ___________________________________________________________________ Prof. Dr. LUIS FILIPE RIBEIRO UFF ___________________________________________________________________ Profª. Drª. SUSANA KAMPFF LAGES UFF ___________________________________________________________________ Profª. Drª. MUNA OMRAN UNIPLI ___________________________________________________________________ Prof. Dr. ANDRÉ LUIZ DIAS LIMA FAETEC/RJ Niterói 2011 4 A todos que valorizam a literatura enquanto um espaço fecundo de reflexões. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, por estar sempre ao meu lado; À minha família, pelo apoio incondicional; Aos amigos que encontrei nessa caminhada: Márcia Reis, Gracinete e Lucia Manna; À Marcela Miller Barbosa, pela tradução do resumo; Ao Professor Dr. Paulo Bezerra, pela competente e dedicada orientação; Ao Professor Dr. Luis Filipe Ribeiro, pelas sugestões no Exame de Qualificação; À Professora Drª. Susana Kampff Lages, pelas sugestões e incentivo; À Professora Drª. Lucia Helena, pelos conhecimentos adquiridos; À Professora Drª. Anélia Pietrani, por sua generosidade e incentivo; Ao Instituto de Letras da UFF, pela acolhida. 6 Se o livro que estamos lendo não nos despertar com uma pancada na cabeça, para que o estamos lendo? [...] Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós (KAFKA, 1966:27-28). 7 RESUMO Este trabalho faz um estudo da realidade labiríntica que cerca os personagens de Na colônia penal (1919) e O processo (1925), de Franz Kafka, Vida e época de Michael K (1983), de J. M. Coetzee, e Benjamim (1995), de Chico Buarque. A problemática do nome, a atmosfera sombria, a tragicidade dos personagens e as muralhas sociais e interiores formam um campo semântico de opressão e medo a rondar a consciência dos indivíduos. Estudamos, portanto, a maneira como um ambiente de medo e escuridão, caracterizado nos dois sistemas repressivos – o do apartheid e a ditadura brasileira, além do ambiente sombrio das obras de Kafka – incide sobre a vida e a época dos personagens. As reflexões foram norteadas pelos estudos de Mikhail Bakhtin sobre o dialogismo, de Michel Foucault sobre os dispositivos disciplinares e de Georg Lukács sobre a narração e a fisionomia intelectual dos personagens artísticos. Palavras-chave: labirinto, poder, lei, dialogismo, tempo. 8 ABSTRACT This work undertakes a study of the labyrinthine reality enveloping the characters of In the penal colony (1919) and The trial (1925), by Franz Kafka, Life and times of Micheal K (1983), by J. M. Coetzee, and Benjamim (1995), by Chico Buarque. The issue of name, the sombre atmosphere, the tragicalness of the characters and the social and inner walls create a semantic field of oppression and fear that lurk in the conscience of the individuals. It is, therefore, a study of the manner in which the environment of fear and darkness characterised by both repressive systems – that of apartheid and that of the Brazilian dictatorship, as well as Kafka’s sombre environments – influence the life and times of the characters. The considerations were oriented by the studies of Mikhail Bakhtin when relating to dialogic, Michel Foucault when relating to the disciplinary dispositions, and Georg Lukács when relating to the narration and intellectual physiognomy of the artistic characters. Key Words: labyrinth, power, law, dialogic, times. 9 LISTA DE SIGLAS B BE CF I CF II CM CP D IDS MS NCP NE P VEMK Briefe 1902-1924 Benjamim Cartas a Felice I – 1912 Cartas a Felice II – 1913 Cartas a Milena Carta ao Pai Diários: 1910-1923 In der Strafkolonie Memórias do subsolo Na colônia penal Narrativas do espólio O processo Vida e época de Michael K 10 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................. 12 1. OS AUTORES E SEU TEMPO 1.1. Franz Kafka: o sonhador de pesadelos ....................................................... 21 1.2. J. M. Coetzee e a literatura do apartheid ..................................................... 32 1.3. Chico Buarque: a literatura contra o silêncio ............................................... 39 2. O UNIVERSO LABIRÍNTICO DE JOSEF K. 2.1. A história do absurdo ................................................................................... 46 2.2. O mundo fragmentado e sombrio ................................................................ 49 2.3. O estranho e o natural ................................................................................. 72 3. NA COLÔNIA PENAL E OS LABIRINTOS DA DOR 3.1. A narrativa do horror .................................................................................... 79 3.2. As relações de poder ................................................................................... 82 3.3. Do horror ao horror: o sofrimento-espetáculo .............................................. 89 4. MICHAEL K: O HOMEM DOS LABIRINTOS SUBTERRÂNEOS 4.1. A história de um jardineiro sem lar .............................................................. 95 4.2. O abismo intransponível entre o eu e o mundo ........................................... 98 4.3. Entre o humano e o não-humano ................................................................ 112 5. BENJAMIM E OS LABIRINTOS FANTASMAIS 5.1. A narrativa de um tempo perdido ................................................................ 121 5.2. Tempo das sombras, tempo da pedra ......................................................... 125 5.3. O jogo de duplos e as representações fantasmais ...................................... 132 6. DOS SENHORES K., AS VÍTIMAS, AO SENHOR ZAMBRAIA: REALIDADES LABIRÍNTICAS 6.1. Da concepção de mundo à escrita: a construção da representação e da 142 linguagem ................................................................................................... 6.2. Nos labirintos da lei ..................................................................................... 149 11 6.3. Sonhos interrompidos ou o paraíso perdido? .............................................. 162 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 169 8. INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 8.1. Obras citadas ............................................................................................... 174 8.2. Obras consultadas ....................................................................................... 180 12 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Todo século deixa vestígios na literatura que ele cria. O século XX, que Eric Hobsbawm qualificou como “era dos extremos”1, teve sua história marcada por grandes catástrofes e pelos maiores abalos políticos, sociais e científicos já experimentados. Isto gerou as mais profundas tensões na vida dos homens e, por associação, produziu uma literatura dotada de uma originalidade ímpar e marcada, na superfície e em sua profundidade, por todas essas tensões. O psiquismo dos grandes artistas da palavra não podia ficar imune à ação desse clima, pois a nova realidade surgida das guerras e das revoluções sociais e científicas abalou profundamente a imagem do universo na cabeça de todos eles e cada um reagiu a seu modo à nova realidade. Desse modo, as formas dessa reação foram muito diversas, o que se deveu às peculiaridades individuais dos autores, às diferenças de seus sistemas de pensamento, às suas posições políticas, filosóficas, religiosas, em suma, à personalidade intelectual de cada um. É de suma importância verificar que a realidade histórica que influenciava os sentimentos e pensamentos dos escritores variava de país para país, o que certamente contribuiu para as diferenças que marcaram as literaturas de diversas línguas. Distintas eram as tradições na cultura, na filosofia, nas artes em geral e na própria literatura, mas nosso interesse se volta de fato para o que ficou de comum, aquilo que nos permite aproximar, estabelecer algum tipo de diálogo entre as literaturas de países distintos em diferentes períodos da história do século XX ao XXI. 1 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. 2. ed. 37. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 13 Ao lermos pela primeira vez as quatro obras que norteiam esta pesquisa: Na colônia penal (1919) e O processo (1925)2, de Franz Kafka, Vida e época de Michael K (1983), de J. M. Coetzee, e Benjamim (1995), de Chico Buarque, fomos instigados pela realidade labiríntica dos personagens, uma das inúmeras leituras possíveis. Impressionamo-nos com a atmosfera sombria e aterrorizante envolvendo Josef K. e os habitantes da colônia penal, os labirintos subterrâneos pelos quais circula Michael K, que se enterra para fugir de um mundo em guerra, e as representações fantasmais3 de Benjamim. As quatro narrativas nos despertaram para novas pesquisas, e ao passarmos dias catatônicos diante de uma folha de papel em branco4, numa alusão ao ghost-writer, de Chico Buarque, afloraram questionamentos e uma sede infinita de descoberta. É assim que mergulhamos neste trabalho. O leitor talvez esteja inquieto com a escolha de três autores que escreveram em contextos diferenciados e colocados pela crítica em patamares distintos. No entanto, longe de qualquer julgamento, um dos critérios utilizados para essa seleção foi justamente o diálogo que poderíamos estabelecer entre narrativas de épocas diversas. Além deste, percebemos com a leitura das narrativas algumas questões que, juntas, parecem apontar para a existência de uma realidade labiríntica: a) a problemática do nome, b) a atmosfera sombria, c) o estranho e o natural, d) a tragicidade dos personagens, e) as muralhas sociais e interiores. Portanto, veremos como esses temas aparecem nas obras. 2 As datas das obras Na colônia penal e O processo se referem ao ano de publicação. Foram escritas em 1914. Franz Kafka iniciou O processo no mês de agosto, em que eclodiu a Primeira Guerra Mundial. 3 Aqui, a expressão “representações fantasmais” tem o sentido de algo ilusório, numa referência às inúmeras representações de Benjamim como modelo-fotográfico. Ele não consegue se desvencilhar dos diversos papéis profissionais do passado. 4 HOLANDA, Francisco Buarque de. Budapeste. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.38. 14 A) O herói kafkiano é denominado algumas vezes somente pela inicial K. Os personagens da novela Na colônia penal são denominados apenas pela profissão que exercem. Já Michael K se quadruplica: Michael K, Michael, K e Michaels. Benjamim, um ex-modelo fotográfico em decadência, tudo o que não quer é o anonimato, condição almejada pelo personagem de Coetzee. B) A falta de contornos identitários indicia uma atmosfera angustiante e fantasmagórica5 que povoa o universo dos três protagonistas. Josef K. convive com uma acusação misteriosa; Michael K se esconde no subsolo para fugir de um mundo em guerra; e Benjamim não consegue decifrar os fantasmas que o circundam, sobretudo certa fantasmagoria do clima político, que se traduz na advertência do Dr. Campoceleste a Benjamim de que seus passos estariam sendo vigiados. Segundo o narrador, “as autoridades apostavam que ele [Benjamim], inadvertidamente, terminaria por levá-las a Castana Beatriz e seu concubino” (BE,133-134). A atmosfera de O processo supõe uma luminosidade crepuscular, reforçando a atmosfera de sombras, como podemos observar nos corredores e caminhos que Josef K. percorre. Embora o espaço físico, na obra de Coetzee e Chico Buarque, não pareça envolto pela penumbra, cabe refletir sobre a maneira como um ambiente de medo e escuridão, caracterizado nos dois sistemas repressivos – o apartheid e a ditadura brasileira – incide sobre a vida e a época dos personagens. Em Na colônia penal, há um clima de opressão e medo pairando sobre os personagens anônimos. C) Os acontecimentos que escapam à ordem tradicional dos fatos se apresentam como se fossem algo natural, principalmente em O processo. O leitor atento perceberá o aparecimento de personagens e situações peculiares sem explicação prévia. Em Benjamim, por exemplo, um gato preto atravessa a rua e o 5 Fantasmagórico no sentido de algo aterrorizador e sombrio (FERREIRA, s/d:611). 15 personagem pensa tê-lo avistado anos atrás. Quanto mais incomum é a aventura vivida, de forma mais natural é narrada, pois apesar de inabitual, os três personagens parecem aceitá-la com naturalidade. Na novela kafkiana, o funcionamento da máquina de tortura, que, como tal, é marcado por grande crueldade, é narrado com muita naturalidade. Kafka coloca seus personagens em situações inexplicáveis; isto requer um estudo mais detalhado. D) Há também a existência de uma tragicidade no destino dos personagens, que se apresenta na falta de solução e na impossibilidade de salvação de Josef K., dos habitantes da colônia penal, de Michael K e de Benjamim. Cabe ressaltar que a tragicidade nesse contexto não está relacionada ao trágico clássico tal como Édipo. Mas há um diálogo. Édipo, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, luta contra ela. No entanto, ele é terrivelmente castigado pelo crime que foi obra do destino. A tragicidade se cumpre no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou para fugir da ruína. O homem trágico, como diz Vernant (2002:372), é “um homem duplo, dilacerado, problemático”. O salvador de Tebas se revela, ao mesmo tempo, seu destruidor. Édipo é o contrário do que acreditava ser. As obras da nossa pesquisa dialogam com as fontes do pensamento trágico no sentido de apresentarem um modo conflituoso de relação do homem com o mundo. Os personagens são vítimas de contextos sociais opressores e condenados a um destino ruim, sem possibilidade de escolha. Eles vivem como se estivessem dentro de um labirinto, buscando referências e respostas para resolver os seus problemas, como é o caso de Josef K. E) As muralhas sociais e interiores cerceiam os personagens. Eles não conseguem transpor as barreiras entre os dois mundos: o social e o individual. Michael K se impõe uma redução zoomórfica, vive como uma “formiga” e em buracos a fim de escapar do mundo hostil. Paradoxalmente, ele “se enterra” para 16 permanecer vivo. Josef K. não consegue se esconder ou fugir do processo e sente dificuldades em entender a realidade a sua volta, assim como Benjamim, que não compreende o labirinto político em que está metido. Na novela kafkiana, os personagens são condenados sem direito à defesa. Os personagens estão mergulhados no “caldeirão da história” (VEMK,176). O contexto social das narrativas aparece como um grande caldeirão efervescente. Michael K vive em meio ao apartheid, na África do Sul. Benjamim convive com a ditadura civil-militar brasileira. Embora o contexto histórico não apareça bem delimitado nas obras kafkianas, podemos relacioná-las a uma época sombria, de início do século XX. As obras literárias, segundo Bakhtin (2003:362), dissolvem as fronteiras de seu tempo. Por isso, os leitores conseguem tecer relações entre o tempo pregresso e o tempo em que vivem. Nosso objetivo, então, é refletir sobre algumas questões como a realidade labiríntica das narrativas, o posicionamento de cada autor, a maneira pela qual o tempo, o espaço e a narrativa configuram essa atmosfera labiríntica, o tipo de diálogo possível entre as obras de Coetzee, Chico Buarque e Kafka, no grande tempo que se estende do início do século XX à nossa atualidade. As nossas reflexões estão sendo norteadas pelos estudos de Mikhail Bakhtin desenvolvidos em Questões de literatura e estética e Estética da criação verbal, e os de Michel Foucault em Vigiar e punir e Microfísica do poder, além de alguns textos importantes de Georg Lukács, como “A fisionomia intelectual dos personagens artísticos”6 e “Narrar ou descrever”7. Algumas obras também foram importantes para 6 LUKÁCS, G. “A fisionomia intelectual dos personagens artísticos”. In: ______. Marxismo e teoria da literatura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968a. p.165214. 7 LUKÁCS, G. “Narrar ou descrever”. In: ______. Ensaios sobre literatura. 2. ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968b. p.47-99. 17 o amadurecimento do presente estudo como A condição humana e Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt. A obra Genealogia da moral, de Nietzche, ajudounos a entender o “sofrimento espetáculo”, de Na colônia penal, a partir dos conceitos de “culpa”, “dor”, “credor” e “devedor”, entre outros, apresentados pelo autor. Lendo as narrativas de Kafka nos damos conta das dificuldades encontradas por quem se propõe a analisá-las. Sua fortuna crítica é extensa e consagrada: Benjamin, Adorno, Deleuze, Guattari, Arendt, Anders, Heller, Blanchot, Rosenfeld, entre muitos outros. O sul-africano Coetzee, ganhador do Prêmio Nobel em 2003 e de dois Booker Prize, em 1983, por Vida e época de Michael K, e em 1999, por Desonra, também é objeto de pesquisa de muitos estudiosos no Brasil e no exterior. Chico Buarque, por sua vez, figura importante no cenário brasileiro contemporâneo, é estudado por escritores como José Castello, Afonso Romano de Sant’ Anna, Gustavo Conde, Roberto Schwarz, entre outros intelectuais. É árdua, portanto, a leitura da vasta fortuna crítica de cada autor, mas em alguns momentos elas serão importantes para o amadurecimento das nossas reflexões. Quanto à organização dos assuntos discutidos neste trabalho, elaboraremos um capítulo sobre cada uma das obras literárias. Antes, porém, no capítulo intitulado “Os autores e seu tempo”, faremos uma pequena biografia e também comentários sobre a relação dos autores com a criação literária e o seu tempo. Em cada capítulo sobre as obras literárias apresentaremos um resumo de cada narrativa. O segundo capítulo “O universo labiríntico de Josef K” será destinado à discussão da obra O processo, a partir das reflexões suscitadas sobre o mundo aprisionador e sombrio do protagonista. No terceiro capítulo, abordaremos o texto Na colônia penal focalizando o que denominamos “os labirintos da dor”. O quarto será sobre “os labirintos subterrâneos” do personagem Michael K da obra de Coetzee, que cava um buraco 18 para se esconder de um mundo adverso. No quinto, faremos um estudo da obra de Chico Buarque refletindo principalmente sobre o personagem Benjamim e os seus “labirintos fantasmais”. Aqui a expressão “labirintos fantasmais” se refere ao mundo sombrio do protagonista e também ao fato do mesmo viver apegado ao passado glorioso. Haverá ainda um sexto capítulo dedicado à leitura aproximativa das quatro obras, denominado “Dos Senhores K., as vítimas, ao Senhor Zambraia: realidades labirínticas”. Neste, pretendemos averiguar como a narrativa, o tempo e o espaço labirínticos se entrecruzam e de que maneira as quatro obras dialogam por intermédio dos leitores. A fim de uma melhor compreensão do tema a ser estudado, recorremos ao mito do labirinto. O labirinto tem sua origem longínqua e diversa e remonta ao mito grego de Teseu, ao palácio de Minos, onde estava o Minotauro e de onde o herói só conseguiu sair com a ajuda do fio de Ariadne. O vagar sem rumo e o próprio termo “labirinto” têm se manifestado de maneira contundente na literatura. Muitos poetas e romancistas relacionam a imagem do labirinto à representação da metrópole, a partir do século XIX, em virtude das dificuldades do percurso urbano. No nosso trabalho, o labirinto está relacionado à realidade aprisionadora dos personagens, presos nas redes burocráticas e num contexto social de opressão. O espaço labiríntico é a tradução de relações histórico-sociais conflituosas. Devem-se ressaltar, portanto, duas concepções de labirinto: o que segue um único caminho e o que se estende em múltiplas direções, evidenciando as várias possibilidades de escolhas e erros8. A primeira está relacionada à concepção medieval do labirinto: um caminho longo e tortuoso, mas um só, que está em Deus. O labirinto, nesta perspectiva, torna-se “a via de salvação” (BRUNEL, 2005:559). 8 Cf. BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Tradução de Carlos Sussekind. et. al. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p.555. 19 A primeira tensão que o labirinto apresenta é a do um e a do múltiplo9. Na ida, Teseu se confronta com os inúmeros caminhos e, na volta, com aquele marcado pelo fio mágico de Ariadne. Nesse sentido, o mito expõe o problema da escolha e, ao mesmo tempo, apresenta o meio para resolvê-lo (no caso de Teseu, o fio mágico). Os nossos personagens se deparam com a ausência de escolha. Josef K., Michael K e Benjamim são confrontados com a falta de perspectiva e se agarram à única possibilidade que conseguem vislumbrar. Eles não possuem o fio de Ariadne para que possam se desvencilhar da situação em que se encontram. O destino dos personagens, em sua maioria trágico, tem por base o enclausuramento do indivíduo em seu próprio mundo, tema tão recorrente em Dostoiévski. Contudo, neste, há uma busca desesperada de saída. A imagem do personagem passando por inúmeras adversidades nos remete à ideia da provação do herói, estudada por Bakhtin (1993) em seu livro sobre a teoria do romance. Bakhtin (ibid., p.182-188) menciona que a ideia de provação foi acumulando conteúdos ideológicos diversos ao longo do tempo. No romance sofista, esse conceito está ligado às ideias de crise, de transformação, de martírio ou de tentação. No romance de cavalaria clássico, encontramos a provação da coragem, da fidelidade, além das provações por sofrimento e seduções. No romance do século XIX, é a provação da vocação, do eleito e a sua provação pela vida; além da prova da personalidade forte que se opõe por algum motivo à coletividade. Em oposição ao romance de provação, os românticos apresentam o “romance de aprendizagem”. De acordo com Bakhtin (ibid., p.185), a ideia de provação “não possui relação com a formação do homem”, ela advém de “um homem pronto e submete-o à provação segundo um ponto de vista de um ideal também já pronto”. No romance de 9 BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários, op. cit., p.556. 20 aprendizagem, “a vida, com os seus eventos, esclarecida pela ideia de transformação, revela-se como uma experiência do herói, uma escola, um meio, que pela primeira vez formam e modelam seu caráter e sua visão de mundo” (BAKHTIN, 1993:186). Mas, para o pensador russo, a ideia da transformação, da educação e a da provação não se excluem e “podem entrar numa união profunda e orgânica” (ibid.). Nota-se, portanto, que o embate dos personagens com o mundo foi adquirindo contornos diversos ao longo do tempo. Nas obras da nossa pesquisa, as dificuldades dos protagonistas não estão relacionadas às provações como nos romances anteriormente mencionados por Bakhtin (ibid., p.182-188). Em Kafka, Coetzee e Chico Buarque, os personagens enfrentam situações adversas num mundo cheio de temor e inquietude, vivendo como num grande caldeirão efervescente. Ao contrário dos romances de provação, cujas qualidades dos personagens são dadas desde o início, nas obras da nossa pesquisa, a cada página os personagens vão adquirindo novos contornos, surpreendendo o leitor com a sua singularidade. O mundo não é um mero pano de fundo, mas está inteiramente relacionado à vida dos personagens. Há uma interação entre cada personagem e o mundo labiríntico em que vivem. Ler as obras dos autores selecionados é mergulhar no “caldeirão da história”, na “era dos extremos”, como diz Hobsbawn. As obras impressionam pela riqueza literária e pela reflexão apresentada em tempos tão sombrios. São livros pertubadoramente belos e dolorosos que expõem a solidão de homens diante de um poder arbitrário. Como diz Kafka (1966:27-28), “um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós”, lançando luz sobre situações humanas que desafiam a nossa compreensão. 21 1. OS AUTORES E SEU TEMPO 1.1. FRANZ KAFKA: O SONHADOR DE PESADELOS Ao lermos as obras de Franz Kafka, adentramos numa realidade perturbadora e sombria. A biografia e as narrativas do autor travam um tenso diálogo, como têm apontado críticos como Erich Heller (1976). O escritor tcheco apresenta uma literatura de situações-limite, fruto de um momento histórico crítico e da sua experiência pessoal conturbada. Antes de mergulharmos nas suas obras, é necessário refletirmos sobre a sua vida e o seu tempo. Afinal, quem é Franz Kafka? O escritor nasceu em Praga no ano de 1883 e faleceu em 1924, tendo vivido, portanto, as transformações políticas, econômicas e sociais do fim do século XIX e início do século XX e, principalmente, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Muitos escritores, pensadores e pesquisadores têm se confrontado com a difícil tarefa de “decifrar” as obras do escritor tcheco. E, por isso, muitas são as interpretações: Max Brod, que se recusou a queimar os escritos de Kafka, via nas narrativas a busca por um Deus inalcançável; Camus o considera o escritor do “absurdo”; outros, um profeta do Holocausto. Mas o seu maior crítico foi ele mesmo. Em seus diários e cartas, especialmente Carta ao pai (1919), Kafka examina a sua infância e a sua vida adulta. Franz Kafka desperta no leitor uma grande perturbação. Sua obra enigmática mostra as dificuldades em submetê-la a qualquer classificação. Ao longo do tempo, o termo “kafkiano” tem sido empregado como um adjetivo, com os sentidos de condenação, melancolia, angústia, algo inexplicável e abstruso. O adjetivo é usado 22 também para qualificar a situação atormentada do homem moderno preso nas teias burocráticas da vida cotidiana. Franz Kafka era um judeu de Praga, nascido tcheco e falante de alemão. O escritor mostrou, segundo Mairowitz (2009:18), poucos indícios ou interesse no judaísmo como religião. Numa ocasião, Kafka escreveu: “O que tenho eu em comum com os judeus? Quase não tenho nada em comum comigo próprio [mesmo]”10 (D,223). Tendo iniciado os estudos em Química, em Letras e em História da Arte, Kafka se decide por Direito. A partir de então, começa a sua vida profissional em escritórios, o que será o seu suplício até a morte. Mas isto lhe permitia reunir um farto material para as suas interpretações judiciais e burocráticas. Sua carreira literária inicia-se oficialmente em 1909, com a publicação de “Descrição de um combate”. Essa carreira irá se desenvolver paralelamente à sua vida profissional. A vida sentimental é um dos pontos críticos de sua biografia. Felice Bauer, Grete Bloch, Milena Jesenska, Julie Wohryzeh e Dora Dymant foram as cinco mulheres com as quais o escritor manteve relações amorosas, mas não conseguiu realizar-se através delas. As correspondências com as três primeiras foram reunidas com o título de Cartas a Milena e Cartas a Felice. A correspondência com Felice mostra as dificuldades do escritor diante do matrimônio. Ao propor casamento a Felice, Kafka apresenta várias razões contra a proposta e um argumento a favor. Entre as razões contrárias estão: o fato de ter nascido para ficar só e também a necessidade da solidão para realizar as tarefas que lhe interessavam. O único argumento a favor é a incapacidade de viver 10 Anotação no Diário de 8 de janeiro de 1914. 23 sozinho11. Como podemos perceber, seus motivos são contraditórios, pois ele precisa viver sozinho, mas ao mesmo tempo se sente incapaz de fazê-lo. Nas cartas que se seguem, Kafka acrescenta outros obstáculos, entre eles o fato de ficar muitas horas escrevendo12. Nas cartas a Felice, além das angústias perante o matrimônio e a vida que levava, Kafka revela a sua percepção da criação literária: “[...] nunca puede estar uno lo bastante solo cuando escribe, por eso nunca puede uno rodearse de bastante silencio cuando escribe, la noche resulta poco nocturna, incluso”13. Em seguida, o escritor faz uma impressionante descrição do que considera uma escrita perfeita: con frecuencia he pensado que la mejor forma de vida para mí, consistiría en encerrarme en lo más hondo de una vasta cueva con una lámpara y todo lo necesario para escribir. Me traerían la comida y me la dejaríam siempre lejos de donde yo estuviera instalado, detrás de la puerta más exterior de la cueva. Ir a buscarla, en camisón, a través de todas las bóvedas, seria mi único paseo. Acto seguido regresaría a mi mesa, comería lenta y concienzudamente, y en seguida me pondría de nuevo a escribir. ¡Lo que sería capaz de escribir entonces! ¡De qué profundidades lo sacaría! ¡Sin esfuerzo! Pues la concentración extrema no sabe lo que es el esfuerzo. Lo único es que quizás no perseverase, y al primer fracaso, tal vez inevitable incluso en tales condiciones, no podría por menos que hundirme en la más grande de las locuras: ¿Qué dices a esto, mi amor? ¡No retrocedas ante el habitante de la cueva! [grifo do autor] (CF II, 245). A condição de exílio do escritor é constante na literatura moderna. Kafka se considera um escritor noturno, cuja obra nasce das horas em que não conseguimos dormir. Para ele, escrever é a tentativa de se libertar de todas as coisas que tornam a vida insuportável, como a violência e a burocracia do Estado. Através da escrita, ele consegue expressar os sentimentos e os desejos mais ocultos, ficcionalizandoos a partir do engenhoso trabalho da criação literária. A escrita depende, portanto, 11 Carta de 16 jun. 1913. In: KAFKA, F. Cartas a Felice y outra correspondencia de la época del noviazgo II – 1993. Traductor: Pablo Sorozábal Serrano. 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1978b. p.394-398. 12 Carta de 21 jun. 1913, ibid., p.402-403. 13 Carta de 14 jan. 1913, ibid., p.245. 24 do grau de penetração na realidade, da qual se extraem sentidos que se encontram com outros e instauram um diálogo, como ressalta Bakhtin (2003). As narrativas kafkianas são, em sua maioria, inacabadas e não se “enquadram” na concepção tradicional de conto, novela, romance... A obra O castelo é marcada pelas lacunas. É uma obra inacabada, um terreno fértil para as especulações dos leitores. As lacunas geram nestes a sensação da representação de um mundo dos sonhos por causa das supressões, das interrupções, do clima opressor e labiríntico, do aparecimento de personagens sem uma explicação prévia, entre outros aspectos. Kafka torna visíveis suas interrupções. Não completa as frases e nem as apaga, deixando-as e começando de novo. Ao longo do seu diário, ele se queixa do barulho em casa que não lhe permite se concentrar, como o ruído das portas batendo, dos gritos da irmã e do pai andando de um lado para o outro. Por isso, é considerado um “escritor-noturno”, pois preferia o silêncio da noite para tecer as suas narrativas. Para ele, escrever é uma maneira de se desligar do mundo. O veredicto, ao contrário das outras obras, foi escrito de um só fôlego, como menciona no Diário: 14 Esta história, O processo [sic] [O veredicto] , escrevia-a eu de um jato durante a noite 22 para 23, das dez da noite às seis da manhã. Quase não conseguia tirar as pernas de debaixo da secretária, elas ficaram rígidas de estar tanto tempo sentado. A terrível tensão e alegria, a maneira como a história se desenvolveu perante mim, como se eu estivesse a andar sobre as águas. [...] Como tudo pode ser dito, como há para tudo, para as mais estranhas fantasias, um grande fogo à espera em que elas perecem e renascem outra vez. A convicção confirmada de que com o escrever este romance me encontro nas planuras vergonhosas da escrita. Só desta maneira é que se pode escrever. Só com uma coerência destas, com esta abertura total do corpo e da alma (D, 23 set. 1912, p.187-188). 14 O relato se refere à escrita de O veredicto e não de O processo, como traduziu Maria Adélia Silva Melo para a edição portuguesa. 25 Numa “abertura total do corpo e da alma”, as relações entre os homens e o mundo são traçadas por Kafka. Em O veredicto, vemos, de um lado, o isolamento pessoal do escritor e, de outro, o choque do personagem com o mundo burocratizado. Nesta narrativa, o personagem sucumbe ao poder tirânico do pai e se afoga, conforme o veredicto dado: “eu o condeno à morte por afogamento!” (KAFKA, 2004d:24). Desse modo, a construção narrativa, com lacunas, interferências ou de “um só fôlego”, apresenta na forma e no conteúdo, uma concepção de mundo que mostra indivíduos singulares e, ao mesmo tempo, questiona os problemas gerais da época. As obras kafkianas constituem, em sua maioria, uma reação a um poder sem limites, que abrange todos os setores da sociedade como uma sombra. Um poder que faz o ser humano se sentir pequeno e impotente, como atestam O veredicto, A metamorfose, O desaparecido ou Amerika, dentre outros. O primeiro representante desse poder teria sido o pai Hermann Kafka, mencionado, principalmente, em Carta ao pai (1919). Essa problemática aparece de maneira quase obsessiva no Diário, em 31 de outubro de 1911, quando Kafka fala do seu “ódio” em relação a Hermann, que o cobria de censuras e os insultos aos seus amigos, como Max Brod, chamado de “maluco” (meschugge), e Isaac Löwy, de “gente estranha”, inútil. Em carta a Milena, Kafka diz: “Se alguma vez quisesses saber como era minha vida em outras épocas, mandar-te-ei [sic] de Praga a carta gigantesca que há cerca de meio ano escrevi a meu pai, mas que ainda não lhe entreguei” (CM,55). Em O veredicto (1912), o jovem Georg Bendermann é condenado à morte por afogamento pelo pai, em virtude da falta de atenção para com um amigo que partiu para a Rússia. Esse conto é um dos raros em que o protagonista se submete sem resistência ao veredicto autoritário ao se jogar no rio. A metamorfose (1912) também 26 é um relato sobre o poder. Ao ser transformado, sem querer, num gigantesco inseto (Ungeziefer), Georg Samsa é ameaçado e abandonado pelos membros da própria família e se deixa morrer. Em Carta ao pai, Kafka queixa-se de que o pai o considera um “parasita” e um “inseto”. Em O desaparecido ou Amerika, de 1914-1915, os personagens dominadores são figuras paternas (o pai de Karl Rossmann e o tio Jakob), os “desclassificados” (Delamarche) e os altos administradores (o gerente e o porteiro do Hotel Ocidental). Todos manifestam seu autoritarismo sem justificativas morais, racionais e humanas. É comum nos textos de Kafka a utilização da figura “como um cão” para classificar os que obedecem a tudo sem resistir, apontando para o aspecto inumano dos seus personagens. A sua relação com o processo de escrita é conturbada. Em dezembro de 1910, Kafka faz, no Diário, observações sobre a sua própria dificuldade de escrever: “quase não há palavras que eu escreva que estejam de [sic] harmonia com as outras [...]” (15 de dezembro), “[estou] simplesmente perdido” (18 de dezembro), “desgraçado, desgraçado, [...] durante o dia não escrevi nada” (25 de dezembro). Kafka acrescenta em 20 de dezembro: “tenho constantemente no ouvido uma invocação: ‘Se viesses invisível juízo!’” (D,20-25). São diários, como diz Bradbury (1989:224), de “um sonhador de pesadelos”. O pesadelo está na própria realidade e ele não tem como escapar. O barulho no apartamento onde mora com a família, o trabalho estafante e burocrático durante o dia, a tuberculose que o atormenta e os acontecimentos políticos e sociais de início do século XX são grandes obstáculos à criação. Mas também são o combustível de sua escrita. Em virtude do emprego no “Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho”, Kafka conhece bem o mundo burocrático e as terríveis condições dos trabalhadores das indústrias. O escritor 27 convive com as manifestações e saques de lojas e departamentos públicos, comuns na época da Primeira Guerra Mundial, além do crescente ódio aos judeus considerados “uma raça sarnenta”. A realidade se apresenta como um pesadelo. Por isso, ele sente necessidade de viver para a literatura, transmitir o “mundo horrível que tem dentro da sua cabeça”15 com o intuito de libertá-lo, de expor todas as coisas que tornam a sua existência um martírio (D,195). O ato de escrever vira uma urgência, uma libertação: esta tarde tenía ocasión de escribir, ocasión que todo mi ser exige unanimemente, si no de un modo inmediato sí al menos movido por esa desolación interior que se propaga, pero he escrito solo lo suficiente apenas para soportar la jornada de mañana [...] (CF I, 11 para 12 de dezembro, 1912, p.171). Nessa perspectiva, escrever é viver e resistir a todas as contrariedades que tentam inviabilizar a existência. O autor encontra no ato de escrever uma maneira de suportar a vida: os problemas familiares, a doença, o trabalho e o mundo hostil. Através da escrita, Kafka apresenta personagens singulares, mostrando o modo pelo qual enfrentam seus problemas e o conjunto de relações que os liga, de forma extremamente profunda, viva e universal. A figura paterna teve grande influência na vida de Franz Kafka. Para Kafka pai, o “homem gigantesco”, o filho era um fracasso e um Schlemiel (imprestável) (CP,13). O escritor faz esta observação sobre as atitudes paternas: Era preciso prestar atenção para que não caíssem restos de comida no chão, no final a maioria deles ficava embaixo de você [do pai]. À mesa não era permitido se ocupar de outra coisa a não ser da refeição, mas você [o pai] polia e cortava as unhas, apontava lápis, limpava os ouvidos com o palito dos dentes (ibid., p.19). 15 Anotação no Diário de 21 de junho de 1913. 