Felipe da Silva Braga
Igreja, sacramento de salvação: a comunidade cristã
como testemunha e continuadora da salvação de Cristo
no mundo
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do
grau de mestre pelo Programa de Pós- graduação do Departamento
de Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Orientadora: Profª. Ana Maria Tepedino
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
2
Felipe da Silva Braga
Igreja, sacramento de salvação: a comunidade cristã
como testemunha e continuadora da salvação de Cristo
no mundo
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do
grau de mestre pelo Programa de Pós- graduação do Departamento
de Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Profª. Ana Maria de Azeredo Lopes Tepedino
Orientadora
Departamento de Teologia- PUC-Rio
Prof. Abimar Oliveira de Moraes
Departamento de Teologia- PUC-Rio
Prof. Luiz Fernando Ribeiro Santana
ISTARJ
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial de Pós Graduação e Pesquisa
do Centro de Teologia e Ciências Humanas- PUC-Rio
Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 2008
3
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem a autorização da
Universidade, do autor e do orientador.
Felipe da Silva Braga
Graduado em Teologia pela PUC-Rio e em Filosofia
pela Faculdade Eclesiástica de Filosofia João Paulo II,
da Arquidiocese do Rio de Janeiro. É padre desde
julho de 2005 e está incardinado na Arquidiocese do
Rio de Janeiro.
Ficha Catalográfica
Braga, Felipe da Silva
Igreja, sacramento de salvação: a
comunidade cristã como testemunha e
continuadora da salvação de Cristo no mundo /
Felipe da Silva Braga; orientadora: Ana Maria
Tepedino. – 2008.
122 f.; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Teologia)–
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. Teologia – Teses. 2. Igreja. 3.
Sacramento. 4. Sinal. 5. Símbolo. 6. Cristo. 7.
Salvação. 8. Revelação. I. Tepedino, Ana Maria.
II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.
CDD: 200
4
Agradecimentos
À minha orientadora, Professora Ana Maria A. Lopes Tepedino, pelo estímulo,
atenção, carinho e profissionalismo com que me auxiliou na elaboração deste
trabalho.
Ao CNPq e à PUC- Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
Aos meus grandes amigos Wagner Toledo e Abimar Oliveira de Morais. Estes
foram os grandes responsáveis pela minha entrada no curso de mestrado e
continuidade nos estudos.
Aos professores e alunos da PUC- Rio, que fizeram parte deste importante
período da minha vida.
Aos meus familiares e amigos que de alguma forma contribuíram para esta
conquista.
5
Resumo
Braga, Felipe da Silva; Tepedino, Ana Maria; Igreja, sacramento de
salvação: a comunidade cristã como testemunha e continuadora da
salvação de Cristo no mundo. Rio de Janeiro, 2008, 122p. Dissertação de
Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Toda Revelação cristã é essencialmente sacramental. A sacramentalidade
constitui uma importante realidade sem a qual a humanidade não poderia
compreender e muito menos aderir à proposta divina. Na História da Salvação
Deus sempre se manifestou por meio de sinais, denominados sacramentos. Estes
são os instrumentos por meio dos quais Deus comunica a sua Graça e salvação,
entre os quais está a Igreja. Após o seu retorno para junto do Pai, a Igreja se
tornou o grande sinal comunicador e continuador da salvação operada na cruz,
símbolo da pessoa de Cristo no meio da humanidade.
Palavras-chave
Igreja; sacramento; sinal; símbolo; Cristo; salvação; Revelação.
6
Abstract
Braga, Felipe da Silva; Tepedino, Ana Maria; Church, sacrament of
salvation: the Christian community as witness and continuator of the
salvation of Christ in the world. Rio de Janeiro, 2008, 122p. MSc.
Dissertation - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
All Christian Revelation is essentially sacramental. The sacramentalidad
constitutes an important reality without which the humanity could not understand
much less to adhere to the proposal divine. In the History of the Salvation God
always it was disclosed by means of signals, called sacraments. These are the
instruments by means of which God communicates its Favour and salvation,
between which it is the Church. After his return for next to the Father, the Church
if it became the great signal communicator and continuator of the salvation
operated in the cross, symbol of the person of Christ in the way of the humanity.
Keywords
Church; sacrament; signal; symbol; Christ; salvation; Revelation.
7
Sumário
1. Introdução
9
1ª parte: Fundamentos
14
2. Simbolismo sacramental
15
2.1. Problemática
15
2.2. Definição de símbolo
17
2.3. Fundamentos para um simbolismo sacramental
21
2.3.1. Revelação
21
2.3.2. Constituição antropológica
23
2.4. Sacramentos, símbolos de salvação
25
3. Cristo, sacramento original
32
3.1. Introdução
32
3.2. A Encarnação como fundamento da sacramentalidade cristã
33
3.3. Cristo, sacramento do Pai
41
3.4. A morte de Cristo como sacramento da sua entrega
43
3.5. A ressurreição de Jesus como sacramento da nova vida
47
3.6. A ressurreição de Jesus como sacramento da esperança
53
2ª parte: A Igreja
56
4. Compreensão de Igreja
57
4.1. Introdução
57
4.2. Definição de Igreja
57
4.3. Imagens da Igreja
60
4.3.1. Povo de Deus
61
4.3.2. Corpo de Cristo
65
8
4.3.3. Templo do Espírito Santo
69
4.4. A Igreja no projeto de Deus
71
4.4.1. A Igreja como obra do Espírito Santo
72
4.4.2. Igreja de comunhão
76
4.4.3. Povo de Deus ou casa do Pai?
79
4.4.4. Proposta do Vaticano II
80
4.4.5. Hierarquia e laicato
82
4.4.6. Histórico e definição etimológica do leigo
87
4.4.7. O tríplice múnus dos fiéis
88
4.4.8. Espiritualidade de comunhão
90
5. A Igreja, sacramento de salvação
92
5.1. Introdução
92
5.2. Sacramentos, prolongamento da sacramentalidade de Cristo
92
5.3. A Igreja, sacramento radical
97
5.4. Ritos sacramentais: manifestações da sacramentalidade eclesial 102
5.4.1. Batismo
105
5.4.2. Eucaristia
108
5.4.3. Crisma
112
6. Perspectivas
116
7. Referências bibliográficas
119
9
1
Introdução
Motivação
Há uns quatro anos, durante a graduação, tive uma disciplina chamada
“Introdução aos sacramentos”, onde o professor abordou, entre outras coisas, a
temática da Igreja como sacramento. Pra mim foi surpreendente por ser também
uma novidade. O que eu sabia até ali era que existiam sete sacramentos somente,
tal como me disseram na catequese. O tema me encantou.
De fato eu já tinha uma queda ou um gosto todo especial pela
sacramentologia, chama-me muito a atenção, por exemplo, a idéia dos sinais, do
mistério, da mística, dos símbolos... Não foi à toa que passei a freqüentar a Igreja
Católica a partir de uma bela celebração da Eucaristia que participei num domingo
de Ramos: incenso, cantos, ramos... A idéia dos sinais me encantou
profundamente.
E fiquei ainda mais empolgado quando descobri que a Igreja é também um
sinal de Cristo neste mundo, um sacramento. Percebi que ela é muito mais que
uma instituição burocrática/ humana, mas que é a própria presença continuadora
da salvação de Cristo nesta vida. Isto nos dá uma consciência muito mais
profunda e diferente da nossa responsabilidade e missão neste mundo. Muda a
consciência que a Igreja tem de si mesma e valoriza sua presença.
O interesse pelo tema surge, portanto, como o resultado da minha própria
experiência de fé, enquanto Igreja. Surge ainda do desejo de fazer com que
também outros conheçam essa realidade tão importante para nós. Importante
porque muda, conforme já expus, a consciência que a Igreja tem de si mesma, da
sua realidade, missão e responsabilidade neste mundo. É neste sentido que
pretendemos trabalhar o tema.
Breve histórico
Por muito tempo existiu na Igreja uma compreensão restritiva a respeito dos
sacramentos. Essa palavra era utilizada e pronunciada unicamente com referência
aos sete sacramentos ou ritos sacramentais. Entretanto, é preciso dizer que essa
10
restrição consiste num empobrecimento da sacramentologia. A realidade
sacramental não é suficientemente expressa se reduzida ao setenário litúrgicocelebrativo. Existem outros centros de sacramentalidade que, longe de se oporem
aos sete sacramentos ou diminuírem o seu valor, constituem o próprio quadro para
a sua compreensão, celebração e realização na vida.
Não se trata de nenhuma novidade. Nos primeiros séculos, o termo
sacramento era empregado para designar também outras realidades distintas dos
sete ritos sacramentais, como Cristo, a Igreja, a Escritura, a Páscoa, a Encarnação,
a Quaresma, o mundo, etc. Foi apenas através de um lento processo histórico que
se chegou a uma diferenciação entre os sacramentos maiores (Batismo e
Eucaristia) e os demais sacramentos, bem como entre estes e os outros sinais
sagrados.
Segundo D. Boróbio, foi sobretudo a partir da controvérsia com os
reformadores, na Idade Média, que a expressão passou a indicar unicamente os
sete sacramentos.
Para os protestantes a essência do sacramento estava na
promessa por parte de Cristo e no sinal externo, que, para eles, se cumpria apenas
no Batismo e na Eucaristia. Negavam explicitamente a afirmação católica da
eficácia ex- opere operato. Isto levou a uma fixação e utilização mais restrita do
conceito. Daí por diante, ele só se aplicaria às realidades que preenchem estes
requisitos: instituição por parte de Cristo, estrutura de matéria e forma, eficácia,
intenção por parte do ministro e disposições por parte do sujeito.
O Concílio Vaticano II utilizou a expressão em seu sentido mais original,
aplicando-o a Cristo, à Igreja, e, num sentido mais difuso, ao cristão, a todo
homem, às realidades criadas. Hoje, a teologia baseando-se nas fontes da
revelação e no magistério da Igreja, não hesita em denominar “sacramento”
também outras realidades que ultrapassam o campo do setenário sacramental. Não
se trata de um simples nominalismo (nome sem conteúdo) nem de um
pansacramentalismo (tudo é sacramento). Trata-se de reconhecer a essência
sacramental nas diversas realidades, reconhecendo os seus elementos comuns e
diferentes, de tal modo que a intercomunicação e a comparação nos revelem toda
a riqueza aí encerrada 1.
1
Cf. BOROBIO, D. (Org.). Organismo sacramental pleno: realidades sacramentais e dimensões
de sacramento, em A celebração da Igreja. Vol.1. São Paulo: Loyola, 1990, p. 293-294.
11
Problemática
Mas em que sentido a Igreja é sacramento de Cristo? O Concílio Vaticano
II, motivado por alguns teólogos, recuperou da Patrística a extensão do conceito
sacramento. Mas o modelo sacramental adotado pelo Concílio Vaticano II parece
ter sido assimilado e transmitido pela catequese que temos recebido? Sendo
sacramento, a Igreja é um prolongamento da corporeidade de Cristo sobre a terra.
Para que existe esse prolongamento? Quais as implicações desse pensamento para
a doutrina e para a pastoral da Igreja?
Hipóteses
Cristo é sacramento primordial da salvação, o sacramento de Deus por
excelência2: “Quem me vê, vê o Pai” 3. Seus atos, sua vida são a manifestação do
amor divino pelos homens, sinais e causa de salvação. O Filho de Deus tornou-se
verdadeiramente homem e no encontro com ele temos um encontro pessoal com o
Deus vivo, pois aquele homem é, pessoalmente, o Filho de Deus. “O encontro
humano com Jesus, é, pois, o sacramento de encontro com Deus” 4.
Porém, como podemos encontrar o Senhor glorificado se após a sua
ressurreição e glorificação ele desapareceu do nosso horizonte visível?
Após sua ressurreição e ascensão, “Cristo torna sua presença ativa de graça
visível e palpável entre nós, não diretamente por sua corporeidade, mas
prolongando, por assim dizer, sua corporeidade celeste sobre a terra, em formas de
manifestação visíveis, que exercem entre nós a ação de seu corpo celeste. São
precisamente os sacramentos o prolongamento terrestre do “corpo do Senhor”. E
concretamente a Igreja”5.
O mistério da redenção através da corporeidade se fundamenta no próprio
mistério da encarnação e da redenção cristã. Na pessoa de Cristo a corporalidade
se tornou fonte de glória, redenção e santificação para nós e tornou possível o
encontro humano recíproco entre Cristo e a humanidade, após a sua ascensão.
2
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro com Deus. Petrópolis: Vozes, 1967,
p.20.
3
Cf. Jo 14,9.
4
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 47.
5
Cf. Ibid., p. 48.
12
Neste sentido, “a Igreja terrestre é a aparição dessa realidade de salvação no
plano da visibilidade histórica. Ela é a comunidade visível da graça”
6
,
“manifestação visível da graça redentora de Cristo na figura de um sinal social”.
“Ela é, pois, de modo quase idêntico, “o Corpo do Senhor”” 7, o “sacramento
primordial”
8
de Cristo. Nesse sentido escreve Henri De Lubac: “A Igreja é um
mistério, isto é, um sacramento. Lugar total dos sacramentos cristãos, ela é ela
mesma o grande sacramento que contém e vivifica todos os outros. Ela é aqui em
baixo o sacramento de Jesus Cristo, como Jesus Cristo, ele mesmo, é para nós, na
sua humanidade, o sacramento de Deus” 9.
Seus atos devem, como em Jesus, encarnar a palavra do Pai e torná-la
palpável aos homens pelo testemunho, pela vivência da comunhão e do amor, pela
solidariedade aos mais pobres. Isto significa ser o sinal vivo da presença ativa de
Cristo no mundo.
Método
Nosso ponto de partida será o livro Cristo, Sacramento do encontro com
Deus (fonte primária), de E. Schillebeeckx, que, se baseando em testemunhos
explícitos da Escritura e dos Padres da Igreja, deu uma importante contribuição à
Teologia Católica ao retomar e aplicar, na modernidade, o conceito “sacramento”
tal como era compreendido no início da Igreja. A leitura de Schillebeeckx nos
introduz também numa das grandes perspectivas teológicas do Vaticano II, que
sob a influência de Congar, Rahner e De Lubac retomou e definiu a Igreja como
Sacramento na Constituição Dogmática Lumen Gentium10.
Nosso método, portanto, consistirá no estudo de fontes que tratam do tema
(livros, artigos...), bem como dos documentos conciliares e pós-conciliares que
expressam a retomada dessa concepção na teologia católica atual, entre eles
Lumen Gentium e Puebla.
6
Cf. Ibid., p. 53.
Cf. Ibid., p. 54.
8
Cf. Ibid., p. 60.
9
Cf. DE LUBAC, Henri. Méditation sur l’Eglise. Paris: Aubier, 1968, p. 164: “L’Eglise est un
mystére, c’est-à-dire, aussi bien, un sacrement. <<Lieu total des sacrements chrétiens, elle est ellemême le grand sacrement qui contient et vivifie tous les autres. Elle est ici-bas le sacrament de
Jésus-Christ, Comme Jésus-Christ lui-même est pour nous, dans son humanité, le sacrament de
Dieu”.
10
“A Igreja é como que sacramento isto é, sinal e instrumento da união íntima com Deus e da
unidade de todo gênero humano [...]” Cf. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM,
n.1 em DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II. São Paulo: Paulus, 1997.
7
13
Nosso trabalho será constituído de duas partes. Na primeira, colocaremos as
bases da nossa pesquisa, os fundamentos e as definições para se compreender a
Igreja. Esta primeira parte será subdividida em dois capítulos. O primeiro,
antropológico: neste abordaremos a questão dos símbolos, definição, história e
compreensão do conceito “sacramento” e em que sentido devem ser
compreendidos os símbolos na teologia católica. O segundo, cristológico: Neste,
trataremos de Cristo como sacramento revelador do Pai. Trata-se de descobrir a
cristologia subjacente à questão da sacramentalidade eclesial e porque a Igreja foi
escolhida como continuadora da salvação cristã para os tempos hodiernos.