28 Percebe-se, portanto, que o pai não era capaz de cumprir as próprias regras impostas ao filho. Mais adiante, Kafka ressalta: “De certo modo a pessoa já estava punida antes mesmo de saber que tinha feito algo errado” (CP,24). É esta a premissa que perpassa várias obras de Franz Kafka, entre elas, O processo e Na colônia penal. A consciência da punição antecipada cria no indivíduo uma censura interior que o põe continuamente de sobreaviso contra qualquer atitude que venha a assumir futuramente e introjeta nele uma espécie de medo de agir, medo de tomar atitudes. Essa consciência da punição antecipada é uma fonte de angústia e insegurança, daí os movimentos sinuosos dos personagens kafkianos. Apesar da relação complicada com a família, principalmente com o pai, Kafka não se rebela. É através da escrita que ele mostra resistência. Certa ocasião, Kafka confessa a Max Brod que gostaria de intitular a sua obra de “Tentativa de evasão para fora da esfera paterna” (BROD, 1962:44). O escritor vive de um lado o mundo rígido e opressor do pai e de outro, o mundo livre da escrita, da criação. Os tormentos da relação com o pai e o trabalho burocrático são importantes para a sua concepção da ilogicidade do despotismo das superestruturas opressoras. Para o pai, um homem de negócios, o lucro e o sucesso são provas de poder e de virilidade do homem, e a arte, uma fuga às responsabilidades, uma inutilidade. O estranho complexo de inferioridade em relação ao pai gera a necessidade de fuga, que ele só encontra na literatura. Portanto, a literatura é resistência a tudo isso, é o ajuste de contas com o pai opressor, a denúncia contra ele, a válvula de escape para o mundo da liberdade, a tentativa desesperada de refletir sobre pesadelos dos quais não conseguia acordar. No “Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho” do Reino da Boêmia, em Praga, Kafka trabalhava para reduzir a taxa de acidentes de trabalho que eram 29 inúmeros. O escritor supervisionou a implementação de muitas medidas a fim de se evitarem os acidentes e sempre se colocava do lado dos prejudicados. Mairowitz e Crumb (2009:71) mostram desenhos do relatório de Kafka sobre as partes defeituosas dos equipamentos responsáveis pelos acidentes e as amputações. Este fato nos faz lembrar a máquina de tortura da novela A colônia penal. A máquina de torturar pessoas parece uma metáfora do sistema de trabalho na indústria, que Kafka conhecia muito bem. Os trabalhadores eram submetidos a horários estafantes e sujeitos a horríveis acidentes. A Primeira Guerra Mundial eclode quando o escritor inicia a escrita de Na colônia penal e O processo. A guerra gerou horrores inéditos e assinalou o colapso da civilização (ocidental) do século XIX. Tratava-se, na visão de Hobsbawm (2008:16), de: uma civilização capitalista na economia; liberal na estrutura legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica característica; exultante com o avanço da ciência, do conhecimento e da educação e também com o progresso material e moral; e profundamente convencida da centralidade da Europa, berço das revoluções da ciência, das artes, da política e da indústria e cuja economia prevalecera na maior parte do mundo, que seus soldados haviam conquistado e subjugado; uma Europa cujas populações (incluindo-se o vasto e crescente fluxo de imigrantes europeus e seus descendentes) haviam crescido até somar um terço da raça humana; e cujos maiores Estados constituíam o sistema da política mundial. Sob os efeitos de uma época caótica e labiríntica, chamada por Hobsbawm de “Era da catástrofe”, Kafka escreveu as suas obras, abordando temas como o poder, a submissão e a humilhação. O início do século XX foi uma época de acontecimentos extremados, sem precedentes, principalmente o horror provocado pelas guerras. Houve, a partir de 1914, uma regressão dos padrões então 30 considerados normais. As pessoas tiveram que aprender a viver nas condições mais brutalizadas e intoleráveis possíveis. A acusação no início de O processo se tornou memorável na literatura moderna, assim como a descrição de horror do aparelho de tortura em Na colônia penal. São inegáveis as influências de Dostoiévski, de quem Kafka era leitor, nessas obras. Os personagens kafkianos vivem no limiar entre a realidade e o pesadelo, como veremos, sofrendo interferências de “forças superiores” ocultas, assim como os protagonistas do escritor russo. “Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável” (MS,15). Quem fala é um “homem subterrâneo”, o personagem sem nome – a quem não podemos chamar de herói, pois ele se recusa a tal denominação – de Memórias do subsolo (1864), de Dostoiévski. Ele é um desses personagens que encontramos nas obras de Kafka, funcionários, solitários, que trabalham ressentidos em suas escrivaninhas. Dostoiévski via esse homem subterrâneo como uma figura que representava o seu tempo e, como podemos ver, o de Kafka também. Nessa obra do escritor russo, instaura-se a hipótese da culpa que o escritor de Praga apresenta em suas obras no século XX. Assim diz o personagem subterrâneo: “[...] eu sou o primeiro culpado de tudo e, o que é mais ofensivo, culpado sem culpa e, por assim dizer, segundo as leis da natureza” (ibid., p.21). Mais adiante, o personagem faz uma observação que Kafka, de uma outra forma, apresenta no conto “A partida”, cujo personagem cavalga para alcançar o seu objetivo, que era simplesmente ir para “fora daqui”16. Nas palavras do personagem de Dostoiévski: 16 “– Para onde cavalga, senhor? – Não sei direito – eu disse –, só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar: só assim posso alcançar meu objetivo. [...] ‘fora daqui’, é esse o meu objetivo”. In: KAFKA, Franz. Narrativas do espólio (1914-1924). Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b. p.141. 31 O homem é um animal criado por excelência, condenado a tender conscientemente para um objetivo e a ocupar-se da arte da engenharia, isto é, abrir para si mesmo um caminho, eterna e incessantemente, para onde quer que seja [grifo do autor] (MS,46). É o homem exilado de si mesmo, “nem bom nem mau”. Essa visão existencial sombria Franz Kafka soube mostrar em sua literatura, principalmente com o seu personagem célebre Josef K., um funcionário de banco, que ignora todos os que o cercam até o momento em que se vê “detido”. Dostoiévski, em O idiota (1869) e em Os demônios (1872), expôs as contradições e as crises de sua época, como o desmascaramento do terror e do totalitarismo e a dominação. Como bem assinalou Bradbury (1989:43), “as personagens de Kafka são os filhos de Dostoiévski numa época diferente, e são eles que o trazem para o presente”. O homem subterrâneo não consegue “tornar-se um inseto”17, mas o seu descendente, Gregor Samsa, o faz em A metamorfose. Vemos nas obras kafkianas um pouco do ressentimento e da solidão dos personagens de Dostoiévski. Franz Kafka conseguiu com suas narrativas tematizar o espírito de sua época: o vazio, as opressões labirínticas e os “exílios interiores”. Os personagens de Kafka guardam uma relação com o homem subterrâneo de Dostoiévski. Em escritores como Tolstói, Gogol e Kierkegaard, o escritor tcheco encontrou inspiração para falar desse homem condenado ao exílio interior. Kafka expôs em Na colônia penal, como veremos mais adiante, o uso da tecnologia a favor da barbárie. O homem subterrâneo dostoiévskiano num trecho da narrativa comenta: 17 DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman. 5. ed. 3. reimp. São Paulo: Editora 34, 2008. p.18. 32 [...] ainda vivemos numa época bárbara, porque (sempre de um ponto de vista relativo) ainda hoje se cravam alfinetes em seios; que, mesmo atualmente, embora o homem já tenha aprendido por vezes a ver tudo com mais clareza do que na época bárbara, ainda está longe de ter-se acostumado a agir do modo que lhe é indicado pela razão e pelas ciências [grifo do autor] (MS,37). Conforme exposto, o homem ainda não conseguiu desvincular-se da época bárbara e continua agindo longe do bom-senso. O século XX nos ensinou a esquecer que no passado, numa convenção internacional, as hostilidades da guerra não deviam começar sem aviso prévio e explícito. A ciência, que deveria ser usada a favor do bem-estar e da melhoria das condições de vida, é usada também como instrumento de manipulação e dominação. Essa época bárbara da qual o homem não conseguiu desvincular-se, apresentada por Dostoiévski, ressoa nas narrativas de Kafka, um de seus leitores. Essas questões também serão abordadas, de forma diversa, nos outros escritores que fazem parte desta pesquisa. 1.2. J. M. COETZEE: A LITERATURA DO APARTHEID John Maxwell Coetzee, nascido em 1940, na Cidade do Cabo, na África do Sul, tem se revelado um dos escritores mais importantes da atualidade. Naturalizado australiano, Coetzee mora atualmente em Adelaide, na Austrália. O escritor estudou em escolas católicas inglesas e diplomou-se em Matemática e Língua Inglesa pela Universidade da Cidade do Cabo. Deu aulas de inglês na Universidade do Estado de Nova York, nos Estados Unidos, de 1968 a 1971. Nessa época, teve seu Green card negado pelo governo, provavelmente por ter participado de protestos contra a intervenção norte-americana no Vietnã. De volta à África do Sul em 1972, Coetzee foi professor de literatura na Universidade da Cidade do Cabo. De 1984 a 2003, 33 lecionou em várias universidades norte-americanas, entre elas, Harvard e Stanford. O escritor iniciou a sua obra ficcional no final da década de 1960. Em 1968, concluiu a sua tese de doutorado sobre o escritor irlandês Samuel Beckett, uma de suas referências literárias.18 Coetzee traz consigo o peso de ser “representante de uma geração para quem o apartheid foi criado”19. O escritor, crítico e professor cresceu em meio aos conflitos sociais e políticos da África do Sul. Embora pouco conhecido aqui no Brasil, escreveu grandes obras que lhe renderam alguns prêmios importantes como o Nobel de Literatura e o Booker Prize. Entre as suas obras, podemos citar: À espera dos bárbaros (1980), Vida e época de Michael K (1983), Foe (1986), O mestre de Petersburgo (1994), Desonra (1999), A vida dos animais (1999), Juventude (2000), Elizabeth Costello (2003), Homem lento (2005) e Diário de um ano ruim (2007). Algumas de suas obras fazem críticas ao colonialismo e suas consequências. O romance Desonra, que expõe conflitos entre negros e brancos, chegou a ser considerado racista pelo Congresso Nacional Africano, o partido hegemônico no governo pós-apartheid. Em 1980, com a publicação de À espera dos bárbaros, Coetzee ganha prêmios que o tornaram conhecido mundialmente, entre eles o CNA Literary Award da África do Sul. Em 1986, faz uma releitura do romance Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe, ao escrever o romance Foe. Nesta obra, Susan Barton conta a Foe 18 Cf. “J. M. COETZEE e o apartheid”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 ag. 2009. Caderno Mais!, p.47. POYNER, Jane. “Introduction”. In: ______ (org.). J. M. Coetzee and the idea of the public intellectual. Athens: Ohio University Press, 2006. p.1-20. ATTWELL, David. “Contexts: literary, historical, intellectual”. In: ______. J. M. Coetzee south Africa and the politics of writing. Berkeley: University of California Press, 1993. p.9-34. 19 Resposta de J. M. Coetzee em entrevista a David Atwell, in: ATWELL, David. “An exclusive interview with J. M. Coetzee”. Kultur&Nöje. 8 December 2003. Disponível em <http://www.dn.se/kultur-noje/an-exclusive-interview-with-j-m-coetzee-1.227254>. Acesso em: 16 jan. 2010. 34 a história de Cruso20 e Friday, que habitavam uma ilha deserta. Com esta obra, Coetzee recebeu o Jerusalem Prize, em 1987. Em O mestre de Petersburgo (1994), imagina a vida de Dostoiévski no século XIX, na Rússia, e também ganha prêmio internacional. Avesso à exposição, o escritor raramente é visto em público e nem costuma aparecer na entrega das premiações, como aconteceu na cerimônia do Booker Prize. Muito se comenta sobre a influência dos problemas raciais e políticos da África do Sul. Embora nem sempre especifique a África do Sul como cenário de suas narrativas, em Vida e época de Michael K, o país é palco de grande parte da ação. Este romance apresenta um país etnicamente dividido. É impossível abordar esta obra sem falar no contexto do apartheid. A narrativa tematiza o racismo contra a maioria negra que envolve a falta de liberdade – traduzida sobretudo, no toque de recolher e nas patrulhas –, e também a burocracia, que exige “passes” para ir e vir. Anna K, mãe de Michael K, é empregada doméstica e mora com o filho num minúsculo quarto embaixo de uma escada. Diante de um futuro incerto, a narrativa problematiza o isolamento do indivíduo, estranho em relação a seu tempo. Resta-lhe viver em tensão com um mundo em constante guerra. A África do Sul, tendo oficialmente adotado um regime racista, com direitos de voto e propriedade desiguais, estava dividida entre africâneres (os descendentes de holandeses, com seu idioma próprio) e a população branca de origem britânica. Em 1948, o apartheid foi oficializado pelo Partido Nacional, em reação ao crescimento de grupos oposicionistas. Entre as suas normas legais, podemos citar: 20 Attwell (1993:107) menciona que o nome do personagem teve por origem o sobrenome de um pastor amigo de Coetzee, Timothy Cruso. 35 É ilegal que uma pessoa branca e uma negra tomem juntas uma xícara de chá num café de qualquer lugar da África do Sul sem que obtenham permissão especial para fazê-lo (apud PEREIRA, 1986:59). Para decidir se uma pessoa é ou não “pela aparência, evidentemente branca”, o funcionário competente leva em consideração “seus hábitos, educação, modo de falar, aspecto e comportamento geral” (ibid., p.60). As normas supracitadas impressionam e mostram o que é viver num país com imensas desigualdades sociais. Condenado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o apartheid (sistema de desenvolvimento nacional separado, ou apartado, segundo a cor e a raça) é a exacerbação do racismo e a da dominação branca no continente africano, pois o mesmo institucionalizava a separação da sociedade por raças, sob o rigoroso comando da raça branca, considerada “como de essência superior”21. O sistema sul-africano, ao contrário do nazista, que objetivava dizimar a maioria judia, não pretende a eliminação da maioria dos africanos, pois se nutre e depende do trabalho deles. Nesse contexto de dominação, há, portanto, uma correlação entre negro e explorado. Na África do Sul, havia três grupos raciais: 1) o grupo branco; 2) o grupo africano, que inclui “toda pessoa, membro de uma raça ou tribo indígena da África, ou aceita geralmente como tal”; 3) o grupo de cor, que inclui “todas as pessoas que não sejam membros do grupo branco ou do africano” (ibid., p.26-27). Dentro do apartheid, o “grupo de cor” recebe um tratamento preferencial em relação ao “grupo africano”. A cor é usada como critério legal para tratamento desigual entre os homens e reserva aos brancos um conjunto de privilégios, advindos da exploração da população negra. Essa dominação se exerce de fato 21 Cf. PEREIRA, José Francisco. Apartheid – o horror branco na África do Sul. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.17. 36 através da exploração econômica. Os brancos eram detentores de quase 90% das terras cultiváveis da África do Sul e os negros eram tão somente seus empregados. Dentro desse contexto de dominação, o Ministro do Trabalho podia reservar uma classe de trabalho somente para brancos ou proibir o empregador de substituir empregados brancos por africanos. De acordo com Pereira (1986:30), “uma pessoa negra que realizar, seja como favor especial ou a título gratuito, uma atividade considerada ‘especializada’ e destinada a branco, é igualmente culpada de delito reprimido com multa [...], ou prisão por um ano, ou ambas as coisas”. Essa política de dominação se explica pela existência de uma situação particular de “colonização interna”, que se consolidou ao longo do processo de desenvolvimento do capitalismo local. Ao analisarmos as formas históricas de opressão e dominação da nação africana, percebemos que a exploração da população negra e o sofrimento que lhe são impostos já vêm do período em que a África do Sul era uma colônia inglesa, governada por colonos brancos, o que faz do apartheid um tipo especial de neocolonialismo. A segregação oficial começa em 1913 com a Lei das Terras, que dividiu o solo africano, reduziu a posse de terra dos africanos sobre o seu próprio território e delegou aos brancos a quase totalidade das áreas, conforme mencionado por Pereira (ibid., p.35). A política do apartheid também se manifestou no aspecto linguístico. O afrikaans, língua do governo racista da África do Sul, foi imposto nas escolas negras. A língua não era internacional e servia para isolar a população. Esta língua era usada pela polícia, sempre que se exigia o “passe” (documento a ser mostrado pela população negra para se locomover dentro do território). 37 Mas a luta anti-apartheid tomou impulso através das ações em defesa da liberdade e da igualdade. Nessa luta, Nelson Mandela se destacou. Considerado pelo governo um terrorista, Mandela passou quase três décadas no cárcere. Como jovem estudante de direito, envolveu-se na oposição ao regime do apartheid, que negava aos negros (maioria da população), mestiços e indianos (uma expressiva colônia de imigrantes) direitos políticos, sociais e econômicos. Sua luta contra a segregação racial o tornou presidente da África do Sul de 1994 a 1999. O sonho que o sustentou durante os vinte e sete anos que passou na prisão foi o que ele compartilhou com Martin Luther King Jr.: que um dia as pessoas seriam julgadas não pela raça, mas pelo caráter. Desde a queda do nazismo, em nenhum lugar essa política desumanizadora tinha sido institucionalizada de forma tão meticulosa quanto na África do Sul. Mandela descreveu o apartheid como um “genocídio moral”, “não com campos de concentração, mas com o extermínio insidioso da autoestima das pessoas” (CARLIN, 2009:10). Por isso, o apartheid foi considerado por muitos países, entre eles, os Estados Unidos, a França e a antiga União Soviética, no auge da Guerra Fria, “um crime contra a humanidade”, segundo a definição da Organização das Nações Unidas. Para Mandela, a única maneira de libertar o seu povo era fazer com que os próprios brancos abolissem o sistema de segregação racial. Para isto, seria necessário conquistá-los, tratando-os com respeito. Em 1995, Mandela usou a Copa do Mundo de Rúgbi como instrumento para alcançar a meta que estabelecera para o período em que seria presidente da África do Sul: reconciliar negros e brancos e criar as condições para a paz em seu país. Nesse jogo, brancos e negros sentaramse lado a lado. As eleições de 1994 criaram uma nova África do Sul, mas restava o 38 desafio de criar os sul-africanos, ou seja, de estabelecer uma nova identidade não mais fundada na segregação racial. Em 1990, foi decretado o fim do apartheid, a partir de inúmeros protestos da população, os quais vitimaram muitas pessoas. O fim da segregação racial não significou o término do preconceito racial e a discriminação no país. A luta continua na África do Sul. As diferenças sociais ainda são imensas. Há bairros luxuosos ao lado de muita miséria. Após o apartheid, foi criada, em 1995, através da Lei da Unidade Nacional, a Comissão Verdade e Reconciliação, com o objetivo de reconstruir a identidade do povo africano e estabelecer uma cultura valorativa contra a impunidade e a defesa dos direitos humanos. Várias leis discriminatórias foram anuladas e novas leis criadas para impedir a exclusão social e a segregação. No entanto, a população africana continua até hoje marcada pelo estigma da cor e pelas lembranças do apartheid, cuja extinção não resultou no fim do analfabetismo, da miséria e do desemprego. O sistema de ensino continua precário e, com pouca qualificação, falta emprego para a população negra. A violência urbana continua sendo um grande problema, com altas taxas de homicídio e racismo. A situação atual ainda contém as sementes do passado, mas abriu-se um longo e difícil caminho a ser percorrido pela população da África do Sul com vistas à superação das diferenças sociais, econômicas e culturais herdadas de anos de segregação racial. Na consciência ficou o sonho de uma terra onde não existissem barreiras a impedir uma pessoa, seja qual fosse a sua raça, de se tornar membro pleno da nação africana e participante da economia. Esse sonho é um dos pilares que sustenta a obra Vida e época de Michael K, como veremos. Num contexto tão opressor, só mesmo o sonho para fazer brotar a esperança. 39 1.3. CHICO BUARQUE: A LITERATURA CONTRA O SILÊNCIO A auto-definição de “seresteiro, poeta e cantor”, exposta em Noite dos mascarados22, não caracteriza mais Chico Buarque, que vem se dedicando à ficção. As suas várias facetas – cantor, compositor, dramaturgo, ficcionista e poeta – permitem-nos defini-lo como um “artesão da palavra”. Além dessas aptidões, o escritor mostra em sua obra o comprometimento com as questões políticas e sociais do nosso país. É difícil falar de Chico Buarque sem mencionar o Brasil. Filho de Sérgio Buarque de Hollanda – intelectual ilustre, autor de Raízes do Brasil – e de Maria Amélia Alvim Buarque de Hollanda (pianista amadora), e nascido em 19 de junho de 1944, o autor tornou-se uma figura importante para a cultura brasileira. Leitor de Flaubert, Céline, Camus, Sartre, Dostoiévski e Tolstói, sua obra é composta por inúmeras músicas, romances e peças de teatro. Ourives da palavra, Chico é autor das peças Roda viva (1968), Calabar, o elogio da traição (1973), Gota d’água (1975), Ópera do malandro (1979) e da novela Fazenda modelo (1974). A partir da década de 90, o escritor tem se dedicado à obra romanesca, com a publicação de Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite derramado (2009). Os três primeiros romances problematizam – entre outras questões – a solidão de personagens nas grandes cidades. Estorvo e Benjamim apresentam um clima de desesperança e opressão, exclusão e desânimo, cujas ruínas apontam para um mundo carente de perspectivas, com protagonistas totalmente desenraizados e alheios à realidade. Ambos os personagens “não veem luz no fim 22 Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 17 jan. 2010. 40 do túnel”, mas ainda assim marcham, na tentativa de sobreviver às artimanhas da vida. O romance Estorvo apresenta o trajeto de um personagem anônimo, desempregado, vivendo às margens do presente: sem sentido, sem volta e sem projetos. Logo no início, o protagonista, após ver pelo olho mágico do seu apartamento um rosto misterioso, resolve fugir sem um motivo aparente. Sua visão parece confusa: “estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata [...]” (HOLANDA, 2004b:7). Nessa obra, enfatiza-se a distinção entre “ver” e “conhecer”, na medida em que o personagem, através do olho mágico, vê o visitante, mas não tem noção da sua identidade, ou seja, não o reconhece. Os personagens e a cidade são anônimos. Uma vez que tudo na narrativa é colocado de forma indefinida, os personagens principais não são nomeados. O nome, para Cassirer (1972:68), não é um mero símbolo, mas “parte da personalidade de seu portador”. O filósofo afirma que essa conexão entre personalidade e nome se desenvolve desde as culturas mais antigas. Na sociedade romana, os escravos não tinham direito a nome, pois “não podiam funcionar como personalidades independentes” (ibid., p.69). Em Estorvo, não há um nome que represente os personagens. Eles são apresentados a partir dos atributos físicos ou função social. Os personagens anônimos são indefinidos, podendo remeter a qualquer homem, portanto, destituídos de personalidade. Paradoxalmente, em Benjamim, tudo o que o protagonista não quer é o anonimato. Todavia, embora tenha um nome (Benjamim Zambraia), sua vida e sua história também se perdem no torvelinho das suas memórias. Benjamim é a história de um ex-modelo fotográfico em decadência, que tem a sensação de estar sendo filmado, como se o mundo fosse um reality show, um set de filmagem. Apesar de 41 possuir um único nome, Benjamim se perde nas inúmeras máscaras e identidades que toma para si. Num outro romance de Chico Buarque, Budapeste, o estilhaçamento do ser, dentre outras vertentes, também se tematiza na figura do duplo, assim como em Benjamim, e nas complicadas relações familiares de Estorvo. O personagem se duplica em José/Zsoze Costa/Kósta. Ele escreve textos para outras pessoas, simulando escrever como se fosse um outro. Além disso, vive em duas cidades, insere-se em duas estruturas familiares e fala dois códigos linguísticos, o português e o húngaro. Trata-se, portanto, de representar na simulação ficcional uma outra simulação, já que o personagem-narrador é um ghost-writer. José/Zsoze Costa/Kósta tenta encontrar-se refletido em seus livros, que não são seus, são apenas reflexos, pois escreve por outros. É o dramático papel de encarnar o outro. O caminhar entre duas realidades faz com que esse personagem se sinta um estrangeiro, diferente e alheio a tudo. Ao viver da duplicidade, ele aparece desprovido de pátria, lar ou lugar, pois está sempre em trânsito. No romance Leite derramado, um homem num leito de hospital, membro de uma tradicional família brasileira, conta a história de sua linhagem, desde os ancestrais portugueses até o tataraneto, um garoto, morador do Rio de Janeiro contemporâneo. A obra é, portanto, uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil. Como mencionamos anteriormente, é difícil falarmos da obra de Chico Buarque sem nos referirmos à sociedade brasileira, principalmente dos anos marcados pela ditadura civil-militar. Ela é o panorama que rege o destino de Benjamim Zambraia, personagem da nossa pesquisa. Em outras palavras, a obra de Chico – seja em suas peças, romances e músicas – conta a história do seu tempo 42 ao falar dos descaminhos do homem na sociedade. As canções do autor se revestem de um inegável comprometimento com o social, ora “rendilhado de romantismo juvenil”, como é o caso de Marcha para um dia de sol, ora já “com uma realização estética que lhe confere maturidade”, perceptível em Pedro Pedreiro (MENESES, 2002:18). No entanto, não nos estenderemos muito em suas composições musicais23. A formação de Chico Buarque aconteceu num clima histórico de muito populismo: o trabalhismo getulista, o nacional-desenvolvimento dos anos JK, a fundação de Brasília, entre outros. Além disso, foi também o período das vanguardas artísticas, como a poesia concreta (1956), a poesia práxis, o Cinema Novo (Ruy Guerra e Glauber Rocha), a Bossa-Nova, os grandes trabalhos de arquitetura de Oscar Niemeyer. Já na universidade, Chico se vê em meio à emergência dos movimentos populares, que atingiram o ápice de 1962 a 1964. Foi um dos momentos de intensa fermentação ideológica e social do Brasil: o movimento estudantil atuante, o movimento operário, a luta pela reforma agrária, a criação da Universidade de Brasília por Darcy Ribeiro etc. A vida do compositor foi impregnada por esse clima. No entanto, toda a euforia foi abruptamente interrompida em 1964, com o golpe militar. O lirismo ingênuo e adolescente cede espaço para o lirismo nostálgico que vai se tornar dominante na composição de Chico Buarque na década de 60. A grande marca será “o retorno a uma situação em que não haja dor” (ibid., p.22). Essa recusa da realidade presente é, na visão de Adélia Meneses (ibid.), uma “resistência à massificação do mundo industrializado; resistência à sociedade atomizada e mutiladora”. 23 Sobre o exame desta questão, ver MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico – poesia e política em Chico Buarque. 3. ed. ampl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. 43 Em 1968, é decretado o AI-5: prisões, torturas, censuras, desaparecimentos e exílios configuram-se como panorama da época. O exílio, seja na procura de um outro país, seja interiormente, torna-se uma realidade para Chico Buarque. Em fins de 1968, ele compõe Sabiá: “quero deitar à sombra de uma palmeira que já não há/ Colher a flor que já não dá”24. A pátria é exposta, nessa composição, pela carência. A partir desse momento, acontece uma passagem do “poeta social” ao “poeta político”, com canções como Apesar de você (1970) e Cálice (1973), esta última em parceria com Gilberto Gil. A “semântica da repressão” e a “sintaxe da repressão” se tornam elementos estruturais nas canções25. O conteúdo e a sintaxe das músicas remetem ao momento político-social sombrio. Emprega-se uma linguagem figurada para a abordagem da opressão vivida pelo país. A repressão aparece de forma velada nas letras das músicas, como podemos perceber na canção “Acorda, Amor”. Conforme ressaltado por Adélia Meneses (2002:71-72), notam-se referências à época sombria: a ditadura (“Era a dura/ Numa muito escura viatura”), as prisões na calada da noite (“Não é mais pecado nada/ Tem gente já no vão da escada/ [...]/ São os homens”), o sumiço inexplicável (“Mas depois de um ano eu não vindo/ Ponha a roupa de domingo/ E pode me esquecer”), os empecilhos (“Se você corre, o bicho pega/ Se fica, não sei não”), a insegurança (“Dias desses chega a sua hora”). No entanto, podemos interpretar a canção de uma outra maneira: o malandro eliminado pela polícia dos “Esquadrões da Morte”. Dessa forma, segundo Adélia Meneses (ibid., p.72), as prisões de madrugada, a insegurança e o sumiço são comuns a ambas situações – a marginalidade social (os criminosos) e a marginalidade política (os contrários ao regime). 24 Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 17 jan. 2010. Cf. MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico – poesia e política em Chico Buarque, op. cit., p.36. 25 44 Voltando a sua obra romanesca, especificamente Benjamim, a narrativa acontece no espaço de tempo entre os doze tiros do pelotão de fuzilamento, disparados simultaneamente. Não há perspectiva futura e o passado se torna presente. A memória do protagonista se revelará um labirinto de sombras, um túnel escuro, o lugar da solidão. A “semântica da repressão” e a “sintaxe da repressão” da ditadura civil-militar fazem parte da construção romanesca. As referências ao momento histórico aparecem na linguagem indireta. Não são mencionados termos como “ditadura civil-militar” ou “repressão”, mas se fala de “casal foragido da lei”, “investida de oficiais inescrupulosos”, entre outros. A época é retratada como algo distante e misterioso. As prisões, o sumiço e os impasses remetem ao campo semântico da repressão. O tratamento misterioso da política é exposto na objetividade do narrador diante dos fatos narrados. A cidade vive o tempo da pedra, do mundo massificado, da exploração generalizada, do consumo, da cultura do espetáculo. A condição humana, diante das sombras do tempo, é caracterizada na obra. Benjamim mostra, portanto, os descaminhos de um sujeito que não conta com ninguém, nem consigo mesmo, vivendo num labirinto fantasmático. As canções e as narrativas do escritor aparecem como uma arma contra o silêncio imposto pela censura da época de repressão. Nelas a história brasileira é apresentada nas pequenas experiências cotidianas: nos pedreiros que esperam trens e aumentos que não chegam, nas prostitutas infelizes, nos malandros, nos pivetes e nos guris. Aqui, o silêncio não está relacionado com a ausência de palavras, mas com o “ficar calado”, à cassação do direito de expressão. Minuto de silêncio, lei do silêncio, impor silêncio, quebrar o silêncio... São muitos os sentidos da palavra silêncio. Num texto, o sujeito da enunciação pode sugerir sem dizer, como acontece com as canções de Chico Buarque “Cálice” e 45 “Apesar de você”. Em “Apesar de você”, percebe-se a associação à realidade repressiva do poder e que configura uma situação de escuridão: “Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão [...] Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Esse samba no escuro”26. Desse modo, a época sombria da ditadura não é representada de forma clara, mas através de associações convencionais, como podemos perceber também em Benjamim. 26 Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 27 mai. 2010. 46 2. O UNIVERSO LABIRÍNTICO DE JOSEF K. 2.1. A HISTÓRIA DO ABSURDO “Alguém certamente havia caluniado Josef K.”. É com essa frase que Franz Kafka inicia O processo. O narrador onisciente conta a história do último ano de vida do personagem Josef K., um funcionário importante de um banco. Na manhã em que completou trinta anos de idade, Josef K. é acordado, na pensão onde se hospeda, por dois funcionários da Justiça, que lhe comunicam a sua detenção. No início, K. pensa que é uma brincadeira em virtude do seu aniversário, mas logo percebe que a acusação é séria. Os agentes, que se dizem subordinados a uma autoridade superior, negam-se a comunicar o motivo da detenção. Em meio ao estranhamento27 da situação na qual se vê envolvido, Josef K. afirma-se inocente. O superior lhe comunica, então, que poderia responder ao inquérito em liberdade e exercer normalmente a sua profissão, mas deveria comparecer a todos os interrogatórios do tribunal de justiça. Numa manhã de domingo, avisado pelo telefone, Josef K. vai ao primeiro interrogatório. O tribunal está situado num prédio afastado do centro, habitado por funcionários. No prédio, homens em mangas de camisa estão debruçados na janela, fumando ou segurando nos parapeitos crianças pequenas. Em outras janelas, há pilhas de roupas no varal. As pessoas chamam umas às outras aos gritos. Uma vitrola toca num volume ensurdecedor. Numa sala superlotada, Josef K. se apresenta ao juiz de instrução, que o confunde com um pintor de paredes. Na audiência, o juiz de instrução usa um 27 Aqui estranheza no sentido de espantoso, fora do comum. 47 pequeno livro de notas como autos do processo, “uma espécie de caderneta escolar, velha, disforme de tanto ser folheada” (P,44). Enquanto K. faz um longo discurso mostrando o absurdo da sua detenção e a corrupção dos funcionários da justiça, um jovem estudante mantém relação sexual com a lavadeira do prédio, na sala de audiência. No domingo seguinte, Josef K. volta ao tribunal, mas não há audiências naquele dia. K. conversa com a lavadeira, que lhe diz ser a esposa do oficial de justiça e, por ser bonita, é obrigada a ser amante de juízes, estudantes e moradores do prédio, com a permissão do marido, que receia perder o emprego. A lavadeira se oferece a K. e lhe deixa ver os livros que estão na mesa do juiz. Ao abri-los, ele percebe que são livros obscenos e romances. O personagem conhece o oficial de justiça, que o leva ao andar superior, onde fica o cartório: um longo corredor obscuro com compartimentos separados por grades. O ambiente é tão repugnante que Josef K. desmaia. No banco, onde exerce a função de procurador, Josef K. assiste ao espancamento dos dois funcionários denunciados por ele no tribunal. Estes funcionários roubaram as roupas de K. no dia da detenção. Josef K. tenta evitar o castigo, mas não consegue. O espancador diz: “fui empregado para espancar, por isso espanco” (ibid., p.89). Numa tarde, K. recebe a visita do tio Karl, que, tendo sabido do processo, oferece ajuda ao sobrinho, levando-o ao advogado Huld. Este está doente, mas atende os dois no quarto. Enquanto o tio conversa com o advogado, K. conhece a jovem Leni e se relaciona sexualmente com ela. Durante os encontros com o advogado, este, sempre de cama, lhe faz longos discursos sobre a máquina 48 burocrática do tribunal, mas não lhe informa nada sobre o seu processo, pois ainda está aguardando o momento oportuno para redigir a petição inicial. Um industrial, cliente do banco, aconselha Josef K. a entrar em contato com o pintor Titorelli, que prestava serviços aos juízes do tribunal. O pintor explica que existem três possibilidades de absolvição: a real, que ninguém nunca conseguiu; a aparente, provisória, sob a influência de amigos dos juízes, a qual pode perder seu efeito e o acusado ser preso novamente; e o processo arrastado, em que o procedimento judicial é mantido de forma permanente no estágio inferior do processo, obrigando o acusado a estar em contato com os juízes constantemente. Desanimado, Josef K. volta pela última vez à residência do advogado Huld para dispensar seus serviços. K. encontra o comerciante Block, outro cliente do advogado e amante de Leni, que, apesar de ter contratado mais cinco advogados e abandonado seus negócios para se dedicar integralmente ao seu processo, após cinco anos ainda não obteve nenhum resultado. Josef K., após uma longa discussão, dispensa a ajuda do advogado e nunca mais volta a procurá-lo. Num dia chuvoso, Josef K. tem a incumbência de mostrar alguns monumentos artísticos a um amigo italiano do banco, que visitava a cidade pela primeira vez. K. marca um encontro na catedral, porém, ao chegar lá, encontra não o cliente italiano, mas um sacerdote, o capelão da prisão. Este o chama num grito. O sacerdote lhe revela que seu processo vai mal, pois o tribunal inferior já considera sua culpa provada. Após tecer comentários sobre o tribunal, o sacerdote lhe conta a parábola “Diante da lei”. Nesta, um homem do campo chega ao portão de entrada da lei. Mas o porteiro não o deixa entrar. O homem pergunta se então não pode entrar mais tarde e o porteiro retruca que “é possível”. O camponês fica à espera. Ele agrada e até mesmo suborna o porteiro. Este aceita, mas continua negando a sua 49 entrada. Os anos vão passando e o porteiro torna-se tão familiar que o camponês fica conhecendo até “as pulgas da sua gola de pele” (P,215). Após muitos anos, o camponês à beira da morte pergunta por que até aquele momento nunca ninguém havia passado por aquela porta. O porteiro diz que aquela entrada havia sido feita para ele. Em seguida, o porteiro entra e fecha a porta. Josef K. e o sacerdote travam um tenso diálogo sobre a parábola. Na véspera do seu trigésimo aniversário, de noite, dois senhores foram à pensão onde K. morava e o levaram para fora da cidade, junto a uma pedreira deserta. Durante a caminhada, Josef K. percebe que “as folhas de uma janela abriram-se” e indaga-se: “quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem? Alguém que participava? Alguém que queria ajudar? Era apenas um? Eram todos? Havia ainda possibilidade de ajuda?” (ibid., p.227). Josef K., na ânsia de viver, interroga o tribunal: “onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado?” (ibid., p.228). Em desespero, ergue as mãos e estica os dedos, como se estivesse suplicando. Os funcionários da justiça retiram o paletó, o colete e a camisa de K., dobrando-as cuidadosamente. Enquanto um dos senhores colocava as mãos na garganta de K., o outro pegava uma faca de açougueiro e cravava no seu coração, virando-a duas vezes. Josef K. exclama: “como um cão”. 2.2. O MUNDO FRAGMENTADO E SOMBRIO Franz Kafka começou a escrever aquele que foi considerado pela crítica um dos maiores romances do século, O processo, em agosto de 1914. Tempos depois, o escritor se confessaria “quase incapaz” de dar prosseguimento à obra. Modesto 50 Carone, que escreveu o “Posfácio” à tradução brasileira do romance, afirma que o romancista, às vezes, interrompia a escrita, deixando uma lacuna na folha, a fim de tentar o capítulo seguinte. A dispersão de textos, muitos inacabados e divididos, aponta para as lacunas de uma realidade fantasmagórica28. O texto apresenta o mal-estar de uma escrita que procura manter o enigma, o mal-entendido, as suposições. A vasta fortuna crítica de O processo nos faz refletir sobre a possibilidade de se dizer algo de novo sobre essa obra. Segundo Bakhtin (2003:362), as narrativas dissolvem as fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos posteriores, no “grande tempo”. Ao longo dos anos, as obras vão se enriquecendo com novos sentidos, construídos em cada momento histórico. O romance é um gênero em formação, atualizado constantemente pela “complexidade e pela extensão insólitas de nosso mundo” (BAKHTIN, 1993:428). Nesse sentido, as obras literárias estão sempre abertas às diversas leituras. Na perspectiva de Bakhtin, as grandes obras constituem uma forma singular de atribuir sentidos ao homem e ao mundo. Essas obras trazem, implícita ou explicitamente, o que o pensador russo chama de “imensos tesouros dos sentidos”, que em sua época ainda não foram desvelados, potencializando-os em toda a sua plenitude. É por isso que as narrativas de Kafka são tão atuais, apesar de escritas no início do século XX. Portanto, as obras não se restringem à época contemporânea do escritor. Elas apresentam irradiações do passado e projeções para o futuro, sendo revisitadas por sucessivas gerações, indo além de seus limites de espaço e tempo. 28 No nosso trabalho, a palavra “fantasmagórica” é utilizada com o sentido de algo aterrorizador e sombrio (FERREIRA, s/d:611). 51 O homem não é um ser acabado, mas em processo de formação, que reflete em si mesmo “a formação histórica do mundo”. A capacidade de ver o tempo e de ler o tempo é, para Bakhtin (2003:225), a “capacidade de ler os indícios do curso do tempo” [grifo do autor]. O artista procura interpretar as intenções humanas e as diversas gerações. Dessa forma, em virtude da relação estabelecida entre as obras literárias e o tempo, mencionada anteriormente, torna-se necessário discutirmos a concepção de mundo apresentada em O processo, a fim de entendermos a realidade alienante, injusta e opressora expressa na narrativa. Nas primeiras páginas, deparamo-nos com o lado sombrio e obscuro da realidade de Josef K. Qual é a acusação que paira contra ele? Quem o acusa? Como se desenrolará o processo judicial? As interrogações são muitas e instauram uma atmosfera de dúvidas. O texto não responde as dúvidas do leitor, mas apresenta perguntas cada vez mais inquietantes. As interrogações levam a uma outra e principal pergunta: Quem é Josef K.? Esta é a pergunta-chave para tentarmos compreender a realidade labiríntica do personagem. As únicas informações que temos são: Josef K. é procurador de um banco; tem trinta anos; não mantém uma relação estreita com os familiares; não tem esposa, namorada e amigos; mora numa pensão; a satisfação da necessidade da relação sexual é obtida quase mecanicamente: uma vez por semana, à hora marcada, visita uma prostituta. Portanto, Josef K. vive isoladamente, não pertence a ninguém e não se integra ao meio. Não nos é apresentada a história de sua procedência. O protagonista ganha sentido a partir da relação estabelecida com o mundo. A instauração de um processo penal obriga Josef K. a sair do seu isolamento. E, buscando respostas, ele toma conhecimento de empregados subalternos do 52 banco, de funcionários da justiça, sente necessidade da ajuda de um advogado, recebe a visita do tio e aceita ajuda, relaciona-se sexualmente com a jovem Leni na esperança de apoio e visita o pintor dos tribunais, Titorelli. Enfim, as pessoas ao seu redor parecem finalmente começar a existir. Embora solitário, Josef K. não existe sozinho. Ele se liga aos outros. Mesmo que o personagem, inicialmente, não trave um diálogo ou perceba os outros, existe uma cadeia de relações entre eles. Josef K. é representado no conjunto de relações que o liga à realidade social e aos seus problemas. A singularidade do personagem aparece justamente nas relações estabelecidas com os outros personagens ao redor. Lukács (1968a) menciona a importância da “fisionomia intelectual”29 através da qual o escritor caracteriza e amplia a vivência dos personagens. A obra parte de temas e personagens particulares e, na medida em que vai se construindo, outros particulares vão se relacionando e construindo o universal. O mundo é, portanto, um grande labirinto que arrasta para dentro de si uma infinidade de personagens, cujos problemas viram o de todos. O conjunto de caracteres que individualizam Josef K., como sua função e as relações estabelecidas com as pessoas ao redor, torna o personagem “amplo, profundo e universal”, como veremos mais adiante (ibid., p.175). Os lugares pelos quais o protagonista transita são limitados: a pensão, o banco, o tribunal, o cartório e a catedral. Esses ambientes são marcados pela redução dos códigos de convivência social, pois não constrói laços tradicionais de identidade, mas relações impessoais com indivíduos tomados como meros passageiros: clientes, usuários, hóspedes, entre outros. Cada indivíduo é simplesmente um entre os vários anônimos que transitam por esses lugares. 29 “A fisionomia intelectual dos personagens artísticos”, p.165-214. In: LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura, 1968a, op. cit. 53 O espaço na narrativa, além do caráter impessoal, também se revela como um labirinto. São diversos os momentos em que o narrador menciona escadas, corredores e portas. Josef K. se sente perdido ao percorrer os corredores asfixiantes do tribunal, como podemos perceber a seguir: K. voltou-se para a escada que devia levá-lo à sala de audiência, mas ficou outra vez parado, pois além dessa escada viu no pátio três outras escadarias e, fora isso, uma pequena passagem no fundo, que parecia dar acesso a um segundo pátio. Irritou-se por não lhe terem indicado melhor o caminho [...] (P,39). O protagonista parece estar num labirinto diante das três escadarias. O labirinto é composto de uma multiplicidade de caminhos com o objetivo de impedir a chegada do viajante ao local desejado. As escadarias, os corredores e as portas constituem grandes obstáculos para Josef K., dominando-o e sobrepondo-se a ele. O protagonista não consegue se desvencilhar do emaranhado de veredas. Ele fica atordoado diante das passagens que encontra. Como um símbolo de defesa, o labirinto sugere a presença de algo precioso. Temos a impressão de que as escadarias e corredores têm o objetivo de dificultar o acesso dos condenados à lei. A acusação que paira sobre K. é misteriosa. Ao visitar os cartórios do tribunal, o ar sufocante, pesado e irrespirável provoca em K. o sentimento de completo aturdimento: – Então não quero ver tudo – disse K., que aliás se sentia efetivamente cansado. – Quero ir, como se chega à saída? – Será que o senhor está perdido? – perguntou atônito o oficial de justiça. [...] – Venha comigo – disse K. – Mostre-me o caminho, eu vou errá-lo, aqui há tantos caminhos [grifo nosso] (ibid., p.69). 54 Os vários caminhos encontrados por Josef K. não são uma trilha para chegar a um objetivo ou destino, mas, sobretudo, uma marca do aprisionamento. O protagonista caminha pelas suas veredas e não consegue chegar ao ponto que deseja atingir, ou seja, descobrir o motivo do processo contra ele. Quanto mais caminha, ou seja, procura solucionar o seu problema, mais Josef K. se complica. O isolamento e o sentimento de impotência são cada vez maiores. Ele continua marchando, perseverando. Busca um passado desconhecido causador do processo e tenta se desvincular de um presente angustiante. E isso é o que há de surpreendente na concepção de mundo em O processo: a presença de um paradoxo – a experiência da frustração, de um lado, e a perseverança, de outro. Josef K. tenta explicar algo que não pode ser explicado: a sua detenção. Nessa caminhada, persevera em busca de respostas, mas quanto mais avança, mais se frustra ao perceber a burocracia e a corrupção dos trâmites jurídicos. K., como diz Carone (2006:478), é “uma vítima da corrupção e do caráter associal de uma dominação criminosa e totalitária que prenuncia o fascismo”. Sísifo personifica bem esse dilema da perseverança e do fatalismo30 ao ser condenado pelos deuses a empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha e ter que refazer o trabalho, pois ela tornava a cair. O mito de Sísifo caracteriza um trabalho inútil e a impotência, pois a cada fracasso, há uma repetição vã31. Na narrativa kafkiana, o personagem tenta forçar um contato com o “responsável” pela sua detenção, mas cada tentativa é um fracasso. O fracasso é a força que o põe em movimento e o impulsiona a ir até o fim. 30 Paulo Bezerra, em “Sísifo: a utopia das utopias” (2006), diz que no fatalismo o homem está subordinado a uma força sobrenatural que o sobrepõe e também a uma ordem social primordial. 31 Cf. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paula Watch. 4. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2007. 55 Michel Foucault, em Vigiar e punir, procura discutir os poderes e micropoderes exercidos na sociedade para controle da população e que são também instrumentos de violência. A prisão funciona como uma manifestação de controle social. O escritor investiga a história das prisões e os suplícios infligidos pelos antigos regimes punitivos e mostra que as formas de punição não ficaram simplesmente mais brandas e, sim, mais abrangentes, a partir da lógica do mundo capitalista (FOUCAULT, 2009). Vemos, em O processo e mais adiante em Na colônia penal, um sistema punitivo que procura manter um controle total sobre a vida e o corpo do indivíduo. O caráter secreto do julgamento é um componente a mais no sistema de controle. O saber aparece como um privilégio absoluto da acusação. Nesse sentido, o completo alheamento do condenado funciona como uma espécie de suplício, já que ele não pode se defender ou se rebelar. Josef K. tem a sua reação tolhida por uma força burocrática e poderosa. O desconhecimento da acusação impede a sua defesa. Na obra, há duas formas de tortura. Ela acontece numa dimensão psicológica, perceptível na ansiedade do protagonista e na falta de respostas, e fisicamente, com o espancamento dos dois guardas Franz e Willen, punidos pelo roubo das roupas de Josef K. Nas sociedades atuais, a prisão se transformou na forma moderna de controle a ocupar o lugar do suplício. No entanto, o controle absoluto sobre a vida e o tempo do condenado não é exclusivo da prisão. O Estado controla a vida da população através de outros sistemas como o educacional, o de saúde, entre outros. Na obra kafkiana, o poder exercido sobre a sociedade é apresentado prioritariamente nas estruturas judiciais, que controlam a vida dos indivíduos como uma instituição intocável e inquestionável. 56 Foucault faz uma reflexão sobre o Panóptico de Bentham, uma figura arquitetural que funciona como uma espécie de laboratório de poder: [...] na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. [...] Cada um, em seu lugar, está bem trancado em sua cela de onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em contato com seus companheiros (FOUCAULT, 2009:190). A construção parece um grande labirinto. Os “detentos” são vistos, mas não veem. O efeito da construção instaura nos detentos um estado consciente e permanente de que são vistos e vigiados. Bentham, segundo Foucault (ibid., 191), colocou a concepção de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível porque o detento terá sempre diante de si a silhueta da torre central de onde é espionado. E inverificável, pois “o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo”. Desse modo, os detentos são totalmente vistos, sem nunca ver. O Panóptico não deve ser considerado como um simples encarceramento, mas “um mecanismo de poder levado à sua forma ideal” (ibid., p.194). Um poder que é exercido diretamente sobre os indivíduos, com o objetivo de intervir, coagir e dominar. A realidade labiríntica de Josef K. se assemelha à construção arquitetônica de Bentham. O personagem está sozinho diante dos problemas que enfrenta, mas é constantemente vigiado. Assim como os detentos da construção, Josef K. se encontra preso, embora responda ao processo em “liberdade”. No entanto, é uma 57 falsa liberdade, em virtude da constante vigilância. K. tem os passos controlados, mas não consegue perceber as figuras humanas que representam o poder. A narrativa mostra, portanto, um “supercontrole”, no qual as pessoas devem estar constantemente em observação. Voltando ao espaço labiríntico, as inúmeras escadarias, corredores e portas encontradas por Josef K. indicam a existência de um caminho que o leva diretamente à instância máxima responsável pelo seu processo. Ainda que misteriosamente impenetrável, existe um caminho, obstruído por inúmeros compartimentos, salas e corredores. No tribunal, “uma estreita escada de madeira dava acesso provavelmente ao sótão, fazendo uma curva, de maneira que não se via o seu fim” [grifo nosso] (P,62). O caráter infinito e inalcançável do topo da escadaria dialoga com o processo movido contra Josef K. A escada aparece como símbolo das instâncias jurídicas. O aspecto obscuro e sinuoso da escada é uma quase metonímia da obscuridade e da sinuosidade do processo. Há uma relação entre o espaço físico do tribunal e o processo movido contra K.: ambos são obscuros e de difícil compreensão. O Estado exerce um controle sobre a vida dos indivíduos podendo dispor deles de acordo com as suas determinações. O processo penal é indefensável e a execução é humilhante. A descrição do tribunal e dos cartórios beira o absurdo. Os escritórios do tribunal ficam nos sótãos da cidade grande, lugares onde colocamos coisas inúteis e que queremos esquecer. Mas, o próprio tribunal é incapaz de esquecer. O cartório, por sua vez, “não era uma instalação capaz de infundir muito respeito”, era o lugar onde os inquilinos “jogavam a sua tralha inútil” (ibid., p.63). Os acusados ficavam à 58 espera em corredores soturnos. Em visita aos cartórios do tribunal, Josef K. sente-se como que “mareado”, à deriva em alto mar: Acreditava encontrar-se num navio em mar grosso. Para ele, era como se a água se precipitasse contra as paredes de madeira, como se do fundo do corredor chegasse um estrondo de águas dobrando sobre si mesmas, como se o corredor balançasse no sentido da sua largura, e como se as partes interessadas subissem e descessem dos dois lados (P,76). A náusea revela o mal-estar de Josef K. diante da situação na qual se vê envolvido. Esse sentimento de aturdimento é logo desfeito, quando ele é conduzido para fora do cartório. Ao sair daquele lugar, “era como se todas as suas forças tivessem voltado de uma só vez” (ibid.). Os funcionários, por sua vez, habituados à atmosfera do cartório, “suportavam mal o ar relativamente fresco que vinha da escada” (ibid.). Verifica-se, portanto, o contraste entre o acusado Josef K. e aquele que já está acostumado com as instâncias jurídicas, subjugado pelo sistema opressor e burocrático. O protagonista sente dificuldades em respirar o ar asfixiante do cartório, enquanto os funcionários não suportam o ar puro que vinha de fora. Estes parecem corpos dóceis e adestrados pelo sistema jurídico a ponto de não conseguirem se relacionar com o que está fora desta esfera burocrática. Eles aceitam a realidade opressora, contra a qual nada podem fazer. A única forma de sobrevivência é a rendição total ao maquinário dilacerante das estruturas judiciais e políticas. O narrador, num determinado momento, esclarece que é preciso: Tentar perceber que aquele grande organismo judicial fica, por assim dizer, eternamente pairando e que na verdade, quando se muda alguma coisa por conta própria, a partir da posição que se ocupa, retira-se o chão debaixo dos próprios pés, e se pode sofrer uma queda, ao passo que o grande organismo cria facilmente para si mesmo, em outro lugar, um substituto para a pequena perturbação [...] [grifo nosso] (ibid., p.122). 59 As instâncias jurídicas são definidas como um “grande organismo”, no qual cada parte está interligada a outra. Quando uma parte sofre algum tipo de dano, são instaurados novos mecanismos para suprir a carência. Desse modo, o poder funciona em cadeia. A onipresença do sistema jurídico eternamente pairando é um indício de sua ubiquidade e da condição trágica do cidadão no Estado totalitário, que tem mil olhos para espiá-lo. O sistema jurídico, conforme mencionado por K., está em toda parte e sempre alerta. No caso de Josef K., a procura por respostas pode provocar danos e, assim, “retira-se o chão debaixo dos próprios pés”. A decisão acertada “é se conformar com as condições existentes” (P,122). O conformismo é uma ferramenta da dominação que visa não apenas à sujeição, mas tornar a pessoa cada vez mais obediente e útil. Percebe-se, portanto, a falta de alternativas para Josef K. em meio a essa atmosfera de opressão. Essa atmosfera obscura e sombria aparece em várias descrições ao longo da narrativa. Ao ser despertado, Josef K. não recebe o café da manhã como de costume. Quando vai pela primeira vez ao tribunal, “o tempo estava turvo” (ibid., p.38). Numa das visitas à instância do tribunal no sótão, o ar pesado causa-lhe malestar e vertigens. No entanto, a abertura de uma lucarna não melhora o seu estado, pois ao invés de ar puro entra sujeira e fuligem (ibid., p.71-72). O ateliê do pintor Titorelli tinha o ar abafado e, apesar de possuir uma janela, o vidro era fixado na moldura, sem possibilidade de abertura. A ausência de janelas e a impossibilidade de abertura aludem à total opressão. O ambiente, demarcado pelas janelas, é muito marcante na narrativa. No momento da “detenção” de Josef K., um casal de idosos e um homem observavam do prédio em frente (ibid., p.18-19). Num outro momento, o hábito de olhar pela 60 janela de Josef K. causa a indignação do tio Albert: “Você está olhando pela janela! – exclamou o tio de braços erguidos” (P,94). As janelas remetem à abertura para o mundo exterior, como se o personagem buscasse apoio para resolver as dificuldades. No momento de sua morte, K. vê as janelas de uma casa se abrindo e pensa que talvez pudesse ser uma ajuda (ibid., p.227). Desse modo, as janelas traduzem as vias de acesso ao mundo exterior, e, ao mesmo tempo, a exclusão total desse mundo. As janelas e portas também assumem o caráter de barreiras que dificultam o acesso a alguma coisa ou algum lugar. A empregada do advogado Huld só abre a porta após muita insistência dos visitantes (ibid., p.101). Do quarto de despejo do banco, Josef K. ouve os gritos dos guardas que estavam sendo espancados. Mas ao sair do quarto e bater a porta, “os gritos desapareceram por completo” (ibid., p.90). A porta, portanto, remete à passagem para o conhecido e o desconhecido. Ela é o acesso ou o obstáculo para se descobrir o que motiva o processo contra K. Ela não apenas indica uma passagem, como também convida a atravessá-la. Ao ser interpelado, na catedral, pelo sacerdote (capelão do presídio), Josef K. pensa em fugir: “No momento ainda estava livre, ainda podia continuar andando e escapulir por uma das três pequenas portas escuras de madeira à sua frente, não muito distantes” (ibid., p.210). Nesse sentido, as portas apresentam-se como uma possibilidade de fuga e consequente salvação. A atmosfera nesses ambientes aparece impregnada por uma névoa sombria, associando-se às dificuldades encontradas por Josef K., na tentativa de entender e solucionar a sua detenção. Há, portanto, um diálogo entre as estruturas narrativas de tempo e espaço e a concepção de mundo expressa na obra. A escuridão revela o seu caráter simbólico, como podemos perceber no grito do sacerdote diante dos 61 comentários difamatórios de K. sobre o tribunal: “Será que você não enxerga dois passos adiante” (P,213). Josef K. não consegue enxergar ou entender o que se passa diante dos seus olhos em virtude das sombras, num sentido figurado, que o impedem de ver além. O tempo turvo e a obscuridade do processo de K. se relacionam, mostrando que ambos estão interligados. Na maioria das cenas em que o protagonista é levado a procurar respostas dentro de espaços que se assemelham a um labirinto – a pensão, o banco, o tribunal, a igreja – uma mulher o está esperando como uma espécie de conforto, como a esposa do oficial de justiça e a enfermeira Leni. Essas personagens femininas, secundárias na narrativa, parecem ter a função de distrair ou iludir Josef K. A personagem Leni trabalha como enfermeira e governanta para o advogado, mas também parece oferecer distração aos homens acusados do tribunal, principalmente os que exibem sentimento de culpa. O próprio sacerdote (capelão do presídio) alerta Josef K. quanto às ajudas que ele busca: “Você procura demais a ajuda de estranhos [...] Principalmente entre as mulheres. Não percebe que não é essa a ajuda verdadeira?” (ibid., p.212). A estrutura social em O processo abrange diversos níveis. Apesar de alguns personagens secundários terem nomes, eles são marcados, sobretudo, pela profissão ou parentesco. Poderíamos dividi-los em grupos: 1º) os ligados ao poder judiciário: inspetor, guardas (Franz e Willen), estudante de direito (Berthold), chefe de cartório, oficial de justiça, juiz de instrução, encarregado de informação, capitão (Lanz), advogado (Huld), sacerdote (capelão do presídio), pintor Titorelli (espécie de agente do poder); 2º) pertencentes às camadas subalternas: prostituta (Elsa), lavadeira, professora de francês (Montag), enfermeira (Leni), sobrinha (Erna), dona da pensão (Grubach), cozinheira (Anna), datilógrafa (Bürstner); 3º) pertencentes ao 62 setor econômico: procurador do banco (Josef K.), proprietário rural (Albert Karl), comerciante (Block), industrial. A descrição de cada um gira em torno da função exercida. Os personagens com alguma ligação com o tribunal são descritos usando barba e com insígnias de tamanho e cor diversos nas golas dos casacos. A descrição dessa estrutura é essencial para a construção da visão labiríntica, sombria e opressora da sociedade. Os personagens parecem conhecer o segredo por trás da detenção de Josef K. e os trâmites judiciais. As atitudes desses personagens mantêm a sensação de sufocamento e de emparedamento que ronda K., como os “conselhos” do pintor Titorelli sobre o processo, que ao invés de promover o entendimento, obscurecem-no mais ainda. A lavadeira, que mantém uma relação estreita com os tribunais especiais, também não ajuda K. a ter acesso ao processo. A função desses personagens na narrativa parece mostrar a incapacidade de Josef K. em lidar com o processo em andamento. Ele é a imagem do indivíduo despreparado para o mundo. Uma vez modificada a rotina – não lhe entregaram o café da manhã como de costume –, K. é incapaz de agir diante do imprevisto. Os personagens não se sobressaem pelo caráter ou alguma ação praticada, mas de acordo com a função ou posição que ocupam dentro do mundo oposto a Josef K. Segundo Anders (2007:62), as pessoas que Kafka faz entrarem em cena são arrancadas da plenitude da existência humana. Muitas, de fato, não são outra coisa senão funções: um homem é mensageiro e nada mais que isso; uma mulher é uma “boa relação” e nada mais que isso. Mas este “nada mais que isso” não é uma invenção kafkiana: tem seu modelo na realidade moderna, na qual o homem age só em função especial, na qual ele “é” sua profissão, na qual a divisão do trabalho o tornou mero papel especializado [grifo do autor]. 63 Como bem expôs Anders, a profissão é a forma exclusiva do homem e “nada mais que isso”. Esta questão não é, portanto, uma invenção kafkiana, mas alude à sociedade moderna, na qual o valor humano é medido de acordo com o papel exercido. A divisão do trabalho acontece de acordo com a especialização de cada um. Essa identificação entre homem e profissão faz com que Kafka traga para a cena personagens que exercem funções/profissões que, numa sociedade em que a igualdade de direito predomine, não deveriam existir como o espancador. A definição dos personagens pela sua função ou tarefa é sintoma de um mundo que transforma os indivíduos em peças de engrenagem. Os seres humanos são rebaixados à função de objetos, que fazem funcionar o sistema, que os anula, os desumaniza e os mata como seres, como sujeitos. A afirmação do espancador em O processo mostra essa questão: “fui empregado para espancar, por isso espanco” (P,89). Sem o menor indício de consciência, ele apenas obedece. Uma vez apanhados com a “mão na massa” e submetidos a processos, todos os torturadores dizem que apenas cumpriam ordem superior. São evasivos quanto à capacidade de julgar, inaptos a refletir sobre os eventos, a questionar os próprios atos e incapazes de se colocarem no lugar do outro. A resposta do espancador nos remete a alguém despojado de poder de decisão, que não vive, pois é guiado pelos outros. Este personagem se esgota na função exercida, sendo, portanto, destituído de qualquer valor que o ultrapasse. O conjunto de elementos fundamentais, como a moral, a fé, a honestidade etc., desaparece das consciências individuais. O espancador é um funcionário que representa apenas “um dente” no conjunto de engrenagem e, por isso, acredita-se livre de qualquer atribuição individual de culpabilidade e responsabilidade. 64 Marx, nos Manifestos de 1844, indicou os quatro principais aspectos da alienação: 1) a alienação dos seres humanos em relação à natureza; 2) à sua própria atividade produtiva; 3) à sua espécie; e 4) de uns em relação aos outros. Portanto, o conceito de alienação está ligado ao estranhamento do homem em relação à natureza e a si mesmo e a manifestação desse processo na relação entre homem-humanidade e homem e homem32. O homem passa de sujeito ativo a objeto do processo social. Ele não vive sua própria vida, mas desempenha funções preestabelecidas. Os guardas espancados, quando progridem, tornam-se espancadores também, mas em virtude da denúncia de K. de que eles tomaram o seu café da manhã e pegaram as suas roupas, a carreira estava arruinada. Se K. não os tivesse denunciado, mesmo que os superiores tomassem conhecimento da falta, eles não seriam punidos. Nas palavras de Willem – um dos guardas – “tínhamos perspectivas de progredir”, verifica-se o conceito de alienação exposto, apesar da constatação: “recebemos neste momento estas pancadas horrivelmente dolorosas” (P,87;88). A atitude de K. é ainda mais estranha. Ele tenta subornar o espancador a fim de evitar a violência, mas ao ouvir os gritos de um dos guardas desfere contra ele um golpe, com medo de que os colegas de trabalho o surpreendessem em negociações ilegais. Essa atitude expõe os paradoxos de se usar os mesmos meios ilícitos – o suborno – de uma justiça corrupta. A descrição da cena do espancamento assim como todas apresentadas ao longo da narrativa são minuciosas. Os gestos e as atitudes são expostas detalhadamente. O aspecto psicológico dos personagens nos é transmitido pelas 32 Cf. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004 e MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução de Isa Tavares. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2006. p.20. 65 coisas que os rodeiam, além do tempo e do espaço, através da atmosfera sombria e dos corredores e portas asfixiantes. No momento do espancamento, um dos guardas se esconde atrás do outro a fim de evitar a agressão (P,87). Percebemos, portanto, o medo do personagem traduzido em seus gestos ou atitudes. Lukács, em “Narrar ou descrever”33, contrapõe o predomínio da narração ao predomínio da descrição em alguns romancistas, como Emile Zola e Liev Tolstói. Segundo ele, o autor que privilegia a descrição faz crer que a realidade se refere ao que está sendo dito no momento em que é descrita. A narração, ao contrário, “distingue e ordena”, estimulando a compreensão da realidade como um processo em transformação (LUKÁCS, 1968b:66). Lukács associa narrar e descrever, respectivamente, à atitude de quem vive os acontecimentos e à atitude de quem se limita a observar de forma contemplativa. Com esse enfoque, as coisas podem ser descritas, mas os fatos concernentes aos “destinos humanos” devem ser narrados. Embora a nossa pesquisa não trabalhe com a concepção de romance que perpassa a crítica literária de Lukács, entendemos que os seus estudos sobre o narrar e o descrever são importantes para uma melhor compreensão dessas questões no universo romanesco. Em O processo, os personagens demonstram como são pelo modo como agem, ou seja, narração e descrição estão relacionadas. Kafka não apenas observa o drama dos homens, mas o narra, enriquecendo os personagens e as situações. Na visão de Rosenfeld (1976:233), a “narrativa kafkiana se verifica em geral tendo por foco o herói, a partir de quem é projetado o mundo”. Não é Josef K. que narra O processo, mas um narrador que se refere ao protagonista através do pronome “ele”. Desse modo, a visão do mundo é transmitida objetivamente. A 33 Texto de 1936, publicado em: Ensaios sobre literatura, 1968b, p.47-99. 66 narração em terceira pessoa gera uma linguagem sóbria e fria. O leitor ignora o passado do protagonista, indicado muitas vezes apenas pela letra K. A tragicidade perpassa a realidade sombria e obscura de Josef K., em virtude da falta de solução e da impossibilidade de salvação. O personagem não aceita simplesmente seu destino, mas procura decifrá-lo. Ele vai a alguns lugares em busca de informação sobre seu caso – empurra portas, atravessa corredores –, mas nenhuma das tentativas o ajuda a solucionar o enigma da detenção. Ele não possui o fio de Ariadne, como Teseu, a fim de ajudá-lo a encontrar uma saída para o seu problema. Para Lukács (2007:213), “a ‘história romanesca’ obriga seus heróis a rebelarem-se contra a necessidade (coisa que jamais ocorre na tragédia), a carregarem o fardo tanto maior de lutarem à própria revelia contra o destino opressor”. Em nota, o escritor diz que “[...] enquanto o homem trágico se bate com o destino, o homem da ‘história romanesca’ luta contra o destino” [grifo do autor]. A solidão trágica diante do destino inelutável é o grande impasse. O trágico está no fato de o homem sucumbir no próprio caminho que escolheu para fugir da ruína, como é o caso de Édipo, que resolve partir a fim de evitar a “profecia” do oráculo de que viria a ser o assassino de seu pai e o esposo de sua mãe. Mas a fuga de seus supostos pais o conduz ao encontro do seu verdadeiro pai. O que seria a salvação se transforma em aniquilamento. Szondi, em Ensaio sobre o trágico, faz um comentário que explica essa questão em Édipo: [...] nos três destinos que compõem ao mesmo tempo um só destino, os oráculos marcam uma gradação trágica, em que os elementos antagônicos ficam cada vez mais ligados, a duplicidade sendo reduzida à unidade de modo cada vez mais inexorável: Laio foge de seu assassino pelo caminho que o leva ao encontro dele – o jovem Édipo tenta escapar do ato mortal anunciado e comete esse ato em sua fuga – o rei Édipo busca os 67 assassinos de Laio, temendo que eles se tornem seus assassinos, e encontra a si mesmo (SZONDI, 2004:94). Na tentativa de elucidar o assassinato de Laio, Édipo descobre que é réu de sua própria investigação. Antes, porém, da descoberta, ele amaldiçoa a si mesmo: “O criminoso ignoto, seja ele um só/ ou acumpliciado, peço agora aos deuses/ que viva na desgraça e miseravelmente!” (SÓFOCLES, 2004:29). Édipo deixa um mundo ilusório de felicidade para um abismo de desgraça, devendo, portanto, sofrer o seu infortúnio. Desse modo, em virtude da falta de alternativas, o herói trágico caminha sempre em direção à própria destruição. A partir do momento em que comete uma falta, o equilíbrio e a harmonia são destruídos e a lógica do mundo rompida. Em O processo, não há um personagem trágico tal como na tragédia, mas a tragicidade da existência perpassa a narrativa. Josef K. luta contra o destino cruel que ronda a sua vida. Ele procura respostas e ajuda até o final. Neste momento, ele percebe que já não há mais chance de sobrevivência e se resigna. O aspecto opressivo do mundo de Kafka resulta da obscuridade dos acontecimentos relatados, que se assemelham a um pesadelo. O pesadelo não se deve apenas aos acontecimentos terríveis, como a detenção, a falta de solução, o espancamento e o assassinato, mas também à ausência de momentos não marcados pela tensão. Josef K. está sempre numa situação de opressão. Nenhum personagem ou ação é envolvido por uma atmosfera mais amena. Até a catedral, que deveria ser um lugar de tranquilidade, parece envolta por um clima obscuro e opressor. Quando Josef K. a visita para se encontrar com um amigo italiano do banco, o dia está muito chuvoso e escuro. A atmosfera confusa, que ronda o protagonista, é também traduzida nas condições climáticas. A narrativa está sempre 68 envolvida num clima sombrio – a ausência de luz –, apontando para o aprisionamento de K. diante de um processo sem fundamento. Todas as tentativas de se entender o processo de Josef K. entram em choque com a primeira frase do romance, que afirma: “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Essa frase instaura todo o questionamento que a narrativa vai desenvolver: injustiça, mentira, burocracia e corrupção. Podemos observar que a frase inicial do romance não é apresentada como uma opinião subjetiva do protagonista, mas como uma informação objetiva. Ela se diferencia da opinião subjetiva expressa por Josef K.: “[...] o caso também não pode ter tanta importância. Tiro essa conclusão do fato de ser acusado e não conseguir descobrir a mínima culpa da qual me pudessem acusar” (P,17) Em outro momento, ele diz ao pintor Titorelli: “sou completamente inocente” (ibid., p.148). No entanto, a ideia da calúnia não é levada adiante. A detenção de Josef K. parece uma espécie de ameaça, pois ele continua exercendo o seu ofício. O tribunal responsável pelo julgamento apresenta um procedimento inexplicável e fora do alcance do acusado. O próprio acusado e o advogado não têm acesso à ata de acusação. Desse modo, Josef K. se depara com a impossibilidade de defender-se, já que desconhece a acusação. O leitor tem a sensação de que a lei, que discutiremos em outro momento, não existe. Contudo, ela existe. Há uma poderosa organização legal que dispõe do poder de vida e de morte sobre as pessoas, conforme denunciado por Josef K.: [...] por trás da detenção e do inquérito de hoje, se encontra uma grande organização. Uma organização que mobiliza não só guardas corrompíveis, inspetores e juízes de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, de qualquer modo, sustenta uma magistratura de grau 69 elevado e superior, com o seu séquito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até de carrascos, não recuo diante dessa palavra. E que sentido tem essa organização, meus senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso [grifo nosso] (P,49). Como podemos perceber, Josef K. luta contra essa “grande organização” solitariamente. Contudo, ele tem consciência de que não é a única vítima dessa “justiça”, pois ela atinge várias pessoas. Visitando os cartórios do tribunal, K. encontra outros acusados que, apesar de mal vestidos, pertenciam às classes superiores. Assim, o caráter injusto do tribunal humilha os acusados, independentemente da classe social, e move contra eles processos infrutíferos. A referência ao carrasco é significativa, pois Josef K. parece ter consciência do fatalismo do processo e do final reservado para ele. Na véspera do seu trigésimo primeiro aniversário, dois senhores chegam à casa dele. Josef K. pergunta: “Então os senhores é que me foram destinados?” (ibid., p.223). O personagem, muito bem vestido, parecia estar à espreita de alguém. A primeira reação de Josef K. contra a sua detenção é protestar, denunciar e mostrar seu desprezo pelas instâncias do tribunal. Todos os personagens aos quais ele pede auxílio aconselham a submissão e a confissão. Mas como confessar algo desconhecido? A resistência de Josef K. é aniquilada nas páginas finais ao resignarse perante os carrascos. Ele parece resignado com seu destino e cansado de lutar em vão. Talvez ele tenha percebido a sua pequenez diante da imensa organização que mobiliza muitas pessoas. K. ainda consegue dizer no final: “era como se a vergonha devesse sobreviver a ele” (ibid., p.228). A vergonha de ter morrido “como um cão”, humilhado e subjugado por um tribunal desconhecido. O sentimento de indignação e desprezo que consome Josef K. durante boa parte da narrativa vai aos 70 poucos se transformando em um sentimento de impotência, gerado pela acusação infundada. Josef K. reflete antes de morrer: a única coisa que posso fazer agora é conservar até o fim um discernimento tranquilo. Eu sempre quis abarcar o mundo com as pernas, e além do mais com um objetivo reprovável. Isso não estava certo. Devo então demonstrar que nem sequer o processo de um ano me serviu de lição? Devo acabar como um homem obtuso? (P,225). O monólogo interior do personagem sugere o sentimento de culpa de que se deveria viver de outro modo “não abarcando o mundo com as pernas”. Esse sentimento é reforçado pela constatação “isso não estava certo”, apesar de não haver nenhuma informação literal na obra de que Josef K. se considere culpado. A sua inocência é reforçada durante o encontro com o sacerdote. Josef K. diz: “Mas eu não sou culpado [...] É um equívoco” (ibid., p.211). Na ocasião, ele indaga se o processo tem algo a ver com os assuntos humanos: “como é que um ser humano pode ser culpado? Aqui somos todos seres humanos, tanto uns como outros” (ibid., p.211). O protagonista reconhece seus inevitáveis erros e deficiências enquanto ser humano. Ele não resiste às artimanhas incompreensíveis do tribunal. A submissão gera um sentimento de vergonha, como se verifica no último fragmento do romance. Josef K. se resigna ao preferir “a segurança da solução que o curso natural das coisas tinha de trazer” (ibid., p.13). Percebe-se, portanto, que o sistema é tão terrível que K. acaba criando uma censura interior e justificando a acusação. Por isso, K. interroga o sacerdote se a acusação se referia aos assuntos humanos, reconhecendo os seus defeitos. A superestrutura jurídico-burocrática forma uma grande teia na qual os indivíduos são enredados como presa. O romance não começa num dia qualquer, mas no dia em que Josef K. completava trinta anos de idade. A morte acontece na véspera do trigésimo primeiro 71 aniversário. O tempo, como vimos, atravessado por uma névoa de sombra, tem algo de inumano e perturbador. A falta de sentido é significativa e atinge a consciência de Josef K. A consciência de um mundo sem sentido suscita a impressão de sonho e pesadelo. As imagens decorrentes desse processo não são gratuitas, mas se relacionam com toda a atmosfera que perpassa a obra. A duração de tempo entre a acusação e a morte de Josef K. é de um ano. O romance começa na primavera e termina no inverno. A vida do personagem parece acompanhar o ciclo da natureza. No entanto, embora a primavera esteja relacionada à época de renascimento e florescimento, é nesse momento que começa a “via crucis” que conduzirá o personagem à morte. Sua morte acontece à noite, em pleno inverno – símbolo de escuridão e frio. Há, portanto, na narrativa, um labirinto sem saída e o acesso ao mistério é negado. As portas, como já observamos, aparecem quase obsessivamente. No entanto, mesmo abertas, vedam o acesso à “lei”. Josef K. é assassinado com uma faca de açougueiro de lâmina dupla que é enterrada em seu coração e virada duas vezes. Três anos antes de começar O processo, Kafka anota em seu diário: “Hoje bem cedo pela primeira vez desde há muito tempo, de novo a alegria de imaginar uma faca a rodar o meu coração”34 (D,89). A faca é um instrumento utilizado nos sacrifícios. O seu sentido é associado às ideias de execução e de vingança, além de sacrifício. A faca utilizada na execução de K. possui lâminas duplas, cujo efeito é avassalador. Os carrascos a viram duas vezes, como se quisessem evitar qualquer chance de sobrevivência. A faca a rodar o coração de Kafka parece supor a existência de algo que agita ou importuna o escritor, a ponto de tirá-lo da passividade. 