A segunda parte deste trabalho consiste no centro da nossa pesquisa e
também está subdividida em dois capítulos. No primeiro, faremos uma reflexão
sobre a compreensão da Igreja: fundamentos, definições, imagens da Igreja na
Sagrada Escritura, a Igreja de comunhão... Trata-se de uma fundamentação
necessária para se chegar ao segundo capítulo, centro da nossa reflexão, a Igreja
como testemunha e sacramento da salvação. Este segundo capítulo é ápice da
nossa pesquisa. Nele trataremos da Igreja como o sinal social da salvação do
Senhor entre nós. Também trataremos dos ritos sacramentais como expressões da
sacramentalidade eclesial.
Tendo em vista a vasta bibliografia sobre o assunto e as várias
possibilidades de abordagem do mesmo, vamos nos restringir àquilo que julgamos
ser o mais importante e útil para a nossa pesquisa.
14
1ª Parte
Fundamentos
Esta primeira parte da nossa pesquisa consiste de dois capítulos e tem como
objetivo estabelecer os alicerces do nosso trabalho. No primeiro, trataremos da
característica simbólica dos sacramentos: o que é o símbolo, sua função, sua
eficácia e de que modo os sacramentos são entendidos como símbolos de
salvação. A idéia deste primeiro capítulo é mostrar que enquanto símbolo os
sacramentos comunicam aquilo que simbolizam. E assim, a Igreja.
No segundo, o foco será a Cristologia: Cristo, sacramento original. Neste
segundo capítulo trataremos da vida de Cristo, seu exemplo, a salvação operada
na cruz, sua ressurreição. Enfim, a vida e a pessoa de Cristo como o grande
sacramento revelador de Deus à humanidade. Cristo é a razão pela qual a Igreja
existe, e os mistérios salvíficos, aquilo que ela comunica à humanidade. Portanto,
a Cristologia constitui a base da eclesiologia. Daí a sua importância.
15
2
Simbolismo sacramental
2.1
Problemática
Poucas vezes as categorias simbólicas estiveram tão ameaçadas como na
nossa cultura atual. O imperialismo da técnica e do racionalismo instrumentalcapitalista sobre o valor da pessoa, mesclado a um contexto de indiferença e
incredulidade religiosas, tem subjugado o símbolo a uma situação de fragilidade e
pobreza, que afeta o sentido da vida e a identidade do gênero humano neste
mundo11.
A desertização do sentido, a perda da identidade humana e a carência de
acolhida em uma sociedade pós-revolucionária e neoliberal têm levado muitas
pessoas à busca dos neomisticismos e esoterismos, ofertados facilmente nos
“mercados” da fé12.
Por um lado, o objetivismo racionalista, que não enxerga a possibilidade de
um encontro do humano com o transcendente; por outro, o subjetivismo
psicologizante ingênuo, que tem como principal proclamação o encontro imediato
do humano com o divino. De um modo ou de outro, trata-se de uma tentação da
modernidade por se edificar sobre uma experiência e uma razão sem mediações13.
A recuperação do simbolismo identifica-se com uma proposta de
contraposição à cultura e à situação histórica atuais, responde a uma necessidade
de re-humanização da nossa sociedade, bem como à mudança de estilo de vida14.
Trata-se de recuperar o primado da pessoa, com todas as suas dimensões, frente ao
progresso da técnica e do intimismo inconseqüente.
Já há algum tempo, sobretudo a partir do século passado, as ciências
humanas vêm reconhecendo que o símbolo (pensamento mítico-simbólico)
contém uma verdade que razão alguma pode esgotar. As catástrofes, barbáries e
montanhas de cadáveres produzidas nestes últimos tempos têm nos interrogado
11
Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA, J.T. (org.). Dicionário de conceitos fundamentais do
cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 779.
12
Cf. MARDONES, J.M. A vida do símbolo: a dimensão simbólica da religião. São Paulo:
Paulinas, 2006, p. 7.
13
Cf. Ibid., p. 8-9.
14
Cf. Ibid., p. 10.
16
sobre a lógica do racionalismo, apesar de todas as suas contribuições positivas à
sociedade; os fatos históricos levaram a humanidade a um questionamento da
experiência e do pensamento dominantes.
De outro modo, a ausência de práticas religiosas providas de uma
consciência social-comunitária, que conduza o crente à uma incidência
transformadora
positiva do mundo no qual habita, leva-nos a questionar a
autenticidade dessas experiências. Não raras vezes, por descontrole imaginário,
desconhecimento ou ingenuidade, incorre-se no desrespeito da devida distância
simbólica entre o significante e o significado, entre o símbolo e a realidade
simbolizada15.
Esta crise da linguagem simbólica afeta diretamente o cristianismo, pois este
também é, em seu núcleo essencial, uma verdade tão profunda quanto frágil, que
só se deixa expressar no símbolo. O seu centro, o Cristo, é o próprio mistério de
Deus revelado na história humana e, enquanto tal, é o símbolo supremo da fé.
Nele estão enraizados os elementos fundamentais que configuram o cristianismo e
a partir dele se estabelecem as realidades da fé, da Igreja, do culto e também dos
sacramentos. Todos de natureza simbólica16. Segundo K. Rahner, Jesus Cristo é o
símbolo original, centro de toda simbologia cristã, do qual decorrem todos os
outros17.
No simbolismo encontra-se a consistência dos ritos e elementos da fé. Nele
torna-se possível a abertura ao transcendente e a presença do infinito no limitado.
Um cristianismo sem vitalidade simbólica será um cristianismo talvez com alguma
força institucional, mas sem capacidade de inquietação e sugestão. Será filho do
ritual, mas sem oxigênio renovador nem impulsionador. Terá consistência da
organização, da boa administração e da burocracia e até sofisticada conceituação
teológica, mas carecerá do dinamismo e da alegria que apontam para o mistério e
vivem dele. Teremos uma fé inflexível, carente esperança e do futuro, da
celebração e da festa, da amplidão do sentido e da expansão da existência18.
Deste modo, quando o símbolo entra em crise, o cristianismo também sofre.
No símbolo se diz o inefável e o invisível se manifesta. Sem o símbolo a
experiência religiosa e cristã se tornaria estéril.
15
Cf. Ibid., p. 137.
Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA J.T., op. cit., p. 779.
17
Cf. Ibid., p. 784.
18
Cf. MARDONES, J.M., op. cit., p. 11.
16
17
As origens do simbolismo religioso também podem ser encontradas na
constituição natural humana, isto é, o ser humano é religioso por que é, antes de
tudo, animal simbólico, um ser aberto à profundidade do mistério. No símbolo
acontece a expressão máxima da experiência religiosa. Por meio dele o divino se
revela no humano, sem serem confundidos nem separados. Só no símbolo e
através do símbolo se revela o divino e podemos nos abrir a ele e entrar em
comunhão com ele19.
Com efeito, também para o cristianismo, “o símbolo é a única forma de
inserção do mistério na história” 20.
Neste primeiro capítulo queremos apresentar o valor da dimensão simbólica
da religião, e de um modo particular, sua relação com os sacramentos. Trata-se de
compreender em que sentido os sacramentos são símbolos de salvação para a
humanidade.
Tendo em vista as várias concepções e atribuições possíveis ao termo, e a
conseqüente falta de uma definição comum a todas as ciências, faremos uma
breve introdução especificando o que estaremos entendendo por símbolo, e,
posteriormente, definiremos em que sentido o aplicamos às realidades
sacramentais.
2.2
Definição de símbolo
Um grande equívoco que se levanta quando se tratam dos símbolos é pensar
que simbolismo seja sinônimo de uma simples imaginação e/ou que o mundo
simbólico seja necessariamente contrário à realidade e à razão.
A palavra Símbolo provém do termo grego symbolon21, derivação do verbo
symballein, que, entre outras possibilidades, significa “lançar com, por junto, unir,
juntar”. No seu sentido clássico trata-se de um objeto composto de duas partes
cujas metades não têm valor estando sozinhas. O valor simbólico das partes
advém da relação com a outra metade. Mais. Symballein não significa somente
19
Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA, J.T., op. cit., p. 784.
Cf. Ibid., p. 784.
21
Termo grego de origem militar. “Quando um soldado saía do quartel, quebrava-se uma vara;
uma parte era dada àquele que saía e a outra era guardada pelo porteiro; quando o soldado voltava,
o colocá-las juntas e comparar ambas as partes da vara encaixando-as bem era o que se chamava
de símbolo”. Cf. FERNÁNDEZ, C. Manual de liturgia II: CELAM: a celebração do Mistério
Pascal: fundamentos teológicos e elementos constitutivos. São Paulo: Paulus, 2005, p. 87.
20
18
“colocar junto”, mas juntar alguma coisa que já estava junto antes e agora não está
mais. Deste modo, o símbolo não é algo que cria a unidade, mas a restabelece. Em
outras palavras, o que constitui o símbolo é que os portadores das metades têm a
possibilidade de se comunicar um com o outro e só tem sentido por causa dessa
comunicação22.
Um bom exemplo para compreendermos esta explanação é a imagem do
joelho. Duas metades movidas por uma única articulação e que só têm sentido se
unidas. A locomoção das pernas depende do trabalho conjunto das metades.
Essas definições são importantes porque nos ajudam a compreender o
processo de simbolização. O pensamento simbólico é algo consubstancial ao ser
humano; precede a linguagem e a razão discursiva. Não se trata de uma criação
irresponsável da psiqué, mas algo que preenche uma função e responde a uma
necessidade humana23.
Os símbolos revelam certos aspectos da realidade que desafiam qualquer
outro tipo de conhecimento e linguagem. Expressam muito mais do que alguém
poderia exprimir pela linguagem analítica24. Constituem a parte do humano que
não pode se apresentar diretamente à sensibilidade25. “Revelam uma modalidade
do real e da estrutura do mundo que não é evidente no nível da experiência
imediata” 26. Trata-se, portanto, de uma categoria universal27.
No campo religioso, o teólogo Paul Tillich entende o símbolo como a
linguagem mais própria para a fé: “A fé, como a condição em que se está tomado
por aquilo que nos toca incondicionalmente, não conhece outra linguagem a não
ser a do símbolo”
28
. Isto significa dizer que as pessoas só conseguem
compreender e expressar a sua fé e a sua religiosidade, num sentido bem amplo,
utilizando-se do visível para falar do invisível, do presente para falar do ausente,
do humano para falar do divino, do imanente para falar do transcendente. “Aquilo
22
Cf. AUGÉ, M. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. 2ªed. Ave Maria: São
Paulo, 2004, p. 99-100; GIRARD, M. Os símbolos na Bíblia: Ensaio de teologia bíblica enraizada
na experiência humana universal. Paulus: São Paulo, 1997, p. 26.
23
Cf. ELIADE, M. Imagens e símbolos. Martins Fontes: São Paulo, 1996, p. 8.
24
Cf. Ibid., p. 13.
25
Cf. MARDONES, J.M., op. cit., p. 90.
26
Cf. Ibid., p. 89.
27
Cf. ALDAZÁBAL, J. Gestos e símbolos. São Paulo: Loyola, 2005, p. 15.
28
Citação de PAUL TILLICH em KLEIN, R. O lugar e o papel dos símbolos no processo
educativo-religioso. Disponível em: http://www.est.com.br/publicacoes/estudos_teologicos.
19
que toca o homem incondicionalmente precisa ser expresso por meio de símbolos,
porque apenas a linguagem simbólica consegue expressar o incondicional” 29.
Alguns traços marcantes acompanham e identificam a experiência
simbólica.
Primeiro, do ponto de vista cognitivo o símbolo deve ser sempre objeto de
conhecimento imediato, capaz de ser assimilado e conhecido com facilidade;
Também do ponto de vista lingüístico deve ser facilmente exprimível, simples de
ser compreendido. O simbolizante está para ajudar a compreender o simbolizado,
e não para dificultar a sua compreensão30.
Do ponto de vista semântico, o simbolizante deve ser o mais possível
expressivo (objeto, palavra, gesto, pessoa...), bem como facilmente reconhecido
por uma coletividade. O símbolo deve ser algo que faz parte da sociedade na qual
está inserido, facilmente reconhecido e identificado por todos, e, portanto, ligado
à vivência/ experiência pessoal ou coletiva de uma determinada pessoa ou grupo,
respectivamente. Neste sentido, o símbolo só se torna instrumento de
comunicação se atinge a experiência vivida daqueles que o recebem31. Deve ser
extraído do quotidiano daqueles a quem se dirige.
Evidencia-se, assim, o papel e o poder das imagens e dos símbolos nas
religiões e na religiosidade das pessoas.
Pode-se dizer que do ponto de vista teológico até a visão e a interpretação
que o homem tem e faz do mundo são de natureza simbólica. Os meios que se
utiliza para transmissão dessa cosmovisão, tais como a linguagem, por exemplo,
são igualmente de natureza simbólica.
No simbolismo descobrimos uma nova relação com a realidade e,
sobretudo, uma possibilidade de comunicar e de comunicar-nos com tudo aquilo
que nos circunda de uma forma muito mais profunda do que qualquer outro modo
nos permita. A capacidade simbólica do homem não consiste em dizer ou fazer
determinadas coisas, mas em ver todas as coisas de uma determinada maneira, na
sua integração global e significativa32.
Neste sentido, só é possível chegar a uma visão coerente, unitária e
significativa da realidade se ele se abre ao transcendente, de tal forma que o
29
Cf. TILLICH, P. Dinâmica da fé. São Leopoldo: Sinodal, 1974, p. 30 em Klein, R. op.cit.
Cf. GIRARD, M., op. cit., p. 37.
31
Cf. Ibid., p. 38-39.
32
Cf. AUGÉ, M., op. cit., p. 100.
30
20
aspecto mais característico do homo symbolicus é a sua dimensão religiosa, isto é,
a capacidade que o ser humano tem de se relacionar com o sagrado. O simbolismo
religioso é a expressão mais íntima da necessidade da pessoa humana ultrapassar
os limites do próprio eu e abrir-se a novas experiências que dificilmente podem
ser sistematizadas em nível racional33.
Isto significa dizer que o ser humano não está restrito ao campo da
existência material. Pelo fato de ser constituído de corpo e alma, ao mesmo
tempo em que vive no mundo material, transcende-o34.
“A tensão dialética entre o natural e o sobrenatural, entre história e
escatologia, entre imanência e transcendência, encontra no simbolismo a
possibilidade de sair da contradição fundamentalmente de concorrência para
evoluir rumo a uma situação de efetiva e recíproca afirmação” 35.
Toda a imensidade de Deus se torna presente na pequenez de um símbolo.
Trata-se de uma autêntica e real contradição. Isto faz parte da natureza do
símbolo: a realidade que se esconde e se comunica por ele é sempre maior que a
capacidade humana de perceber a realidade que é simbolizada ou mesmo a própria
mediação simbólica. Constituem a síntese da iniciativa de Deus, que se comunica
adiantando-se gratuitamente em direção ao sujeito e da capacidade que esse
sujeito tem em si mesmo de responder a essa iniciativa; trata-se da busca por
expressar o indizível36.
Isto se torna ainda mais compreensível quando distinguimos os símbolos
reais dos símbolos representativos, ou, em outros termos, símbolos realizadores
dos símbolos informativos.
O sinal de trânsito informa ao motorista sobre uma realidade que está por vir
ou acontecida, como por exemplo, um acidente ou quebra-molas à frente; não é
ligado à realidade do tráfego que regula a não ser pela convenção de representá-lo
ou regulá-lo. Em outros termos, ele não contém a realidade, mas comunica algo
sobre a mesma.
Já os sacramentos são símbolos reais, realizadores daquilo que significam.