34 Anotação de 2 de novembro de 1911. 72 Ao longo de nossa exposição, abordamos algumas “imagens” que povoam a narrativa kafkiana, como as janelas, as portas, os corredores, o despertar, o labirinto e a escuridão. Ao sair da catedral, a escuridão cercava Josef K. por todos os lados a ponto de ele exclamar: “Mas eu não consigo me orientar sozinho no escuro” (P,222). A escuridão aparece como uma completa desorientação do personagem, acentuada, sobretudo, pelo labirinto de corredores e portas. Ele, de fato, não consegue se orientar sozinho e, por isso, busca a ajuda do advogado e do pintor. Contudo, o auxílio a que recorre se revela um contrassenso, pois ao invés de orientar o protagonista o confunde ainda mais. Os indivíduos são arrastados por estruturas de poder das quais não descobrem a lógica e, portanto, não conseguem articular qualquer mecanismo de resistência. 2.3. O ESTRANHO E O NATURAL Após o estudo sobre o mundo fragmentado e sombrio de Josef K., cabe refletir sobre o aparecimento de personagens e situações estranhas ao longo da narrativa. Como analisamos anteriormente, o absurdo na obra kafkiana é carregado de sentidos que dialogam com a atmosfera de sombras e o homem desestabilizado diante de um “superpoder” que controla a sua vida e transforma todos os esforços numa iniciativa inútil. É necessário, portanto, definirmos o que é estranho e natural em O processo. Não estamos dizendo que a narrativa kafkiana se insere no maravilhoso e no fantástico, mas que apresenta acontecimentos que ora podem ser explicados pela razão, ora escapam ao razoável. 73 Todorov (2008:31) define o fantástico como “a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural”. É a ruptura de uma ordem estabelecida. A hesitação do leitor é, para o escritor, a primeira condição para o fantástico. Caso o leitor perceba que as leis da realidade permanecem intactas e que os fenômenos descritos podem ser explicados, entramos no estranho. Para o autor, no estranho: [...] relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por esta razão, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquela que os textos fantásticos nos tornaram familiar (ibid., p.53). No maravilhoso, novas leis da natureza devem ser admitidas para a explicação dos fenômenos. Todorov analisa A metamorfose, de Kafka, como uma narrativa do sobrenatural. Para o autor, o sobrenatural aparece logo na primeira frase do texto: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (KAFKA, 1997:7). Aos poucos, o personagem aceita sua situação como inabitual, mas possível. Segundo o escritor, A metamorfose se distingue das histórias fantásticas tradicionais, pois o acontecimento estranho não aparece após indicações indiretas, mas logo no início. Para ele, A narrativa fantástica partia de uma situação perfeitamente natural para alcançar o sobrenatural, “A Metamorfose” parte do acontecimento sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez mais natural; e o final da história é o mais distante possível do sobrenatural (TODOROV, 2008:179). O mundo, em A metamorfose, é completamente bizarro e anormal. As situações são tão sobrenaturais que não provocam mais hesitação no leitor, 74 segundo Todorov (2008:181). Diferentemente, O processo não é uma narrativa nem fantástica e nem sobrenatural. A obra apresenta fatos estranhos, no sentido de estarem fora da ordem tradicional, que podem ser, no entanto, explicados pelas leis da razão, conforme definido por Todorov. Mas, para os personagens, os acontecimentos parecem ser completamente normais. Estudando o mundo kafkiano, Anders (2007:15) faz uma interessante observação: A fisionomia do mundo kafkiano aparece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal [grifo do autor]. Através do jogo de palavras entre verrücken (deslocar) e verrückt, particípio do verbo que, como adjetivo, significa louco, Anders descreve a concepção kafkiana de apresentar situações deformadas para introduzir o seu objeto principal: o homem. O espantoso é, portanto, a própria realidade. Ela aparece contaminada pela máquina administrativa que desumaniza e oprime os seres humanos. São inúmeras as situações de O processo que se descortinam no horizonte dessa questão desloucada35. No início da narrativa, já nos deparamos com a atmosfera explicitada por Anders. Josef K. é despertado por dois guardas vestidos com uma roupa preta justa e estranha. Kafka transforma o fato estranho, ou seja, esquisito – a detenção sem motivo aparente – em natural para o protagonista, por mais absurdo que pareça ao leitor os acontecimentos. O ponto de partida é uma rotina que se diferencia da ordem, que sai do “normal”. 35 Cf. ANDERS, 2007, p.15. 75 A primeira inquirição é ainda mais absurda. Ela é feita por um “inspetor” no quarto da senhorita Bürstner, com três funcionários do banco que tinham a missão de “ajudar”. Um casal de idosos e um homem observavam tudo pela janela do prédio em frente. Constata-se, portanto, que esta audiência foge da normalidade. O mais espantoso é saber que Josef K. está detido, mas poderá exercer suas funções normalmente. A atmosfera de mistério e estranheza envolve o leitor. No início, Josef K. pensa que sua detenção se trata de uma brincadeira dos colegas do banco, mas logo percebe que era verdade (P,10). As audiências acontecem aos domingos, em lugares estranhos. Os cartórios ficam no sótão de prédios velhos e os acusados desconhecem a acusação, pois “os documentos do tribunal, sobretudo o auto de acusação, permaneciam inacessíveis ao acusado e à defesa” (ibid., p.116-117). São, portanto, muitos os elementos esquisitos e inusitados, que, em conjunto, aludem a uma atmosfera fantasmagórica, aterrorizadora e sombria. Josef K., ao acordar, tem a sensação de que tudo não passa de um pesadelo, um sonho mau e angustiante que atormenta e gera a sensação de impotência. Ao transitar entre um cômodo e outro, o protagonista percebe pessoas que não estavam na cena anterior, como os três funcionários do banco, evidenciando a atmosfera fantasmagórica. Nos sonhos, as cenas aparecem nebulosas e desconexas e mostram a dificuldade de uma interpretação precisa. Nesse mundo, até o acordar revela-se como algo tenebroso, como acontece também com Gregor Samsa, em A metamorfose, que é transformado num inseto, e K., de O castelo, ao ser despertado do seu sono num albergue. É quando Josef K. acorda que o pesadelo começa. Como já foi dito, a atmosfera sombria relaciona-se com o mundo onírico, revelando a impenetrabilidade do mundo dos personagens. 76 A apresentação de Josef K. no tribunal remete ao absurdo, no sentido dos acontecimentos ocorridos serem contrários ao bom senso, pois ferem as regras da lógica. No ambiente estava uma multidão que se comportava fora dos padrões estabelecidos para uma sala de audiência. No meio do discurso de Josef K., um homem mantém relações sexuais com uma lavadeira em pleno tribunal. O protagonista pensa que a assembleia expulsaria o casal, mas “ninguém se mexeu e ninguém deixou K. passar. Pelo contrário, impediram-no [...]” (P,50). Portanto, o estranho em O processo está relacionado ao mundo dos acontecimentos reais do cotidiano, de onde irrompe um fato inusitado. Mas os acontecimentos ocorrem dentro de um mundo conhecido, que permite aos personagens identificá-los como algo natural. Os fatos estranhos e grotescos, mencionados anteriormente, funcionam como uma espécie de ironia diante da opressão e da corrupção do tribunal. Franz Kafka utiliza fatos absurdos para demonstrar o assombro que o homem experimenta ao se sentir “um nada” diante de um poder sem limites. Para representar esse absurdo, Kafka dá vida a um jogo de contrastes entre o natural e o estranho, o absurdo e o lógico. Josef K. vive, portanto, situações impensáveis dentro de uma realidade comum, que desafiam a nossa forma habitual de compreensão. O romance é permeado por uma atmosfera de pesadelo. Há rostos que observam pelas janelas; figuras desconexas que aparecem nas salas e quartos; olhos que espiam por fechaduras; advogados que provavelmente trabalham secretamente para os acusadores do réu; quartos de tortura, entre outros. Todas essas cenas mostram o caráter estranho da experiência vivida por Josef K. A função da senhorita Bürstner no romance é misteriosa. Embora se diga que “não há qualquer relação entre ela e o julgamento de K.”, o narrador menciona em 77 outro momento que a relação de K. com a senhorita Bürstner “parecia oscilar de acordo com o processo” (P,126). A presença dela parece prenúncio de algo ruim. Quando Josef K. é levado para a pedreira pelos dois carrascos “emergiu diante deles, na praça, por uma pequena escada vindo de uma rua situada em nível mais baixo, a senhorita Bürstner” (ibid., p.225). Os três a seguem, não porque K. quisesse alcançá-la ou vê-la, mas “para não esquecer a advertência que ela significava para ele” (ibid.). A senhorita Bürstner aparece como a advertência de que algo ruim pode acontecer, como uma “lição”. É difícil, portanto, deduzir da obra a “lição” ou a suposta culpa de Josef K. Ele sente uma forte atração pela senhorita Bürstner e tenta conseguir apoio dela no início do processo. K. é advertido pelo sacerdote ao buscar apoio de mulheres como a lavadeira, Leni e a senhorita Bürstner. Kafka atribui a Josef K. uma metáfora animal, quando ele se atira sobre a senhorita Bürstner, beijando-a “como um animal sedento que passa a língua sobre a fonte de água finalmente encontrada” (ibid., p.35). Um desejo carnal, um desejo de domínio. Como podemos verificar, as situações estranhas e espantosas apresentadas ao longo da narrativa mostram o mundo desloucado de Josef K., que o condena a morrer “como um cão”, subjugado por forças opressoras incontroláveis. O espantoso, conforme afirma Anders (2007:22), é despojado de espanto. Os personagens são mergulhados em sucessivas situações absurdas das quais não conseguem escapar. Essas situações traduzem a realidade abstrusa que ronda Josef K. e impedem qualquer forma de salvação. O mundo desloucado, explicitado por Anders, também é o panorama da novela Na colônia penal, que apresentaremos no próximo capítulo. Nela, o funcionamento de uma máquina de tortura é narrado com muita naturalidade por seu maior adepto, o oficial. A máquina é um dispositivo elaborado para executar transgressores e fazê-los pagar por supostos delitos com o 78 máximo de dor e tormento. A execução é uma festa, um espetáculo com o objetivo de infundir o medo e o respeito para com a autoridade que exerce o poder. A realidade horrenda é tida como algo plausível e aceitável. 79 3. NA COLÔNIA PENAL E OS LABIRINTOS DA DOR 3.1. A NARRATIVA DO HORROR A novela Na colônia penal, de Franz Kafka, parece uma narrativa do horror. Antes de um estudo detalhado, faremos um breve roteiro dessa obra, que nos remete às várias formas de terror extremado do século XX, como o Holocausto. A novela, narrada em terceira pessoa, tem quatro personagens principais: o viajante (Reisende) – explorador (Forschungsreisende), na tradução de Modesto Carone –, o oficial, o condenado e o soldado. Além destes, há ainda dois personagens que são apenas mencionados: o antigo e o novo comandante. O antigo comandante é o inventor e construtor da máquina de tortura e execução, assemelhando-se a um monarca absoluto. Na definição do explorador, ele era “soldado, juiz, construtor, químico e desenhista” (NCP,36) e seu principal discípulo é o oficial. As sentenças judiciais eram escritas e desenhadas à mão pelo comandante morto e cabiam numa pequena bolsa de couro, guardada no peito pelo oficial. O novo comandante, detentor de ideias mais avançadas, não se vale dos seus poderes para eliminar seus inimigos. Ele aproveita a visita do viajante, promovido a especialista, para se livrar dos discípulos do seu antecessor e da máquina arcaica por ele deixada. A máquina de tortura foi montada num “pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de encostas” por todos os lados (ibid., p.29). O condenado e o soldado são descritos como duas figuras grosseiras e primitivas. Este segura o condenado com uma pesada corrente, de onde partem as correntes menores que o prendem pelo pescoço, cotovelos e pulsos. O condenado é 80 descrito com um “ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho”, de uma “sujeição canina” (NCP,29). O explorador é convidado pelo novo comandante a assistir à execução de um soldado. Enquanto o explorador anda de um lado para outro, demonstrando falta de interesse pelo aparelho de tortura, o oficial providencia os últimos preparativos. O oficial supervisiona a máquina com grande zelo, por ser adepto do aparelho. A seguir, o oficial explica ao explorador o funcionamento da máquina de tortura e de execução. Sua descrição minuciosa ocupa mais da metade da narrativa. A conversa entre o oficial e o explorador acontece em francês. O aparelho é comporto por três partes: cama, desenhador e rastelo. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo, de modo que a escrita fique clarividente e o próprio corpo possa decifrar a culpa desconhecida. O aparelho não mata de imediato. O suplício dura doze horas. O oficial diz ao explorador que o soldado condenado não conhecia a sentença e não teve oportunidade de se defender. A sua culpa foi ter dormido durante o serviço, não cumprindo o dever de se levantar a cada hora e bater continência diante da porta do capitão. O capitão pegou o chicote de montaria e vergastou-o no rosto. O soldado se levantou, agarrou o superior pelas pernas, sacudiu-o e disse: “atire fora o chicote ou eu o engulo vivo” (ibid., p.38). Na máquina, o condenado é colocado pelo oficial. Mas uma correia gasta acaba arrebentando. O oficial resolve consertar, pois o novo comandante não substitui as peças antigas. Após o conserto, o processo de execução recomeça. No entanto, quando o oficial enfia um “tampão de feltro” na boca do condenado, este, num acesso irresistível de náusea, vomita. Novamente o processo é interrompido e o soldado começa a limpar a máquina. O oficial fica irritado e confessa ao explorador 81 que era o único defensor da máquina, herança do antigo comandante, e conta, com nostalgia, que antigamente a execução parecia uma festa, pois muitas pessoas se alinhavam em volta da máquina para assisti-la. O comandante levava suas mulheres e deixava até as crianças presenciarem o ato da execução. Emocionado, o oficial pensa ter visto no olhar vago do explorador o mesmo sentimento e lhe propõe, então, uma aliança. O explorador tenta contestar o peso de sua influência e não quer tomar uma posição. No entanto, pressionado pelo oficial, o explorador se declara adversário da máquina, da tortura e da execução. Ao posicionar-se contra, o explorador desencadeia a frustração do oficial operador, que via nele a possibilidade de conseguir o apoio do novo comandante. O oficial, percebendo que não convencera o explorador, liberta o condenado. A seguir, ele procura uma nova folha na carteira de couro que contém as sentenças do antigo comandante. Escolhe uma e apresenta ao explorador. Contudo, o explorador não consegue decifrar. O oficial, então, soletra a sentença “Seja justo”. Em seguida, sobe no aparelho, troca a sentença antiga pela nova, despe-se, dobra com cuidado suas roupas, deita-se e pede ao soldado para ser amarrado36. A máquina, antes silenciosa, começa a funcionar ruidosamente. O soldado e o excondenado olham com muita excitação. O explorador tenta expulsá-los, mas não consegue. De repente, escuta-se um ruído esquisito e a máquina começa a se desintegrar. O explorador tenta intervir fazendo a máquina parar, pois já não era mais uma tortura, como pretendia o oficial, mas assassinato. O viajante procura retirar o oficial, mas nesse momento vê quase contra a sua vontade o rosto do cadáver: “Estava 36 O ato do oficial de retirar as roupas e dobrá-las antes de se colocar na máquina lembra o final de O processo. Os guardas retiram as roupas de Josef K. e as dobram cuidadosamente antes de matá-lo (P,226-227). 82 como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida redenção” (NCP,67). Após a morte do oficial, o viajante resolve voltar para a colônia, ou seja, a cidade. Ao chegar numa das casas da colônia, é informado de que o antigo comandante estava enterrado ali, pois o clero negou para ele um lugar no cemitério. O explorador, ao observar a casa, sentiu “a força dos velhos tempos” (ibid., p.68). O explorador se dirige ao barco que o levará até o navio a vapor e é seguido pelo soldado e o condenado que queriam embarcar juntamente com ele. Todavia, o explorador se recusa a levá-los consigo, ameaçando-os. 3.2. AS RELAÇÕES DE PODER Desvendar a obra Na colônia penal é penetrar no universo de questões como a perda do direito de expressão, a ausência de liberdade, a rigidez dos sistemas, além da desumanidade. A cada releitura, o leitor vai se modificando e fazendo novas descobertas. Cada um lê com as marcas de seu tempo e de sua cultura e, por isso, novos sentidos vão se agregando e constituindo um novo texto. Uma das interpretações que podemos fazer do conto kafkiano está relacionada com os mecanismos de poder. As interrogações são muitas e sugerem a incongruência entre a Lei e as suas funções, na medida em que os condenados não têm o direito à defesa e desconhecem a acusação, assim como em O processo. As leis têm como objetivo manter a ordem em uma determinada comunidade. Feitas pelos homens, elas devem contemplar a todos. No conto kafkiano, um soldado é condenado e desconhece a sentença. Mas, ao contrário de Josef K., o seu delito é divulgado para o explorador: o soldado deverá morrer sob tortura porque 83 adormecera em serviço e agredira seu superior. A sua falta é transformada em crime de morte. Nas duas obras literárias, a arbitrariedade está em se condenar e executar alguém sem direito à defesa. Não existem respostas para as inúmeras perguntas suscitadas ao longo da narrativa. Os personagens são considerados culpados apesar de não sabermos ao certo as regras da Lei. Percorrendo os labirintos da Lei da colônia penal, percebemos que a única coisa acertada para os condenados é se conformar com os desígnios dos superiores. Franz Kafka escolheu o mecanismo judicial para suas reflexões, mas sua crítica não se resume a esse universo. A questão da lei, que desenvolve ao longo de sua obra, apresenta uma multiplicidade de interpretações. O título da narrativa já é uma advertência. Uma colônia é mantida sob domínio, inclusive econômico, por um determinado Estado. A colônia kafkiana, situada num “pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de encostas nuas por todos os lados”, é o espaço encarregado da execução da sentença numa máquina de tortura (NCP,29). Como é ressaltado na novela, os procedimentos adotados para cumprir as sentenças judiciais estão ultrapassados e o novo comandante pretende adotar novos sistemas. Nesse processo, a presença do explorador – um estrangeiro – é importante para pôr em dúvida as sentenças determinadas pelos mecanismos judiciais e a legitimidade da Lei. O explorador estrangeiro representa o olhar de fora, isento de qualquer influência. O oficial, por sua vez, como um dedicado adepto, queixa-se do descaso do atual comandante para com a máquina. Esta não recebe a devida manutenção, segundo o oficial e, por esta razão, o espetáculo antes oferecido não acontece mais. Com as suas reclamações, o oficial busca o apoio do estrangeiro 84 para dar prosseguimento ao método de punição do antigo comandante, considerado ultrapassado pelas autoridades da época. A colônia torna visível o atraso da sua concepção de justiça. Sob a ótica do explorador estrangeiro, na colônia perduram uma forma de poder questionável e a desumanidade de todo o processo penal. Contudo, a narrativa não deixa clara a forma mais avançada de justiça pretendida pelo novo comandante. Relacionando o conto kafkiano com o nosso tempo, percebemos que o processo penal apenas mudou a sua fisionomia, mas ele ainda continua desumano: cadeias lotadas, uma lei que favorece os mais ricos, um sistema penal que não educa, mas desumaniza. A prisão, que deveria ser instrumento de “reeducação”, é um fracasso, pois não “recupera” o “desviado”. No entanto, tal constatação não motivou seu abandono, mas é o fio condutor de projetos de aperfeiçoamento que, embora reformados, continuam desumanizando. Os criminosos, assim como os subversivos, os pobres e os avessos à disciplina, são vistos como um grande mal. A prisão funciona como um instrumento de controle e poder. Longe de transformar os criminosos em pessoas honestas, a prisão fabrica novos criminosos, conforme ressalta Foucault, em Microfísica do poder (2008:131-132). Na colônia penal kafkiana, há uma relação entre “sofrimento” e “poder”. As agulhas da máquina escrevem a sentença no corpo dos que forem condenados de modo que a escrita fique clarividente e o próprio corpo possa decifrar a culpa desconhecida. O condenado não lê com os olhos, mas com as feridas. Enquanto pessoas sem direito, nenhuma delas merece ser informada ou ter notícia do delito. Elas estão condenadas a viver experiências, mas não têm o direito de decidir sobre elas. 85 O antigo comandante, inventor da máquina de tortura, é, ao mesmo tempo, desenhista-projetista, construtor, químico, soldado e juiz. Seu domínio é amplo. Assim como ele, juiz e carrasco são uma e a mesma pessoa. Como foi mencionado no capítulo anterior, os homens são identificados a partir de suas funções. O conceito de “profissão” como uma atividade ou ocupação especializada é tão importante que traz à lembrança a ideia de vocação. Os nomes não têm importância. O que importa são os lugares e as posições que eles ocupam. A ideia de vocação se contrapõe à visão capitalista de que todos somos engrenagens de uma máquina. Quando uma peça não funciona adequadamente gera prejuízo para a sociedade. A narrativa faz referências ao sol impiedoso que esgota os personagens e parece querer derreter qualquer marca arcaica. Ele é tão impiedoso quanto a sentença de morte imposta pelo oficial, espécie de guardião da máquina. O oficial transpira muito e apresenta dois delicados lencinhos de mulher enfiados na gola do uniforme (NCP,30). Os lenços representam uma ironia, em virtude do seu significado angelical, contrário às concepções de tortura do oficial. Seu uniforme parece impróprio para o clima do local, assim como a máquina, já ultrapassada. Os delicados lenços de mulher foram ofertados ao condenado antes de sua execução, mas pegos pelo oficial para proteger do suor a gola das vestes militares. Há, portanto, a nosso ver, uma incongruência entre o clima tropical e o uniforme oficial, e entre a máquina arcaica e as novas ideias do atual comandante. Os contrastes e as incongruências são demarcados pelo “aqui” (colônia) e pelo “lá” (cidade); o passado (antigo comandante) e o presente (novo comandante). A violência das sociedades antigas não teve o seu fim definitivo. As estruturas hierárquicas e os mecanismos punitivos não foram alterados. As punições se tornaram apenas mais sutis e mais veladas. Nas sociedades contemporâneas, 86 utiliza-se o controle absoluto sobre a liberdade do indivíduo como estratégia de punição. Esse processo é visto como mais “humano”. No entanto, na prática, as cadeias lotadas evidenciam uma realidade que foge ao que poderia ser considerado condições dignas. Por causa do calor intenso, o viajante sente dificuldades em concatenar os pensamentos e prestar atenção à detalhada descrição do oficial sobre a máquina de tortura. Desse modo, há uma relação entre o calor sufocante e o sentimento de completo torpor. Completamente entorpecido e fascinado pela máquina, o oficial rememora o passado da colônia: Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu camarada! (NCP,50). Páginas anteriores, o oficial menciona que após a sexta hora de tortura, o condenado começa a ler a sentença a partir dos ferimentos. Com isso, o entendimento ilumina o seu rosto, conforme ressalta o oficial (ibid., p.44). Como se pode observar, a transfiguração no rosto do condenado o afasta do mundo dos homens. Ironicamente, essa experiência de iluminação, de entendimento, não se realiza com o oficial, assassinado enquanto a máquina se despedaçava. No momento da tortura, o explorador vê contra a sua vontade “o rosto do cadáver. Estava como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida redenção; o que todos os outros haviam encontrado na máquina, o oficial não encontrou [...]” (ibid., p.67-68). Na novela, é estabelecida uma equivalência entre o mais fraco da estrutura social – o condenado – e o verme, que pode ser martirizado 87 em nome de uma suposta justiça. Desse modo, conforme afirma Ferraz (2004:68), “a inferioridade social e a fraqueza moral caracterizam então o aquém do homem, o ‘pré-homem’ que deve ser oferecido em sacrifício para possibilitar uma ascese da alma do europeu”. Por isso, o brilho na face do oficial ao presenciar a cena de tortura. No momento em que o oficial se coloca no aparelho de tortura, este começa a mover-se por si, tornando-se independente do seu criador. A criação escapa ao criador. A consequência dessa transformação é a transferência das funções ativas dos homens para os objetos, que começaram a regular a nossa vida cotidiana. O operador da máquina transforma-se num egoísta brutal, sem qualquer preocupação com a natureza humana. No entanto, ele mesmo vira um objeto da máquina, pois ela começa a funcionar alheia à sua vontade, com suas próprias leis e finalidades. Vemos, portanto, a antropomorfização da máquina e a mecanização do homem. O que devia ser objeto da sua afirmação acaba sendo veículo de sua alienação, da perda de si mesmo. A máquina criada para torturar e matar expõe o valor dos seres humanos na sociedade: objetos do sistema administrativo. Os personagens, mergulhados num cotidiano caótico, são peças de uma engrenagem social complexa e conflitiva, da qual não podemos visualizar contornos precisos. A atitude do oficial de se colocar na máquina de tortura mostra que o sistema é uma espécie de Saturno37 que mutila e destrói os próprios criadores. Numa carta de 11 de outubro de 1916 para Kurt Wolff, Kafka afirma sobre Na colônia penal: “como esclarecimento desta última narrativa acrescento apenas que 37 Saturno, que foi assimilado ao Cronos grego, destronou seu pai Urano, mutilando-o e reinou sobre o mundo junto com sua irmã-esposa Reia. Como o oráculo havia dito que seria destronado por um de seus filhos, Saturno os devorava assim que nasciam. No entanto, Reia, para salvar Zeus, deu ao marido uma pedra enrolada em um pano no lugar do recém-nascido. Zeus, depois de adulto, declarou guerra ao pai, destronando-o e obrigando-o a vomitar seus irmãos e irmãs mais velhos (JULIEN, 2005:VIII). 88 não só ela é penosa, mas, ao contrário, que o nosso tempo em geral e o meu em particular o foi e é, e o meu é até mesmo há mais tempo penoso que o de todos”38. A obra, ao interpretar os indícios do curso do tempo na vida humana, é penosa assim como o tempo. A lei está relacionada a vários conceitos morais de culpa, de consciência, de dever e também de coação. Uma vez que os valores instituídos são infringidos dentro de uma comunidade, o infrator deve “pagar” pelos seus atos. Nessa relação, a “igualdade” entre os homens se revela como uma utopia, na medida em que há uma diferença entre aqueles que detêm o poder e os que por ele estão subjugados. Nessa obra, a autoridade aparece em sua feição mais alienada, como algo mecânico que sujeita, domina e destrói todos os que estão subordinados a ela. A obra foi escrita em outubro de 1914, três meses após desencadear-se a Primeira Guerra Mundial. Esta guerra seria para Kafka “um maquinismo desumano e mortífero, uma espécie de engrenagem cega e reificada, que escapa ao controle de todos”, como ressalta Löwy (2005:90). Kafka associou o autoritarismo mais arcaico e brutal a uma tecnologia refinada e moderna. Os homens não se reconhecem na sua criação mais “alienada” e “estranhada”39. 38 Colaboração da professora e tradutora Susana Kampff Lages nesta tradução. “Zur Erklärung dieser letzen Erzählung füge ich nur hinzu, daß nicht nur sie peinlich ist, daß vielmehr unsere allgemeine und meine besondere Zeit gleichfalls sehr peinlich war und ist und meine besondere sogar noch länger peinlich als die allgemeine” (B,150). 39 Estranhada no sentido marxista do homem não se reconhecer em suas criações. 89 3.3. DO HORROR AO HORROR: O SOFRIMENTO-ESPETÁCULO É difícil ler Na colônia penal após 1945 sem pensar no Holocausto e em outras formas de terror do século XX, como o franquismo na Espanha, o salazarismo em Portugal e o stalinismo. Vários pensadores, entre eles Theodor Adorno e George Steiner, têm explicitado o tom profético da obra de Kafka, pois ela mostra a íntima fusão entre o autoritarismo extremado e o processo de aperfeiçoamento da tecnologia. Recentemente, o crítico Enzo Traverso (1997:53) fez uma penetrante observação sobre Na colônia penal. Segundo o escritor, a obra de Kafka parece remeter aos “massacres anonymes du XX e siècle”. Em seguida, afirma: La ‘herse’ imaginée par Kafka, qui gravait sur la peau de sa victime sa sentence de mort, renvoie de façon impressionnante au tatouage des Häftlinge à Auschwitz, ce numéro indélébile qui faisait sentir, selon Primo 40 Levi, ‘sa condamnation écrite dans sa chair’ [grifo do autor] (ibid.). Para Traverso (ibid.), a colônia penal de Kafka apresenta características modernas que remetem a Auschwitz, e arcaicas, que lembram a época da guilhotina. A novela de Kafka é quase como “un apologue sur la généalogie de la terreur du XX e siècle”41. Na narrativa kafkiana, o homem decifra a sentença com os seus ferimentos. Nietzsche, em Genealogia da moral (1887), já mencionava a ligação existente entre dor e aprendizado, escrita e memória, ressaltando a violência desse processo: “Como fazer no bicho homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante [...]”... Esse antiquíssimo 40 “O ‘arado’ imaginado por Kafka, que gravava sobre a pele da vítima sua sentença de morte, remete de maneira impressionante à tatuagem dos Häftlinge [detentos] em Auschwitz, esse número indelével que fazia sentir ‘a condenação escrita na própria carne’, segundo Primo Levi”. 41 “um apólogo sobre a genealogia do terror do século XX”. 90 problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na préhistória do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra (NIETZSCHE, 2007:50). Para Nietzsche (ibid.), as experiências marcantes ficam retidas na memória. Haveria uma relação estreita entre dano e dor, surgida na relação contratual entre credor e devedor, e que remete às formas básicas de comércio, como a compra, a venda e a troca. O pensador lembra os inúmeros tipos de castigo ao longo dos séculos, como o apedrejamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos, a fervura do criminoso (séculos XIV e XV), entre outros, que fizeram com que as pessoas adquirissem uma memória através dos meios mais terríveis. Nietzsche analisou o papel de alguns desses elementos no processo de formação da consciência de culpa. O conceito moral de culpa teria se originado do conceito material de dívida42 de uma pessoa em relação a outra, que por sua vez remete às relações contratuais de compra, venda, troca, comércio etc. O castigo surgiu para que o homem pudesse fazer a distinção entre “intencional”, “negligente”, “casual”, “responsável” e seus opostos. Assim, “o criminoso merece castigo porque podia ter agido de outro modo” (ibid., p.53). À luz dessas questões, percebemos que os conceitos expostos por Nietzsche estão relacionados ao entrelaçamento das ideias de “culpa e sofrimento”, na relação pessoal entre comprador e vendedor, credor e devedor. Além disso, apresentam uma estreita relação com o aspecto religioso, na medida em que os homens sempre se confrontaram com o castigo divino. Essas questões ressaltadas por Nietzsche 42 Em alemão, utiliza-se a palavra Schuld como “culpa” e “dívida”. Nas notas explicativas de Genealogia da moral (2007:155), o tradutor Paulo César de Souza lembra a modificação introduzida na oração do “Pai-Nosso” pela Igreja Católica: “perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” deu lugar a “perdoai nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. 91 são indícios de uma vontade de poder que se assenhoreou de algo tido como mais fraco. A relação entre “culpa e sofrimento” ganha destaque Na colônia penal. O processo de escrita da máquina é violento e cruel, uma forma de infligir definitivamente no corpo do condenado toda humilhação e dor: 43 O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição nas costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. [...] Assim ele vai escrevendo cada vez mais fundo durante as doze horas. [...] o homem simplesmente começa a decifrar a escrita [“Honra o teu superior”], faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os seus ferimentos (NCP,43-44). O processo de execução da condenação por meio da máquina beira o absurdo. Nesse processo doloroso de escrita na própria pele, encontramos o poder da palavra, da escrita. A escrita no corpo (“Honra o teu superior”) feita pelo aparelho é a tentativa de fazer o condenado lembrar o motivo de sua condenação. A escrita aparece como forma de sentença e cumprimento da lei, a obediência cega aos superiores. A frieza envolvida na apresentação da máquina pelo oficial nos remete à alienação do oficial diante do horror da cena. Foucault, em Vigiar e punir, analisa o suplício como uma das formas de punição existente na prática judiciária no período anterior ao surgimento dos modernos Estados de direito. O suplício tinha a função de prolongar o sofrimento do condenado, pois a morte não era suficiente para que a punição fosse concretizada. Era necessário que o condenado sentisse na pele a culpa e que a sociedade percebesse a efetivação da justiça. Esta é, portanto, a perspectiva da punição na 43 O oficial, na narrativa, menciona que o nome combina, pois “as agulhas estão dispostas como as grades de um rastelo” (NCP,33). 92 novela kafkiana. O corpo aparece como o instrumento utilizado para se fazer justiça. Nesse processo, o espetáculo cerimonial com a presença do povo é importante para ratificar o suplício das vítimas e o poder que pune. O executor não é apenas aquele que aplica a lei, mas que demonstra ter a força. A pena para ser um suplício, segundo Foucault (2009:35-36), deve obedecer a três critérios: produzir sofrimento, ser a morte o final de uma gradação de sofrimentos e levar à completa agonia. Percebe-se que estes são os princípios básicos pretendidos pelo oficial com a máquina de tortura. A novela de Kafka revela a impotência do ser humano diante de um mundo sem piedade. As atitudes de alguns personagens diante da máquina de tortura evidenciam a incapacidade de refletir sobre os próprios atos. A primeira delas é de uma “crueza extremada” encarnada pelo antigo comandante – idealizador da máquina – e pelo oficial. Em seguida, a do novo comandante, que deseja abolir o aparelho de tortura, mas o mantém funcionando de forma discreta. Há a distribuição, pela esposa do comandante e outras damas, de confeitos aos condenados à morte, antes da execução. A terceira é a do explorador viajante, revoltado com os métodos de execução da colônia, mas que não faz nada para impedir que o sistema continue em funcionamento. Desse modo, a sociedade torna os homens indiferentes aos sofrimentos alheios. O castigo assume um caráter festivo. O suplício da máquina kafkiana é apresentado como um espetáculo disputado: “era impossível atender a todos os pedidos para ficar olhando de perto”, conforme afirma o oficial (NCP,50). Em virtude da disputa, o comandante determina que “sobretudo as crianças deviam ser levadas em consideração”. Com essa determinação, o oficial, graças à sua profissão, podia ver o “espetáculo” de perto, agachado e “com duas crianças pequenas no colo, uma 93 à esquerda e outra à direita” (NCP,50). O castigo é também, como diz Nietzsche (2007:69), uma criação da memória para quem sofre (a “correção”) e para aqueles que o testemunham. Ele tem o objetivo de despertar no condenado o sentimento de culpa, o remorso44. Na colônia penal, os que julgavam e puniam pareciam acreditar que estavam lidando com um “causador de danos”, com um “irresponsável fragmento do destino”45. Nesse sentido, constata-se que os prisioneiros da colônia penal eram vistos como “violadores” das ordens e normas estabelecidas por uma estrutura de poder que se julga sabedora e guardiã do que seria o certo e, portanto, a Lei. O sistema torna todos cúmplices quando assistem aos suplícios como um espetáculo. O soldado foi condenado em virtude de ter violado as normas de disciplina, ou seja, se levantar a cada hora e bater continência diante da porta do capitão (NCP,38). A disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, conforme Foucault (2009:133), torna-se instrumento de dominação. Esse tipo de dominação se diferencia da domesticalidade e da vassalidade, pois não visa à sujeição apenas, mas à formação de um indivíduo mais obediente e útil. A disciplina fabrica, segundo o escritor, “corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’” (ibid.). O soldado da colônia penal não se submete aos desígnios disciplinares e, por isso, deve pagar com o sofrimento. Na obra Vida e época de Michael K, que estudaremos no próximo capítulo, vemos a passagem dos suplícios públicos, marcantes nas obras de Kafka, para o castigo enclausurado. O corpo, alvo da máquina, em Na colônia penal, não é mais torturado por instrumentos cortantes, mas confinado em estruturas disciplinares, 44 O tradutor de Genealogia da moral (2007:157), Paulo César de Souza, lembra que “remorso”, em alemão, Gewissensbiβ, significa literalmente “mordida na consciência” (Biβ – mordida; Gewissen – consciência). 45 Cf. NIETZSCHE. Genealogia da moral, 2007, op. cit., p.71. 94 como os campos de trabalho, que visam à transformação dos “criminosos” em indivíduos aptos a executar tarefas quase mecanicamente e indispostos à contestação. A colônia penal kafkiana, com a morte do oficial e, consequentemente, das ideias do antigo comandante, não se livrou das práticas de castigo. Nas obras que veremos a seguir, consolida-se uma nova estrutura de punição: a prisão, um espaço delimitado, onde os menores movimentos são controlados. A prisão não é o único mecanismo de controle. Com a tecnologia, criaram-se senhas, rastreamento, computadores de bolso, celulares e câmeras, como as de Benjamim, na narrativa de Chico Buarque. A sociedade disciplinar cede espaço para a sociedade de controle. 95 4. MICHAEL K: O HOMEM DOS LABIRINTOS SUBTERRÂNEOS 4.1. A HISTÓRIA DE UM JARDINEIRO SEM LAR O romance Vida e época de Michael K, narrado em terceira pessoa na primeira e terceira partes, e em primeira pessoa (do ponto de vista do narradorpersonagem), na segunda parte, conta a história de Michael K, um homem simplório, negro, esquálido e de lábio leporino, que vive em meio à guerra civil. O romance tem cinco personagens importantes: Michael K, a mãe Ana K, a enfermeira Felicity, o responsável pelo campo de reabilitação Noel e o oficial médico que é o narrador. Durante a obra, o protagonista é nomeado como: Michael K, K, Michael e Michaels. No início, o narrador conta a história do nascimento do personagem. A mãe tinha vergonha de Michael K e o mantinha afastado das outras crianças. Ela o levava para o trabalho e, ele, “anos após anos, [...] ficou sentado em cima de um cobertor vendo a mãe limpar o chão dos outros, aprendendo a ficar quieto” (VEMK,10). Michael foi tirado da escola por causa da deformação e “porque não era rápido de cabeça” e levado para o orfanato Huis Norenius. Aos quinze anos, saiu do orfanato e passou a fazer parte da Divisão de Parques e Jardins do serviço municipal da Cidade do Cabo, como jardineiro, grau três. Três anos depois, deixou o emprego e, após um breve período desempregado, foi trabalhar como atendente noturno nos lavatórios públicos. Sua mãe trabalhava, há oito anos, como empregada doméstica de um fabricante de meias aposentado e sua mulher. Mas em virtude da idade, seu salário foi reduzido pela metade e os patrões contrataram uma moça mais jovem. 96 Por causa da sua fisionomia, K não tem amigas mulheres e vive sozinho. Ele mora com a mãe num quartinho debaixo da escada de um prédio, destinado ao equipamento de ar-condicionado. Na porta há uma placa com “uma caveira e dois ossos cruzados, pintados em vermelho, e embaixo a legenda PERIGO – DANGER – GEVAAR – INGOZI” (VEMK,13). Não há luz elétrica e nem ventilação. Ana K sofre de um inchaço nas pernas, nos braços e na barriga. Por isso, é hospitalizada. Passa cinco dias deitada no corredor de um hospital, no meio de várias vítimas de esfaqueamento, tiros e surras, ignorada pelas enfermeiras que não conseguem atender a todos. Em meio à violência na Cidade do Cabo, Ana K pede ao filho que a leve para uma fazenda em Prince Albert. Ela sonha em escapar do caos que domina a cidade. Casas, lojas e apartamentos são saqueados e muitas pessoas morrem nos confrontos com a polícia no país ainda dominado pelo apartheid. Sem os documentos que o regime totalitário exige para autorizá-lo a sair da cidade, Michael K improvisa um carrinho de mão com assento, instala a sua mãe no aparato e sai puxando-a por estradas secundárias, a fim de evitar os bloqueios policiais. Durante o trajeto, Michael K e Ana K são parados por policiais e marginais. O estado de saúde da sua mãe piora devido às precárias condições do transporte e do clima. Michael leva a mãe a um hospital. Ana K morre e o seu corpo é cremado sem a autorização do filho. Mesmo assim, Michael K resolve levar as cinzas da mãe até a fazenda. Durante a viagem, Michael K é designado pelo comboio policial para trabalhar nos trilhos e desobstruir a passagem do trem. Até meia-noite, ele e vários homens trabalham como sonâmbulos. Embarcados no vagão, dormem “empilhados uns sobre os outros nos bancos ou estendidos no chão nu” (ibid., p.53). Após o trabalho 97 forçado nos trilhos, K é solto para que retorne a sua vida interrompida. Ele passa a noite na casa de um estranho. Na manhã seguinte, “seu coração estava cheio, queria agradecer, mas as palavras certas não saíram” (VEMK,60). Após a longa caminhada, Michael K encontra uma fazenda similar à descrita pela mãe. Lá, passa a viver precariamente, abatendo ovelhas, retirando água do açude, plantando abóboras e comendo larvas e pássaros. Um dia, chega um homem se dizendo neto do proprietário da fazenda (Visagie), desertor de guerra, que tenta transformar Michael K num servo pessoal. Mas Michael foge e passa a viver nas montanhas, comendo raízes, larvas e bulbos. Tempos depois, é encontrado por funcionários do governo, que o levam para um campo de refugiados. Lá, os policiais escrevem no seu boletim: “Michael Visagie – Sexo masculino – Cútis escura – 40 – Sem residência fixa – Desempregado, acusado de sair de seu distrito legal sem autorização, de não ter posse de documento de identificação, de infringir o toque de recolher, de bebedeira e desordem” (ibid., p.84). Michael K é obrigado a trabalhar em estradas e rodovias fazendo reparos. Ao testemunhar a violência dos policiais com as pessoas do campo após um incêndio num prédio, Michael K foge, volta à fazenda, já abandonada, e tenta viver novamente da terra, plantando abóboras e melões. O protagonista resolve viver num buraco. K trabalha na terra de noite e descansa de dia. Novamente é encontrado por funcionários do governo que o tomam por ajudante de conspiradores. Ele é levado para um centro de reabilitação, pois sua saúde é crítica, já que só se alimentava às vezes, e de insetos. Michael K é internado no centro de reabilitação com sinais de subnutrição, rachaduras na pele, feridas nas mãos e nos pés, gengivas sangrando e com menos de quarenta quilos. Embora pareça um velho, ele diz ter apenas trinta e dois anos. O 98 protagonista, então, é tratado por Noel, pela enfermeira Felicity e pelo oficial médico (o narrador). Apesar de K recusar a alimentação, o oficial médico nega-se a deixá-lo morrer, dando-lhe uma atenção especial. Michael K consegue fugir do hospital e volta ao lugar onde tudo começou, a Cidade do Cabo. Na cidade ainda devastada pela guerra, ele conhece algumas pessoas e tem, provavelmente, sua primeira experiência sexual, com uma prostituta do grupo. A narrativa termina com o protagonista pensando em ir para um lugar onde, novamente, pudesse viver da terra. 4.2. O ABISMO INTRANSPONÍVEL ENTRE O EU E O MUNDO Como o próprio título do romance diz, Vida e época de Michael K aborda não apenas a história do personagem Michael K, mas também a época em que ele vive. A expressão “a vida” sugere geralmente que a vida terminou, enquanto que “vida” não implica esse sentido. O tempo em suas diversas acepções é, portanto, um elemento importante nessa obra romanesca. Logo no início do texto de Coetzee, é narrado o dia do nascimento de Michael K: A primeira coisa que a parteira notou ao ajudar Michael K a sair de dentro da mãe para dentro do mundo foi que ele tinha lábio leporino. [...] Mas desde o começo Anna K não gostou da boca que não fechava e da carne viva e rosada exposta para ela. Estremeceu ao pensar no que havia crescido dentro dela aqueles meses todos. [...] Por causa da deformação, e porque não era rápido de cabeça, Michael foi tirado da escola [...] (VEMK, 910). Michael K já nasce sob o estigma da diferença e da impotência: pobre, com má-formação e com capacidade mental reduzida. Com essas características, a narrativa parece indicar que só resta a Michael K viver à deriva pelo mundo. A 99 metáfora do lábio fendido é uma espécie de determinismo biológico da quase incomunicabilidade de K, já que esta anomalia, em casos mais graves, é um obstáculo do fluxo da fala. Ao narrar a trajetória de Michael K, de dentro do aconchego materno para o mundo, Coetzee resgata a história de todo um povo sofrido durante o regime totalitário da África do Sul. A rotina do personagem é marcada pela violência. A cidade sitiada está sob o signo da precariedade e do desamparo ao tornar explícitas as barbáries cometidas em nome da colonização, principalmente a segregação dos negros. É determinante a influência dos problemas políticos e raciais da África do Sul do apartheid na realidade de Michael K. Embora o apartheid não seja nomeado, toda a população é descrita como se estivesse perdida na guerra civil. Michael K, jardineiro sem lar, perambula pelas estradas tentando voltar à fazenda onde a mãe moribunda passara a infância. Ele tinha a esperança de escapar da violência, “dos ônibus lotados, das filas de comida, dos balconistas arrogantes [...] das sirenes nas noites, do toque de recolher [...]” (VEMK,14-15). O passado surge como uma recompensa para a precariedade do mundo em que vive. A fazenda se transforma num Éden perdido que poderá suplantar as sequelas deixadas pela guerra. O campo se abre para Michael como um céu. A busca desses dois valores – liberdade e segurança – é frustrada, pois o personagem é preso várias vezes e submetido a trabalhos forçados. Dentro dessa realidade inóspita, a solidariedade não existe. Ao longo da narrativa são raríssimos os momentos em que esse sentimento é colocado em prática. No meio da precariedade, Michael percebe a sua condição de gauche, de marginalizado. Os visíveis indícios desse tempo histórico – frio e estéril – se revelam na realidade brutal de Michael K. Ele é um membro “silencioso” dessa paisagem 100 sombria que domina o destino da África do Sul. Michael K vive numa prisão, onde os seus direitos desde sempre estiveram abolidos. Os campos para onde Michael é levado se assemelham aos campos de concentração nazistas, no entanto, ao contrário destes, os seres humanos não são exterminados, mas submetidos a trabalhos forçados e tratados como animais, como veremos mais adiante. Apesar disso, K é completamente inabilitável ao mundo do apartheid. No final da narrativa, o exército é descrito descalço, acentuando a decadência de um sistema que durante anos dividiu o país entre brancos e negros (VEMK,154). Somando-se ao regime de segregação, as regras do capitalismo também são reveladas. Quando Anna K começou a ficar doente, os patrões cortaram um terço do seu salário e contrataram uma mulher mais moça. As pessoas perdem a utilidade, como se fossem mercadorias cuja validade estivesse vencida. Perdem o viço, a atração e o caráter de necessário. Como mercadorias, os seres humanos são úteis enquanto dispõem de beleza, de juventude, de força e de disposição. Michael K revela uma boa percepção dessa realidade injusta quando afirma: Minha mãe trabalhou a vida inteira [...] Esfregava o chão dos outros, fazia comida para eles, lavava o pai deles. Lavava a roupa suja. Lavava a banheira depois que eles usavam. Ficava de joelhos e lavava a privada. Mas quando estava velha e doente, se esqueceram dela. Deixaram encostada num canto onde ninguém via. Quando morreu, jogaram ela no fogo. Entregaram para mim uma caixa velha com cinzas e me disseram: Aqui está sua mãe, leve embora, ela não serve para nós (ibid., p.158-159). Anna K é submetida a uma metamorfose que a reduz a um objeto, a mera executora de papéis. A força humana de trabalho é vendida em troca de um salário, tornando-se uma mercadoria como as outras. Adoentada, Anna K “vivia com medo de que os Buhrmann [os patrões] cessassem com a caridade” [grifo nosso] (ibid., p.13). O sentimento de sujeição aos critérios utilitários do mercado leva Anna K a 101 acreditar que até o seu trabalho é uma beneficência dos empregadores. Os trabalhadores são vistos em relação à quantidade de trabalho que podem executar. O tempo de trabalho ocupa a maior parte do tempo de vida dos indivíduos enredados nessa estrutura. No entanto, eles precisam se submeter a essa realidade se quiserem sobreviver. Os homens passam a não viver a própria vida e a desempenharem meras funções. Em A condição humana, Arendt faz um estudo de três atividades que integram a “vida activa”: labor (labor), trabalho (work) e ação (action), que ajudam a compreender a organização do trabalho na sociedade moderna. Segundo a filósofa (2004:94), o labor é uma atividade realizada pela necessidade biológica. “Tudo o que o labor produz destina-se a alimentar quase imediatamente o processo da vida humana, e este consumo, regenerando o processo vital, produz – ou antes, reproduz – nova ‘força de trabalho’ de que o corpo necessita para seu posterior sustento” (ibid., p.111). Para os gregos, “laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem sujeitos às necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade” (ibid., p.94). Desse modo, o fato de alguém realizar as tarefas voltadas para a manutenção e as necessidades da vida justificaria a existência da escravidão, na visão dos gregos. O trabalho, ao contrário do labor, consiste na atividade do homo faber de produzir objetos duráveis. As mãos simbolizam o elemento central do trabalho, pois estão relacionadas às ideias de construção e de criatividade. A ação, por sua vez, não está relacionada à sobrevivência biológica ou à produção técnica. A ação se concretiza na interação entre os indivíduos. 102 Em virtude da incorporação da noção de produtividade ao trabalho humano, a fim de formar excedentes para a geração de riquezas, o trabalho passou a ser executado à maneira do labor. “Os produtos do trabalho – objetos destinados ao uso – passaram a ser consumidos como bens de consumo” (ARENDT, 2004:242). Na narrativa de Coetzee, as atividades realizadas por Anna K e Michael K – empregada doméstica e jardineiro, respectivamente, – são movidas pelas necessidades imediatas da vida. Tudo o que buscam é sobreviver em um mundo hostil. Essa atitude os aproxima da condição animal: nascer, crescer, alimentar-se, reproduzir-se e morrer. Essa é a forma como vive grande parte da população da África do Sul em meio ao apartheid. Para essas pessoas, a vida e o mundo se resumem ao labor. Viver é uma interminável repetição até que a trajetória termine. Por outro lado, Arendt (ibid., p.118-119) diz que o labor dá significado à vida: ‘A benção ou alegria’ do labor é o modo humano de sentir a pura satisfação de se estar vivo que temos em comum com todas as criaturas viventes; e chega a ser o único modo pelo qual também os homens podem permanecer no ciclo prescrito pela natureza, dele participando prazeirosamente, labutando e repousando, laborando e consumindo, com a mesma regularidade feliz e intencional com que o dia segue a noite e a morte segue a vida. A recompensa das fadigas e penas está na fertilidade da natureza, na tranquila certeza de que aquele que cumpriu sua parte de ‘fadigas e penas’ permanecerá como parte da natureza no futuro de seus filhos e nos filhos de seus filhos. É a satisfação de estar vivo e usufruir a natureza que alimenta os dias de Michael K na fazenda. Ao reduzir o seu projeto de vida à mera subsistência e isolarse do convívio com as outras pessoas, Michael K abre mão da comunicação e da ação, colocando em risco a própria condição humana. Com isso, a sua vida “está literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens” (ibid., p.189). Segundo Arendt (ibid.), “é com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo 103 nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original”. Desse modo, Anna K e Michael K vivem na tentativa de resistir às adversidades. Eles são, portanto, produtos do sistema. Eles habitam um quartinho emprestado pelos patrões, debaixo de uma escada, com uma placa de perigo na porta. As condições são precárias. Vivendo embaixo da escada, os personagens são reduzidos à condição de objetos de uso. Anna K e Michael K, excluídos e marcados como refugo, fazem parte de uma população desprotegida pela lei – produtos secundários de uma forma de produção, um “exército industrial de reserva”. A chancela do “perigo” ronda a cabeça desses seres não integrados ao sistema produtivo e, portanto, representantes da ameaça à ordem social. As placas têm a função de sinalizar, de advertir, de mostrar a direção ou simplesmente chamar a atenção. No romance, a “placa do perigo” estabelece uma relação de sentido com a realidade narrativa ao mostrar que Michael K e Anna K, assim como o inseto Gregor Samsa, de Kafka, não se ajustam e não podem ser ajustados ao sistema. São nódoas em meio à paisagem, seres inválidos. A placa dialoga com a condição precária dos personagens. Nas palavras de Anna K – “me sinto uma rã debaixo de uma pedra morando aqui” (VEMK,16) – percebe-se a redução dos personagens à animalidade. O poder corrosivo permeia as relações sociais e subjetivas da realidade de Michael. Esta questão fica evidente nas várias metáforas de parasitismo usadas pelo autor para descrever as relações entre os personagens e o mundo, como veremos mais adiante. 104 Michael K não se deixa “enquadrar pela sociedade”, apesar da vida passada em prisões. Ele vive “fora do alcance do calendário e do relógio” (VEMK,134). Sobre a sua história, ele esclarece: Eu contaria a história de uma vida passada em prisões, onde eu estava dia após dia, ano após ano com a testa apertada no arame, olhando ao longe, sonhando com experiências que nunca ia viver e onde os guardas me xingavam e chutavam meu traseiro e me mandavam esfregar o chão (ibid., p.208). Michael K, condenado a uma vida inútil, demonstra com sua história de vida que a resistência não implica violência. Os campos para onde ele é levado destinamse não apenas a degradar os seres humanos, mas a transformá-los numa simples coisa. O sofrimento converte homens em animais que não se comunicam e não se queixam. Do ponto de vista da sociedade dominante, K é absolutamente supérfluo. Arendt (2006b:496) associa os campos de concentração às três concepções ocidentais básicas de uma vida após a morte: O Limbo, O Purgatório e o Inferno. Ao Limbo destinam-se os elementos indesejáveis, como os refugiados, os marginais e os desempregados, que devem ser afastados da sociedade. O Purgatório é representado pelos campos onde o abandono alia-se ao trabalho forçado. O Inferno é representado por aqueles campos aperfeiçoados pelos nazistas que causavam o maior tormento possível. Podemos dizer que Michael K transitou pelas três esferas. Viveu entre dois “campos”: o campo como fazenda e o campo como lugar para onde os pobres eram levados. Este último visava, entre outras coisas, a aniquilar o ser humano. O primeiro passo para o aniquilamento do indivíduo é a anulação da condição cívica do homem. Michael K foi excluído da proteção da lei e passou a ser um marginalizado. O segundo passo é matar a pessoa moral do homem. Isto acontece 105 quando lhe é negada uma vida digna. Michael é tratado como inútil e como um cadáver-vivo. Nada, nem a morte lhe pertencia e ele não pertencia a ninguém. O terceiro passo é a identidade do indivíduo. Essa parte da pessoa é a mais difícil de destruir. O personagem de Coetzee era transportado em vagões como gado. Embora K não soubesse o seu lugar no mundo e tivesse sua identidade quadruplicada – Michael K, Michael, K e Michaels –, ele termina a narrativa com o mesmo sonho e com os mesmos valores: cuidar da terra. A sua singularidade, fruto da natureza, aqueles que detêm o poder não conseguem usurpar. Daí o narrador concluir perplexo que K havia conseguido “se instalar dentro de um sistema sem passar a fazer parte dele” (VEMK,192). A identidade do personagem oscila ao longo da obra: Michael K, Michael, K e Michaels. Michael K e K remetem aos personagens de Kafka. Já Michael alude ao homem sem sobrenome e sem cidadania. Michaels, no plural, aponta para uma coletividade46. Com a inicial ou no plural, a narrativa mostra um personagem desenraizado no tempo e no espaço. Michael tem o sentido que vai além da simples percepção do narrador. Ele é tão singular que extrapola os limites da narrativa. Na primeira e terceira partes, o narrador é onisciente e descreve os personagens a partir de sua interioridade. Na segunda parte, temos um narrador-personagem. Ele descreve os personagens, principalmente Michael K, e com ele se identifica, a ponto de nele se desdobrar. O narrador desdobra-se em dois “eus” para contar a história de Michael: um “eu” que expõe (na primeira e na terceira partes) e um “eu” que investiga (na segunda parte). Na segunda parte, o personagem é denominado Michaels. O narrador passa a contar a história em primeira pessoa. Neste momento, ficamos 46 Cf. HELENA, Lucia. “Ruínas do moderno na ficção do pós-moderno: a ficção da crise e o pensamento trágico”. In: Via Atlântica, nº 9. São Paulo: USP, 2006, p.140-141. 106 sabendo que o narrador é um oficial médico que cuida de Michael K. Assim diz o narrador ao receber Michael K no centro de reabilitação: Há um novo paciente na sala, um velhinho que desmaiou durante o treinamento físico [...] foi encontrado sozinho no meio do nada no Karoo [...]. Perguntei aos guardas que o trouxeram para cá por que obrigavam alguém nas condições dele a fazer ginástica [...]. O prisioneiro não reclamou, responderam [...]. Vocês não enxergam a diferença entre um homem magro e uma caveira?, perguntei (VEMK, 151-152). Nestas condições, fraco e envelhecido, o personagem Michael K, aos trinta e dois anos, deu entrada no campo de reabilitação. O personagem se impõe ao narrador. Este se recusa a acreditar que Michael estivesse cuidando de uma fazenda abandonada e alimentando a população da guerrilha local, conforme mencionado pela polícia. É difícil para o narrador acreditar que alguém tão inexpressivo pudesse ser um conspirador contra o governo, da política local: “Eles erraram”, disse [o narrador]. “Devem ter confundido esse com algum outro Michaels. Este Michaels é um bobo. Este Michaels não sabe como riscar um fósforo. Se este Michaels estava cuidando de uma bela plantação, por que estava morrendo de fome?” [...] Ele diz que o nome dele é Michael, não Michaels (ibid., p.153). Michael revela uma face oculta e corajosa, de uma grandeza que intriga o narrador. Enquanto rasteja humildemente, ganha uma dimensão que inverte as posições. Ele passa a ser especial para o narrador, ocupando um lugar de honra. Michael interroga o motivo dos médicos se preocuparem tanto com ele. O narrador responde: “[...] ele está certo: eu presto mesmo muita atenção nele. Quem é ele, afinal?” (ibid., p.159). O narrador fica impressionado com o comportamento de K, alheio à violência do mundo, a ponto de pedir para o responsável pelo campo de reabilitação, Noel, inventar alguma coisa para o relatório e mandar o paciente 107 embora (VEMK,164). O narrador chega à seguinte conclusão: “ele [Michael K] não é deste mundo. Vive num mundo todo dele” (ibid., p.165). Em virtude de Michael ser um prodígio, há uma disputa sobre o real sentido do protagonista. Como se explica a resistência de Michael? Através do seu jeito singular, Michael personifica com profundidade os lineamentos universais e significativos de sua época. A realidade de K é hostil: ele é um negro numa época de exacerbado racismo e dominação branca no continente africano, no entanto, é incapaz de um ato de rancor ou violência. O narrador acaba descobrindo a si mesmo, graças ao que Michael K suscita. Assim diz o narrador: “você nunca pediu nada, e assim mesmo virou um albatroz pendurado no meu pescoço. Seus braços ossudos estão em volta da minha cabeça, e ando curvado com o seu peso” (ibid., p.169). O personagem se expande e o narrador não consegue abarcar a sua singularidade. Michael K passou a ser motivo de repúdio e admiração. Ao mesmo tempo em que Michael é repudiado pela sociedade, também provoca espanto com o seu jeito de ser. Indefinível, Michael K sensibiliza até o narrador. Este diz para Michael K: “não pedi para você vir aqui. Estava tudo bem comigo antes de você aparecer. Eu era feliz, feliz como dá para ser num lugar como este. Portanto, eu também pergunto: por que eu?” (ibid., p.173). Desta forma, o narrador interroga o motivo pelo qual havia sido o escolhido. A partir do momento em que Michael entrou no campo de reabilitação, o narrador-personagem passa a viver um turbilhão de emoções que desalinham completamente a sua vida. O narrador, numa carta ao seu personagem, define o mundo cruel em que viviam. Ele menciona que o erro de Michael foi ter se amarrado à mãe e vivido em função dela. O lugar ideal para K seria um “canto tranquilo de um jardim obscuro em um subúrbio sossegado” (ibid., p.174). A mãe de Michael é, para o narrador, a 108 personificação da morte, pois durante o tempo em que estava viva, o filho foi sufocado com o seu “peso” e depois de morta ainda continuava interferindo na vida de K. A narrativa contrapõe a mãe-biológica à mãe-terra. Michael K, ao interrogar o porquê de ter sido trazido ao mundo, “recebera sua resposta: tinha vindo ao mundo para cuidar da mãe” (VEMK,13). O personagem não desiste da missão de cuidar da mãe e, depois desta morta, de levar suas cinzas para a fazenda. Percebe-se, portanto, que “cuidar da mãe” assume um duplo sentido na história, relacionando-se com a mãe-biológica e a mãe-terra. Michael K era, na visão do narrador, “uma criatura acima do alcance das leis das nações” (ibid., p.175). A experiência da guerra e a segregação racial incidem sobre uma personalidade que, como já foi dito, parece impermeável à história. Na insignificância com que se apresenta, Michael destaca-se como um ser dissonante da realidade em que vive. Em carta, o narrador diz sobre Michael K: [...] uma alma abençoadamente intocada por doutrinas, intocada pela história, uma alma que bate as asas dentro desse rígido sarcófago, murmurando por trás dessa máscara de palhaço [...] uma criatura que sobrou de uma era anterior (ibid., p.176). Nessa carta, o narrador coloca Michael K como uma peça de museu, em virtude de sua grandiosidade. Um personagem que conseguiu viver e sobreviver no “caldeirão da história”, como se estivesse “flutuando pelo tempo”. O narrador quer fugir da realidade ou igualar-se a Michael K, como podemos perceber no trecho a seguir: Talvez nós dois [o narrador-personagem e Noel] devêssemos arrancar uma folha do livro de Michaels e viajar para um lugar mais tranquilo do país, [...] e montar casa lá, dois cavalheiros desertores de meios modestos e hábitos discretos. Como chegar até onde Michaels chegou sem ser apanhado é a maior dificuldade. Talvez um bom começo fosse nos livrarmos de nossas 109 fardas, sujar as unhas de terra e andar um pouco mais perto do chão; embora eu duvide que jamais possamos parecer tão comuns quanto Michaels [...] (VEMK,186). [...] Na noite em que Michaels escapou, eu devia ter ido junto (ibid., p.187). A partir da convivência com Michael K, o narrador começa a questionar o seu modo de vida. Os sentimentos experimentados pelo narrador-personagem demonstram o quanto a sua vida e até o seu discurso foram influenciados pela inadequação de Michael à sociedade. A angústia do narrador não é fruto da época, mas advém da concepção enganosa que tinha sobre a vida e sobre Michael K. Em seu discurso, o narrador declara o desejo de ser uma espécie de “bicho” – “sujar as unhas de terra e andar um pouco mais perto do chão” –, pois talvez só na simplicidade conseguiria sobreviver ao caos. O narrador escolhe viver como seres humanos, como Michael, discriminados e considerados “anormais”, mostrando a sua preocupação com a sobrevivência em tempos como aqueles. Esse anseio de ir à natureza é a fuga de uma realidade opressora, pois a natureza significa liberdade, o único possível no apartheid. Michael K corporifica os problemas enfrentados pela população negra da África do Sul. O romance ilustra as consequências do apartheid e mostra o estado de urgência que se instaura no país a partir de 1985. Numa conversa entre Noel e o narrador, este menciona ter esquecido as causas da guerra: Além disso, falei, pode me lembrar por que estamos fazendo essa guerra? Uma vez me disseram, mas faz tempo e parece que esqueci. Estamos fazendo esta guerra, disse Noel, para as minorias terem algo a dizer sobre seus destinos (ibid., p.183). A razão da perplexidade do oficial médico parece remeter ao fato de que as exigências da própria guerra ultrapassam os motivos que a provocaram. A guerra se desenrolou durante tantos anos que já não fazia mais sentido para os personagens. 110 O cenário apresentado no romance expõe a política da minoria branca, que rege o destino da África do Sul. Além disso, desvela a incoerência da ausência de direitos sociais e políticos comuns em nível nacional. Michael K é definido pelos lábios leporinos, a limitação da linguagem e a cor negra. As autoridades, assim como os médicos do campo de reabilitação, sentem dificuldades em extrair a história de Michael. No boletim de ocorrências, o policial até atribui a debilidade e a incoerência de K à intoxicação por álcool (VEMK,84). A linguagem articulada é, entre outras coisas, o que diferencia os humanos dos animais irracionais. Ao longo da narrativa, o personagem se recusa a explicar a sua origem ou os acontecimentos que o cercam. Ele diz: “eu era mudo e burro no começo, vou ficar mudo e burro até o final” (ibid., p.209). A linguagem é o que estabelece a relação com o mundo e com os outros, com a vida social e política. Deste modo, a comunicação de K com o mundo é precária. A principal característica do personagem não é a sua rudeza, no sentido de rústico e não de mal-educado ou sórdido, mas a falta de relações sociais. A ausência de qualquer relacionamento significativo entre Michael e os outros personagens – com exceção de sua mãe – transmite a sensação de que estamos diante de um ser que escapa do comportamento tido como humano. Logo no início da obra, o narrador conta que Michael K passou parte da sua infância “sentado em cima de um cobertor vendo a mãe limpar o chão dos outros, aprendendo a ficar quieto” [grifo nosso] (ibid., p.10). Percebe-se, portanto, que o silêncio, ou seja, o “ficar quieto” vai percorrer a história de vida do protagonista. A linguagem de Michael é considerada, para as pessoas ao seu redor, lacunosa; e o seu imaginário dá-se em retalhos de sonhos e em desejos de viver num mundo melhor, sem toque de recolher e sem violência. 111 As imagens finais de Michael K – sonhando em voltar ao campo e procurar um carrinho de mão abandonado – parecem remeter ao início da narrativa. Nele, Michael pretendia ir para o campo com a sua mãe. No final, desejava ir com um guia. A narrativa apresenta, mesmo que de forma sutil, a noção de futuro, apesar de toda a adversidade. O objetivo de Michael não é contribuir para a perpetuação da espécie. Para ele, “um homem tem de viver de modo a não deixar sinal da sua vida” (VEMK,116). Em virtude das condições difíceis seria impossível assegurar aos seus filhos uma vida digna: “que sorte eu não ter filhos [...] Ia fracassar nos meus deveres, seria o pior dos pais” (ibid., p.122). Michael percebe que seus filhos seriam como ele, subjugados pelo sistema social opressor em que vive. Por isso, ele entende que o melhor era não perpetuar essa linhagem de seres marginalizados. Michael se diz “jardineiro” (ibid., p.209). Sua responsabilidade consistia em conservar as sementes para o futuro, mantendo certos valores que lhe permitiriam viver uma época melhor. Forster (2008:73) menciona que os principais fatos da vida humana são cinco: “nascimento, alimentação, sono, amor e morte”. Na obra de Coetzee, esses fatos são abordados, mas fogem um pouco do padrão convencional. Michael nasce sob o estigma da anormalidade (lábios leporinos), sua alimentação é precária – raízes e insetos –, dorme pouco e às vezes se mantém em vigília. Desses aspectos, o amor é o mais controverso. O personagem não se casa e também não tem filhos. O seu amor se resume ao ato de cultivar a terra, de cuidar das sementes para elas não se extinguirem. Quanto à morte, Michael chega perto, mas não sucumbe. Ele inicia a sua história de vida com o sonho de levar a mãe para o campo – que o acompanhará ao longo da obra – e termina com o mesmo desejo, mas agora com o fantasma da mãe. O campo é, para Michael, o porto seguro. O lugar ideal para se 112 viver em paz e harmonia com a natureza. O sonho é também um dos fatos importantes na vida do personagem. No tempo de Michael, a morte como desfecho seria o mais óbvio. No entanto, Coetzee faz o sonho finalizar a sua obra. O sonho surge em contraponto com a morte, pois é o que alimenta e faz o personagem viver. Michael preenche todo o livro que leva seu nome e, parafraseando Forster (2008:80), ergue-se como uma árvore no parque, de modo que podemos avistá-lo sob todos os ângulos. Aqui o sonho é introduzido como a possibilidade de uma vida diferente. 