Seguindo a tradição Escolástica, no fundamento da compreensão dos sacramentos
33
Cf. Ibid., p. 100.
Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 88.
35
Cf. AUGÉ, op. cit. p. 101.
36
Cf. BELLOSO, J.M.R. Os sacramentos: símbolos do Espírito. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 5758.
34
21
como sinais está imbutida a noção de causa. Os sacramentos são sinais
causadores da graça. “No sacramento a graça de Deus se coloca eficazmente
presente ao criar sua expressão, sua concretude histórica dentro do espaço e
tempo, ou seja, seu símbolo”
37
. É palavra criadora de realidade. É um símbolo
representativo.
Em síntese, podemos dizer que o símbolo “é signo de que a dispensação
divina enraíza-se na confluência da inteligência, do afeto e do inconsciente
humanos, o que permite à realidade significada antecipar-se na receptividade
humana” 38.
Daí, portanto, que a compreensão de que a função primordial dos
sacramentos como símbolos de fé é a de nos comunicar a pessoa divina e sua
salvação.
2.3
Fundamentos para um simbolismo sacramental
2.3.1
Revelação
Os fundamentos para a teologia de um simbolismo sacramental se
encontram na própria história da salvação judaico-cristã. A afirmação de uma
autocomunicação divina - no Antigo Testamento, sobretudo por meio da Lei e dos
profetas; no Novo Testamento, por meio de Jesus Cristo e dos seus discípulos encontra, necessariamente, nas suas raízes uma admissão
àquilo
que
compreendemos como “mediação”:
Muitas vezes e de modos diversos falou Deus aos Pais por meio dos profetas;
agora nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho39; Há um só
Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo40.
Segundo a tradição judaico-cristã, Deus sempre se comunicou por meio de
sinais concretos, compreensíveis e acessíveis àqueles a quem se revelava,
37
Cf. RAHNER, K. Theologie des symbols em SCHNEIDER, T. (org.). Manual de Dogmática.
Vol. II. Petrópolis: Vozes, p. 192.
38
Cf. BELLOSO, J.M.R., op. cit., p. 59.
39
Cf. Hb 1, 1-2.
40
Cf. 1Tm 2,5.
22
condição necessária inclusive para que soubessem que estava se revelando41.
Trata-se de uma comunicação corporal, histórica, mediatizada42.
Para Israel, a história é um processo que Iahweh dirige para um término que
prefixou43. O campo privilegiado de ação da palavra44 profética é a história. Por
meio dela, Deus se manifesta e revela os seus desígnios de Salvação: retira o povo
da escravidão do Egito, leva-os até a terra prometida, chama-os à conversão por
meio dos profetas, socorre-os no exílio... Para Israel as promessas de Deus se
cumprem no concreto de suas vidas45.
Neste contexto, um elemento que ganha considerável relevância é a Tora, a
qual constitui o Sinal mais concreto e realizador da dispensação dos benefícios de
Deus para com o seu povo. Nela está contida a eleição do povo de Israel, com ela
Deus possibilita vida bem sucedida para o seu povo na terra prometida e através
dela o povo pode louvar a Deus no culto.
Toda a história de Israel tem caráter simbólico, desde os seus processos
políticos, em que Deus intervém e dirige o seu povo através de reis e homens
escolhidos, até as grandes epifanias e outras intervenções extraordinárias, tais
como a sarça ardente e as pragas do Egito46, através das quais o povo eleito
também percebe a presença do Deus libertador.
No Novo Testamento Deus se comunica com a humanidade mediante o seu
Filho, que se insere na história e nas leis próprias da natureza humana para nos dar
a sua salvação47. Novamente a historicidade torna-se a palavra chave e o critério
para a compreensão da revelação neotestamentária. Historicidade que exprime
muito mais que mera conexão de fatos e eventos, mas que indica a consciência
41
“O homem é um ser sacramental; no nível religioso, exprime suas relações com Deus num
conjunto de sinais e símbolos; Deus, igualmente, os utiliza quando se comunica com os homens.
Toda a criação é, de certa forma, sacramento de Deus, porque no-lo revela”. Cf. DOCUMENTO
DE PUEBLA 920 em DOCUMENTOS DO CELAM. São Paulo: Paulus, 2004, p. 506.
42
Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 89.
43
Cf. LATOURELLE, R. Teologia da Revelação. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1985 p. 33.
44
“A religião veterotestamentária é a religião da “palavra”, mas, como no caso de qualquer
linguagem, a primeira reação ao “dizer” não é outro dizer, mas o silêncio e a escuta”.
FISICHELLA, R. Introdução à teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 2000, p. 71.
45
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 174.
46
Cf. Ibid., p. 175.
47
“O Novo Testamento dirá que em Cristo “a graça de Deus se manifestou para a salvação de
todos os homens” (Tt 2,11) e que nele “se manifestaram a bondade e o amor de Deus, nosso
salvador” (Tt 3,4; 2Tm 1,10). “Cristo é a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15) a irrupção da
divindade na carne visível (Cl 2,9). Os Padres, como Agostinho, reconhecerão que “não há outro
sacramento de Deus senão Cristo”. E outros admirarão a união sem confusão das duas naturezas
que visa um divino intercâmbio”. Cf. BOROBIO, D. (org.). A celebração da Igreja: liturgia e
sacramentologia fundamental. Vol.1. São Paulo: Loyola, 2002, p. 298.
23
que o próprio Jesus tinha ao situar-se diante da sua vida, do sentido a dar a ela e
da resposta que ele realmente deu a essa vida48.
O sinal inequívoco e realizador de Deus por excelência no Novo Testamento
é, portanto, a pessoa de Jesus Cristo, definido por são João como o Verbo eterno
de Deus feito carne49 para manifestar aos homens o amor50 e a Verdade de Deus51;
e, depois dele, a comunidade na medida em que atua no poder do ressuscitado.
Sua vida e seu exemplo são para a humanidade sinais de vida e salvação52.
A esta comunicação divina deve-se, por parte dos crentes, a resposta
obediente e confiante a que denominamos fé. O fato de ser realmente Deus que
age e é experimentado no evento salvífico não se pode comprovar
independentemente da fé53; pois da experiência faz parte não somente o evento,
mas também a sua interpretação54.
Por ser um evento dirigido aos seres humanos de forma humana, a revelação
não poderia deixar de ser simbólica. Entenda-se por “simbólica” primeiramente a
capacidade de se dirigir ao humano por uma linguagem não analítica, mas
compreensível, já que composta por elementos próprios de um determinado grupo
ou pessoa; depois, a capacidade de comunicar aquilo que se simboliza por meio
do simbolizante.
Neste sentido, a revelação é um ponto fundamental para a compreensão de
todo o simbolismo sacramental.
2.3.2
Constituição antropológica
Todas as afirmações sobre as realidades sacramentais nos levam a entender
que sua manifestação se dá por meio de sinais, gestos e ações concretos, ou, em
outras palavras, que os sacramentos devem ter um caráter sensível e visível.
48
Cf. FISICHELLA, R., op. cit., p. 81-82.
Cf. Jo 1,1-14; 1Jo 5,7; Ap 19,13.
50
Cf. Jo 3,16; 1Jo 4,10; 1Jo 4,16.
51
Cf. Jo 14,6.
52
Cf. LATOURELLE, R., op. cit., p. 41-90.
53
“É pela fé que se tem acesso ao mistério, ao Evangelho, à palavra. De fato, é pela fé que o
homem reconhece como verdadeiro o plano de salvação, realizado por Deus na morte e
ressurreição de Cristo, adere inteiramente a esse plano, se bem que desconcertante para a humana
sabedoria (1Cor 1,17-30; 2,1-4). A pregação do evangelho tem por finalidade conseguir a
obediência da fé (Rm 16,26; 2Cor 10,5). Fé é a resposta específica do homem à palavra do
Evangelho” (LATOURELLE, R., op. cit., p. 65).
54
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 174-177.
49
24
Além disso, como símbolos, os sacramentos não podem ter significado
incompreensível ao ser humano. Se deixarem de ser compreendidos, faltar-lhes-á
o caráter sacramental. Se o evento sacramental deixa de ser compreensível, deixa
também de comunicar aquilo para que existe55.
O que se quer expressar com símbolo na teologia dos sacramentos pode ser
desenvolvido inicialmente a partir de um ponto de vista antropológico. Em virtude
de sua estrutura corpo-espírito, o ser humano se realiza em expressão corporal. À
medida que este é e tem um corpo, do qual não pode prescindir, precisa exprimirse por meio dele.
Neste sentido, os símbolos sacramentais contêm e comunicam a realidade
simbolizada por meio de sua corporalidade e significação. Ao mesmo tempo em
que são atos essencialmente humanos, são também necessariamente corpóreos. O
ser humano necessita de sinais e símbolos porque é um ser de natureza simbólica;
precisa de sacramentos porque é um ser sacramental. Para significar e concretizar
o seu encontro com Deus, uma expressão e comunicação da graça adaptada à sua
condição corporal-sensível exige necessariamente os sacramentos56.
No termo símbolo estão contidos o reconhecimento da corporalidade
essencial de toda comunicação inter-humana, bem como a experiência da
variedade de dimensões de uma mesma realidade. Para a teologia hodierna o
pensamento simbólico representa um novo entendimento da teologia sacramental,
uma porta de abertura para fugir do ritualismo estéril.
Segundo a filosofia metafísica, o ser humano é símbolo do Ser. É, em si
mesmo, um ente necessariamente simbólico porque precisa dos seres para
exprimir-se. Em resumo, o símbolo constitui a presença do Ser no ente particular
e o cosmos, um grande símbolo do Ser.
A psicologia encontra nos símbolos uma via de expressão da interioridade
subconsciente. Segundo Jung, a função mediadora do símbolo entre o
inconsciente o consciente se torna possível graças às imagens e arquétipos
estabelecidos pela sociedade.
A teologia parte do princípio de que todo discurso sobre Deus é simbólico.
Reconhece que o símbolo tem lugar insubstituível no discurso da fé. Entende que,
55
56
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., passim.
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 320.
25
o simbolismo deve conservar a alteridade do simbolizado, sem deixar, no entanto,
de ser um segmento da realidade significada.
De uma forma ou de outra, o símbolo continua sendo a dimensão mais
original e fundamental do ser humano. A origem e a raiz do símbolo estão na
própria constituição do ser humano, na natureza mesma do seu ser57.
2.4
Sacramentos, símbolos de salvação
Na história da humanidade é comum que as religiões utilizem símbolos para
expressar sua busca de relacionamento com a divindade.
No Antigo Testamento encontramos vários desses sinais sagrados, tais como
a circuncisão, os sacrifícios, o cordeiro pascal, a arca da aliança, os pães sem
fermento... Ora evocavam a aliança de Iahweh com seu povo, como uma maneira
da sua perpetuação na vida israelita, ora simplesmente como uma expressão ritual
da necessidade do homem religioso de manifestar sua aspiração de comunhão
com Deus58.
No Novo Testamento os sinais evocam a aliança realizada por Cristo,
mediador do acesso ao Pai. Enquanto estruturas e funções rituais simbólicas,
inserem-se no grande contexto dos sinais sagrados, assemelhando-se aos do
Antigo Testamento e de outras religiões, porém, com a diferença na condição de
não somente sinalizar, mas realizar de maneira eficaz a obra de Jesus Cristo no
mundo, que é a salvação de todo gênero humano. A estes sinais damos o nome de
sacramentos.
O termo sacramento entrou na linguagem cristã através de Tertuliano no
início do século III, embora não tivesse sido ele mesmo o criador do termo.
Inicialmente, na literatura latina clássica, sacramentum59 significava o ato de
57
Cf. Ibid., p. 325-326.
Cf. GOMES, C. F. Riquezas da mensagem Cristã. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1989 p.
502.
59
O termo é formado pela raiz “Sacr-” e pela desinência “-mentum”. “Sacr”, que origina os termos
“sacrum”, “sacrare”, “consecrare”, indica sempre uma relação com o numinoso, o divino. Além do
mais, na cultura latina destaca comumente o aspecto público e jurídico do religioso. Por isso, a
“res sacra” se distinguia da mera “res religiosa”, que pertencia ao âmbito da religiosidade privada.
O sufixo “-mentum” designa o meio pelo qual algo se torna sagrado. Daí “sacramento” significar o
instrumento através do qual alguém ou algo se torna sagrado.
De fato, devido a um enriquecimento semântico, “sacramentum” chegou a ter um sentido ativo e
passivo, podendo ser aplicado indistintamente ao agente, ao meio, à ação consagrante e ao objeto
58
26
consagração com que o soldado prometia fidelidade ao seu imperador. Como
marca desta pertença trazia em seu corpo um sinal, que Tertuliano usou como
exemplo para descrever o Batismo e, posteriormente, todo o rito da iniciação
cristã, definindo-os como a inscrição na milícia de Cristo, designados até então
pelo termo grego mysterion60.
Embora tenha origens pagãs, o termo sacramento já possuía um sentido de
consagração, pertença e referência às coisas sagradas. Etimologicamente
sacramento designa o meio pelo qual algo se torna sagrado; trata-se de uma
relação com o numinoso.
Na história da Igreja, por muito tempo existiu na Igreja uma compreensão
restritiva do que se entendia por sacramento. O termo era usado e pronunciado
unicamente para designar os sete sacramentos ou ritos sacramentais. Todavia,
tratava-se de um empobrecimento da compreensão dos mesmos. A realidade
sacramental não é esgotada no setenário litúrgico-celebrativo. Existem outros
centros de sacramentalidade que, longe de se oporem aos sete sacramentos ou
diminuírem o seu valor, constituem o próprio quadro para a sua compreensão,
celebração e realização na vida61.
Não se trata de nenhuma novidade. No início da era cristã, a palavra
sacramento era empregada para designar também outras realidades distintas dos
sete ritos sacramentais, como Cristo, a Igreja, a Escritura, a Páscoa, a Encarnação,
a Quaresma, o mundo, etc. Foi apenas através de um longo e lento processo
histórico que se chegou a uma diferenciação clara entre os “sacramenta maiores”
(Batismo e Eucaristia) e os “sacramentos menores” (os outros sacramentos), bem
como entre estes e os outros “sinais sagrados”.
consagrado. (para aprofundamento cf. MARSILI, S. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus,
2001, p. 1059 passim).
60
A palavra sacramentum entrou no vocabulário cristão como uma tradução do termo grego
mysterion, utilizado primeiramente pelos pagãos, sobretudo pelos gnósticos. Foi adotado e
freqüentemente aplicado por Paulo nas suas cartas para designar os “mistérios” da vida de Cristo,
isto é, todo evento da salvação realizado em Jesus Cristo, especialmente sua encarnação, morte e
ressurreição: “o desígnio divino oculto em Deus desde todos os séculos” (Ef 3,9; Cl 1,26), agora
“revelado em Cristo” (Cl 1,27). Com a vinda de Cristo o mistério salvífico se faz “revelação
manifesta” (1Tm 1,9-10; Tt 2,11) e presença entre os homens (Jo 1,9-14; Ap 21,3). Embora tivesse
origem pagã, o uso termo mistério, na compreensão cristã, nada tinha a ver com os cultos pagãos e
a compreensão gnóstica da época (cf. MARSILI, S., op. cit., p. 1059).
Nos Padres da Igreja a palavra mysterion encontra outros significados. Fala-se, no plural, dos
“mistérios” do AT., da vida de Jesus e dos ritos cristãos. Neste último sentido pensa-se na
comunicação do invisível através das realidades sensíveis (Cf. GOMES, C.F., op.cit., p. 503.).
61
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 293.
27
Segundo D. Boróbio, foi sobretudo a partir do século XIII (mais
especificamente a partir do Concílio de Trento), que a expressão foi utilizada para
indicar somente os sete ritos sacramentais da Igreja. A controvérsia com os
protestantes tratou de agravar ainda mais a situação, a tal ponto que daí por diante
só seria aplicado às realidades que preenchem os requisitos da instituição por
parte de Cristo, estrutura de matéria e forma, eficácia “ex opere operato” e
intenção por parte do ministro62.
Para os Padres da Igreja os sacramentos manifestam, presentificam e
realizam a salvação. Encontraram na filosofia platônica o fundamento para a
afirmação dos sacramentos como símbolos reais de salvação. Segundo a filosofia
platônica existe uma distinção entre a imagem original (mundo ideal) e a realidade
concreta, que é imagem-cópia da realidade ideal, sendo que a imagem original se
mostra na cópia, ainda que de modo mais fraco quanto à sua essência. Ademais,
tinham conceito amplo de sacramento, não os restringindo ao setenário litúrgico
sacramental63.
A teologia do Concílio Vaticano II, como toda a teologia católica atual, é
caracterizada por um movimento de retorno às fontes. Por este motivo, recuperou
a expressão e a aplicou em seu sentido mais original, em relação a Cristo, à Igreja,
ao cristão, ao homem, bem como a outras realidades criadas.
Baseando-se na Revelação e no Magistério, - destacamos aqui a grandiosa
contribuição da Patrística - a Igreja não hesitou em reconhecer como sacramento
outras realidades que não estão contidas no setenário sacramental. Não se trata de
um nominalismo (nome sem conteúdo) nem de um pansacramentalismo (tudo é
sacramento). Trata-se de uma ampliação da compreensão da sacramentalidade,
sem negar a sua verdade tradicional e genuinidade. É uma busca por reconhecer a
essência sacramental, com toda a sua originalidade, presente nas diversas
realidades, bem como os seus elementos comuns e diferentes, de tal modo que a
intercomunicação e a comparação nos revelem toda a riqueza aí encerrada 64.
Os sacramentos têm papel fundamental na vida da Igreja e do mundo. Desde
a ascensão do Senhor ao céu até o momento da sua parusia são eles que
continuam, atualizam e realizam, pela graça do Espírito Santo, a salvação de
62
Cf. Ibid., p. 294.
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 180.
64
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 293-294.
63
28
Cristo na história. Essa afirmação é importante, pois quer dizer que a obra
salvífica não cessou com o retorno do Cristo para junto do Pai e que, portanto, a
salvação não foi um ato restrito a um grupo de pessoas de uma época delimitada,
mas se estende a toda humanidade de todos os tempos e lugares.
De acordo com o Concílio, os sacramentos devem ser reconhecidos no
quadro global da experiência cristã65. Diz ainda que pela participação da Igreja,
sacramento radical de Cristo, somos inseridos no esquema ternário das funções ou
ofícios de Cristo, sacerdote, profeta e rei66. Sua perspectiva é mais funcional que
essencialista, mais prática que teórica. Não se prende tanto em explicar o que são,
mas em definir o que fazem67.
Os sacramentos destinam-se à santificação dos homens, à edificação do corpo de
Cristo e ainda ao culto a ser prestado a Deus. Mas, sendo sinais, destinam-se
também à instrução. Não só supõem a fé, mas por palavras e coisas também a
alimentam, a fortalecem e a exprimem. Por essa razão são chamados sacramentos
da fé. Conferem certamente a graça, mas, além disso, sua celebração também
prepara os fiéis do melhor modo possível para receber frutuosamente a graça,
cultuar devidamente a Deus e praticar a caridade68.
Os sacramentos nos colocam em sintonia com a mesma obra históricosalvífica que Cristo realizou no mundo. São sinais eficazes da salvação nos nossos
dias. No imanente se manifesta o transcendente, por meio da realidade visível dos
sinais sacramentais, o dom da salvação. De modo particular, a Igreja, sacramento
de Cristo, tem a missão de anunciar o Reino de Deus e a ressurreição do Senhor,
por seu exemplo e por sua pregação até os confins do mundo69.
Os sacramentos são o eterno desígnio salvador de Deus que se revela e se realiza
com eficácia entre os homens. Ou é ação e obra divinas nas quais Deus, enquanto
manifesta seu plano salvador, o realiza sobra a terra para que os homens
reconheçam o Deus salvante nessa velada revelação e realização em curso, creiam
nele, afirmem-no, deixem-se apreender por ele, e se salvem neste pessoal encontro
com o Deus da sua salvação. É de Deus ao mesmo tempo uma ação e uma obra
porque tanto a iniciativa e atividade divina quanto a sua execução podem ser
65
Cf. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM, n.10-12, 14-15, 34, 37, 42;
DECRETO CONCILIAR AD GENTES, n. 6, 9; DECRETO CONCILIAR PRESBYTERORUM
ORDINIS n. 2, 4 em Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Paulus: São Paulo, 1997.
66
Cf. SESBOUÉ, B. (org.). História dos dogmas: os sinais da salvação. Tomo 3. São Paulo:
Loyola, 2002, p. 218.
67
Cf. Ibid., p. 231.
68
Cf. CONSTITUIÇÃO CONCILIAR SACROSSANTUM CONCILIUM, n. 59 em Documentos
do Concílio Ecumênico Vaticano II. Paulus: São Paulo, 1997.
69
Cf. Mt 28, 19-20; Mc 16, 15-18; At 1,8; BOROBIO, D., op. cit., p. 295-297.
29
assinaladas no interior do homem. É um sinal eficaz por ser uma expressão da
força salvadora divina de cima nos homens e converte a si70.
Os sacramentos como símbolos de fé não só informam catequeticamente
sobre o que têm por fim representar, mas têm também um papel mediador,
comunicante, unificador, transformador71... O comer e beber da eucaristia, por
exemplo, é a linguagem simbólica e eficaz da comunicação que Cristo nos faz de
seu corpo e de seu sangue, e da fé com que nós o acolhemos72. Deste modo, o
símbolo não somente transmite uma mensagem, mas provoca uma identidade,
uma aliança, comunica a própria natureza do simbolizado73. Segundo Tomás de
Aquino, não somente sinalizam, mas “efetuam o que representam” 74.
Deus se serve dos sacramentos perpassando por eles o seu poder, tal como
uma extensão da humanidade de Cristo75. Através do sinal sacramental traz ao
indivíduo a participação nos frutos da sua paixão, morte e ressurreição, dando
continuidade à obra outrora começada76.
Segundo E. Schillebeeckx, o simbolismo religioso sacramental possui uma
bivalência: eclesiológica e antropológica. Enquanto eclesiológica compreende o
sacramento como um ato do Senhor glorioso para a santificação da sua Igreja.
Enquanto antropológica, um ato de louvor da Igreja ao seu Senhor. Para ele os
sinais sacramentais servem tanto para comunicar a graça e a salvação de Cristo ao
mundo, como para glorificar a Deus (anábasis e katábasis77). Segundo o mesmo
teólogo, essa dupla função é comunicada em Jesus Cristo, salvador do gênero
humano e perfeito adorador do Pai78.
A concepção do Concílio Vaticano II, acompanha a teologia de
Schilibeeckx. Diz que os sacramentos são, em primeiro lugar, a iniciativa do
próprio Deus em direção à humanidade - santificação e edificação do corpo de
Cristo-, movimento fundamental, que dá sentido a um segundo, a resposta do ser
humano que se abre à iniciativa divina pela fé.
70
Cf. BARAÚNA, G. (org.). A Igreja do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 410.
Cf. LUMEN GENTIUM, n. 7, op.cit.
72
Cf. ALDAZÁBAL, J., op. cit., p. 18.
73
Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 93.
74
Citação da Suma Teológica III.ª, q.62, a1, 1m, em GOMES, C.F., op. cit., p. 503.
75
Esta teoria faz parte da compreensão do Concílio Vaticano II, por exemplo, na Sacrossantum
Concilium, n. 7.
76
Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 507.
77
Sobre o aprofundamento dos termos ver BOROBIO, D., op. cit., p. 332.
78
Essas conclusões foram abstraídas da sua obra clássica Cristo, sacramento do encontro com
Deus, citada ao longo do corpo do texto.
71
30
Já os documentos pós-conciliares expressam a retomada dessa concepção da
teologia católica atual. Entendem os sacramentos no seu sentido mais original,
aplicando-o de forma mais abrangente. Os sete sacramentos ou setenário
sacramental são vistos não como um esgotamento da realidade sacramental, mas
como uma concretização da sacramentalidade da Igreja, que está presente em
várias outras circunstâncias e realidades da vida. Entre os documentos destacamos
Medellín e Puebla, pela sua repercussão na América Latina.
O homem é um ser sacramental; no nível religioso, exprime suas relações com
Deus num conjunto de sinais e símbolos; Deus, igualmente os utiliza quando se
comunica com todos os homens. Toda a criação é, de certa forma, “sacramento”
de Deus porque no-lo revela79; “Cristo é a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15).
Como tal é o “Sacramento” primordial e radical do Pai: “Aquele que me viu, viu
o Pai” (Jo 14,9)80; A Igreja é, por sua vez, “sacramento” de Cristo para
comunicar aos homens a vida nova. Os sete sacramentos da Igreja concretizam e
atualizam esta realidade sacramental para as diversas situações da vida 81.
Os sacramentos são sinais indicativos do presente. Manifestam ao olhar da
fé a aplicação da obra salvífica do Senhor à nossa vida atual: nossa iniciação na
vida do
Reino, nossa refeição
espiritual,
nosso
reerguimento, nossas
possibilidades de vivermos a santidade e justiça todos os dias e todas as grandes
situações humanas. Os sacramentos atestam o Deus presente, o Cristo que
prometeu estar conosco “todos os dias até a consumação do século” 82.
Em relação ao futuro, nutrem a esperança escatológica, porque nos lembram
que a obra de Deus prossegue até a realização definitiva do homem novo no Reino
de Cristo ressuscitado
83
. Colocam-nos em conexão com o Reino presente entre
nós, mas ao mesmo tempo nos projetam para a realidade que ainda está por vir.
A superação do racionalismo e do mecanicismo, bem como a recuperação
de uma espiritualidade saudável, que acredita na possibilidade do encontro do
humano com o divino, sem, no entanto, confundir as duas realidades, passam,
necessariamente, pelas categorias simbólicas.
É necessário redescobrir o símbolo como categoria constitutiva da teologia
sacramental, como um elemento fecundo do encontro do Deus salvador com a
79
Cf. DOCUMENTO DE PUEBLA, n. 920 em DOCUMENTOS DO CELAM. São Paulo: Paulus,
2005
80
Cf. PUEBLA, n. 921, op. cit.
81
Cf. PUEBLA, n. 922, op. cit.
82
Mt 28,20.
83
Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 504-506.
31
humanidade redimida. Ele é a linguagem própria para a fé, pois consegue exprimir
de maneira simples, mas de forma profunda e compreensível, a realidade
simbolizada, sem esgotá-la.
O símbolo nos coloca em sintonia com realidade comunicada, não somente
representa, mas nos permite entrar em contato com o simbolizado, comunicandoo. É neste sentido que entendemos os sacramentos, como agentes comunicadores
daquilo que simbolizam: a graça, a salvação, a pessoa divina. E neste contexto
está a Igreja, sacramento radical de Cristo, sinal de salvação para a humanidade.
Esta perspectiva simbólica, desde que compreendida corretamente, também
pode ser aplicada à pessoa de Cristo. No capítulo seguinte queremos apresentar de
que maneira Cristo é sacramento/ símbolo do Pai. Note-se que, mesmo que por
algumas vezes o termo símbolo seja omitido da nossa pesquisa, a dinâmica e a
perspectiva simbólicas não só perpassarão, mas constituirão a base de todo o
nosso trabalho. Daí a importância deste primeiro capítulo.
32
3
Cristo, sacramento original
3.1
Introdução
Toda teologia sacramental cristã parte da pessoa de Jesus Cristo. Ele é o
sacramento primordial da salvação, o sacramento de Deus por excelência84:
“Quem me vê, vê o Pai”
85
. Este versículo constitui um dos textos chaves para a
compreensão da sacramentalidade de Cristo. Em Jesus está a pessoa de Deus
humanizada. Nele, Deus se tornou conhecido e acessível aos homens. Cristo é o
rosto de Pai no sentido que nos revela a pessoa, os desejos e os planos de Deus.
Seus atos, sua vida são a manifestação do amor divino pelos homens, sinais e
causa de salvação.
Pelo mistério da encarnação, o Filho de Deus tornou-se verdadeiramente
homem e no encontro com ele temos um encontro pessoal com o Deus vivo, pois
aquele homem é, pessoalmente, o Filho de Deus. “O encontro humano com Jesus,
é, pois, o sacramento de encontro com Deus” 86.
Cristo é, por sua encarnação, o sacramento original, o sinal realizador, o
símbolo real por excelência, a corporificação de Deus para dentro de nosso
mundo. É sinal no sentido de que é a palavra que não apenas fala de Deus, mas é o
próprio Deus atuante na História87.
Sua vida terrena é a mais concreta manifestação da bondade divina. Acolheu
os pecadores, deu paz aos aflitos e anunciou, por seus próprios atos, o amor e a
solidariedade como os sinais mais importantes da presença do Reino de Deus
entre nós. Revelou-nos, por seu exemplo, que a autêntica vivência cristã se
encontra na doação integral de uns aos outros.
Sua entrega até a morte se tornou o sinal mais concreto do seu amor pela
humanidade. Sua ressurreição e glorificação, sinais de esperança, protótipo
daquilo que há de se manifestar em todo ser humano na plenitude dos tempos.
84
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20.
Jo 14,9
86
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p.47.
87
Cf. SCHNEIDER, T. (org). Manual de dogmática. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 199.
85
33
Enquanto aguardamos a realização plena e definitiva da promessa, a Igreja
se manifesta como grande referencial, sinal perpetuador da salvação, despertando,
nutrindo e sustentando a esperança da vida futura na vida dos seus membros.
A conseqüência disso é que todo sacramento deve ser posto em relação a
Cristo e vivido a partir da sua sacramentalidade, pois só têm sentido em relação a
ele. Cristo é o sacramento original do qual provém todos os outros.
Neste segundo capítulo queremos apresentar em que sentido a encarnação
e a vida de Cristo constituem o fundamento e o sentido da sacramentalidade
eclesial e qual a relação da Igreja com o mistério de Cristo. Trata-se de um
capítulo de característica cristológica, fundamental para a compreensão da
sacramentalidade cristã.
3.2
A Encarnação como fundamento da sacramentalidade cristã
Jesus é o homem que inteiramente e sem reserva entrou em união com Deus
e com o próximo e a eles se entregou. Toda a sua existência, vida, morte e
ressurreição é um grande gesto de reconciliação
88
. Sua paciência e bondade com
os pecadores são sinais da graça divina que procura os perdidos e os salva da
morte da sua culpa. Seus atos e sua vida são uma manifestação do amor divino
pelos homens e do amor humano para com Deus89. Desse modo, Jesus aparece
como o grande sacramento, sinal do amor salvífico de Deus inserido na
humanidade, ação divina para todos os homens e entre eles90.
Jesus é sacramento pela sua atuação, pela sua verdade ética, pela totalidade
da sua ação messiânica e salvadora. Sua vida é uma verdadeira missão junto dos
homens: dedica-se ao próximo, ouve suas misérias, dúvidas e anseios; cura os
doentes, perdoa os pecadores, reconduz os perdidos91. Ao fazer-se servo92 e
membro dos exilados torna-se a manifestação e a revelação do próprio coração de
Deus, de tal forma que em Jesus podemos ver o próprio “rosto” misericordioso do
Pai: “Quem me vê, vê o Pai” 93. Por sua vida revela a intimidade e a profundidade
88
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 411.
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 23.
90
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 412.
91
Cf. Ibid., p. 411.
92
Cf. Fl 2,6-11.