4.3. ENTRE O HUMANO E O NÃO-HUMANO Lendo a narrativa Vida e época de Michael K, nota-se que ela se inscreve numa época sombria da história da África do Sul. Um momento em que predominaram a política segregacionista do apartheid, as lutas de libertação e as marcas que uma guerra deixa como herança. Nessa obra, o personagem Michael K e seus duplos se destacam na atmosfera de opressão e medo, como mencionamos anteriormente. A singeleza do personagem fica evidente por manter-se incólume à violência do mundo que o cerca. A esse respeito, Attwell (1993:89) diz que o personagem de Coetzee “milagrosamente sobrevive ao trauma de uma África do Sul em estado de guerra civil sem ser tocado por ela”47. Durante a sua trajetória permeada pelas consequências de um regime autoritário, evidenciam-se as comparações com os animais irracionais, ou seja, Michael K e os habitantes dos campos de trabalhos forçados e de reabilitação são tratados como “bichos”. 47 “[...] Michael K, a novel about a subject who, miraculously, lives through the trauma of South Africa in a state of civil war without being touched by it […]”. 113 O protagonista é associado à terra, ao animal, ao vegetal e ao inanimado. Nas palavras de Michael: “que pena, numa época como esta, um homem ter de estar pronto a viver como bicho” (VEMK,116). A comparação do homem ao “bicho” sugere a anulação completa do indivíduo, como se ele fosse um animal qualquer. Em outro momento da narrativa, o personagem menciona a dimensão exata da sua condição: “num vasto país, em cuja face centenas de milhares de pessoas seguiam diariamente suas peregrinações de baratas, fugindo da guerra, por que ele deveria se alarmar se um refugiado ou outro se escondia em uma casa de fazenda num trecho desolado do país?” [grifo nosso] (ibid., p.123). A comparação feita por Michael dos humanos às baratas é significativa. A barata é um inseto considerado repugnante e inútil. A expressão “peregrinações de baratas” pressupõe o caminhar sem rumo, única atitude que resta aos refugiados de guerra. Michael K passa boa parte do romance vivendo num buraco, como uma toupeira, dormindo de dia e cuidando de sua horta à noite. Ele parece ocupar um espaço entre o humano e o não-humano, um “não ser”. É como se o personagem tivesse cometido um crime a ponto de ser colocado fora da jurisdição humana e divina. O personagem é maltratado por guardas durante a sua caminhada, como se a sua vida fosse um delito. Após a morte da mãe, Michael K, num campo de trabalho, na verdade, de controle dos pobres para que eles não violem a ordem estabelecida, pensa a respeito de si mesmo: “sou que nem uma formiga que não sabe onde está seu formigueiro” (ibid., p.99). A formiga representa uma grande relação com a organização da sociedade, com a atividade industriosa e o servidor infatigável. Michael K., sentindo-se um estrangeiro e longe do seu “formigueiro”, está entrincheirado em sua existência. Já numa fazenda, lembra do pesadelo de sua 114 infância num orfanato: “eu venho de uma linhagem de crianças sem fim” (VEMK,136). Estas crianças, geradas pelo sistema social opressor não começaram e nem terminarão com Michael K. A infância apresenta-se como uma etapa angustiante na vida do protagonista: Michael não conheceu o pai e sua mãe, muito pobre, tinha vergonha dele. Coetzee traça um retrato da condição humana e expõe personagens à deriva, no limite da existência, que não sabem qual é o seu lugar no mundo. Na obra literária, segundo Bakhtin (2003:195), cruzam-se “forças sociais vivas, avaliações sociais vivas penetram cada elemento da sua forma”. Essas forças do mundo póscolonial, que mostrou a maneira mais eficaz de se construir uma economia industrial baseada na empresa privada, através do trabalho árduo, da noção de dever, da satisfação imediata e, não na resistência dos indivíduos, penetram na narrativa do sul-africano. Só na fazenda Michael consegue ter iniciativa criadora, pois está livre das opressivas leis do apartheid. O fruto do trabalho o faz sentir-se feliz. Ao contrário de Robinson Crusoé, cuja ilha proporcionou a “absoluta liberdade em relação às restrições sociais”, sem laços de família e autoridades civis para interferirem em seus objetivos individuais, Michael K vive isoladamente apenas para fugir do mundo hostil (WATT, 2007:78). Michael K plantava apenas “para as sementes não se extinguirem” e não para ter uma colheita farta (VEMK,131). Ian Watt, num estudo sobre a obra de Defoe, mostra os benefícios que a solidão trouxe para Crusoé na ilha: [...] Crusoé é o feliz herdeiro dos esforços de outros incontáveis indivíduos; sua solidão é a medida e o preço dessa felicidade, pois envolve a morte de todos os outros proprietários em potencial; e o naufrágio, longe de ser uma peripécia trágica, é o deus ex machina que permite a Defoe apresentar o 115 trabalho solitário não como uma alternativa para uma sentença de morte, mas como uma solução para as perplexidades da realidade socioeconômica (WATT, 2007:79). A solidão de Michael não dá frutos socioeconômicos. No romance, viver isoladamente é uma alternativa para uma vida condenada à prisão e aos trabalhos forçados. O isolamento humano tende a levar “à animalidade apática e ao desequilíbrio mental”, de acordo com Watt (ibid., p.80). Contudo, Robinson Crusoé transforma o abandono na ilha em triunfo. A solidão se torna “o prelúdio da realização mais plena das potencialidades de cada indivíduo” (ibid.). Já Michael K desce ao nível dos animais e aos poucos deixa de comer, a ponto de não haver nada além de ossos e músculos em seu corpo. “Sua roupa, já rasgada, ficava pendurada, sem forma” (VEMK,119). Como já dissemos, a solidão de Michael é a busca pela liberdade e a fuga do apartheid. A solidão de Robinson é a liberdade em relação às restrições sociais, o triunfo. Ele procura progredir a cada dia. Prepara acomodações e o lugar para armazenar alimentos e objetos. No início, Crusoé faz uma moradia passageira, depois se preocupa em organizar melhor aquele espaço, o local de armazenagem e também com a sua defesa. Watt (1997:161), mencionando comentários de Coleridge, diz que Crusoé tem por objetivo satisfazer as suas necessidades comuns e não vê razão em armazenar mais do que poderia usar. No entanto, ele está conectado às coisas materiais, é trabalhador, metódico e avalia os resultados do seu trabalho. Já Michael não vê a terra como algo capaz de lhe dar lucros. Planta pelo simples prazer de cultivar a terra. Michael nutre pela terra um sentimento de amor, de liberdade e a sensação de ser útil, de ser importante. Quando resolve plantar e viver no buraco ou toca, Michael se isola totalmente do mundo dos homens e passa a viver exclusivamente da natureza e na natureza. É 116 como se voltasse ao estado natural de Rousseau, e só assim experimenta um momento de prazer e felicidade ao longo de todo o romance. Sobre a sua condição, Michael K avisa: “eu não estou na guerra” (VEMK, 161). “Sou mais uma minhoca, pensou. Que também é uma espécie de jardineiro. Ou uma toupeira, também jardineira, que não conta histórias porque vive em silêncio. Mas uma toupeira ou uma minhoca num chão de cimento?” (ibid., p.209). Nesse sentido, Michael K reconhece a dureza da sociedade à qual pertence, que o obriga a ser um jardineiro num chão de cimento, ou seja, num mundo estéril, em que só há lugar para a opressão e a morte. Toupeira ou minhoca no cimento é a redução do indivíduo à total inutilidade. Ambos os animais escavam a terra, fazendo caminhos subterrâneos. Mas para isto o solo não pode ser de cimento. Além disso, ser jardineiro num chão de cimento equivale à repetição de ações inúteis: um castigo desumano, como o de Sísifo empurrando eternamente a pedra acima para ela rolar rocha abaixo. Não há coisa mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperanças. Em Sísifo, a força vira impotência, a humanização resulta em desumanização. A referência à natureza animal reforça o isolamento de Michael K, que passa um bom tempo vivendo num buraco. Mas é somente nesse buraco que ele consegue se encontrar consigo mesmo, com seu real valor, e realizar-se plantando, longe da opressão do apartheid. A obra apresenta um sistema injusto e opressor que evidencia a necessidade de repensarmos toda uma sociedade, cuja maioria dos seus habitantes perambula pelos corredores asfixiantes da burocracia e do descaso. O labirinto-toca do personagem de Coetzee é, paradoxalmente, a saída, a possibilidade de escapar da guerra, como já foi exposto. No recolhimento com que se defende, há algo de particular que insinua uma brecha pela qual penetra um pouco de luz, esperança. 117 Michael K, sob a máscara de debilitado mentalmente, demonstra saber mais do que deveria. Embora, não tenha noção de todas as possíveis definições morais de sua personalidade, ele aparenta ter consciência das coisas a sua volta. Nas palavras do narrador-personagem, Michael é “uma pedrinha dura, mas consciente de seu entorno, voltada para si mesma e para a sua vida interior” (VEMK,158). Ao lermos a obra de Coetzee, inicialmente, temos a percepção de que de fato Michael K é “idiota”, de capacidade mental reduzida e sem autoconsciência. No entanto, notamos que o personagem escapa a essa definição: Para que você acha que serve esta guerra? K perguntou. Para tirar dinheiro dos outros? [K indaga um soldado que lhe roubava o dinheiro da mãe] (ibid., p.47). Agora cheguei aqui, pensou. Ou pelo menos cheguei em algum lugar (ibid., p.64). Ele acha que sou mesmo um idiota, pensou K. Acha que sou um idiota que dorme no chão feito animal e vive de passarinhos e lagartos, e nem sabe que existe uma coisa chamada dinheiro (ibid., p.75). Bom, eu não estou em guerra com ninguém. Decretei a minha paz (ibid., p.78). Que pena, numa época como esta, um homem ter de estar pronto a viver como bicho (ibid., p.99). Minha mãe trabalhou a vida inteira, disse [...] Mas quando estava velha e doente, se esqueceram dela (ibid., p.159). Descobriu que ficava excitado de dizer, negligente, a verdade, a verdade sobre mim. “Sou jardineiro”, repetia, alto [grifo do autor] (ibid., p.209). Se na superfície da narrativa percebe-se uma aparente imagem de debilidade, esta é suplantada por inúmeros exemplos que demonstram a consciência de K. Nos trechos citados anteriormente e em vários outros, percebemos que Michael K tem consciência de quem era e do mundo em que vivia. Ele se recusa a fazer parte da guerra e decreta a paz. Michael, por trás da aparência simplória, percebe o caos labiríntico em que vive. Desse modo, nota-se que Michael 118 não é tão “idiota” como parece. Michael se mantém alheio a tudo que o cerca, ou seja, não se importa com as coisas ditas pelo narrador oficial médico, vivendo num mundo todo dele com suas próprias leis. “Manter-se alheio”, na obra de Coetzee, não tem o sentido de “desatento ou alienado”, mas de “estrangeiro”, ou seja, que não faz parte daquele lugar ou daquelas coisas. A toca de Michael nos remete ao conto A construção (1923), de Franz Kafka. Nesse conto, o narrador em primeira pessoa constrói para si uma toca com túneis interligados, alimentos armazenados e tranquilidade de fortaleza. No entanto, existem inimigos ocultos. Um deles parece tê-lo seguido, a ponto do personagem escutá-lo nas paredes e achar que está condenado. Às vezes acorda assustado acreditando que a construção é falha e começa a trabalhar na tentativa de corrigi-la. Em alguns momentos, o personagem se perde no próprio labirinto construído e julga ser necessário fazer novas edificações para se proteger. Desse modo, ele empreende uma luta constante de construção e reconstrução. O personagem se enterra, portanto, num buraco e vive, no subsolo, a ilusão de estar protegido. No entanto, ele percebe que não tem um lar que o proteja do inimigo. Michael K, assim como o personagem de A construção, cava um buraco e se “enterra”, vivendo a ilusão momentânea de um abrigo. Essa situação oferece a imagem de um personagem que empreende uma luta entre as suas concepções de jardineiro e a guerra que o circunda. Deste modo, o eu esbarra numa barreira instransponível com o mundo. O personagem de Coetzee é preso por funcionários do governo e levado para um “campo de reassentamento”, repleto de barracas de madeira e ferro que abrigavam os reclusos (VEMK,87). Ao interrogar um dos reclusos sobre o motivo das pessoas serem levadas para aquele lugar, Michael recebe a seguinte resposta: 119 “Isto aqui não é prisão”, disse o homem. “Não ouviu o policial dizer que não é prisão? Aqui é Jakkalsdrif. É um campo. Não sabe o que é um campo? Campo é para gente sem emprego. É para todo mundo que vai de fazenda em fazenda mendigando serviço porque não tem o que comer, não tem um teto para se abrigar. Eles juntam toda gente assim num campo, para não terem de mendigar mais [...]” (VEMK,92). A prisão na narrativa, com o nome de “campo de reassentamento”, é uma forma de tornar os indivíduos dóceis e úteis, através do controle total sobre seus corpos. A sociedade do apartheid é um imenso campo de concentração. As pessoas à margem da sociedade são vistas como violadores da ordem estabelecida e, portanto, devem se manter isoladas do resto da sociedade. A prisão marca um momento importante na história da justiça penal, pois é vista como mais “humana”. O objetivo é fazer o condenado “pagar sua dívida” com a sociedade que foi lesada. No entanto, longe de qualquer “humanidade”, vemos que a prisão ao invés de reabilitar, desumaniza. Para Foucault (2009:219): [...] a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria dado em seguida uma função técnica de correção; ela foi desde o início uma “detenção legal” encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal. Em suma, o encarceramento penal, desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos. A passagem dos suplícios à imposição de penas em prisões fortificadas por arquiteturas bem elaboradas é, para o filósofo, a “passagem de uma arte de punir a outra” (ibid., p.243). Independente da forma de punição, a privação da liberdade e o isolamento do indivíduo garantem que se possa exercer sobre ele um poder que não seja abalado por nenhuma influência. 120 Verifica-se que a falta de liberdade e o isolamento do indivíduo também vão reaparecer em Benjamim, de Chico Buarque. Na obra de Coetzee, a prisão adquire o nome de “campo de reassentamento”. Em Benjamim, com o clima sombrio da ditadura civil-militar, a prisão se configura de uma forma mais velada. Personagens são presos e assassinados sem direito à defesa. Além da prisão em seu aspecto físico, ela também se configura no interior dos indivíduos, como veremos no próximo capítulo. 121 5. BENJAMIM E OS LABIRINTOS FANTASMAIS48 5.1. A NARRATIVA DE UM TEMPO PERDIDO O romance Benjamim (1995), de Chico Buarque, narrado em terceira pessoa, apresenta dois momentos históricos: a década de 60 (passado glorioso de Benjamim, o protagonista) e a década de 90 (seu presente decadente). Benjamim é a história de um ex-modelo fotográfico envelhecido, que vive com a sensação constante de estar sendo filmado, como se o mundo fosse um grande espetáculo. Antes das reflexões sobre a obra, apresentaremos um resumo com os fatos mais importantes. O romance se inicia com o personagem diante de um pelotão de fuzilamento. Como num filme, antes de morrer, sua vida passa diante de seus olhos, cujo centro foi o amor da juventude, nos anos 60, Castana Beatriz. Castana era uma moça de classe média alta que namorava Benjamim contra a vontade do pai. Depois de abandoná-lo e fugir com o amante Douglas Ribajó, que a engravidou, foi assassinada misteriosamente, na casa onde vivia. Mais tarde, revela-se que eles viviam clandestinamente, pois militavam numa organização contrária ao governo. Quase trinta anos depois, Benjamim vive com o dinheiro que conseguiu acumular na época de modelo fotográfico. Enfrentando a ruína física e profissional, o protagonista mora num prédio degradado, outrora muito valorizado, cercado de mendigos e com as janelas que se abrem para a Pedra do Elefante – uma antiga beleza natural, mas descaracterizada pelo aumento da miséria. 48 A expressão “labirintos fantasmais” faz referência a algo aterrorizador e sombrio e também ilusório. Ilusório em relação ao fato de Benjamim não conseguir se desvencilhar dos inúmeros papéis do seu passado glorioso. Aterrorizador e sombrio numa referência ao clima político e social da época. 122 Benjamim vive com a sensação constante de estar sendo filmado. Adolescente, o personagem adquiriu uma câmera invisível e fez-se filmar durante toda a juventude e, quando decidiu abolir a “ridícula coisa”, era tarde, pois a “câmera criara autonomia” (BE,7). Um dia, Benjamim vê Ariela Masé, uma jovem corretora de uma agência imobiliária, e impressiona-se com ela. Ao ver uma foto de Castana Beatriz, ele começa a relacionar as duas moças, a ponto de passar uma semana procurando Ariela. Nessa procura, Benjamim vai à galeria de onde a vira sair e visita cada dentista, descrevendo a boca de Ariela. Contudo, não consegue obter informações a respeito. Ariela é “companheira” de Jeovan, um ex-policial paralítico. Apesar disso, a jovem mantém vários relacionamentos amorosos com outros personagens, como Zorza e Aliandro. Jeovan é muito amigo do doutor Cantagalo, que além de chefe é apaixonado por Ariela. Ariela faz questão de contar os seus relacionamentos amorosos para Jeovan e sente prazer nisso. A mando de Jeovan, o chefe de Ariela pede para a moça levar os seus pretendentes para apartamentos vazios provavelmente para serem executados. “Para os amigos de Jeovan, homem que se deitasse com Ariela era bandido” (ibid., p.153). Todas as vezes que o chefe estende um porta-chaves de plástico “ensebado” parece que alguma coisa ruim vai acontecer. É o caso de Zorza. Ariela leva o seu amante Zorza até um apartamento. Em lugar das chaves com esparadrapos, escolhe um porta-chaves de plástico, em que se lê “Rua Corcunda, 39”. Ariela liga a televisão e aumenta o volume. No filme, há a discussão entre um casal e a explosão de um carro. Ela começa a chorar e rompe o relacionamento. Sai do prédio e vê “dois carros colados nos parachoques do carro 123 japonês de Zorza, mais um táxi preto de viés na entrada da rua” (BE,65). Tem-se a impressão de que Zorza foi assassinado. Um outro personagem importante é Aliandro Esgarate, um ex-ladrão e agora candidato político. Seu comício parece um espetáculo, com direito à banda e dançarinas louras de minissaias. O personagem modificou o nome ao consultar uma numeróloga. Agora é Alyandro Sgaratti e utiliza-se do slogan “o companheiro xifópago do cidadão”. Quando mais jovem, costumava praticar atos ilícitos com o primo. Um dia, o primo o levou até uma rua escura e ele descobriu que sua mãe era prostituta. Antes pensava que ela era enfermeira. Benjamim é reconhecido na rua e acompanha alguns adolescentes até uma gincana realizada numa concessionária de veículos. Na concessionária, famílias admiram carros e motos “expostos como bijuterias gigantes”. A gincana é um show de aberrações. Benjamim é apresentado na gincana como artista, mas ninguém o conhece. O locutor da gincana o anuncia, mas ao invés de bater palmas, “o público vira-se de costas para o palco e produz um ‘oh’: acaba de entrar no pavilhão uma girafa” (ibid., p.43). As pessoas querem ser fotografadas ao lado da girafa. Benjamim Zambraia gravou um comercial de dez segundos para a campanha de Aliandro, como se fosse o professor e cientista social Diógenes Halofonte. Mas como Benjamim não desempenhou bem o papel, foi preterido por outra pessoa. Benjamim aplicou em ouro o capital acumulado como modelo fotográfico. “Estipulou que morreria aos oitenta e repartiu o lingote de vida restante em lâminas mensais, correspondentes ao que consumiria com luz e gás, condomínio, alimentação, um chope, um cinema, suas necessidades”. A conjuntura econômicofinanceira e os vários exageros o levou a reduzir paulatinamente a sua expectativa de vida, “hoje estimada em setenta e quatro anos e quebrados” (ibid. p.77). 124 Benjamim gasta seis meses de subsistência em uma semana. Aluga uma casa noturna com direito a drinques e show exclusivo de um artista importante na tentativa de agradar Ariela. Com a ousadia, restam apenas dezoito anos de vida em dinheiro. Benjamim vê um gato preto atravessando a rua e julga tê-lo visto anos atrás. Começa a relembrar o passado. O protagonista recorda que ao voltar da casa do doutor Campoceleste, um camburão estava parado diante do seu edifício. Oito guardas armados prendem um casal de vizinhos. Um dia, Benjamim pensa ter visto Castana Beatriz e começa a segui-la. Vê Castana correr com as sandálias na mão em direção a uma casa verde-musgo. Benjamim é abordado por um homem que pede para ver os seus documentos. A seguir, o homem pede ao motorista de táxi Barretinho, a quem chama Zilé, que leve Benjamim para casa. Pelo canto dos olhos, Benjamim vê alguns homens indo para a casa verde-musgo. Fecha a janela com medo de ouvir os disparos. Em casa, fita o telefone por um longo tempo, “sabendo, como sabe hoje, que ele não tocaria; nem precisava tocar porque, à força de ser fitado, o aparelho já trazia embutida a trágica notícia” (BE,139). Um dia, Ariela recebe na imobiliária o porta-chaves de plástico e, receosa do que pudesse acontece, vai até o comitê de Aliandro para contar a sua história com Jeovan e pedir-lhe proteção. Em virtude do descaso do candidato político, Ariela se recorda de Benjamim e vai até o apartamento dele. Benjamim abre a porta e Ariela não o reconhece: “quem entreabre a porta é um senhor curvo, a camisa para fora da calça surrada, os cabelos brancos em desordem e a barba por fazer há uns sete dias” (ibid., p.158). Ariela vê a pedra pela janela. “Há o cheiro da Pedra em Benjamim, que à saída do quarto fita Ariela, empedernido” (ibid.). Ariela foge. Benjamim vai atrás dela e entra no táxi com ela. Ariela observa os pés descalços de 125 Benjamim. Pega o porta-chaves de plástico e tem a fisionomia agoniada. Benjamim já esperava que Ariela se chocasse com a visão da pedra, do mesmo modo que Castana Beatriz quando foi visitá-lo pela primeira vez. Ele tem a sensação de já ter visto o taxista antes. É levado ao sobrado verde-musgo. O taxista vai embora sem cobrar pela corrida. Benjamim entra na casa e vê doze homens enfileirados. “‘Fogo!’, grita um, e a fuzilaria produz um único estrondo [...] e naquele instante Benjamim assistiu ao que já esperava” (BE,162). 5.2. TEMPO DAS SOMBRAS, TEMPO DA PEDRA Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue/ [...] Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca, resta o peito/ [...] Como é difícil acordar calado/ Se na calada da noite eu me dano/ Quero lançar um grito desumano/ Que é uma maneira de ser escutado/ Esse silêncio todo me atordoa [...] Essa palavra presa na garganta/ [...] Mesmo calado o peito resta a cuca/ [...] Quero perder de vez tua cabeça [...] Me embriagar até que alguém me esqueça (HOLANDA e 49 GIL, Cálice, 1973) . Tragar a dor, engolir a labuta, calada a boca, silêncio que atordoa... – todas essas expressões convergem para o delineamento de uma realidade sombria tecida de “tanta mentira,/ tanta força bruta”. Cálice, que forma o parônimo com “cale-se”, é uma canção sobre o silêncio imposto, assumido à revelia. Trata-se de um silêncio progressivo: na primeira estrofe, “mesmo calada a boca resta o peito”; na terceira estrofe, “mesmo calado o peito resta a cuca”; na última, no entanto, não resta mais nada, “quero perder de vez tua cabeça [...] Me embriagar até que alguém me 49 A música, de Chico Buarque e Gilberto Gil, foi composta para o show Phono 73, que a gravadora Phonogran (ex Philips, e depois Polygram) organizou no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, em maio de 1973. Como a censura havia proibido a letra, os autores resolveram cantar apenas a melodia, pontuando-a com a palavra “cálice”. Todavia, a gravadora resolveu cortar o som dos microfones para evitar que a música fosse apresentada, mesmo sem a letra. O público viu concretizado dramaticamente o “cale-se”. Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br> (Acesso em: 17 jan. 2010) e MENESES, A. B. Desenho mágico, 2002, p.91, op. cit. 126 esqueça”. Resta, portanto, apenas o silêncio. Na visão de Adélia Meneses (2002:91), a boca (a comunicação), o peito (o sentimento) e a cuca/cabeça (o raciocínio, o pensar) são as três dimensões humanas atingidas pela censura. Há um diálogo entre o silêncio de Cálice e o romance Benjamim. As imagens de Cálice se projetam num outro contexto, amplo e significativo: o tempo da pedra de Benjamim Zambraia. Há na narrativa de Chico Buarque, predominantemente, dois tipos de silêncio: o silêncio provocado pela morte e o silêncio provocado pelas vozes sufocadas. Logo nas primeiras linhas, Benjamim está diante de um pelotão de fuzilamento e, no momento do estrondo das armas, a sua vida projeta-se como um filme. Ele é condenado pela circularidade da própria narrativa. Com uma estrutura circular, o final do romance remete ao início, como uma espécie de “roda-viva”. Ao ter a existência projetada como um filme do início ao fim, no momento do tiro, Benjamim ainda deseja “rever-se aqui e acolá” e aprender “a penetrar em espaços que não conhecera” (BE,6). Contudo, já não há mais tempo para a reconstrução do passado. O silêncio da morte e o silêncio provocado pela ditadura marcham lado a lado. O romance aborda dois momentos: a década de 60 (passado de Benjamim Zambraia, tempos áureos de sua carreira de modelo-fotográfico) e a década de 90 (presente de Benjamim, agora decadente, envelhecido). Esse ângulo sociopolítico não é muito visível numa primeira leitura, mas de forma atenta, constatam-se expressões e nuances contextuais que caracterizam a realidade do personagem. São inúmeros os fatos que traduzem a atmosfera da ditadura civil-militar brasileira. Inicialmente, Benjamim tem a sensação constante de estar sendo filmado, com isso vai perdendo a naturalidade. Na adolescência passou a se imaginar com uma câmera invisível através da qual filmava as outras pessoas. Podemos depreender 127 alguns sentidos da câmera que ora dialogam com o mundo mercantilizado do protagonista ora dialogam com a atmosfera sombria da ditadura civil-militar. O primeiro deles diz respeito ao fato de o personagem ser um modelo fotográfico, acostumado com o mundo do espetáculo. Para Benjamim, o mundo é um castelo de imagens, uma representação teatral, dentro da qual ele se encontra preso, sem possibilidades de fuga, de saída. No entanto, o protagonista já não vive mais os tempos de glória, pois agora está envelhecido. Nessa realidade, há a transformação dos homens em objetos de comercialização e de coisas em objetos de valor. O personagem convive com a catástrofe pessoal e social, com a decadência profissional, num mundo onde tudo tem um prazo de validade. O comercial de cigarro que o protagonista havia feito saíra de cena para dar lugar a jovens que personificavam o ideal de beleza da época. Decaído, Benjamim vive num paraíso perdido, à mercê do acaso. Numa gincana de inauguração, famílias admiram carros e motos, expostos como “bijuterias gigantes” (BE,39). Num mundo onde se fotografar ao lado de artista virou moda, Benjamim, decaído, “perdeu em fotogenia” e ninguém mais lhe dá valor (ibid., p.36). Ao ser anunciado no evento, “o público virase de costas” e prefere olhar para uma girafa (ibid., p.43). Benjamim personifica o conceito de “vendabilidade” pela conversão dos seres humanos em mercadorias. O segundo sentido que podemos perceber na atitude de Benjamim, ao adquirir a câmera invisível, diz respeito à paixão pelo amor de juventude, cujas lembranças ou aparições o levarão à decadência e, finalmente, ao silêncio, à morte. A história de vida do personagem se estrutura em torno de um anseio – a perseguição do grande amor Castana Beatriz e a projeção dela em Ariela Masé. Além deste anseio, a narrativa se constrói em torno da perda dos tempos áureos e da tentativa desesperada de Benjamim em repetir esses momentos gloriosos. Mas o 128 protagonista, outrora muito requisitado, o preferido, perdeu esse estatuto. Ele passa por uma metamorfose que o reduz a uma coisa, a objeto comercializado. A presença da dominação nas relações sociais promove a redução do trabalhador ao nível de uma peça de máquina. O homem, visto como um número a mais, longe do caráter empreendedor, revela a ótica das cruéis desigualdades do mundo do capital. O homem aparece como escravo de um sistema, de uma máquina invisível, engolfado pela consciência de solidão e a falta de alternativas. A narrativa, portanto, constrói-se em torno de um anseio, da perda da juventude e do impulso à repetição dos tempos gloriosos. Benjamim procura recuperar o paraíso perdido, a juventude e a vitalidade. A ruína do protagonista acontece quando ele relaciona a antiga paixão Castana Beatriz à jovem Ariela Masé. Ao projetar em Ariela a figura de Castana, Benjamim passa a viver um mito e isto o levará à destruição. O mito se efetiva quando a realidade concreta é inalcançável, surgindo como uma solução. Obcecado por um passado que não pode mais voltar, ele não consegue discernir as artimanhas do mundo em que vive. Enfrentando a decadência física e profissional, isolado e destituído do aconchego humano, Benjamim é arrastado para o amor por uma força vital e revivescente, que se constitui para ele em um meio de salvação. Este amor avassalador se revela como uma pulsão de vida, uma energia capaz de fazê-lo sonhar com os tempos áureos, vividos e perdidos. Ele projeta o passado real (Castana Beatriz) num falso presente (Ariela Masé). Contudo, Ariela é apenas o simulacro de uma imagem rediviva, projetada em terreno infértil, que só se sustenta no irreal. O mito, a distorção da realidade é, portanto, o elemento mediador que leva o personagem a sua própria ruína. Ao reviver o amor por Castana em Ariela, Benjamim tenta recuperar os sonhos interrompidos pela sua decadência física. No 129 momento em que ele não consegue mais ver Castana em Ariela, rasga as próprias fotografias: “Benjamim Zambraia de perfil, Benjamim Zambraia de calção, Benjamim Zambraia com quatrocentas mulheres, o curriculum vitae do modelo Benjamim Zambraia” (BE,110-111). Abrir as pastas com inúmeras fotografias de modelo é, para Benjamim, “ressuscitar” Castana e o seu passado glorioso que morreu junto com a amada. Rasgar as imagens é a tentativa de se livrar delas. O amor é a força vital e também a ruína do personagem, que se entrega ao sentimento não correspondido. Apesar de revivescente, o amor o escraviza. A perseguição da grande paixão Castana leva o personagem a sonhar com a repetição dos tempos da juventude. Com isso, Benjamim acaba repetindo os lugares que frequentava com a amada, e morre na mesma casa onde ela morou e morreu. Ele perdeu a vida na busca dessa utopia, personificada no amor da juventude. O personagem não consegue decifrar a verdadeira identidade das pessoas com as quais convive e também perceber as nuances do cotidiano. O não entendimento do que se passou transforma a vida de Benjamim em um grande sertão, árido e empedernido pelos problemas da sua existência. Morador de um prédio cuja janela se abre para a Pedra do Elefante, Benjamim adquire as características dela. A sombra e o cheiro da pedra estão por toda a casa e no próprio personagem. No final da narrativa, ao ser visitado por Ariela Masé, Benjamim tem “o rosto empedernido” e seu cheiro é de pedra. O homem se reduz, dolorosamente, ao inumano. Benjamim sedimenta dentro de si a presença de Castana e o passado. Além de possuir as “feições” da pedra, tem um guarda-roupa repleto de lembranças e pastas separadas por ano com inúmeras fotografias. Ele não consegue se desvencilhar das diversas representações do passado glorioso. 130 A câmera invisível que persegue o protagonista é também uma metáfora que expressa a condição atormentada de um indivíduo acostumado com constantes exposições e martirizado por um passado que não pode mais voltar. No auge da fama, a suspeita da vigilância não incomoda Benjamim. O mundo dos holofotes é o combustível que alimenta o personagem. Engolfado e ludibriado por essa exposição, ele não percebe que a necessidade de estar no centro das atenções o consome. No entanto, a câmera ganha autonomia e o protagonista não consegue mais se desvencilhar dela. Por isso, a sensação constante de estar sendo vigiado, conforme se verifica no trecho a seguir: [Benjamim] Fez-se filmar durante toda a juventude, e só com o advento do primeiro cabelo branco decidiu abolir a ridícula coisa. Era tarde: a câmera criara autonomia, deu de encarapitar-se em qualquer parte para flagrar episódios medíocres, e Benjamim já teve ganas de erguer a camisa e cobrir o rosto no meio da rua, ou de investir contra o cinegrafista, à maneira dos bandidos e dos artistas principais. Hoje ele é um homem amadurecido e usa a indiferença como tática para desencorajar as filmagens. Mas quando entra enfim no Bar-Restaurante Vasconcelos, ainda o incomoda a suspeita de uma câmera [...] (BE,7-8). Por outro lado, a câmera invisível que persegue Benjamim se relaciona a outro sentido: o de dispositivo de vigilância, constante na realidade do protagonista. A política misteriosa perpassa todo o livro e teve implicações diretas na vida de Benjamim, sem que ele percebesse. A divisão da vida do protagonista em duas épocas – anos 60 (tempos áureos de modelo) e anos 90 (decadência) – pode ser considerada um referencial: a personificação dos tempos de luta e o conformismo da sociedade atual. Por outro lado, mostra um personagem incapaz de reagir à repressão da ditadura civil-militar, silenciado diante dela, enquanto usufruía os benefícios de uma vida regada a flashes. Benjamim é retrato da sociedade mercantilizada. 131 A defasagem entre o seu modo estático de representação – de modelofotográfico – e o mundo dinâmico da televisão, das filmagens, que impera na atualidade se revela na sua dificuldade em adentrar o mundo da televisão. Ao fazer um comercial de cigarro e uma propaganda para a candidatura política de Alyandro, Benjamim não representou bem os papéis e foi substituído. Ele representa, portanto, a decadência ao não conseguir acompanhar o dinamismo da sociedade. Ao rever a sua vida, Benjamim resume o que fizera em dois anos: “cinema, chope, cinema, cama, chope, cinema, caldo de carne, cama”, em seguida, completa: “só?” (BE,101-102). O protagonista resume, nessa fórmula, a ruína humilhante de um personagem diante da própria história. Benjamim guarda o dinheiro recebido no auge da carreira e calcula, aproximadamente, o que gastaria numa existência sem exageros. Acredita que as economias durarão até o fim de sua vida, que ele dividiu em um número razoável de anos. No entanto, para impressionar Ariela, ele faz uso de uma grande quantia, a ponto de reduzir o tempo de vida estimado. O tempo-dinheiro é o que sustenta o tempo de vida de Benjamim. A má administração das economias transforma o seu tempo-dinheiro em ameaça de morte. O tempo-dinheiro de Benjamim transforma-o numa engrenagem, ou seja, numa peça dentro da previsibilidade da sua existência. O encontro (com Ariela), que poderia ser uma abertura para novas possibilidades, é o que abrevia a existência de Benjamim. O projeto de vida traçado pelo protagonista não prevê novas aventuras e, por isso, é desfeito. As economias perdem o seu único objetivo, pois são usadas sorrateiramente com as extravagâncias de Benjamim. O projeto, portanto, é derrotado pelo inusitado, ou seja, pelo surgimento de Ariela, que ao invés de trazer novas conquistas, leva Benjamim à morte. O que deveria ser um grande momento 132 na vida de Benjamim – o aparecimento de Ariela – transforma-se numa existência atormentada e sombria. Em Benjamim, encontramos uma época caracterizada por uma atmosfera sombria e labiríntica que influencia a vida dos personagens. No mundo de Benjamim, os indivíduos são reduzidos a mercadorias com prazo de validade. O protagonista tem sua função – de modelo – paralisada pela ação do tempo. Envelhecido e transtornado pela suposta morte da amada, Benjamim cede espaço para a lamentação, a busca de um tempo perdido. A verdadeira busca de Benjamim é pela felicidade. No entanto, num universo vazio e degradado pelas questões mercadológicas e pelo tempo histórico sombrio, o protagonista perde o sentido da vida. Antes, Benjamim movia-se num mundo de objetivos claros: a exposição na mídia. Agora, a perda da juventude desmascara a falsidade da realidade em que vivia. A perda da juventude, relacionada ao tempo mercadológico e ao tempo histórico sombrio, leva o protagonista à destruição. Benjamim busca na memória de sua vida resquícios do passado que o façam reviver. 