93
Jo 14, 9.
89
34
de Deus aos homens: “Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o
Filho o quiser revelar”
94
. Através de seus atos o mistério da encarnação vai se
esclarecendo e se manifestando e a sacramentalidade “ontológica” de Cristo surge
como sacramentalidade ética95.
Demonstra através do seu comportamento e da sua pregação uma abertura
radical a seus contemporâneos, sem distinções e reservas, sem discriminações ou
diferenças. Por isso mesmo atropelou, freqüentes vezes, costumes respeitados,
convenções sociais e tradições marginalizantes. Desse modo, teve trato com todos
os grupos sociais de seu tempo: doentes, leprosos, pecadores, publicanos,
saduceus, zelotas, samaritanos, sem excluir pessoa alguma. E ainda foi mais além
ao dar preferência aos que na época eram considerados os mais afastados do
Reino de Deus, como os pobres e os pecadores. Os pobres por desconhecer a lei,
não a praticavam e, portanto, não tinham chance alguma diante de Deus. Os
pecadores, por terem pecado e, estariam assim, condenados96.
O fundamento da sua conduta era a experiência que tinha de Deus como
alguém que o amava infinitamente, que o aceitava totalmente e que fundamentava
sua resposta incondicionada. Toda sua vida girava em torno do Pai, que ocupou
sempre o centro da sua vida e pregação. Vivia em obediência e entrega ao Pai o
completo despojamento de si. Neste sentido, era alguém sempre voltado ao outro,
mesmo que isso significasse prejuízo, sofrimento, incompreensão, conflito e
ameaça97.
É sacramento por seus atos privilegiados, isto é, pelos atos nos quais se
manifesta de forma especial o seu poder salvador, a presença maravilhosa de Deus
nele: “Pois bem, para que saibais que o Filho do homem tem poder na terra de
perdoar pecados... disse então ao paralítico: levanta-te, toma teu leito e vai para
casa” 98. Essas ações, embora realizadas em forma humana são, por sua natureza,
ações de Deus, como podem ser os milagres, o perdão dos pecados, o oferecer o
seu corpo como comida e o seu sangue como bebida e, sobretudo, a sua morte,
ressurreição e glorificação: mistério pascal, a partir do qual toda as demais coisas
assumem sentido e valor. Por esses atos, Jesus revela a obediência ao Pai e o amor
94
Mt 11,27
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300.
96
Cf. MIRANDA, M. F. A salvação em Jesus Cristo: A doutrina da graça. São Paulo: Paulus,
2004, p. 71.
97
Cf. Ibid. p. 72-73.
98
Mt 9,6
95
35
aos homens, glorifica ao Pai e santifica os homens. “São os atos mais perfeitos de
um novo culto” 99.
Por sua morte ensinou-nos o que é o abandono de si e a obediência ao Pai;
Pelo sofrimento associou-se a nós e fez da solidão uma das experiências mais
ricas de comunhão com Deus e com os irmãos. Pela paixão se tornou a oblação
perfeita, uma oferenda viva em prol da humanidade. Por sua ressurreição se
tornou a ponte que nos permite voltar a Deus, bem como participar da vida eterna.
Assim, o homem Jesus, manifestação terrestre e pessoal da graça redentora
divina, é o sacramento primordial, pois este homem, filho de Deus, é querido pelo
Pai como o único acesso à realidade da salvação. Pois há um só Deus e, também,
um só mediador entre Deus e os homens, que é o homem Jesus Cristo100. Quem
encontra esse homem, quem se entrega a ele, quem constrói sua vida sobre ele e se
deixa assumir por ele, este encontra a força redentora de Deus e é salvo por ele.
A vontade de Deus teve em Cristo sua real presença histórica no mundo.
Cristo é o sinal da vontade salvadora e da misericórdia divina. É ao mesmo tempo
a realidade da graça tornada perceptível na história. A encarnação se tornou o
grande evento salvador pelo qual Deus alcançou a humanidade de maneira
historicamente sensível101.
Uma das afirmações mais profundas e anunciadoras da missão de Cristo
junto a nós está no Evangelho de João: “Deus amou tanto o mundo que enviou o
seu Filho único para que todo o que nele crer não morra, mas tenha vida eterna”
102
. Deus amou-nos, é a primeira afirmação do texto. E amou-nos para que
fôssemos salvos, em seu Filho. A finalidade concreta da encarnação do Filho de
Deus é a salvação do gênero humano, que em outros termos denominamos
“redenção”. Tal redenção consiste em libertar o homem do pecado e levá-lo a uma
comunhão de graça e de amor para com Deus. O amor humano de Jesus é a
própria manifestação do amor divino pela humanidade. A vivência desse amor faz
dos seres humanos imagens semelhantes a Deus. Por este amor Cristo os
diviniza.103.
99
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300.
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 22.
101
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 412.
102
Cf. Jo 3,16
103
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 23.
100
36
Mas não somente isso. Numa perspectiva ascendente, Cristo faz da sua vida
um verdadeiro culto de adoração ao Pai, uma oblação perfeita. Não apenas revela
a salvação de Deus, mas se faz, ele mesmo, o adorador supremo do Pai, a
realização suma e perfeita de toda religião. Mostrou-nos por sua vida o que é um
homem inteiramente entregue a Deus104.
Se considerarmos que a humanidade de Jesus é representativa de todos nós,
torna-se claro que o movimento de baixo para cima é um movimento que parte de
toda a humanidade e vai a Deus, através da humanidade representativa de Jesus.
Nele encontramos o protótipo realizador supremo e perfeito da resposta de amor
com que a humanidade deve corresponder ao projeto do Pai. Por seu oferecimento
em nosso nome e em nosso lugar, o homem Jesus se torna pessoalmente fonte e
norma de todo encontro e diálogo com Deus105. Neste contexto adquirem
particular importância os eventos da vida de Jesus.
A páscoa é o mistério da submissão plenamente amorosa de Jesus ao Pai,
até a morte, a fidelidade do encarnado ao Pai; é ao mesmo tempo o mistério da
resposta divina a esse dom de amor. A misericórdia de Deus sobre esse sacrifício
é a anulação do pecado pela ressurreição.
Embora na ordem cronológica tenha ocorrido primeiro, na ordem da fé, o
mistério da Encarnação não foi a primeira verdade contemplada pelos apóstolos; a
primeira foi a ressurreição. No entanto, foi somente a partir deste primeiro olhar,
de característica ascendente106, que se chegou a entrever a divindade de Jesus na
sua humanidade107.
Nos textos bíblicos, a encarnação aparece já nas primeiras páginas dos
evangelhos como o sinal por excelência do Novo Testamento: “E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós; e nós vimos sua glória”
108
. Cristo entra na história
humana como um “sinal-sacramento”: “Quando, porém, chegou a plenitude dos
tempos, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei, para
104
Cf. Ibid., p. 24.
Cf. Ibid., p. 25.
106
Cf. At 2,22-36; 4,10ss; 13,16-41; Rm 1,2ss; Fl 2, 6,11
107
A reflexão sobre a encarnação do Cristo deu margem para vários debates e heresias. De um
lado os que acentuavam a divindade em detrimento da humanidade de Cristo (docetismo,
apolinarismo, monofisismo monotelismo), do outro os que acentuavam sua humanidade
(adocianismo e nestorianismo) em detrimento da sua divindade. Para aprofundamento deste
assunto ver SERENTHÁ, M. Jesus Cristo ,ontem, hoje e sempre. Ensaio de Cristologia. São
Paulo: Dom Bosco, 1986.
108
Jo 1,14
105
37
remir os que estavam sob a lei”
109
. A encarnação é entendida como o
cumprimento de uma presença prometida: “Tomar-vos-ei por meu povo, e serei o
vosso Deus”
110
; a concretização de uma resposta fiel esperada desde o Antigo
Testamento (esperança messiânica): “Muitas vezes e de modos diversos, falou
Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos falounos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual
fez os séculos. É ele o resplendor de sua glória e a expressão do seu ser” 111.
O Mistério salvífico de Deus, que se revela no fato histórico da Encarnação,
consiste em que “Deus não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por todos
nós” 112. E o Filho, em seu amor e na força da obediência total ao Pai113, pode de
tal modo esvaziar-se de si mesmo, que por nós e em nosso lugar se fez homem
como nós114; privando-se de sua glória divina e assumindo a existência de
pecado115 se entregou a mais extrema humilhação, sofrendo uma morte
vergonhosa116, destinada a ladrões e pessoas perigosas para a sociedade da época.
“Somente quando se considera este fim da existência humana do Filho de
Deus é que se pode calcular qual o mistério que operava em Deus, no início, no
‘momento’ em que o Filho era enviado para dentro da história, a fim de assumir,
pessoal e definitivamente, tal ‘ser homem’”.
Somente nesta perspectiva a
katábasis117 do Filho de Deus assume verdadeiro sentido118. A Encarnação de
Cristo, o mistério de sua entrada na existência humana, constitui o início do seu
rebaixamento e humilhação para a nossa salvação119.
Segundo as Escrituras, a história da salvação tem o seu ponto culminante e
significado supremo em Jesus Cristo. Nele todos nós recebemos “graça sobre
graça” 120 e também nele somos reconciliados com o Pai121.
109
Gl 4, 4-5; O Novo Testamento nos mostra Cristo como um só indivíduo (Jo 2,19; 3,13; 1,5;
1Cor 2,8; At 3,15; 20,28; Jo 1,14; Fl 2,6). Fala-se de um só Cristo, de sua igualdade com o Pai e de
sua igualdade conosco (1Jo 1,2; Rm 1,3; 8,3.32; 1Tm 2,5; Cl 2,9).
110
Ex 6-7; Jr 7,23
111
Hb 1, 1-3; Cf. BOROBIO, D., op.cit., p. 297.
112
Rm 8,32
113
Cf. Jo 5,19
114
Cf. Fl 2, 6ss.
115
Cf. Rm 8,3; Hb 12, 2
116
Cf. Mt 27,46
117
Palavra de origem grega. Significa o movimento de descida que Deus fez ao assumir a nossa
humanidade, seu rebaixamento humilhação para a nossa salvação (Fl 2,1ss).
118
Cf. FEINER, J; LOEHER, M. Mysterium Salutis: Compêndio de dogmática histórico-salvífica.
Vol.III/5: O evento Cristo. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 33.
119
Cf. Ibid., p. 33.
120
Jo 1, 16
38
Trata-se de um evento situado num instante exato do tempo, onde o Verbo
de Deus, em obediência à vontade do Pai, assumiu a carne do pecado e entrou na
história, na existência humana. “O momento preciso deste acontecimento é como
que o ponto de junção por um lado, entre a eternidade divina na qual o Filho
sempre esteve junto do Pai, mas também já estava no mundo que ele criara e, por
outro lado, o tempo da história da humanidade” 122.
Todavia, a encarnação do Filho de Deus não deve ser entendida como um
momento isolado ocorrido na história, tal como um fato acontecido que logo
cessou, mas uma condição permanente da existência de Cristo, que não se desfaz:
toda a vida de Jesus Cristo é o mistério da encarnação, uma realidade permanente
do seu ser humano e divino. A união hipostática123, que começou no momento da
concepção virginal de Jesus no seio da Virgem Maria é indissolúvel. Esta é a sua
característica mais importante124. Uma realidade permanente que nem mesmo a
morte suprimiu. A divindade que constituía a pessoa de Jesus estava unida não só
à alma, mas igualmente ao corpo125.
A Encarnação do Filho de Deus é uma realidade que vai se desenvolvendo
paulatinamente na história humana. Não é somente a concepção no seio de sua
mãe, mas uma realidade que foi crescendo através de toda a sua vida e que atingiu
o seu ponto culminante no evento da sua morte, ressurreição e glorificação. A
Encarnação não é apenas o evento do Natal, mas todo o conjunto da vida morte e
glorificação do Senhor126. Trata-se de toda a vida de Cristo, começando no seio
materno, continuando através de dos seus atos e culminando na morte,
ressurreição e constituição como Senhor e aquele que, juntamente com o Pai,
envia o Espírito Santo.
Pela encarnação Cristo se fez pecado para nos libertar do pecado. Assumiu
as nossas transgressões para nos reconduzir a uma vida de comunhão com Deus.
Viveu a dor e o abandono na obediência ao Pai para nos mostrar que só em Deus
podemos encontrar sentido para os sofrimentos da vida.
121
Cf. Rm 5, 10; 2 Cor 5, 18; INCARNATIONIS MYSTERIUM. Bula de proclamação do grande
jubileu do ano 2000. In http://www.vatican.va
122
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. III/5, op. cit., p. 29.
123
Com a expressão “hipóstase” ou “união hipostática” quer-se acentuar que a presença divina em
Jesus não é algo exterior a ele, mas é a base do seu ser, a raiz do existir humano de Cristo. O
homem Jesus e o divino Verbo são um só ente, uma só hipóstase, uma só pessoa.
124
Cf. Sl 110, 4; Hb 7,24-25; 13,8
125
Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 307.
126
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 25.
39
No núcleo humano de sua experiência pessoal, Cristo é realmente aquele que
carregou nossos pecados. E é assim que ele se encontra diante do Pai. “Todos
pecaram e se privaram da glória de Deus” (Rm 3,23), ou melhor, não possuem o
Espírito de Deus, Na manifestação humana de Jesus sobre a terra, a “glória de
Deus” está ausente. Jesus podia, pois, pedir com insistência ao Pai, imediatamente
antes de sua morte: “Pai, agora, glorifica o teu filho”, isto é, “dá tua glória a este
homem Jesus”. Durante a vida terrestre de Jesus, diz são João, “não havia ainda
Espírito, pois Cristo ainda não havia sido glorificado 127.
Outro elemento importante é que a humanidade de Cristo não foi um
acidente na história da redenção cristã, mas um fato querido e estabelecido por
Deus desde toda eternidade128, parte do seu plano para a salvação do gênero
humano, bem como do messianismo de Cristo129. Jesus é a própria manifestação
da Graça corporificada, o amor de Deus no plano da visibilidade histórica130.
Toda relação do Cristo com a humanidade se realiza por meio da sua
corporeidade. O “eu divino” quis viver não só no amor e no intelecto divinos, mas
quis ter também como seus o intelecto e a vontade humanos, o sentir e até o
morrer humano131. O encontro humano de Deus com a humanidade se realiza pela
e na presença visível do corpo132.
A definição dogmática de Calcedônia133, segundo a qual Cristo é uma única
pessoa em duas naturezas, significa que uma só e mesma pessoa, o Filho de Deus,
resolveu manifestar-se sob a forma humana. Cristo é o Filho de Deus até em sua
humanidade. A segunda pessoa da Santíssima Trindade é pessoalmente Deus. Em
outras palavras, Cristo é Deus de uma maneira humana.
[Confessamos] um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que deve ser
reconhecido em duas naturezas, sem confusão e sem transformação, sem divisão e
sem separação; a diferença ente naturezas não fica absolutamente suprimida pela
união entre as duas, mas ao contrário, as propriedades de cada uma das naturezas
permanecem intactas, e unem-se numa só pessoa [prósopon] ou hipóstase;
(confessamos) não (um filho) dividido ou distinto em duas pessoas, mas um só e
mesmo filho, unigênito, Deus, Verbo, Senhor, Jesus Cristo, como os profetas já
127
Cf. Ibid., p. 33.
Cf. Ef 1,4; 1Cor 2,7; 2Cor 1,20; Col 1,25s; 1Pd 1,20.
129
Cf. Mc 1,15; Ef 1,10.
130
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium salutis. III, 5, op. cit., p. 30.
131
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 21.
132
Cf. Ibid., p. 22.
133
O Concílio de Calcedônia se desenrolou entre 08 e 31 de outubro de 451, na Basílica de Santa
Eufêmia e se debruçou sobre a questão das naturezas de Cristo e a unidade da sua pessoa.
128
40
disseram dele, como o próprio Senhor Jesus Cristo, ensinou, e como o símbolo dos
santos Padres nos transmitiu 134.
Antes, o Concílio de Éfeso (431) já havia definido que só existe uma única
pessoa em Jesus Cristo. Segundo o mesmo Concílio, é na pessoa do Filho que se
unem o divino e o humano e a diferença entre as duas naturezas jamais foi
suprimida ou afetada por essa união135. Sua intenção era a de resguardar a verdade
da humanidade do Verbo de Deus, concretizada na pessoa de Jesus Cristo136.
Pois não dizemos que a natureza do Verbo, transformada, se fez carne; nem
tampouco que se mudou no homem inteiro, composto de alma e corpo; mas que,
tendo unido consigo o Verbo, segundo a hipóstase ou pessoa, a carne animada de
alma racional, se fez homem de modo inefável e incompreensível, e foi chamado
filho do homem, não somente pela vontade ou complacência, nem tampouco pela
assunção somente da pessoa, e que as naturezas que se juntam em verdadeira
unidade são distintas, mas que de ambas resulta um só e mesmo Cristo e Filho;
não como se a diferença das naturezas se destruísse pela união, mas porque a
divindade e a humanidade constituem, antes, para nós um só Senhor e Cristo e
Filho, pela concorrência inefável e misteriosa na unidade... Porque não nasceu
primeiramente um homem vulgar, da santa Virgem, e logo então desceu sobre ele
o Verbo; mas que, unido desde o seio materno, se diz que se submeteu a
nascimento carnal, como quem faz seu nascimento da própria carne... Desta
maneira [os santos padres] não consideraram inconveniente chamar mãe de Deus
à santa Virgem 137.
Também o Concílio de Nicéia, realizado em 325, esclareceu, a propósito de
um suposto subordinacionismo do Filho em relação ao Pai, que o Filho de Deus
possui a mesma substância divina do Pai, e que por esse motivo possui a mesma
dignidade. À luz dos Concílios e reflexões posteriores, podemos afirmar que essa
dignidade e consubstancialidade do Filho em relação ao Pai, definida pelo
Concílio de Nicéia, perpassa a pessoa do Cristo também na sua humanidade.
Num outro contexto e de modo atualizado essa visão se repete também nos
documentos do Concílio Vaticano II e subseqüentes. Sem a preocupação de
defender-se de acusações e heresias, como no contexto dos documentos
anteriormente citados, a Igreja reafirma a sua fé na humanidade de Cristo e
134
Definição do Concílio de Calcedônia em DS 302: DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos,
definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/ Loyola, 2007.
135
Cf. RUBIO, A. G. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de cristologia para os nossos
dias. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 168-169.
136
Para aprofundamento ver SESBOUÉ, B. (org). História dos dogmas: O Deus da salvação.
Tomo 1. São Paulo: Loyola, 2002, p.317-334.
137
Definição do Concílio de Éfeso em DS 250, op. cit.
41
encontra nela fundamento para uma vida cristã mais autêntica, inserida na
realidade do mundo, sem, no entanto, com ele equiparar-se.
Imagem do Deus invisível (Col. 1,15), Ele é o homem perfeito, que restitui aos
filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que,
nele, a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo também em
nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho
de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas,
pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com
um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de
nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado. Cordeiro inocente, mereceunos a vida com a livre efusão do seu sangue; n 'Ele nos reconciliou Deus consigo e
uns com os outros e nos arrancou da escravidão do demónio e do pecado. De
maneira que cada um de nós pode dizer com o Apóstolo: o Filho de Deus «amoume e entregou-se por mim» (Gl. 2,20). Sofrendo por nós, não só nos deu exemplo,
para que sigamos os seus passos, mas também abriu um novo caminho, em que a
vida e a morte são santificados e recebem um novo sentido 138.
Em Jesus Cristo temos verdadeiramente um homem, capaz de consciência e
de livre arbítrio, um corpo animado de espírito. Seu amor é a forma humana do
amor redentor de Deus139.
Se, portanto, o amor e todos os atos de Jesus possuem força divina de
salvação, a manifestação dessa força inclui essencialmente um aspecto de
visibilidade concreta dessa salvação: em outras palavras a sacramentalidade. O
homem Jesus, manifestação terrestre e pessoal da graça redentora divina, é o
sacramento primordial, é querido pelo Pai como único acesso à realidade da
salvação140.
3.3
Cristo sacramento do Pai
Com o evento da Páscoa iniciou-se uma reflexão explícita sobre a vida de
Cristo. À medida que os primeiros cristãos aprofundavam sua fé, a Cristologia do
Novo Testamento se desenvolvia. Partindo da ressurreição, começaram a se
questionar sobre a vida histórica de Jesus de Nazaré. Afinal, o ressuscitado era o
mesmo que caminhava com eles pregando o Reino de Deus. O que havia de
138
CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES, n. 22, em Documentos do Concílio
Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 563.
139
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20.
140
Cf. Ibid., p. 22.
42
especial naquele homem que mereceu tão grande “fim”? Quem era ele? Estas
perguntas compõem o centro do Kerygma141 primitivo.
O ápice dessa reflexão foi a conclusão de que o Cristo glorioso e
ressuscitado, o mesmo que nasceu no meio de nós e morreu livremente para a
nossa salvação, preexistia no mistério de Deus desde toda a eternidade.
Começando pelo estado glorioso e a condição de ressuscitado, a identidade
pessoal de Jesus e sua filiação divina foram gradativamente estudadas e
desvendadas num processo retrospectivo, que, partindo dos mistérios de sua vida
até o seu nascimento humano, chegaram à sua preexistência em Deus142.
A conseqüência foi que puderam ver em Jesus a face de Deus manifestada
aos homens, o sinal revelador do Pai. Jesus de Nazaré é o Filho de Deus feito
homem para a nossa salvação. O sacramento realizador das promessas divinas.
É sacramento, em primeiro lugar, pelo seu próprio ser, por sua própria
verdade ontológica, por sua presença entre os homens como Filho de Deus: “O
Verbo se fez carne” 143. Não se trata de um homem qualquer, mas do próprio Deus
feito homem entre os homens. O fato de Cristo ter assumido a natureza humana e
de assim ter manifestado, corporal e visivelmente, a bondade de Deus faz dele um
verdadeiro sacramento144.
“Através do homem - Jesus se chega a Deus e através do Deus - Jesus se
chega ao homem. Nele, há perfeita adequação e harmonia entre o seu ser de Deus
141
Palavra de origem grega, cujo significado pode ser traduzido por “anúncio”. Diz respeito à Boa
nova do Reino pregada por Cristo, bem como os mistérios da nossa salvação, que são a paixão,
morte e ressurreição do Senhor. Nas primeiras comunidades cristãs, diz respeito ao anúncio da
salvação em Jesus Cristo, que tem como finalidade a conversão e adesão à fé por parte de quem
recebe o anúncio.
As características da cristologia do Kerygma primitivo podem ser sintetizadas em poucas palavras
deduzidas do sermão de Pedro no livro dos Atos dos Apóstolos, capítulo 2: trata-se de uma
cristologia pascal , baseada na ressurreição e glorificação de Jesus pelo Pai. Sua exaltação é uma
ação do Pai, sobre Jesus, em nosso favor, a que devemos responder com nosso arrependimento e
conversão, concretamente simbolizados pela adesão ao batismo cristão.
O mistério pascal constitui o centro do Kerigma primitivo, acentuado na ressurreição de Jesus
(1Cor 15, 3-7; Rm 1, 3-4; 1Tm 3,16; 1Ts 1, 10; Gl 1, 3-5; 3, 1-2). Cf. DUPUIS, J. Introdução à
Cristologia. São Paulo: Loyola, 1999.
142
Embora não haja unanimidade entre os exegetas, segundo Dupuis a primeira cristologia
neotestamentária palestina desenvolvida foi a da “parusia” (marana tha), que unia a ressurreição
de Jesus à sua vinda escatológica: aquele que devia voltar é o mesmo que ressurgiu glorioso,
vencedor da morte. A cristologia do ressuscitado estava estreitamente ligada à esperança da sua
volta futura. O “já” da ressurreição era a garantia do cumprimento da promessa do “ainda não”
escatológico. “Jamais houve fé numa parusia de Jesus sem exaltação, como também nunca houve
fé na exaltação pura e simplesmente. O que se esperava era a parusia daquele que fora alcançado
até a divindade”. Cf. DUPUIS, J., op.cit., p. 79-80.
143
Jo 1,14.
144
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 299.
43
e para Deus e o seu ser de homem para o homem” 145. Por ser Deus, Cristo é capaz
de revelar-nos fielmente os planos do Pai; por ser homem, pode representar-nos
de modo perfeito diante de Deus. Estando perfeitamente com Deus, ele está
perfeitamente com o homem e vice-versa. A fronteira humana de Deus e a
fronteira divina do homem aparecem de modo maravilhoso na pessoa de Cristo,
tornando possível o encontro radical. A partir do seu próprio ser, Cristo é o
sacramento desse encontro146.
“Cristo é a imagem do Deus invisível”
primordial e radical do Pai”
148
147
. Como tal é o “Sacramento
. Ao assumir a natureza humana Jesus torna-se
homem como nós e vive, com liberdade, na sua humanidade, a vontade do Pai. Na
sua vida está realizada a absoluta comunhão do homem com Deus. Em Jesus o ser
humano atinge o ápice da comunhão com o seu criador149. Ele é o Sacramento
original sobre quem está estabelecido todo pensar teológico-sacramental cristão e
é o fundamento de toda e qualquer expressão sacramental eclesial150.
3.4
A morte de Cristo como sacramento de sua entrega
A morte de Cristo se revela como o ápice da sua vida sacramental entre os
homens, sua entrega total ao Pai, em favor da humanidade. Toda a vida de Jesus
foi uma existência para os outros151, fundada na doação constante aos pobres,
pecadores e marginalizados. Doação incondicional que encontra na paixão e morte
de cruz a expressão máxima da sua entrega: “Ele nos amou e se entregou a si
mesmo por nós” 152; “Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou para a nossa
justificação” 153; “Amou a Igreja e por isso entregou-se por ela” 154.
A novidade trazida por Jesus incomodou demasiadamente os fariseus. Suas
pregações e exemplos eram fortes demais para serem aceitas pacificamente pelos
“doutores da fé”: Jesus se opunha às estruturas de comércio, dominação e
145
Cf. Ibid., p. 299.
Cf. Ibid., p. 300.
147
Cl 1,15.
148
Cf. PUEBLA, n. 921.
149
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 411.
150
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20; BARAÚNA, G., op. cit., p. 410.
151
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M. Mysterium Salutis: compendio de dogmática histórico salvífica.
Vol. III/6: O evento Cristo. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 57-62.
152
Ef 5,2.
153
1Cor 15,3-4; Rm 4,25.
154
Ef 5, 25; Cf. MIRANDA, M. F., op. cit., p. 76.
146
44
manipulação da religião. Sua comunhão com as pessoas desprezadas e que
transgrediam as prescrições relativas à pureza e ao sábado tiveram efeitos
consideráveis. O escândalo decisivo provocado por Jesus residia na pretensão de
agir em nome e no lugar de Deus. Mais ainda: Jesus não só se voltou em nome de
Deus à pessoas excluídas, mas também negou que o limite entre justos e
pecadores estabelecido pelos “guardiões da lei” fosse entendido como vontade de
Deus155.
O conflito se agravou quando Jesus foi para Jerusalém e passou a lidar
diretamente com os saduceus e sacerdotes superiores que lá dominavam156.
Segundo as tradições judaicas, ele deveria ser condenado à pena de morte,
mediante apedrejamento157. Foi condenado pelo Sinédrio por ser considerado um
blasfemo por ter se identificado como “Filho de Deus” 158. Mas como isso não era
suficiente para sua condenação, já que se tratava de um motivo religioso, levaramno às autoridades romanas sob o pretexto de que ele seria mais um daqueles
pretendentes a messias, que apareciam repetidamente na época, embora no direito
judaico, a pretensão de ser messias não era um delito que merecesse a morte.
Suspeito de ser um perturbador da ordem pública, Jesus foi condenado como um
agitador político por representar uma ameaça ao império159. Sobre sua cabeça o
motivo de sua morte: julgavam que queria ser rei dos judeus160.
A forma da execução de Jesus, a cruz, era aplicada somente a escravos e
rebeldes, mas nunca a cidadãos romanos. Era considerada a forma mais cruel e
vergonhosa com que se poderia executar alguém, o que representou uma
verdadeira catástrofe para aqueles que nele acreditavam161.
Mas que diferença tem a morte de Cristo da morte de tantas outras pessoas
que também viveram uma existência para os outros e até por causas muito justas?
O que há de específico na morte de Cristo que a diferencia das demais e que a
coloca num grau de importância superior?
155
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 254-255.
Cf. Mc 14, 1 ss.
157
Cf. At 7,54-60.
158
Cf. Mc 14, 61.
159
Cf. Lc 23, 2-5. 13-24.
160
Cf. Mt 27,37.
161
Cf. Ibid. p.256.
156
45
A Escritura nos diz que “um só morreu por todos, então todos passaram pela
morte” 162, e ainda, que Cristo “provou a morte em favor de todos” 163. No alto da
cruz fez ecoar o grito que brota das profundezas da infelicidade e da dor de toda a
humanidade: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste!” Grito de quem se
identificou em tudo com o sofrimento humano e viveu até o fim a nossa fraqueza.
Na iminência da morte sentiu medo e angústia164, realidades que sugerem a idéia
de um homem tomado por profunda pertubação e solidão165, mas que por seu
despojamento e entrega total ao Pai renovou e dignificou a humanidade: “Pai, em
tuas mãos eu entrego o meu Espírito” 166.
O valor da morte de Cristo está no fato não somente dele ter se doado “por
nós”, mas em ter se doado “em nosso lugar”. Ofereceu-se, gratuitamente, pelo
perdão dos pecados de quem já estava condenado. Seu sacrifício pagou
definitivamente a nossa culpa. Desse modo, Jesus é identificado como o “servo
sofredor” do livro de Isaías, no Antigo Testamento167: o justo que é oferecido em
expiação pelos pecados do mundo168. Jesus morreu por amor a nós, em proveito
nosso e em nosso lugar169.
Expiação170 é, antes de tudo, entrega total para salvar a vida de quem já está
condenado; sacrifício oferecido por uma situação irreparável, por uma culpa que
mereça a morte ou por uma vida irremediavelmente perdida. A expiação consiste
na libertação da vida condenada. Na compreensão do Antigo Testamento, um
animal oferecido em expiação de uma pessoa substituía a vida daquele em prol de
quem se oferecia o sacrifício, era oferecido no lugar da pessoa e pagava pelo
crime da mesma. O bode expiatório constituía um exemplo muito conhecido171:
carregado com os pecados do povo, o bode era solto no deserto, onde morria.
162
Cf. 2Cor 5,14.
Cf. Hb 2,9.
164
Cf. Lc 22,44.
165
Cf. CANTALAMESSA, R. Nós pregamos Cristo crucificado. São Paulo: Loyola, 1996, p. 132.
166
Lc 23,46.
167
Cf. Is 52, 13-53,12.
168
Cf. Rm 6,10; 1 Pd 3,18; Hb 7,27; 9,12; MIRANDA, M.F., op. cit., p. 77.
169
Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 127.
170
“Teologicamente, compreende os conceitos de expiação do pecado e de reconciliação do
homem com Deus. No Antigo Testamento, o termo chave que se refere à expiação é o hebraico
kapper, que significa “cobrir” “ocultar” o objeto que ofende, removendo assim o obstáculo à
reconciliação. No ritual cultual, o termo é usado em sentido técnico para indicar um ato de
expiação realizado através da aspersão do sangue da vítima”. No Novo Testamento o termo
hebraico encontra várias traduções, com vários significados, entre as quais está hilasmos, aplicado
a Jesus com o sentido de reconciliação (Cf. MACKENZIE, J. L. Dicionário bíblico. São Paulo:
Paulus, 2005, p. 329-330).