5.3. O JOGO DE DUPLOS E AS REPRESENTAÇÕES FANTASMAIS De muito gorda a porca já não anda/ De muito usada a faca já não corta/ 50 Como é difícil, pai, abrir a porta (HOLANDA e GIL, Cálice, 1973) . Outrora um modelo fotográfico, Benjamim já não consegue mais abrir portas. Aqui, “abrir a porta”, não é apenas a tentativa de romper o silêncio, a voz estrangulada, fruto da realidade histórica, mas também a tentativa de romper 50 Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 17 jan. de 2010. 133 barreiras. Ambos os sentidos se relacionam: romper o silêncio também é romper barreiras. Decadente, o protagonista já não serve mais aos ideais de beleza. Sua imagem já não surte mais efeito. O tempo de pedra, ou seja, o tempo sombrio e empedernido pelas dificuldades encontradas na carreira artística, traduz o estado de Benjamim, incapaz de discernir o presente do passado que o alimenta e o consome. O protagonista está condenado ao vazio da existência, ao silêncio. O que o caracteriza não é o imobilismo – que o manteria jovem, imune à ação do tempo – mas a corrosão do próprio tempo na sua fisicalidade e dos valores de mercado que já são diferentes daqueles predominantes no tempo do Benjamim jovem. A narração, de forma objetiva, articula-se em torno das lembranças, expressas através das memórias de Benjamim. No brevíssimo tempo entre as armas projetadas e o estrondo dos disparos, o protagonista revive num relâmpago a sua vida. Para uma vida de espetáculo, nada mais natural do que as lembranças mostradas num telão de cinema. A objetividade de Benjamim surge da postura do narrador face ao mundo: ele apenas conta a história e nada problematiza. O narrador não pensa sobre o mundo, apenas se limita a narrá-lo. A reflexão e os sentidos que porventura podem ser depreendidos ficam a cargo do leitor. Todo romance, como diz Bakhtin (1993:371), “é um sistema dialógico de imagens das linguagens, de estilos, de concepções concretas e inseparáveis da língua”. O romance dialoga com a sua contemporaneidade e é marcado pela perspectiva crítica do mundo em que vive. Benjamim expressa a realidade dos personagens e leva os leitores à reflexão sobre a palavra escrita e os problemas da existência humana. 134 O romance mostra as lembranças do protagonista, contadas por um narrador em terceira pessoa. Utilizando técnicas cinematográficas, apresenta o mundo como um espaço de representação onde os personagens encenam múltiplos papéis. Eles nem sempre são o que aparentam ser. O narrador parece um cameraman, tentando montar a vida dos personagens como se estivesse exibindo um filme: “[...] e naquele instante Benjamim assistiu ao que já esperava: sua existência projetou-se do início ao fim, tal qual um filme, na venda dos olhos” (BE,5). A narrativa simula procedimentos cinematográficos como no trecho em que Benjamim pega uma foto de Castana e, de repente, o rosto da amada envelhece sete anos e sobrepõe-se a imagem de Ariela (ibid., p.24). Trata-se, portanto, de uma técnica cinematográfica de transformação instantânea por substituição. Essa incorporação das técnicas cinematográficas alude aos novos tempos, com a mídia e o cinema51. A narrativa focaliza os personagens e as situações em detalhes: Se uma câmera focalizasse Benjamim na hora do almoço, captaria um homem longilíneo, um pouco curvado, com vestígios de atletismo, de cabelos brancos, mas bastos, prejudicado por uma barba de sete dias, camisa para fora da calça surrada aparentando desleixo e não penúria, estacionado em frente ao Bar-Restaurante Vasconcelos, tremulando os joelhos como se esperasse alguém (ibid., p.6). Através da descrição pormenorizada do narrador, o leitor consegue perceber a faixa etária (“cabelos brancos” e “um pouco curvado”) e o estado psicológico (“barba de sete dias”, “camisa para fora da calça” e os joelhos tremulando) de Benjamim. A descrição tece a personalidade, as características físicas e a situação vivenciada pelo personagem. 51 O romance Benjamim ganhou versão para o cinema, assinado por Mônica Gardenberg, em 2003. 135 Na obra de Chico Buarque, narração e descrição se interrelacionam. A descrição é usada para enriquecer as situações e os personagens. Cada personagem é uma visão de mundo, o que torna a obra um grande mosaico: temos o ex-modelo fotográfico (Benjamim), a corretora de imóveis (Ariela Masé), o expolicial (Jeovan), o ex-ladrão de automóveis, agora candidato político (Aliandro Esgarate/Alyandro Sgaratti), o dono de imobiliária (Dr. Cantagalo), o dono de agência publicitária (G. Gambôlo), o pai de Castana (Dr. Campoceleste), o motorista de táxi (Barretinho/Zilé), o vendedor de automóveis (Zorza), entre outros. Os personagens são descritos conforme a função que exercem na sociedade. Quase todos são da classe média como vendedores, funcionários, modelos, professores; ou da pequena burguesia, como dono de imobiliária e agência de publicidade. Os operários e as empregadas domésticas circulam pelos ônibus lotados e por ruas povoadas por mendigos. Portanto, são profissões típicas da sociedade e descritas conforme as características apresentadas no cotidiano. Assimilar a visão do homem e da realidade é um grande problema para o romancista. Não basta apenas discorrer sobre essa realidade, mas apresentá-la na própria estrutura da obra de forma que a ela se transforme em experiência vivida. Segundo Lukács (1968a:167), “a aptidão dos personagens artísticos a expressar a sua própria concepção do mundo constitui um elemento importante e necessário da reprodução artística da realidade”. Na obra de Chico Buarque, cada personagem é descrito e representado segundo a sua concepção de mundo. À experiência pessoal de Benjamim vão se juntando outros particulares. Benjamim convive com dois dilemas: a obsessão pelo amor de juventude e os fantasmas identitários. Apesar de possuir um único nome, o protagonista se perde nas inúmeras máscaras e identificações que toma para si. Ao rever uma pasta de 136 fotografias, percebe “uma multidão de Benjamins Zambraias”: “vêem-se agora um ex-governador à frente da sua biblioteca, um ex-campeão com o rosto emoldurado na raquete, um ex-menino-prodígio de óculos quadrados, um velho escritor com a mão no queixo [...]” (BE,23). Estes são, portanto, papéis protagonizados por Benjamim ao longo da carreira. No entanto, ele já não consegue se desvencilhar deles. O ex-modelo fotográfico veste-se e despe-se, ao longo da narrativa, das máscaras que usa. As imagens guardadas na memória se mostram mais fortes que a vida. Num mar de imagens, ele tenta se encontrar, mas quanto mais avança, mais se perde. Assim, sua identidade é sempre erguida sobre ilusões e fantasias. Embora o romance apresente diferentes planos como a memória, a imaginação, a fantasia e a realidade, todos são bem delineados. O leitor consegue perceber o que é real na narrativa e o que é deformação provocada pela visão sombria dos personagens. Através da interpolação entre os diversos planos, visível aos olhos do leitor, surge um mundo cruel, alheio à vontade dos personagens. O protagonista almejava representar o modelo-fotográfico de antigamente, tentando refazer o figurino dos tempos de glória: “comparou-se à sua foto no pôster de dois anos atrás, e lembra-se de ter sorrido, de ter se julgado um tanto mais jovem no espelho” (ibid., p.33). Benjamim se apresenta como uma cópia dele mesmo na juventude. Ao ser reconhecido na rua por adolescentes que participam de uma gincana, estes não têm certeza sobre a sua identidade e seu trabalho artístico. O anonimato atual do personagem se revela em paradoxo com a sua antiga carreira de modelo-fotográfico que, no presente, é apenas um rastro de um brilho extinto. Deste modo, o Benjamim atual parece uma sombra do que foi no passado. Ao olhar as fotos de juventude: “Benjamim põe-se a admirar Benjamim Zambraia aos vinte e 137 cinco anos. Põe-se a invejá-lo tão intimamente, e com tanta propriedade, que não tarda em usurpar-lhe a namorada” (BE,24). Trata-se da imitação de si mesmo. Benjamim congrega em si duas pessoas (o modelo Benjamim e o Benjamim decadente). A obsessão pelo passado se traduz em suas roupas antiquadas. Ao convidar G. Gâmbolo para um drinque, o protagonista reflete sobre a sua aparência: “com paletó de lã, calça de veludo e foulard de seda, seria mais razoável sentar-se debaixo do ventilador” (ibid., p.33). As roupas antigas e calorentas não se apresentam em conformidade com o clima tropical, evidenciando a completa inadequação do personagem em relação ao mundo. A imagem de Ariela também é contraditória. O narrador, em terceira pessoa, registra os acontecimentos como uma espécie de testemunha e mostra a complexidade e a ambiguidade que integram o ser humano. No início, achamos que Ariela é uma prostituta em serviço, no entanto, trabalha numa agência imobiliária e leva os compradores até os apartamentos a serem negociados. Ariela, mesmo tendo um namorado possessivo e ciumento, Jeovan, relaciona-se sexualmente com outros homens. Apesar de ter os passos controlados, mantém as suas aventuras e sente prazer em contá-las ao companheiro inválido. Ao narrar as histórias de assédio, Ariela incrementa-as com fantasias pelo simples prazer de ver a reação de Jeovan. Privados de se relacionarem fisicamente, Jeovan e Ariela passam a fazê-lo através de um jogo de sedução verbal, perverso e transgressor. A atitude de Ariela provoca o desejo, o ciúme e a culpa em Jeovan, o que o faz tramar as mortes dos vários homens que ousam relacionar-se com a sua mulher. Benjamim vive a partir das fantasias, da crença de ainda poder desempenhar a sua função de modelo. Ariela, por sua vez, também vive de sonhos. A fantasia incrementada nas suas aventuras é a tentativa de amenizar uma existência de 138 pobreza emocional, social e econômica. Ariela é, na verdade, um retrato do seu tempo: desejosa de uma vida fácil, sem dificuldades. Ao contrário de Benjamim, cujas roupas são inadequadas, as de Ariela ganham novos sentidos conforme o horário do dia, como podemos perceber no seguinte exemplo: É pelos clarões do céu que Ariela se dá conta de que já é noite: o itinerário fortuito depositou-a no centro da cidade. Numa bifurcação, opta pela rua mais iluminada, sem saber que vai enfrentar, de pernas nuas, uma sequência de casas de shows eróticos. Bêbados, turistas, pais de família, corretores de automóveis, porteiros de inferninho fazem-lhe propostas; a roupa escolhida para um dia de sol tornou-se noturnamente adequada, como se ela vestisse aquela mesma saia às avessas (BE,66). A indumentária de Ariela não a protege das situações incômodas, mas a ajuda a adaptar-se. As roupas mostram uma ambiguidade. Por isso, o leitor tem a sensação de que a personagem é uma prostituta em serviço. Ariela é, de alguma forma, alguém que se prostitui. As roupas de Benjamim, ao contrário, servem para mostrar a inadequação do personagem às circunstâncias e aos espaços. A duplicidade também está presente no personagem Aliandro. Antes, como Aliandro Esgarate, era marginal, ignorante e feio. Agora, como Alyandro Sgaratti, é empresário, candidato político, poderoso e atraente. Como nos versos de Chico Buarque, Homenagem ao malandro (1977-1978): “agora já não é normal/ o que dá de malandro regular, profissional/ malandro com aparato de malandro oficial/ malandro candidato a malandro federal/ malandro com retrato na coluna social/ malandro com contrato, com gravata e capital/ que nunca se dá mal”52. Aliandro/Alyandro encarna bem a figura do malandro composto por Chico. O personagem que engana o povo aparece como um homem respeitável. O autor ironiza quando menciona que o personagem é “o companheiro xifópago do cidadão” 52 Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 17 jan. de 2010. 139 (BE,71). Ao invés de promover o desenvolvimento social, Alyandro está preocupado com a ascensão econômica e o prestígio que ganhará com o cargo político. Desse modo, a palavra “xifópago” aparece como um contrassenso, pois o personagem está mais preocupado com o seu progresso do que com os problemas sociais. Alyandro encarna um político que não se revela como de fato é, apresentando discursos muitas vezes escritos por outras pessoas. Em sua maioria, os discursos não alcançam a população menos favorecida, destituída do saber acadêmico. O personagem é uma amostragem do poder do capital, ainda que fruto de meios ilícitos. O comício do candidato político é um show, com direito a dançarinas e cantores. Na sua campanha, alguns personagens são fictícios, como o professor e cientista social Diógenes Halofonte, encenado por Benjamim. No entanto, ele não desempenhou bem o papel e foi descartado. Verifica-se um jogo de duplos: os indivíduos põem a máscara do outro segundo as conveniências sociais, políticas, econômicas, etc. Benjamim aparece como um ser duplicado – o Benjamim dos tempos áureos e o Benjamim decadente; Ariela é corretora de imóveis, mas parece uma prostituta, Aliandro/Alyandro pratica atos ilícitos e é pastor e candidato político, Dr. Cantagalo, além de dono da imobiliária, mantém ligações com a polícia; Barretinho/Zilé é motorista de táxi e trabalha para a polícia; Zorza é pai de família e amante de Ariela; Castana Beatriz é modelo e militante política; Douglas é professor e militante político. Embora as identidades dos personagens, em sua maioria, não se relacionem com os acontecimentos políticos, elas insinuam o clima de opressão dos anos 60 e 70. Há, portanto, a presença de dois momentos históricos: o presente (anos 90) e o passado (anos 60 e 70). No presente dos personagens (década de 140 90), as novas condições da vida sociopolítica afloram: a presença de mendigos nas ruas, a decadência da estrutura urbana, a decomposição de edifícios, os ônibus malcuidados, a violência urbana, a trajetória do bandido a político, etc. O espaço romanesco aparece, portanto, dominado pela barbárie. Nota-se o aumento considerável do contingente populacional em situação de pobreza extrema que perambula pelas cidades. O protagonista também se duplica na pedra. Ele imagina que “a Pedra esteja habitada de alto a baixo tal qual um edifício de apartamentos, com síndico e tudo, defronte de um paredão de cimento. E imagina que para os moradores da Pedra seja ele, Benjamim, solitário e nu, o velho maluco da caverna” (BE,111). A pedra serve como um espelho do protagonista, através do qual ele vê a si mesmo: um homem misterioso, solitário e nu, ou seja, despido de tudo. A pedra sedimenta o luto interminável do protagonista assim como a casa verde-musgo, onde morrerá fuzilado como Castana. A relação de Benjamim com a própria imagem destoa da de Ariela. Benjamim, apesar de preso a um passado glorioso, não parece muito à vontade com o mundo dos flashes, das câmeras. Ariela, no entanto, destaca-se num mundo de representação. Ao fazer um teste de modelo, a convite de G. Gâmbolo, Ariela mostra toda a sua fotogenia. “Provou uma túnica de seda furta-cor e ficou triste, conforme as instruções do fotógrafo, depois por conta própria mordeu o lábio inferior, com um olhar sugestivo” (ibid., p.125-126). O mundo da representação relaciona-se com a profissão de Ariela. A personagem tenta fazer com que os clientes adquiram os imóveis e também costuma levar seus supostos “agressores” (que a assediavam sexualmente) para serem mortos nos estabelecimentos a mando de Jeovan. Portanto, a representação é o que move a vida de Ariela. 141 A longa exposição ao mundo dos flashes parece ter tirado a vitalidade de Benjamim. Ele parece um fantasma, que arrasta o seu passado. Nas páginas finais, Ariela assusta-se com a imagem de Benjamim ao visitá-lo em seu apartamento. A sua condição fantasmagórica se revela na maneira como foi conduzido para a morte, como um “meio defunto”. Castana morre em virtude de suas ligações com organizações contrárias ao governo. Já Benjamim morre supostamente como um “assediador” de Ariela. A memória, ou seja, o passado de Benjamim, apresenta-se como uma espécie de labirinto. A alternativa para o personagem isolado é o “nós”, a comunhão. Quando esta última desaparece, o que resta é o sentimento de que o sonhador não consegue ser mais real do que os seus sonhos. Benjamim convive com um “nós ilusório” que aparece como uma espécie de salvação. Ele ainda acredita ter amigos e, por isso, marca encontros. Todavia, os encontros se transformam numa grande espera. O romance mostra a vitória do mundo mercadológico e da consciência arruinada e a derrota de Benjamim, que é incapaz de acompanhar as mudanças do tempo. 142 6. DOS SENHORES K., AS VÍTIMAS, AO SENHOR ZAMBRAIA: REALIDADES LABIRÍNTICAS 6.1. DA CONCEPÇÃO DE MUNDO À ESCRITA: A CONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO E DA LINGUAGEM Lendo as narrativas que constituem o corpus desta pesquisa, percebemos um diálogo entre o estado de anomia civil atravessado pela África do Sul em Vida e época de Michael K e o mundo de pesadelo de O processo, Na colônia penal e Benjamim. Todos têm em comum uma atmosfera de sombras. O ambiente de medo e solidão, caracterizado nas duas ditaduras – a do apartheid e a brasileira, retomada através da referência ao passado de Benjamim – e o tempo sombrio de Kafka incidem sobre a vida dos personagens. Mergulhados no “caldeirão da história”53, os personagens trazem para a cena a complexidade das relações entre o homem e as estruturas sociais, políticas e econômicas. A onomástica tem papel importante nas referidas obras. A inicial K. (com o ponto final indicando abreviatura) parece uma referência à maioria dos personagens kafkianos e expressa a despersonalização, o anonimato. O K do personagem de Coetzee, ao contrário, não é exposto com o ponto indicativo de abreviatura e sugere a ausência de uma linhagem familiar, o anonimato e também aponta para uma coletividade. O anonimato em Michael K mostra-se como salvação num mundo em guerra. Os personagens de Na colônia penal são anônimos e designados apenas pela função que exercem. Já na obra de Chico Buarque, Benjamim cultua o reconhecimento e não almeja o anonimato, que seria uma ruína para uma vida 53 COETZEE, J. M. Vida e época de Michael K, p.176. 143 acostumada com o mundo dos flashes. No entanto, Benjamim, relegado ao esquecimento, tem algo de anônimo. Assim diz o narrador: “[...] as pessoas mais sérias sem dúvida desconfiavam de um cidadão assim onipresente, que ostentava saúde, fortuna, simpatia, e não tinha nome. O próprio Benjamim sentia-se ludibriado por aquela glória crescente, que tornava a cada dia mais profundo o seu anonimato” (BE,36). Nesta obra, vemos a completa anulação do indivíduo, submetido às imposições da mídia e do mercado. Há a redução do ser à imagem. Num momento na narrativa, o personagem tenta se livrar de uma coleção de fotografias, de imagens. O sentimento de opressão aliado à total dependência do mundo dos holofotes remete à artificialidade dos gestos e atitudes de Benjamim ao longo da vida. A problemática do nome indicia uma realidade angustiante, massificada, sem afeto; uma sociedade cuja individualidade foi reduzida à solidão e ao alheamento social. O ser humano sente-se estranho, incapaz de compreender e de se adaptar aos absurdos da estrutura social. Os personagens de Kafka, Coetzee e Chico Buarque estão presos num labirinto, numa engrenagem burocrática e desumana, que os obriga a viverem como Gregor Samsa, de A metamorfose, “debaixo do canapé”, escondido. Apesar de envoltos numa atmosfera crepuscular, os personagens se diferenciam na maneira como agem ou não em relação a esse tempo sombrio. Josef K. percorre labirintos na tentativa de encontrar respostas para uma acusação misteriosa. Tempo e espaço se deformam. Kafka não adota uma estrutura narrativa tradicional, expressando o absurdo do mundo. A narrativa não apresenta um encadeamento lógico e causal, estando em conformidade com o mundo labiríntico apresentado. 144 Já mencionamos em outro momento a maneira como o absurdo e o estranho se apresentam de forma natural na narrativa. No meio de uma atmosfera aparentemente familiar, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis do contexto. O aparecimento de personagens num determinado ambiente até então não focalizados e o absurdo da cena do espancamento dos guardas são exemplos dessa atmosfera, em O processo. Essa atmosfera também se verifica em Na colônia penal. A existência do aparelho destinado a torturar e punir beira o absurdo. No entanto, os mecanismos de tortura são narrados com muita naturalidade. A importância do sistema de tortura é tão grande que ocupa mais da metade da narrativa. A vida social e política gira em torno do aparelho punitivo. Assim como em O processo, há um clima fantasmagórico a rondar a consciência dos personagens. O protagonista Benjamim, mergulhado no passado, não consegue entender o seu tempo e a sua história. Ele não busca respostas para o seu fracasso profissional e existencial, mas deseja continuar desempenhando a sua função. Assim como na narrativa kafkiana, os fatos estranhos e o fantasmagórico rondam o protagonista. O “estranho” se manifesta em virtude dos acontecimentos políticos. Personagens de épocas anteriores aparecem como o motorista de táxi e agente da polícia Barretinho/Zilé. O assassinato de Benjamim na mesma casa de Castana também gera uma sensação de estranheza no leitor. A ascensão de um bandido a candidato político liga-se ao próprio tema da ação, ou seja, ao fato do mundo se apresentar caótico e incoerente. Benjamim tematiza, no plano coletivo, a violência – os assassinatos – e, no plano individual, a angústia e a solidão. Ao problematizar esse mundo degradado, a narrativa traz para a cena o falso sentimento de integração simulado pelos meios de 145 comunicação. A fama propiciada pela constante exposição produz a falsa ilusão de que todos ao redor são amigos. Benjamim conviveu de perto com os dois lados da fama: excesso de exposição e ostracismo. Como um grande modelo fotográfico, no passado, ele recebia muitos convites para eventos e propagandas e seu círculo social era extenso. Agora, decadente, ninguém lhe dá mais valor. Podemos notar esta realidade decadente do personagem quando ele marca um encontro com o dono de uma agência publicitária, mas este não comparece. Michael K, ao contrário dos personagens descritos, conseguiu sobreviver, “flutuando pelo tempo” (VEMK,176). A resistência do personagem de Coetzee revela-se um paradoxo, conforme mencionado pelo oficial médico, o narrador: Com o passar do tempo, porém, comecei devagar a perceber a originalidade da sua resistência. Você não era um herói e não fingia ser, nem um herói da fome. Na verdade, você não resistia absolutamente. Quando mandavam pular, você pulava. Quando mandavam pular de novo, você pulava de novo. Quando mandavam pular uma terceira vez, porém, você não reagia, só despencava no chão [...]” (ibid., p.189). Na acepção do narrador, as atitudes de Michael eram destituídas de qualquer heroísmo. Sua resistência revela um paradoxo, pois ele obedecia às ordens dos superiores ao invés de rebelar-se. A originalidade da sua forma de resistência se deve à ausência de agressividade, ódio ou rancor. O absurdo de um sistema social injusto acompanha toda a obra de Coetzee. A barbárie é descrita minuciosamente, com toques de recolher, restrições a viagens, campos de trabalhos forçados, posse ilegal de imóveis, escoltas armadas, comboios civis, criminalidade, saques, corrupção, etc. O caos transforma a sociedade numa imensa massa de prisioneiros. 146 O narrador ressalta que, num contexto de guerra, o fim esperado para personagens como Michael – pobre, negro e inexpressivo – é a morte: Faça alguma coisa de importante, cara, senão vai passar pela vida sem ninguém notar. Vai ser um dígito a mais numa coluna de dígitos no fim da guerra, quando eles fizerem a grande conta para calcular a diferença, mais nada. Quer ser só mais um dos que se acabaram, quer? [grifo nosso] (VEMK,163). Um número a mais numa estatística é o desenlace das vítimas da guerra que, tratadas como gado, são destituídas da condição de humanos e reduzidas a uma massa sem rosto. São os fora da lei, ninguém. Vê-se, pois, que as narrativas de Kafka, Coetzee e Chico Buarque apresentam sujeitos que se integram e desintegram, metamorfoseando-se no processo histórico. Cada personagem representa os conflitos ou a ausência de relações com a sociedade. A sociedade descrita é a dos sujeitos isolados, acossados pela burocracia e alienados pelo capital, como foi exposto ao longo do nosso trabalho. A burocratização das práticas sociais e a despersonalização parecem ser vividas pelos personagens como o domínio de um tempo de sombras, regido por forças incontroláveis que comandam os destinos humanos e decidem sobre a sua vida ou a sua morte. É por isso que Josef K., Michael K, Benjamim e o condenado anônimo da colônia penal buscam desesperadamente saídas, buracos, tocas e corredores onde possam se proteger ou tentar encontrar alternativas para uma vida digna de compaixão. A maneira como cada autor usa a linguagem para construir os universos apresentados nas narrativas merece uma atenção especial. Nas duas obras de Kafka, O processo e Na colônia penal, o narrador faz com que os personagens se tornem tão estranhos quanto o mundo em que vivem. Na visão de Rosenfeld 147 (1994:54), “nunca sabemos exatamente o que ocorre na intimidade profunda dele [do personagem kafkiano]. Vemo-lo preso, sempre, ao momento que passa, totalmente dedicado à sua tarefa de buscar soluções para o seu desespero”. A linguagem é realista, dura e seca, e produz a sensação de sufocamento e de aprisionamento. A forma narrativa não é absurda, mas o mundo representado, com suas leis misteriosas e inacessíveis. A narrativa do funcionamento da máquina de tortura se assemelha a um manual de instrução. Cada detalhe da máquina é descrito com precisão e objetividade. A violência do sistema jurídico é muito mais brutal do que em O processo. O discurso do oficial tem uma tonalidade religiosa, ou seja, o personagem fala como um fiel adepto do que ele considera “um aparelho singular” (NCP,29). O próprio título da novela sugere que a colônia tem um sistema fundado na repressão e na punição dos colonizados. A descrição da máquina pelo oficial mostra que o homem é apenas um objeto sobre o qual o aparelho escreve a sua “obra-prima”, sua inscrição sangrenta: “a escrita [...] só cobre o corpo numa faixa estreita; o resto é destinado aos ornamentos” (ibid., p.43). O romance Vida e época de Michael K, diferentemente das obras de Kafka, apesar do tempo de guerra, não apresenta uma linguagem dura e seca. Como já foi mostrado, a obra apresenta dois pontos de vistas, alternando a narração em terceira pessoa (primeira e terceira partes) e a narração em primeira pessoa (segunda parte) do ponto de vista do oficial médico. A linguagem contrasta com a atmosfera de aprisionamento. Na segunda parte, o oficial médico escreve uma carta que traduz a sua compaixão diante de paciente tão singular quanto Michael. Assim diz o narrador em carta a Michael K: 148 A resposta é: porque quero saber a sua história. Quero saber como foi que você especificamente se juntou a uma guerra, uma guerra onde não tem lugar para você. [...] Você é igual a um bicho-pau, Michaels, cuja única defesa contra um universo de predadores é a sua forma estranha. Você é como um bicho-pau que pousou, sabe Deus como, no meio de um grande pátio de concreto (VEMK,173-174). A carta mostra que num tempo de sombras Michael consegue manter-se de alguma forma imune ao comportamento esperado para a situação na qual se encontra. A comparação de Michael com o bicho-pau é significativa. O bicho-pau é um animal que consegue se camuflar na vegetação, tornando-se imperceptível. Assim como ele, o personagem de Coetzee tenta se “esconder” do mundo em que vive. No entanto, o protagonista destoa do ambiente de desigualdade e segregação racial, parecendo um estrangeiro em sua terra natal. Nesse momento, ele é chamado pelo narrador de Michaels, como se a ele se juntassem milhares de outros seres humanos que também enfrentam os mesmos problemas. Em Benjamim, o narrador em terceira pessoa se caracteriza pela postura fria. Em várias situações, um personagem espera certo desenlace, mas vê sua previsão contrariada no desenrolar dos acontecimentos. Após o assassinato de Castana, Benjamim encontra uma prima da amada, mas ao invés de palavras de conforto, recebe uma cusparada nos olhos. Ao visitar o pai de Castana, no leito de morte, espera que o mesmo lhe peça para tomar conta da amada, mas é repreendido e advertido de que os seus passos eram vigiados pela polícia. O candidato político Alyandro tenta passar a imagem de um respeitável homem público, “o companheiro xifópago do cidadão”, portanto, uma espécie de irmão gêmeo do povo. Contudo, Alyandro/Aliandro é ao mesmo tempo bandido e pastor; marginal e empresário; asqueroso e atraente. Assim como nas obras kafkianas, a linguagem é dura e seca e traduz o mundo mercadológico e sombrio de Benjamim. 149 As obras de Kafka, Coetzee e Chico Buarque apresentam situações-limite que são frutos de momentos históricos críticos. As narrativas problematizam várias questões como o Estado, o indivíduo e a família, promovendo uma reflexão profunda acerca do momento social. Ao estudarmos os três escritores, entramos em contato com um tempo de crise. As obras exprimem um grito de angústia face às forças opressoras contra as quais o indivíduo se vê impotente. 6.2. NOS LABIRINTOS DA LEI O labirinto remete a um espaço de perigo constante, imbricado de caminhos que se confundem e podem levar o indivíduo à total perdição. Estar num labirinto é se deparar com o desconhecido, o medo e a insegurança. Nas narrativas estudadas, principalmente as de Kafka, a realidade aparece como um ambiente escuro, claustrofóbico e labiríntico. Os personagens se encontram sempre em dúvida diante dos impasses que enfrentam e não conseguem transpor as barreiras impostas por um mundo opressor. Todos os caminhos percorridos pelos “Senhores K.” e Benjamim espelham esse espaço obscuro e sombrio que os conduz ao desespero e à morte. O único que não sucumbe é Michael K. No entanto, ele vivencia ao longo da narrativa situações extremas que quase o levam à morte. Em O processo e Na colônia penal, a lei e o poder são privilégios de alguns homens apenas. Perguntas como: Onde está o poder? A quem pertence? Que lei é esta? Quais são seus efeitos? – saltam à vista dos leitores. A questão do poder é traduzida na imposição ou adoção de práticas como “abaixar a cabeça” e “aceitar a tudo sem resistir”. Todavia, o poder não é manifestado apenas em instituições, mas 150 em personagens, como o pai, o gerente, o advogado, o policial, o inspetor, o carrasco, a governanta, etc. A obra kafkiana faz o leitor refletir sobre o mundo burocratizado. Nas duas obras O processo e Na colônia penal, a questão da lei traz a temática da justiça e da opressão. A lei que visa manter a ordem numa comunidade e deveria abranger a todos de forma igualitária, revela outras facetas no texto de Kafka, na qual se apresenta como algo obscuro, opressor e inacessível. A parábola “Diante da lei”, em O processo, revela o caráter opressor da lei. Franz Kafka, advogado por formação e imposição paterna, conviveu com o mundo da jurisdição bem de perto. Muitos críticos ao longo dos anos vêm tentando interpretar a parábola, demonstrando a dificuldade de tal empreitada. A dificuldade se deve à maneira como a lei é representada por Kafka: misteriosa e labiríntica. Em O processo, a justiça moral se mescla com a “justiça dos sótãos”, invisível e camuflada por forças ocultas, mostrando uma sociedade onde a burocracia e a corrupção oprimem os homens. Esse poder dirige tudo e submete os homens aos seus desígnios. Alguns personagens de O processo, como foi dito, corporificam o poder e a influência das autoridades do tribunal. O tio Albert traz o peso da família de Josef K. e a necessidade da aceitação passiva da situação vigente. O comerciante Block, enredado nos labirintos judiciários, parece revelar o futuro de Josef K. A figura de Titorelli, o pintor, mostra-se ambígua, passível de inúmeras interpretações. Não sabemos ao certo o verdadeiro perfil do pintor. Apesar de artista, símbolo tradicional de liberdade, Titorelli está a serviço de uma justiça decadente e imoral. O trecho abaixo, proferido pelo pintor, desvela a corrupção da justiça: 151 Na lei – de qualquer modo não a li – consta, naturalmente, por um lado, que o inocente é absolvido, mas por outro ali não consta que os juízes podem ser influenciados. Ora, a minha experiência é justamente o contrário. Não sei de nenhuma absolvição real, mas sem dúvida de muitas formas de influência (P,153). Titorelli mostra que a companhia constante da burocracia é a corrupção, utilizada por indivíduos com o objetivo de ludibriar as leis e exercer influência sobre a sociedade. A absolvição real é descartada pelo pintor, pois ela exige que o tribunal reconheça os seus erros e duvide das suas próprias regras. Assim, a comprovação de inocência se revela como um caminho tortuoso, restando ao acusado a resignação. Além das contradições expostas na figura do pintor, o sacerdote apresenta uma dupla face, já que é também o capelão do presídio. É através dele que Josef K. toma conhecimento da parábola “Diante da lei”. A conversa final entre o camponês e o porteiro revela o conflito entre a autoridade hierárquica e o homem do campo: “O que é que você ainda quer saber?”, pergunta o porteiro. “Você é insaciável”. “Todos aspiram à lei”, diz o homem. “Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?” O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio, ele berra: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a” (ibid., p.215). Kafka apresenta nesta parábola críticas que faz ao longo de O processo, como a corrupção das autoridades e o caráter opressor da lei. O camponês se perde em um sistema burocratizado. Ele não deveria, como Josef K., ter aceitado as barreiras e sim tentado entrar com suas próprias forças. O camponês se distancia do seu alvo (a lei) ao se deter no primeiro obstáculo banal (o porteiro), esquecendo-se dos outros porteiros. É paradoxal o fato de o camponês só conseguir enxergar o 152 “brilho inextinguível” da lei quando já estava quase cego. A lei é apresentada como uma instância opressora à qual indivíduos se sujeitam por receio. Há também uma contradição na parábola. A lei aparece com uma face dupla: ao mesmo tempo em que exerce uma atração, impede o acesso de quem é atraído por ela. A figura do porteiro também é significativa, pois ele representa uma espécie de onipresença aos olhos do homem do campo. Em Sobre a questão das leis, Kafka faz considerações acerca das leis e o seu efeito sobre o ser humano. Ele estabelece uma relação entre a lei e a nobreza. Assim diz o escritor: “Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem” (in NE,123). Ser dominado por leis ocultas é o grande dilema dos personagens kafkianos. O camponês da parábola, ao deparar com o primeiro obstáculo (o porteiro), acomoda-se e aceita o veredicto de que não havia chegado o momento de entrar. Mas qual será o sentido dessa parábola em O processo? A parábola tem a função de transmitir um ensinamento. Não é por acaso o fato de ela ter sido contada por um sacerdote. Numa comparação com a situação narrada em O processo, vemos semelhanças entre Josef K. e o camponês. Assim como este, Josef K. também não conseguiu ter acesso à lei. Josef K. e o sacerdote travam uma grande discussão sobre os sentidos da parábola. Para K., o porteiro enganou o camponês, pois só lhe disse que a entrada estava destinada a ele quando já não podia mais entrar. O primeiro debate entre os dois se dá sobre o fato de o porteiro ter cumprido ou não o seu dever. Mas, afinal, 153 qual é o dever do porteiro? Impedir a entrada de estranhos? Segundo K., o camponês não era um estranho, pois a entrada estava destinada a ele. O sacerdote apresenta duas explicações para a parábola. Na primeira, o porteiro cumpriu o seu dever, não se deixou subornar, embora tenha recebido um presente do camponês, e nem se exasperou ao longo da empreitada de impedir a entrada. Na segunda interpretação, o porteiro é que foi enganado, já que desconhece o aspecto e o significado da lei, além de estar também subordinado ao camponês. O porteiro, para o sacerdote, está preso a uma obrigação e o camponês é efetivamente livre, apenas o acesso à lei está proibido. O sacerdote menciona que o porteiro não deve ser julgado, pois é “um servidor da lei, ou seja, pertencente à lei e, portanto, fora do alcance do julgamento