171
Cf. Lv 16,20-26.
163
46
Realizava-se
assim
a
expiação
substitutiva172.
Tais
sacrifícios
eram
constantemente denunciados pelos profetas, que convidavam o povo a uma
conversão real e sincera.
Segundo a doutrina cristã, Cristo é o Cordeiro imolado oferecido em
expiação dos pecados do mundo condenado: “Todos pecaram e estão privados da
glória de Deus”
173
; “Todos estão condenados à morte decorrente do pecado” 174.
Cristo é o justo oferecido no lugar dos ímpios: “Aquele que não cometeu pecado,
Deus o fez pecado por nós, para que por ele nos tornemos justiça de Deus” 175.
Se o pecado consiste essencialmente num ato livre, com o qual a vontade do
homem desobedece a Deus, então a redenção não poderia configurar-se senão por
um retorno à perfeita obediência e à submissão à vontade de Deus. Assim, Jesus
aparece como modelo mais sublime de obediência. Assume a obediência em nome
de toda a humanidade, e por sua atenção à vontade do Pai, resgata e aniquila a
desobediência do primeiro Adão. Sobre isto Paulo nos diz: “Como pela
desobediência de um só, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela
obediência de um só, muitos e tornaram justos” 176.
Outro ponto importante é que a cruz de Cristo não era a cruz de um homem
qualquer, mas a cruz de um homem-Deus, de Deus humanizado, que abraçou
livremente o sofrimento, a dor e a morte pela causa da salvação da humanidade.
Muitas outras pessoas já haviam morrido crucificadas no tempo de Jesus,
inclusive ao seu lado, onde foram colocados dois ladrões177. Mas nunca se ouviu
dizer que a cruz de algum deles tivesse salvado alguém. Em nenhum lugar da
Sagrada Escritura está dito que algum daqueles que morriam diariamente
crucificados tivesse salvado alguém. Mas a cruz de Cristo salvou. Não pelo
simples fato de ser uma cruz, mas por ser a cruz do próprio Deus, que não se
valeu de sua condição, mas esvaziou-se completamente, entregando-se até a
morte, em nosso lugar, por nossos pecados178. Em Cristo, Deus morreu por nós.
Nisto consiste o valor do seu sacrifício e a possibilidade da expiação das
nossas culpas. O Santo dos Santos carregou os nossos pecados sobre a cruz para
172
Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 126.
Cf. Rm 3,23.
174
Cf. Rm 5,12.
175
Cf. 2 Cor 5,21; MIRANDA, M. F., op. cit., p. 78.
176
Cf. Rm 5,19; CANTALAMESSA, R. O mistério da Páscoa. Aparecida: Santuário, 2003, p.2931.
177
Cf. Mc 15, 27.
178
Cf. Fl 2, 6-11.
173
47
rasgar nosso título de dívida e, então, triunfar sobre os principados e as
potestades179. Mas esse triunfo foi conseguido com o brado do abandono divino,
em meio às trevas180 “bebendo o cálice” dos nossos sofrimentos e morte181.
Por sua morte, Cristo despojou a morte de seu poder182. Destruiu pela morte
o dominador da morte183. Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e
dos vivos184. Ressuscitado dos mortos, Cristo não morre mais: a morte não tem
mais domínio sobre ele185.
A vinda do Filho de junto do Pai e sua entrada no mundo pecador
constituem para Jesus a missão de atestar dentro da humanidade a dependência
dessa mesma humanidade ante o Pai, até o fim mais amargo186. Cristo consagrouse inteiramente ao Pai pela sua vida e pela sua morte187.
3.5
A ressurreição de Jesus como sacramento da nova vida
Com a paixão e morte de Jesus, a luz que ia se acendendo na alma dos
discípulos não resistiu à prova de seu trágico fim. Uma escuridão os encobriu e
aqueles que chegaram a reconhecer Jesus como o enviado de Deus, como aquele
que era mais do que todos os profetas, agora não sabiam mais o que pensar. O
estado de espírito dos discípulos é nos apresentado por Lucas no episódio dos dois
discípulos de Emaús: “Nós esperávamos que ele fosse o Messias, mas já se
179
Cf. Col 2,14s.
Cf. Mc 15, 33-37.
181
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. III/6, op. cit., p. 32.
182
Cf. 2Tm 1,10; 1Cor 15,25s.
183
Cf. Hb 2,14.
184
Cf. Rm 14,9.
185
Cf. Rm 6,9; MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 633.
186
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 35.
187
Sem dúvida, podemos afirmar que no contexto da paixão a Eucaristia é um elemento que
assume grande importância. Trata-se do próprio memorial continuador da paixão do Senhor junto
a nós. “Ao instituí-lo, Jesus não se limitou a dizer ‘isto é o meu corpo’, ‘isto é o meu sangue’, mas
acrescenta ‘entregue por vós’, derramado por vós (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o
que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor
sacrifical, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois
realizaria na cruz pela salvação de todos”.“Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do
Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se
tratasse simplesmente de uma oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual” (Cf. JOÃO
PAULO II. Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 12. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 17).
180
48
passaram três dias que essas coisas aconteceram”
188
. Em outras palavras, o caso
Jesus estava considerado encerrado189.
A ressurreição de Jesus constitui o artigo mais fundamental da fé cristã, a
ponto de São Paulo poder dizer: "Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação;
vã também é a vossa fé... e ainda estais nos vossos pecados" 190. A ressurreição de
Jesus ocupa um lugar primordial e indispensável no conjunto das verdades cristãs.
Sem ela tudo teria se encerrado com a morte de Cristo na cruz e toda e qualquer
perspectiva de continuidade, atualização e celebração do mistério pascal perderia
o seu sentido.
A ressurreição é a fé central da Igreja, constitui o nervo, o ponto crucial da
nossa fé e da vida de Cristo. É um mistério do qual vive a cada dia: a Igreja afirma
que o ressuscitado vive com ela e se faz presente na vida quotidiana, na comunhão
fraterna, na vida litúrgica, tanto quanto na primeira experiência pascal191. Isto nos
é revelado pelos sacramentos. Daí a relevância de abordarmos o tema da
ressurreição como elemento constitutivo e fundamental da teologia sacramental.
Nada se afirma a respeito do modo como teria ocorrido a ressurreição. O
motivo é simples, trata-se de um acontecimento sem testemunhas. Ninguém
estava presente no momento em que Jesus ressuscitou. Da ressurreição só se tem
notícias mediante as aparições do próprio Jesus, que é posterior ao evento. O
anúncio, portanto, é feito não a partir de testemunhos oculares do evento, mas a
partir do encontro dos discípulos com o ressuscitado192. A origem e o fundamento
da fé na ressurreição encontram-se nas aparições do próprio ressuscitado aos seus
discípulos193.
Por estas, Deus revela que aquele Jesus, morto, está agora plenamente vivo.
Constituem uma experiência de fé da ação reveladora de Deus às suas
testemunhas. Entretanto, não é a fé que cria o ressuscitado, mas a revelação de
Deus a respeito da sua ressurreição que constitui a origem e o fundamento da fé.
188
Lc 24,21.
Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 50.
190
1Cor 15, 14. 17.
191
Cf. CHARPENTIER, E. Cristo ressuscitou. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 41.
192
Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 52.
193
Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 107.
189
49
Não se trata de uma invenção brotada da esperança frustrada dos discípulos, mas
de um acontecimento concreto, factual194.
A ressurreição de Jesus constitui a confirmação da sua vida e exaltação até
Deus. Delas brota a percepção de que ele fora confirmado por Deus. Os que o
viram reconheceram que aquele que se manifestava era o Jesus terreno que
pregava em seu meio. Neste sentido o testemunho seria a confirmação da
pregação. Possui uma implicação missionária195.
O Evangelho nos diz que o Senhor “ressuscitou verdadeiramente”
196
, quer
dizer, de fato, realmente. Sua ressurreição deve ser compreendida como o início
da plenitude final, tal como na perspectiva escatológica judaica. Nele estão as
primícias
da
ressurreição
dos
mortos197.
Através
dela
Deus
revelou
definitivamente a si próprio.
O Novo Testamento enuncia a fé na ressurreição de Jesus a partir de três
elementos principais: primeiro, a partir das confissões ou fórmulas de fé198;
segundo, pelo exemplo das testemunhas que afirmam a realidade da ressurreição e
que tiveram um encontro com o ressuscitado; e, por fim, a partir dos relatos
evangélicos sobre o ressuscitado199.
Entre os principais testemunhos do Novo Testamento encontramos os textos
de 1Cor 15, 1-11; Rm 1,3-4; At 2, 23-24. Tais fórmulas provavelmente se
desenvolveram em ambiente litúrgico e constituem alguns dos substratos mais
194
Com este parágrafo, sem entrar no mérito da discussão, queremos apontar para um debate
levantado, sobretudo por R. Bultmann e pela corrente protestante liberal, sobre a veracidade do
evento da ressurreição. Segundo ele, a ressurreição não passaria de uma visão psicogênica, de
alguns sonhos, ou ainda, de uma invenção dos discípulos de Jesus, por causa da frustração de
terem perdido o seu mestre, em quem colocaram toda a sua esperança. Esta teoria tem por base a
teoria da demitização. Segundo Bultmann só é possível chegar ao conhecimento verdadeiro de
Cristo retirando os mitos que compõe os evangelhos. Eles seriam modos de pensar e representar o
mundo de uma época pré-científica, que concebia o universo formado por planos sobrepostos: o de
Deus, o do homem e dos infernos. Segundo ele, essa concepção mítica estaria superada.
A escola de Rudolf Bultmann julga ainda que todo episódio transcendental só pode ser ficção ou
mito. Por isto nega a ressurreição corpórea de Jesus. Afirma, sim, que o que ressuscitou foi a
Palavra de Deus; esta foi ameaçada de sufocação pelos judeus perseguidores, mas superou as
adversidades e propagou-se vitoriosamente pelas regiões do Império Romano. Segundo Bultmann,
o que teria ressuscitado não seria propriamente o Cristo, mas a mensagem de Cristo, por meio da
pregação apostólica.
195
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1, p. 385.
196
Lc 24, 34.
197
Cf. 1Cor 15,20; RUBIO, G., op. cit., p. 110.
198
Tratam-se de fórmulas nascidas no entusiasmo da comunidade: nascidas espontaneamente ou
compostas, são apreendidas e proclamadas, especialmente por ocasião do Batismo ou diante dos
tribunais. Formam o núcleo central do Kerygma ou anúncio primitivo (Cf. CHARPENTIER, E.,
op. cit., p. 41).
199
Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 104-108.
50
antigos e ricos das pregações e confissões de fé das comunidades primitivas200.
Nelas encontramos aquilo em que acreditavam os primeiros cristãos, seu modo de
viver e de entender a fé. Sua compreensão a respeito do mistério salvífico de
Cristo.
O que lhes transmiti, foi em primeiro lugar, o que eu tinha recebido: que Cristo
morreu por nossos pecados e que ressuscitou ao terceiro dia, cumprindo as
mesmas escrituras; que apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a
maioria dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Posteriormente
apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu
também a mim, que sou como quem nasceu fora do tempo 201.
Pela ressurreição Cristo abre um horizonte para além da história. Entende-a,
não como um retorno às mesmas condições de existência e vida mortal, mas uma
passagem à existência definitiva202. Uma realidade que só pode ser apreendida e
experimentada mediante a fé203.
A Revelação consiste num evento ocorrido na história, mas que só poderá
ser plenamente manifestado e compreendido quando esta história estiver
terminada. Isto é o que dá à ressurreição de Cristo o caráter de unicidade e
decisão: ela é a antecipação do acontecimento do fim dos tempos, que resume a
história, e, ao mesmo tempo, por ser antecipação do fim, a revelação definitiva de
Deus.
Segundo J. Moltmann a ressurreição de Cristo cumpre, de modo antecipado,
a promessa de Deus, sem esgotá-la, e nos projeta para um futuro204. Ela não
encerra a profecia ao cumpri-la, mas a abre, pois reforça a promessa confirmandoa. A segunda vinda de Cristo não será apenas um desvendar do que já aconteceu
de modo oculto, mas o cumprimento final da promessa205.
Jesus adotou a crença judaica na ressurreição dos homens e no mundo
futuro, tal como se acha expressa nos textos apocalípticos do Antigo
Testamento206, inclusive na sua linguagem, mas se diferenciou dos mesmos
200
Cf. RUBIO, G., op. p.104-105.
1Cor 15, 3-8; Trata-se de uma confissão pré-paulina, recebida por Paulo da comunidade
primitiva da Palestina. Constitui um resumo do Kerygma pascal (cf. RUBIO, G., op. cit., p. 106).
202
Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 51.
203
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol.1, p. 258.
204
Cf. MOLTMANN, J. Teologia da Esperança. São Paulo: Loyola/ Teológica, 2005.
205
Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 26.
206
A crença na ressurreição dos mortos é muito antiga, anterior ao cristianismo, podendo ser
encontrada já no judaísmo tardio. Surge como uma forma de afirmar uma recompensa para os
justos frente ao problema dos sofrimentos. Questionava-se se não existiria uma realidade pós201
51
quando disse que a ressurreição consiste na vida eterna em comunhão com Deus.
Além disso, estabeleceu uma grande diferença quando fez uma identificação entre
o “filho do homem” e ele próprio. Jesus também se apropriou de textos dos
salmos em que os justos exprimiam a confiança de serem arrancados por Deus às
garras da morte207 e aplicou a si os textos judaicos que falavam da ressurreição 208.
Verdadeiramente a ressurreição de Jesus foi um evento inovador e
surpreendente para os apóstolos. Eles não só não acreditavam como também não
compreendiam o que Jesus queria dizer quando falava da sua ressurreição. A
expressão “terceiro dia”, utilizada pelos evangelistas para se referir à promessa da
ressurreição, constitui menos uma informação cronológica que a certeza de um
triunfo final.
Para os apóstolos a ressurreição não evoca a reanimação de um cadáver,
mas a passagem definitiva para onde se viverá plenamente com Deus numa
existência corporal transfigurada. Se eles o esperavam para o “terceiro dia”, isto
significa para o “dia da consolação dos mortos”, no fim dos tempos, o dia em que
Deus dará a vida aos mortos, e não o dia depois do amanhã, cronológico.
Na verdade, em nenhum momento os apóstolos esperavam a ressurreição de
Jesus como aconteceu e como acreditamos hoje. Não só não aguardavam a
ressurreição para o domingo, como também não acreditaram quando viram o
Senhor ressuscitado. Isto porque não compreenderam o que Jesus lhes dizia sobre
sua própria ressurreição209, pois para eles o Messias não podia morrer210.
morte onde os justos receberiam a recompensa pelas boas obras praticadas, enquanto os maus, os
castigos pelas faltas cometidas nesta vida. Desta forma surge no judaísmo, embora de forma ainda
não definida, a idéia de uma vida pós-morte, fruto da justiça de Iahweh, que honra o seu povo.
Citamos dois textos bíblicos que atestam aquilo que afirmamos: Jó 19, 25-26: “Eu sei que o meu
defensor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó; depois do meu despertar, levantar-me-á
junto dele, e em minha carne verei a Deus”; Dn 12,2: “E muitos que dormem no solo poeirento
acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbio, para o horror eterno”.
207
Cf. Sl 16.