humano” (P,220). Em seguida, acrescenta: “duvidar da sua dignidade seria o mesmo que duvidar da lei” (ibid., p.221). Pode-se dizer, então, que para o sacerdote a culpa é natural e a lei é inquestionável. A lei existe para corrigir uma falta e a autoridade garante a sua aplicação. Com a parábola, o sacerdote mostra a Josef K. a maneira como o homem deve agir diante da lei. E conforme exposto pelo sacerdote, a lei não deve ser questionada. Os guardas são os primeiros a avisar K. da inutilidade de lutar contra o poder do tribunal. No início, Josef K. se julga superior aos guardas e ao tribunal e menospreza a estrutura do processo, mas paulatinamente constata que a sua superioridade era apenas ilusória. Willen, um dos guardas, diz para ele: “esqueceu-se de que, não importa o que formos, diante do senhor somos no mínimo homens livres, e essa superioridade não é pequena” (ibid., p.13). Diante dessa afirmação, o protagonista não teve reação. O guarda usa o argumento da liberdade como exemplo de superioridade, mas o que o torna superior é o fato de pertencer e obedecer 154 cegamente às instâncias jurídicas. No entanto, K. se julga superior na qualidade de pensar e acredita que deve questionar a arbitrariedade do tribunal. Sem as chaves que lhe permitiriam revelar a completa ilogicidade da Lei que regia a sociedade em que vive, K. tenta encontrar apoio no advogado e no pintor. Contudo, eles também fazem parte dessa realidade opressora, que se estende por todos os cantos da sociedade. K. acredita viver num Estado de direito e, portanto, a lei não poderia se contrapor aos direitos e deveres da sociedade (P,10). Por isso, ele faz um longo discurso no tribunal contra a sua detenção e a corrupção. Ao invés de aplausos, fezse um grande silêncio na assembleia. A multidão no tribunal formava um único grupo que dispunha do poder de julgar, conforme constatado por K.: Que rostos ao redor dele! Olhinhos miúdos, negros, espreitavam de um lado para outro, as bochechas caídas, como se fossem bêbadas; as barbas compridas eram rígidas e ralas e, se alguém as agarrasse, a impressão seria de que elas formavam garras, e não a de que se estivesse segurando barbas. Sob as barbas, porém – e essa foi a verdadeira descoberta que K. fez –, brilhavam nas golas dos casacos insígnias de tamanho e cor diversos. Até onde era possível ver, todos tinham essas insígnias. Todos formavam um único grupo – os supostos partidos da direita e da esquerda – e quando, de repente, K. se virou, viu as mesmas insígnias na gola do juiz de instrução [...] [grifo nosso] (ibid., p.50-51). O protagonista se fragiliza quando percebe que todos na assembleia fazem parte da realidade incompreensível e opressora em que vive. O tribunal não representa o Estado de direito ao qual se agarra. O sentimento de angústia cresce na medida em que busca a chave de compreensão daquele mundo. A ausência de uma lei compreensível tem também importante papel em Na colônia penal. Assim como em O processo, encontramos personagens desnorteados diante de um mundo com regras obscuras. Na novela, no entanto, a arbitrariedade 155 das instâncias jurídicas se manifesta na violência física. O suplício em ambas as obras tem a duração de doze meses. A máquina de tortura, personificação da lei e da justiça, aparece inadequada à nova mentalidade da época. O oficial, conjeturando o que o viajante/explorador dirá ao novo comandante, afirma: [...] o senhor dirá talvez: “No meu país o procedimento judicial é diferente”, ou “No meu país o acusado é interrogado antes da sentença”, ou “No meu país o condenado tem ciência da condenação”, ou “No meu país existem outras punições que não a pena de morte”, ou “No meu país só houve torturas na Idade Média” (NCP,52-53). Com as suas suposições, o oficial demonstra ter percepção de outras estratégias de punição e via no viajante/explorador a possibilidade de ganhar um aliado. A atitude passiva deste diante do aparelho de tortura merece atenção. No momento da interrupção do funcionamento da máquina de tortura, o viajante/explorador começa a se perguntar se deve ou não intervir. No entanto, o viajante não esboça nenhuma reação. Ele não se pronuncia contra a barbárie, mas também não pactua com as ideias do oficial e do antigo comandante. Como estrangeiro, ele se isenta de qualquer obrigação moral para com a colônia, calandose por respeito ou medo dos costumes daquele lugar. Ele também não usa da compaixão para intervir, já que o outro lhe é completamente indiferente. O viajante/explorador vira cúmplice daquele sistema de tortura ao calar-se diante dele e esperar que o novo comandante tome atitudes para cessar aquela barbárie. As sentenças instituídas pelo antigo comandante não remetem a um código de leis, mas a algumas sentenças escritas ou desenhadas por ele, guardadas pelo oficial numa pequena carteira de couro. Percebe-se, portanto, que as sentenças não estavam à disposição da população, mas eram do conhecimento apenas das 156 autoridades da colônia. É interessante o fato do viajante/explorador não conseguir ler as sentenças apresentadas pelo oficial: – Leia – disse. – Não consigo – disse o explorador. – Já falei que não consigo ler essas folhas. – Olhe com atenção – disse o oficial e se pôs ao lado do explorador para ler com ele. Mas quando isso também não deu resultado, o oficial seguiu as linhas com o dedo mínimo, a uma altura bem distante do papel, como se não pudesse de forma alguma tocar a folha, para desse modo facilitar a leitura ao explorador. [...] O oficial começou então a soletrar a inscrição e depois a leu no conjunto. [...] O explorador se inclinava tanto sobre o papel que o oficial o colocou mais à distância com medo do contato; o explorador na verdade não disse mais nada, mas era evidente que continuava não conseguindo ler (NCP,61). O viajante/explorador se resigna diante do fato de não ter conseguido ler a sentença “Seja justo” apresentada pelo oficial. Nota-se no texto que o viajante se esforça: chega mais perto se inclinando sobre o papel, mas a atitude é inútil. Para o oficial, as folhas com as sentenças escritas ou desenhadas pelo antigo comandante são como uma relíquia e não devem ser tocadas. Segundo Gagnebin (2006:139), a não decifração das sentenças, sendo o viajante um homem experiente e culto, nos faz pensar se elas não seriam apenas frutos da imaginação do oficial em sua sede por justiça. Qualquer infração, no caso do condenado, a rebeldia ao superior, devia ser punida com o máximo de rigor e sofrimento. Só assim, para o oficial, a justiça era feita. É significativo o fato do condenado e do soldado serem descritos por Kafka como duas figuras grosseiras e primitivas, mais animalescas que humanas: “[...] o condenado parecia de uma sujeição tão canina que a impressão que dava era a de que se poderia deixá-lo vaguear livremente pelas encostas sendo preciso apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse” (NCP,29-30). A 157 condição animalesca do condenado e do soldado é reforçada pela sujeição aos desígnios do oficial. O oficial também adquire feições animalescas ao dar os últimos ajustes no aparelho de tortura: “[...] ora rastejando sob a máquina assentada fundo na terra, ora subindo uma escada para examinar as partes de cima”54 [grifo nosso] (NCP,30). Em sua partida, o viajante/explorador ameaça o soldado e o condenado que queriam embarcar com ele, numa tentativa de impedir que esses “homensanimais” dessem o salto para fora da colônia. Importa-nos refletir também sobre a questão da lei e do poder nas obras de Coetzee e Chico Buarque. Embora as instâncias jurídicas não sejam apresentadas de forma inalcançável, tal como na obra kafkiana, há um clima opressor a rondar a realidade inóspita dos personagens. Em Coetzee, Michael não consegue os documentos que o regime totalitário exigia para autorizá-lo a sair da cidade e é obrigado a driblar os bloqueios policiais a fim de chegar à fazenda tão sonhada. Ao ser preso pelo exército, submete-se às atividades físicas que seu corpo é incapaz de suportar. O controle sobre as pessoas é aterrorizador. Em carta a Michael, o narrador diz: “As leis são feitas de ferro [...]. Você pode emagrecer quanto quiser que elas não relaxam. Não existe lugar para almas universais, a não ser talvez na Antártica ou em alto-mar” (VEMK,175-176). As leis são severas e, portanto, não há escapatória. Michael, deslizando pelos tentáculos da história, consegue resistir ao encarceramento. Na visão do personagem, todos os seres humanos à margem do sistema representavam uma ameaça à ordem social: 54 “[...] bald unter den tief in die Erde eingebauten Apparat kroch, bald auf eine Leiter stieg, um die oberen Teile zu untersuchen” (IDS,7). 158 Eles prendiam os simplórios antes de todo mundo. Agora eles abriram campos para filhos de pais que fugiram, campos para gente que esperneia e espuma pela boca, campos para gente de cabeça grande e gente de cabeça pequena, campos para gente sem meios conhecidos de sustento, campos para pessoas expulsas da terra, campos para gente que encontram morando nos canos de água de chuva, campos para meninas de rua, campos para gente que não sabe somar dois e dois, campos para gente que esquece os documentos em casa, campos para gente que vive nas montanhas e explode pontes de noite. Talvez a verdade seja que basta estar fora dos campos, fora de todos os campos ao mesmo tempo. Talvez isso já seja uma conquista, por enquanto. [...] Eu escapei dos campos; talvez, se eu ficar na minha, escape da caridade também (VEMK,209). Os campos são, ao mesmo tempo, locais de observação dos indivíduos punidos e mecanismos de vigilância. O isolamento dos sujeitos à margem do sistema garante que se possa exercer sobre eles um poder absoluto. Por isso, nesse labirinto de opressão, “estar fora dos campos” era uma grande conquista para Michael. Nota-se, portanto, que em Vida e época de Michael K, assim como nas obras de Kafka, há uma grande organização que decide sobre a vida dos homens, controlando todos os seus passos. O personagem de Coetzee vive num mundo em ruínas, condenado à violência e à morte, por um tribunal também não visível. Toda uma atmosfera de opressão incide sobre ele. Josef K. e Michael K são seres permanentemente expostos, vulneráveis e indefesos. Ambos vivem numa situação de busca. O primeiro busca respostas para o seu dilema; o segundo, um lugar melhor no mundo. Não há um processo contra Michael K, mas o personagem está condenado a um destino implacável e é vítima de uma exclusão que progressivamente se acirra, a ponto dele não ter nem ao menos o direito sobre a própria vida. Em Benjamim, o controle sobre os indivíduos acontece de duas maneiras: através da profissão do personagem que o expõe constantemente ao mundo dos 159 holofotes; e também do clima político sombrio. O clima da ditadura civil-militar paira sobre o mundo do protagonista e instaura uma atmosfera de opressão e mistério. Ao visitar o pai de Castana, Benjamim é advertido de que seus passos estariam sendo vigiados. As autoridades acreditavam que ele os levaria ao esconderijo de Castana e seu namorado. “O doutor Campoceleste manifestava profunda apreensão pela filha; malgrado o desgosto que ela lhe causava, rezava sem cessar para que escapasse à investida de oficiais inescrupulosos” (BE,133). Todavia, ao contrário de Josef K., que procura desvendar o mistério por traz de sua detenção, Benjamim, enredado no labirinto da antiga paixão, não percebe a realidade que o circunda e mina a sua vida. Desse modo, ao vigiar a amada, Benjamim leva os agentes da repressão ao esconderijo de Castana. Nas obras selecionadas, a violência se manifesta de diferentes formas. Em Benjamim, a violência aparece como fantasmas a rondar o protagonista: pessoas são assassinadas, vigiadas e presas. Ao chegar no edifício onde mora, Benjamim vê um camburão e oito guardas armados prendendo um casal de vizinhos “com cara de estudantes” (ibid., p.135). A seguir, o narrador relata: “[...] e Benjamim ainda tem presente o tamanho do conforto que então sentiu” (ibid.). O protagonista parece sentir uma espécie de alívio, pois imaginara que os policiais estivessem atrás dele, a fim de localizar Castana. Depois que a polícia se foi, Benjamim “experimentou um sentimento de indignação, mas há sentimentos que não podem chegar atrasados” e só tornou a sair do apartamento após um mês (ibid.). O personagem se sente amedrontado e, ao se deparar com a cena da detenção do casal de estudantes, cogita refugiar-se entre as palmeiras. Em O processo, a violência é representada através da detenção arbitrária e de um processo penal que não admite a defesa do acusado. O saber era privilégio 160 absoluto da acusação. Na novela Na colônia penal, a violência se manifesta na desumanização do processo de punição, através da máquina de tortura e também na ausência de defesa por parte do acusado. O desnorteamento do acusado acaba se transformando numa espécie de suplício. Nas narrativas selecionadas, o Estado se apresenta como uma entidade que tem o poder absoluto sobre a vida da população. A ausência de defesa aparece em todas as obras. Na obra de Chico Buarque, personagens vivem nas trevas da clandestinidade, como Castana e seu namorado e o casal de estudantes. Eles vivem, portanto, numa prisão involuntária, desligados de relações fora do círculo da militância, como é o caso de Castana. Nessa época conturbada da ditadura no Brasil, as torturas sobre os corpos continuaram existindo como nas épocas mais remotas, longe dos olhos da sociedade. Em Na colônia penal, o condenado é impedido fisicamente e intelectualmente de qualquer reação. Fisicamente, por estar preso numa máquina de tortura. Intelectualmente, por desconhecer as provas da acusação. Em O processo, a dificuldade de ação acontece por causa dos limites impostos pelos mecanismos burocráticos. O desconhecimento das razões do processo por Josef K. impede a sua defesa. Em Benjamim, também não há possibilidade de escapatória por parte dos estudantes presos e de Castana. O protagonista fica indignado com a detenção dos estudantes apenas após o ocorrido, demonstrando a sua incapacidade de ação. O passado – os tempos de glória e a paixão avassaladora – impede Benjamim de compreender verdadeiramente o clima político do seu país. O personagem se silenciou diante da ditadura e este fato o faz seguir Castana, apesar dos conselhos do doutor Campoceleste. O mundo da política para Benjamim é representado como algo misterioso e distante ao qual não tem acesso. O assassinato de Castana 161 pareceu-lhe mais uma fatalidade do destino. Dessa forma, o protagonista se torna uma vítima da sociedade violenta e opressora que, pela omissão e silêncio, ajudara a criar. Os acontecimentos políticos dos seus anos de glória (década de 60) não são lembrados por ele, fixado nas lembranças de Castana. Enredado por uma vida de exposição, Benjamim entra num labirinto cuja saída é a morte. A morte é o desfecho da história de vida de Josef K., do oficial da colônia penal e de Benjamim. Apenas Michael K não sucumbe. O desfecho trágico aparece como alternativa para uma vida de solidão. Josef K., embora peça ajuda de estranhos como o pintor, a enfermeira, a lavadeira e o advogado, está completamente só. As orientações recebidas, ao invés de clarearem as dúvidas sobre o processo, obscureceram-no mais ainda. Já o oficial não consegue adeptos para o sistema punitivo da colônia e decreta a própria morte. Coetzee, trabalhando com uma outra realidade histórico-social (o apartheid), apresenta o poder inconteste do Estado e a opressão que exerce sobre os seres humanos indefesos e desamparados. Sujeito a condições hostis, impostas historicamente, Michael K é um indivíduo indefeso e acuado diante das autoridades que usam e abusam do poder. O Estado aparece envolto por uma névoa que produz na população a impressão de que ele é um poder inacessível e misterioso. Quando a máscara de intocabilidade não surte efeito e algum Michael K aparece, o braço da repressão tenta reprimir e oprimir. Nas palavras do narrador de Vida e época de Michael K, a vida do protagonista “foi um erro do começo ao fim”. A seguir, ele acrescenta: “É uma coisa cruel de dizer, mas vou dizer: ele é o tipo de sujeito que nunca devia ter nascido num mundo destes. Teria sido melhor se tivesse sido sufocado pela mãe quando ela viu o que ele era, e jogado na lata de lixo” (VEMK,180). Para o narrador, a sociedade não 162 tem lugar para personagens como Michael K, alheio à guerra e incapaz de um ato de violência. É preciso lutar, agir e resistir, segundo o narrador. No entanto, como já foi mencionado, a postura de Michael em relação à sociedade pode ser considerada também uma resistência. Ele não é dominado por sentimentos negativos num contexto de total opressão. Josef K. tenta resistir, mas no final, percebe que estava sozinho diante de forças que não controla: “Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado?” (P,228). As perguntas são muitas. Diante de um presente assombroso, viver parece um grande delito nas obras de Kafka, Coetzee e Chico Buarque. 6.3. SONHOS INTERROMPIDOS OU O PARAÍSO PERDIDO? A narrativa de Coetzee, cujo título Vida e época de Michael K nos leva inicialmente a um programa biográfico, inicia-se com a cena de nascimento do protagonista. Nascer, antes de qualquer coisa, pressupõe o desabrochar de um novo tempo, de uma esperança. No entanto, esse novo tempo é frustrado pelas condições históricas: violência, toques de recolher, preconceitos, etc. É contada não uma vida, mas o definhar de um personagem em busca de tão sonhada liberdade. Michael K sonha em voltar para uma fazenda em Prince Albert, onde nascera a sua mãe. Seu objetivo principal é escapar da violência e “voltar para um campo onde, se fosse morrer, poderia ao menos morrer debaixo de um céu azul” (VEMK,15). Ele só consegue alcançar a tão sonhada paz quando se isola do convívio humano e passa a viver como um “bicho”. A obra de Coetzee traduz um mal social de segregação, que obriga os personagens à auto-reclusão. Michael K é vítima da guerra. Ele vive num país em 163 face de transição e reorganização. Apesar da realidade caótica, Michael K se agarra ao ideal de liberdade. É este ideal que consegue mantê-lo vivo. Ele é relacionado à pedra pelo narrador. Segundo o narrador, Michael K: [...] é como uma pedra, um seixo que, depois de jazer em algum lugar cuidando de suas coisas desde o começo dos tempos, é de repente apanhado e passado ao acaso de mão em mão. Uma pedrinha dura, mas consciente de seu entorno, voltada para si mesma e para sua vida interior. Ele passa por essas instituições, campos, hospitais e Deus sabe mais o quê, como uma pedra. Através do intestino da guerra. Uma criatura não nascida, xucra. [grifo nosso] (VEMK,158). A relação com a pedra diz respeito ao fato de Michael K não se deixar corromper pelas mazelas do mundo. Ele é, na visão do narrador, uma “criatura não nascida”, abortada ou morta nas entranhas. Desde o nascimento, o personagem é discriminado pela mãe – que sentia vergonha do filho – e pela sociedade, que o repudiava em virtude de sua condição financeira e sua raça. Ele passa por diversas instituições e hospitais “como uma pedra”, solidificado pelos inúmeros obstáculos encontrados ao longo da vida. Sua “solidez” não está relacionada ao insensível ou desumano, mas ao fato de manter-se firme e inabalável às maldades humanas. Benjamim, diferentemente de Michael K, trilha um outro caminho. Ele não procura se libertar do mundo mercadológico em que vive, mas busca a redenção. O vínculo estabelecido com a Pedra do Elefante – uma enorme rocha avistada pela janela do apartamento – retrata a impotência de Benjamim diante do curso do tempo. Aqui, os sentidos da pedra diferem dos da obra de Coetzee. Benjamim tinha a sensação de penetrar no “tempo da pedra”: Benjamim estava certo de que, por mais que vivesse, jamais detectaria a mínima transformação na Pedra, pois no relógio das pedras a longevidade humana não conta um segundo. Mas de quando em quando ele tinha a sensação de penetrar na dimensão temporal da pedra (BE,53). 164 Há um paradoxo no vínculo entre Benjamim e a pedra. O tempo não passa para a pedra. Para Benjamim, é justamente a passagem do tempo que o leva à decadência. Em alguns momentos, ele “penetra na dimensão temporal da pedra”, ou seja, nas lembranças solidificadas da época de modelo fotográfico e da antiga namorada Castana Beatriz. Sua vida é alimentada por essa paixão antiga. Numa concepção simbólica, a pedra remete à dureza e à morte. Todos esses símbolos se relacionam com a história de vida do protagonista, cuja incapacidade de se adaptar à realidade que o circunda o leva à morte. É importante pensarmos também na figura do elefante. O animal é a imagem viva do peso, da lentidão e da falta de jeito. Mas também é símbolo da estabilidade, da força e da longevidade. Benjamim nutria pela Pedra do Elefante total empatia, a ponto de conhecer “cada poro, cicatriz e verruga” da rocha (BE,53). O personagem sabia que “a iria encarar diariamente até o fim da vida” (ibid.). Ele carrega o peso de um passado glorioso e um relacionamento afetivo frustrante e não consegue ter a força necessária para encarar e entender a passagem do tempo. O futuro não se mostra muito promissor: No momento Benjamim tem a clara noção de que seu futuro está amarrado. Insone há várias noites, vê nascer o sol pela sombra do edifício na Pedra, e sente um aperto na garganta. Seu futuro enrola-se como corda na cravelha da guitarra, que um guitarrista neurótico torcesse em demasia, estirando, esgarçando e arrebentando a corda no extremo oposto [grifo nosso] (ibid., p.54). No extremo oposto está o passado de Benjamim com a imagem de Castana que “chicoteia a esmo” (ibid.). A falta de solução para os seus problemas no presente transforma o futuro num redemoinho. 165 Benjamim traz o peso de um tempo sombrio que acaba por minar a sua voz, os seus projetos. O nascer do sol é visto através da sombra do edifício. A sensação é de um “aperto na garganta”. É significativo o fato de um espetáculo da natureza, símbolo de renovação e de recomeço, ser apreciado através das sombras. Benjamim parece estar preso numa caverna, sem possibilidade de libertação. O “nó na garganta” e a sensação de sufocamento parecem fazer parte da trajetória de Benjamim. Num outro momento, após ter levado Ariela ao restaurante, ele festeja a sua alegria, com direito a banho de chafariz e distribuição de suas roupas da época de modelo aos mendigos. Ao chegar ao apartamento, compartilha a euforia com a pedra: “Abre as três janelas, grita ‘boa noite, Pedra!’ e engasga, assaltado por um sentimento físico de euforia, não muito diferente de uma angústia na garganta” [grifo nosso] (BE,90). A “angústia na garganta” parece acompanhar Benjamim. O peso do passado esmaga e minimiza as possibilidades do tempo presente. Segundo o narrador, “Benjamim Zambraia tem do passado uma impressão tão nítida, que a atual paisagem mais lhe parece uma reminiscência” (ibid., p.134). Desse modo, Benjamim não desperta do sonho que é o seu passado ao lado de Castanha. Ele almeja viver um dia ao lado da amada. O sentido de futuro nas quatro obras se apresenta difuso. Os protagonistas vivem em sociedades que agonizam diante da intolerância, da burocracia e da ausência de alternativas. O “nó na garganta” também acompanha o personagem Josef K. Ao visitar o cartório, fica sufocado com o ar pesado e irrespirável do lugar. Na casa do pintor Titorelli também experimenta a mesma sensação. Esta sensação de sufocamento acentua o sentimento de completa perdição de K. diante do processo. 166 Ao contrário de Michael K, que tem a sua história de vida contada desde o nascimento, e de Benjamim, cujo passado conhecemos, sabemos pouco ou nada da biografia de Josef K. Benjamim teve os seus sonhos ceifados com a sua morte. Michael K, apesar da catástrofe a sua volta, busca a liberdade. Mas não sabemos quais os planos ou os projetos de Josef K. O motivo de ter chegado à detenção. Os possíveis “porquês” são inúmeros. De fato, a narrativa é atravessada pelas interrogações. O único objetivo de K. é descobrir a acusação que paira sobre si. Na novela Na colônia penal, o oficial responsável pela máquina de tortura sonha com a época em que a execução era um grande espetáculo, um momento festivo para a sociedade. A ênfase dada à máquina de tortura é tão grande, que ela ganha destaque na narrativa e o soldado condenado vira um mero coadjuvante. Como podemos perceber, os sonhos sempre alimentam a consciência dos indivíduos. Um bom exemplo é Michael K que sonha durante toda a narrativa com uma vida amena no campo. Este sonho é o combustível que o faz viver e resistir até à falta de comida. Benjamim sonha com a vida ao lado de Castana e a volta aos tempos áureos. Todavia, os seus sonhos se convertem numa grande utopia, sem possibilidades de concretização. Ele vive como num paraíso perdido. Já Josef K. vive em busca de um único objetivo: se livrar da acusação. No entanto, diante de uma lei inacessível e inalcançável só resta a resignação: “como um cão” (P,228). Josef K. empreende uma tortuosa trajetória na tentativa de entender e intervir na realidade opressora. Sua morte, assim como a de Benjamim, acontece longe dos olhos da sociedade. A tortura psicológica praticada contra o personagem kafkiano se assemelha à tecnologia da máquina de tortura da colônia penal, que tinha como objetivo prolongar ao máximo o sofrimento humano. 167 A realidade, como um labirinto, aparece como um emaranhado de caminhos obscuros e perigosos. Sair do labirinto é uma tarefa quase impossível. Michael K foi o único que conseguiu se libertar de uma prisão “física”, como o hospital de reabilitação e o “campo de reassentamento”, e viver longe da guerra que o circundava. “Universo labiríntico”, “labirintos da dor”, “labirintos subterrâneos” e “labirintos fantasmais” são expressões que traduzem a realidade de Josef K., da colônia penal, de Michael K e de Benjamim, respectivamente. Verifica-se ao longo do trabalho, que as obras apresentam personagens que convivem com o desenvolvimento da tecnologia e dos instrumentos de opressão e manipulação das estruturas político-econômicas. O mundo assume os contornos de um labirinto, com um emaranhado de veredas, que ao invés de levarem a uma saída, aprisionam. A realidade nas quatro obras literárias se caracteriza pela burocracia que impede o conhecimento das estruturas de poder, a violência das instâncias jurídicas e o completo aturdimento dos indivíduos diante de forças opressoras. Nas narrativas, a violência do sistema jurídico é explícita. Os homens são transformados em simples objetos. Há a passagem dos suplícios públicos, expresso em Na colônia penal, para o castigo prisional, em Vida e época de Michael K. A população marginalizada é colocada em grandes campos de concentração e, em caso de morte, os homens são “enterrados na estepe em túmulos sem identificação” (VEMK,185). Em Benjamim, personagens que representam uma ameaça para a estrutura política e social são assassinados, como Castana, o amante Douglas e vizinhos do protagonista. Benjamim, alheio à realidade social e política em virtude de sua obsessão por Castana, não consegue recuperar o paraíso perdido e encontra a 168 morte. Os órgãos de repressão, que eliminavam os oposicionistas durante a ditadura civil-militar, são substituídos por grupos de extermínio que visavam liquidar inimigos. Benjamim morre nessas circunstâncias, como suposto amante de Ariela. Portanto, os “Senhores K.”, Benjamim e os condenados da colônia penal são triturados pela engrenagem social. Desprovidos de bússola, eles acabam se perdendo. Desse modo, independente da temática desenvolvida por cada autor, há um sentimento comum aos protagonistas. Todos se sentem inadaptados ao mundo que os rodeiam, humilhados como máquinas sem vontade própria. Apesar de escritas em épocas e contextos diversos, podemos dizer, guardadas as devidas proporções, que há uma aproximação intelectual entre as obras. Aproximação em virtude de cada autor abordar as angústias e misérias do ser humano ao se confrontarem com seu tempo. Hoje, no início do século XXI, é importante refletirmos sobre a presença das desigualdades entre os homens, das dicotomias preconceituosas criadas entre ricos e pobres, brancos e negros, periferia e centro, a fim de evitarmos horrores como o Holocausto e o apartheid, entre outros. Nesse caminho, a obra literária se manifesta como uma ferramenta poderosa capaz de mostrar as “salas desconhecidas” e os “corredores asfixiantes” do nosso mundo. 169 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao final dessa etapa, admitimos que estudar a literatura de Franz Kafka, Coetzee e Chico Buarque mostrou-se um empreendimento nada fácil. A leitura das obras selecionadas foi uma grande experiência. Aprendemos com esses autores que a obra literária exerce um poder muito grande sobre a vida, na medida em que problematiza o mundo e resiste ao tempo. A obra literária desperta, mobiliza, oferece referências, encadeia contextos... Aspectos da nossa vida cotidiana materializam-se na escrita. A obra de Kafka é do início do século XX e as de Coetzee e Chico Buarque, do final do mesmo século. Mas é também uma reflexão sobre toda a ação humana, independente do tempo histórico. As obras literárias atravessam as rígidas muralhas do tempo. Cenas cotidianas e banais emparelham-se a acontecimentos atemporais. O pensador russo Bakhtin (2003:362) diz que as obras dissolvem as fronteiras do tempo, vivem no “grande tempo”. Cada leitor a partir das suas vivências e da sua cultura constrói sentidos diferentes para as obras. Como mencionamos no início do nosso trabalho, todo século deixa sua marca na literatura que ele cria. O século XX, época de publicação das obras selecionadas, foi marcado por guerras, rebeliões, atentados terroristas, além de inúmeras catástrofes naturais. Esses abalos sociais, políticos, econômicos e científicos produziram uma literatura marcada por essas tensões, seja na superfície, seja em sua profundidade. Dessa forma, este trabalho buscou construir sentidos para os discursos, as tensões, apresentados pelos autores. Como comparar obras do início do século XX com obras do final do mesmo século? Apesar de plurais as maneiras como cada autor pensou o seu mundo, é possível refletir sobre o que existe de comum. O nosso trabalho tentou fazer um 170 estudo sobre a realidade labiríntica que envolve os personagens das obras selecionadas. Esta interpretação confere ao nosso trabalho o caráter de apenas um exercício de leitura que não tem a pretensão de ser a chave de compreensão das obras, visto que elas não são sistemas fechados, mas discursos que se agregam a outros, dialogando e construindo novos sentidos. É como se “as obras superassem o que foram na época da sua criação”, diz Bakhtin (2003:363). Lendo as obras, somos tentados a ver o mundo a partir da ótica dos indivíduos humilhados e indefesos, submetidos a relações sociais injustas e perversas. Essa condição hostil é imposta pela realidade sombria que rege o destino dos personagens. A leitura das duas obras de Kafka nos leva inicialmente a imaginar os horrores dos campos de extermínio, principalmente a novela Na colônia penal. É por este motivo que muitos críticos têm ressaltado o tom profético das obras kafkianas. Esta concepção nos remete ao conceito apresentado pelo pensador russo Bakhtin (ibid., p.362) sobre o “grande tempo” das obras literárias. Para ele, “as grandes obras da literatura são preparadas por século; na época de sua criação colhem-se apenas os frutos maduros do longo e complexo processo de amadurecimento” (ibid.). Não podemos também reduzir as obras apenas ao momento de sua criação. Do mesmo modo, não podemos “estudar a literatura isolada de toda a cultura de uma época” (ibid.). Pois bem, além desse suposto “tom profético”, notamos uma linha tênue entre a criação literária de Kafka e os escritos de cunho pessoal, como as cartas e os diários. A coabitação com a família, o difícil relacionamento com o pai e o trabalho estafante foram um tormento para Kafka. No entanto, não se deve submeter a obra do autor a sua vida pessoal. Mas como mostramos no nosso trabalho, talvez aí 171 resida a inspiração para a criação de um personagem como Josef K., emparedado por um poder arbitrário, indefeso diante de uma acusação misteriosa. A instauração de uma máquina de tortura em Na colônia penal e a atitude dos superiores de Josef K. nos alerta para a incapacidade de reflexão sobre os próprios atos. Personagens cumprem ordens sem saber qual o seu verdadeiro sentido e de onde são dadas. Otto Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela deportação de milhões de judeus para os campos de extermínio nazistas, é um dos modelos mais famosos dessa incapacidade de pensar e julgar, pois ele se acreditava um mero “cumpridor de ordens”. Enviar os judeus para a morte significava cumprir da melhor maneira possível as ordens que lhe eram designadas. Por trás dessa questão está a dura constatação de que não se tratava de um caso de sanidade mental. E quanto a sua consciência, Eichmann ficava com a consciência pesada apenas quando não fazia aquilo que lhe ordenavam55. Eichmann, assim como os guardas de O processo e o oficial de Na colônia penal, representam uma nulidade pronta para obedecer qualquer voz imperativa. São, portanto, instrumentos de um poder tirânico que se julga detentor dos direitos sobre a vida e a morte de outrem. Como analisamos no nosso trabalho, essa realidade labiríntica não se resume à literatura de Kafka. Em Vida e época de Michael K, a África se transforma num cenário de imensidão e silêncio, abandono e desesperança. Coetzee, nascido na África do Sul, conviveu de perto com o caldeirão efervescente do apartheid. Embora a obra não mencione o termo apartheid, este contexto social se materializa nas diversas vivências do personagem Michael K: toques de recolher, saques pela cidade, passes para ir e vir, trabalhos forçados e grandes campos de concentração. Esta realidade labiríntica dialoga com as narrativas kafkianas. Há um clima 55 Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. 6. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2006a. 172 aterrorizador a rondar os personagens. Estes, no abismo social e existencial, aparecem como uma massa de prisioneiros. As metáforas animalescas utilizadas por Coetzee para caracterizar Michael K, conforme mostramos no trabalho, dão a dimensão exata do lugar e da condição dessas pessoas na sociedade. O confronto com este ponto de vista nos ajuda a compreender que a realidade precisa ser diferente. Nesse sentido, a literatura é uma arma poderosa, pois ela é um campo fecundo de sentidos, ou seja, discursos, ideias, problematizações... Na obra de Chico Buarque Benjamim, a ditadura civil-militar aparece como um cenário misterioso e sombrio. Nela podemos vislumbrar relações entre a políciajustiça kafkiana e a polícia-política brasileira que visava aniquilar todos aqueles que por ventura caíssem em suas garras. Este momento conturbado da história brasileira foi abordado sutilmente pelo autor através de expressões como: “investida de oficiais inescrupulosos”, “casal foragido da lei” e “encontros clandestinos”. O tratamento dado à política mostra os problemas enfrentados por vários artistas e intelectuais dos anos 60 e 70 que não podiam dizer abertamente as suas opiniões, tolhidos pelo sistema opressor que se valia de atos institucionais para instaurar o terror. Os sentidos da realidade apresentada por Chico Buarque são construídos por cada leitor. O escritor não vive isolado, carrega a vivência pessoal de uma geração que enfrentou o combate à ditadura civil-militar. Dessa forma, tentamos mostrar no nosso trabalho, que os personagens das quatro obras em destaque parecem ter caído dentro do grande caldeirão da história. A realidade apresentada por Kafka no início do século XX se atualiza nos outros escritores. Nas narrativas percebemos que questões como a miséria, a desigualdade, a burocratização e a opressão sempre existiram na história da humanidade. A literatura demonstra a sua capacidade de construir críticas e 173 discursos sobre assuntos considerados “verdades” pela sociedade. Assim, as reflexões apresentadas neste trabalho não se esgotam, mas estarão sempre abertas ao diálogo. 174 8. INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 8.1. OBRAS CITADAS ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra. Os autos do processo. Tradução e posfácio de Modesto Carone. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007. ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. ______. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. 6. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2006a. ______. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 6. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2006b. ATTWELL, David. “An exclusive interview with J. M. Coetzee”. Kultur&Nöje. 8 December 2003. Disponível em <http://www.dn.se/kultur-noje/an-exclusive-interviewwith-j-m-coetzee-1.227254>. Acesso em: 16 jan. 2010. ______. J. M. Coetzee south Africa and the politics of writing. 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