208
Todos os crentes do tempo de Jesus esperavam o cumprimento da promessa de Deus. Porém,
esta expectativa se diversificava na sua concepção, segundo os diversos grupos e ideologias
existentes na época. Alguns acreditavam na ressurreição, outros negavam-na explicitamente. Entre
os mais conhecidos, citamos: 1) os saduceus: grupo de radicais conservadores, que tinha como
princípio a fidelidade rigorosa à lei de Moisés fixada no Pentateuco. Rejeitavam explicitamente a
ressurreição. 2)os fariseus: acreditavam firmemente na ressurreição dos mortos, embora sob duas
posições: uns acreditam que a ressurreição aconteceria antes da vinda do messias; outros, após a
sua vinda. 3) Os essênios: estes falavam pouco a respeito da ressurreição. Não está claramente
atestada nos textos de Qumran. Consideravam-na como a entrada num universo transformado (Cf.
CHARPENTIER, E., op. cit., p. 36).
209
Cf. Mc 9, 9-10.
210
Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 97.
52
Tudo isto nos permite compreender como ficaram desorientados diante da
morte de Jesus. Nos permite entender também porque nada esperaram da manhã
do domingo (que, no entanto, era o terceiro dia); continuavam aguardando o
“verdadeiro terceiro dia” da ressurreição geral do fim dos tempos. Além disso, a
esperança que tinham colocado em Jesus desmoronou a partir da sua morte na
cruz211.
Pela ressurreição Jesus também entrou num novo modo de presença,
conhecimento e amor em relação ao seu Pai e à humanidade. Foi constituído o
Senhor do mundo inteiro pelo Pai, que através de Cristo estabeleceu o seu Reino
sobre o mundo, o qual deve ser transfigurado para e pela nova condição do
ressuscitado212.
Outro ponto importante e que deve ser considerado, é que a interpretação da
vida e morte de Jesus sempre tem como pressuposto o evento da ressurreição. Isto
significa dizer que a interpretação do evento salvífico de Cristo é sempre uma
leitura pós-pascal; que só é possível compreendê-lo a partir da sua nova condição
de ressuscitado213.
Do mesmo modo, mas no sentido inverso, também a ressurreição só
encontra significado salvífico se em unidade com a vida humana de Jesus Cristo.
Está intimamente ligada à sua vida e constitui o ápice da sua missão salvadora.
Representa a salvação e a consumação de Jesus, bem como a confirmação divina
da sua história terrena. Por meio dela Cristo se manifesta definitivamente como o
Filho de Deus e atinge o ápice da sua comunhão com o Pai214. A ressurreição é a
ação soberana do Pai, pelo Espírito, em relação a Jesus, o Filho 215, é a
consumação da vida e morte de Jesus pelo Pai216.
Jesus é o mensageiro escatológico e o portador da salvação de Deus, o
Messias, o Filho e Verbo encarnado. Somente a partir da páscoa pode-se dizer que
a humanidade de Jesus é a própria auto-comunicação de Deus para dentro da
nossa história, que Deus entrou na história para revelar o seu amor redentor. Na
ressurreição também é revelado que uma vida a partir de Deus e para os outros
211
Cf. Ibid., p. 39.
Cf. Ibid., p. 89.
213
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1, p. 382.
214
Cf. Ibid., p. 383.
215
Cf. Gl 1,1; Rm 1,4; 1 Pd 3, 18; Ef 1, 19ss.
216
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 383.
212
53
tem um sentido indestrutível e que a comunhão de amor com Deus e com os
irmãos é o sentido pleno de toda a criação217.
Por sua confiança e entrega total ao Pai, Cristo, que por amor já tinha
assumido a cruz como sinal da sua doação total por nós, por sua ressurreição
também nos dá a nova vida. Jesus viveu numa relação singular de entrega e
confiança a Deus Pai por meio de sua vida e morte. “Lançou-se para dentro do
Deus incompreensível, que aparentemente o abandonara e morreu dentro dele” 218.
O amor de Deus, porém, não permitiu que a vida de Jesus fosse subjugada pela
morte, de tal modo que Jesus foi amparado pela ação ressuscitadora do Pai ao
morrer e sua morte não caiu no “nada”, mas foi acolhido na vida eterna de Deus e
conservado como pessoa (como ele mesmo) justamente ao receber a vida nova da
ressurreição.
Ao ressuscitar Jesus, Deus Pai se mostra a favor de seu Filho, contra todos
os que o haviam condenado, e conseqüentemente, na humanidade de Jesus, a
favor de todos pelos quais Jesus havia morrido, os pecadores. Deste modo,
confirma o anúncio que Jesus fizera, de um Deus amoroso e acolhedor. A
ressurreição é, portanto, a ação reveladora e autocomunicadora de Deus219.
3.6
A ressurreição de Jesus como sacramento da Esperança
O que aconteceu com Jesus é antes de tudo, um sinal para nós. Para
compreendermos o que somos e o sentido da história, seria necessário que
pudéssemos nos situar no termo desta história. Ora, o que aconteceu com Jesus é o
que Deus havia prometido para o fim dos tempos. Em sua ressurreição, o
acontecimento do fim se torna presente diante de nossos olhos. No ressuscitado já
podemos contemplar o termo para o qual nos encaminhamos. Nele todo o sentido
de nossa existência de homem, pessoal e coletiva, nos é desvendado. A
ressurreição se tornou o protótipo daquilo que se realizará em toda a humanidade,
o sacramento mais expressivo da esperança da humanidade na vida futura. A
ressurreição de Cristo é o sacramento, o sinal eficaz, da nossa passagem, com todo
217
Cf. Ibid., p. 386.
Cf. Ibid., p. 383.
219
Cf. Ibid., p. 384.
218
54
o universo, para a vida de Deus220. O que seremos um dia já se acha realizado em
Cristo.
Com efeito, sua ressurreição é uma antecipação da nossa. O que seremos um dia
já se acha realizado nele. Após a ressurreição, o cristão pode certamente sofrer
com sua morte, mas não pode ficar surpreendido com ela: pois já a viveu em
Jesus, ‘servo sofredor’; poderá certamente maravilhado de ser introduzido um dia
junto de Deus, mas não ficará espantado, pois desde já, em Jesus ‘Filho do
Homem’, ‘Deus nos vivificou juntamente com Cristo... com ele nos ressuscitou e
nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus’ 221.
Por sua ressurreição encontramos uma outra face para a morte, não mais a
de um fim, como se fosse o ponto final da nossa existência, mas a de um novo
nascimento, como uma ponte que nos permite o acesso à nova vida.
Segundo Moltmann, em Jesus ressuscitado tudo já está feito. Deus cumpriu
sua promessa para ele e para nós. Mas, no entanto, tudo ainda está por fazer, no
sentido de que aquilo que já está realizado em Jesus deve nos incitar a trabalhar
para que a promessa se realize também em nós e o senhorio do crucificado se
realize sobre todas as coisas.
Se levarmos a sério a ressurreição de Cristo, nossa esperança será
exigência de uma transformação histórica de vida. Os cristãos são as testemunhas
de uma promessa que faz surgir o novo na história e que lhes proporciona um
futuro possível. A teologia da esperança termina numa teologia de missão na
Igreja222.
Ora, se Jesus viveu inteiramente ligado a Deus e para os outros, sua
ressurreição também só pode ser compreendida sob este olhar, isto é, a partir da
sua dupla relação com Deus e conosco. Não se trata de uma consumação para si
mesmo, mas uma concretização da sua vida para “o outro” e só pode ser
compreendida sob este duplo aspecto da sua exaltação para a plena imediatez com
Deus e unidade permanente com ele (relação com o Pai) e exaltação para a
posição permanente de mediador da salvação (relação com a humanidade). O
humilhado se tornou Senhor223.
Enquanto exaltação para junto de Deus, entendemos a sua glorificação, o
Senhorio que Deus lhe concedeu, após a sua ascensão. A ressurreição e a
220
Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 102.
Cf. Ibid., p. 91; Ef 2, 5-6.
222
Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 93.
223
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 387.
221
55
exaltação são a entrada também da humanidade de Jesus Cristo na glória do Pai,
que o Filho eterno já possuía antes da criação do mundo224. O Novo Testamento
se serve de várias expressões para falar sobre isto: entronização do Filho de Deus
no reino celeste; a imagem do Filho sentado à direita do Pai; ascensão de Jesus
aos céus. Trata-se de um relacionamento de extrema unidade e simultânea
diferença. Foi exaltado como conseqüência material da encarnação e humilhação
de Deus até a morte.
Mas a ressurreição também é a exaltação do Filho para a posição de
mediador. Jesus não viveu para si, mas para os outros e seu senhorio leva também
e permanentemente a marca do seu amor auto esvaziador. Ele não se eleva
triunfalmente sobre seus torturadores, mas permanece o humilde, que abre mão de
toda demonstração de força e ocupa o último lugar para servir a todos. Deste
modo, Jesus assumiu definitivamente o lugar de único mediador da salvação225 e
está permanentemente ativo em termos soteriológicos, mesmo depois da sua
ascensão aos céus.
Ele permanece para sempre o que foi outrora: aquele que nos prepara um lugar
junto de Deus (Jo 14,2) e a auto promessa ou auto comunicação de Deus a nós em
pessoa, o sacramento pessoal em que Deus nos entende a si mesmo e convida.
Assim, o Cristo exaltado continua sendo a proposta de relação que Deus nos faz, a
mão estendida de Deus 226.
Da ressurreição brotam ainda algumas implicações teológicas, entre as
quais: corroborar e autenticar a pregação de Jesus, pois só Deus pode ressuscitar
um morto; colocar sua chancela sobre a missão de Cristo; torná-lo penhor da
nossa própria ressurreição, pois há continuidade entre a sorte de Cristo e a nossa
própria sorte; condição para que o Espírito Santo fosse enviado aos homens como
arrematador da obra de Cristo; é o Espírito Santo quem congrega todos os povos
no Corpo de Cristo que é a Igreja, a fim de que recebam de Cristo as graças
necessárias para chegarem à vida eterna.
Esta temática da perpetuação da salvação, pela ação do Espírito, na vida dos
fiéis, constitui exatamente o centro da nossa pesquisa, ao qual dedicamos toda a
segunda parte do nosso trabalho.
224
Cf. Jo 17,5.
Cf. 1Tm 2,5.
226
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 387.
225
56
2ª Parte
A Igreja
Esta segunda parte da nossa pesquisa consiste no ápice do nosso trabalho e
se subdivide em dois capítulos. No primeiro, apresentaremos o que entendemos
por Igreja, suas definições, etmologia, formação e desenvolvimento. O objetivo
deste primeiro capítulo é apresenatar e esclarecer todas os conceitos e elementos
necessários sobre a Igreja para um melhor desenvolvimento e aproveitamento do
tema. No segundo, chegando ao termo da nossa pesquisa, compreenderemos a
razão pela qual a Igreja é denominada sacramento de salvação. Neste também
desenvolveremos a temática dos ritos sacramentais como expressões da
sacramentalidade eclesial, suas implicações e importância para a vida dos fiéis.
Trata-se de dois capítulos de cunho eclesiológico, cujas bases foram prefixadas
pela Antropologia e Cristologia nos capítulos anteriores.
57
4
Compreensão de Igreja
4.1
Introdução
A compreensão da Igreja como sacramento de salvação depende de vários
outros componentes, que constituem a base desta reflexão. Só é possível entender
porque a Igreja tem a incumbência de salvar, por exemplo, quando se entende sua
etmologia e formação.
Este terceiro capítulo pretende ser uma apresentação de todos esses
elementos básicos e necessários para o nosso estudo, tal como um alicerce para o
quarto capítulo. Neste sentido daremos alguns apontamentos sobre o conceito de
Igreja, sua fundação e missão. Apresentaremos também alguns elementos
bíblicos, que possam nos enriquecer, dentre eles a imagem da Igreja como o
Corpo de Cristo presente no mundo.
Enfim, será um capítulo de definições e elementos básicos, mas necessários
para toda e qualquer reflexão posterior.
4.2
Definição de Igreja
A palavra igreja deriva do grego clássico ekklesia, que significava a reunião
dos cidadãos de uma cidade com objetivos legislativos ou deliberativos. Tal
assembléia reunia somente os cidadãos que gozavam de plenos direitos. O termo
indica a dignidade dos membros e a legalidade da assembléia.
Embora não tivesse sentido e aplicação religiosos, o termo foi adotado pela
Septuaginta para traduzir o termo hebraico Qahal, que juntamente com o termo
’Edah, significava, no hebraico tardio, a assembléia religiosa dos israelitas (Dt
31,30), mais precisamente, a assembléia religiosa local dos judeus que viviam fora
de Jerusalém227.
No Novo Testamento, seu uso mais antigo reflete tanto a idéia da
assembléia religiosa de Deus (Qahal Yahweh), como da assembléia local.
Inicialmente sua aplicação era restrita à Igreja de Jerusalém, mas com o tempo
227
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/1..., p.126.
58
estendeu-se a todos aqueles que acreditavam em Jesus e que sucediam
legitimamente a assembléia de Deus israelita228.
A experiência da ressurreição de Jesus e do envio do Espírito suscitou na fé
dos apóstolos a certeza de viver no tempo escatológico então iniciado, em que
Deus iria reunir e salvar definitivamente o seu povo. Um povo que não é mais
santificado por determinados ritos, mas por Jesus Cristo e pela participação na sua
vida e na vivência segundo o Espírito229.
Em sua fase inicial a Igreja cristã não tinha clara a sua distinção do
judaísmo. Não se via como uma nova religião. Somente quando os gentios foram
admitidos em número considerável e formaram, em outras cidades, novas igrejas
locais é que se tornou necessário afirmar que a Igreja cristã era uma comunidade
distinta do judaísmo. Contrariando a fé judaica, na Igreja os gentios podiam ser
admitidos com dignidade e plenos direitos, sem a necessidade de se tornarem
judeus e de se submeterem às normas judaicas. Essa questão, inclusive, deu
origem ao primeiro Concílio cristão, o de Jerusalém 230.
Nos evangelhos sinóticos só encontramos o termo ekklesia três vezes, todas
no evangelho de Mateus231. No capítulo dezesseis 232 a Igreja é comparada a um
prédio erguido sobre o apóstolo Pedro, seu alicerce. Em outro trecho233 há
insistência para que os discípulos levem ao conhecimento da assembléia os
membros que se recusam à correção fraterna, pela missão a eles conferida.
Neste contexto, o uso do termo ekklesia identifica-se claramente com o
grupo dos doze, que o próprio Jesus havia formado e que deveria continuar após a
sua partida. Esse grupo recebeu a missão de conquistar outros seguidores. Já a
construção sobre Pedro não indica somente uma peculiaridade do apóstolo em
relação à comunidade dos discípulos, mas também a unidade e a continuidade do
grupo que Jesus havia estabelecido234.
Nos Atos dos Apóstolos o termo aparece 23 vezes e designa apenas a igreja
local, normalmente a de Jerusalém, mãe e protótipo das outras igrejas. Isto porque
era Jerusalém quem examinava as condições das outras igrejas locais. Também
228
Cf. KEHL, M. A Igreja: Uma eclesiologia católica. São Paulo: Loyola, 1997, p. 257;
Mackenzie, J. L., op. cit., p. 432.
229
Cf. Ibid., p. 256.
230
Cf. At 15; Ef 2,11-22.
231
Cf. 16,18; 18,18.
232
Cf. Mt 16,18.
233
Cf. Mt 18,18.
234
Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 432.
59
era ela que, reunida em assembléia, decidia sobre os problemas postos pelas
outras igrejas235. Apesar disso, cada igreja local, com seu clero e com seu povo,
era considerada ekklesia com toda sua propriedade e integralidade. A inserção na
Igreja se dava pelo rito do Batismo 236.
Devemos lembrar também que os Atos dos Apóstolos muitas vezes
acrescentam à palavra ekklesia a expressão tou Theou (de Deus)
237
. Este
acréscimo indica que é Deus quem conclama e reúne a comunidade toda e nela se
encontra presente. Um outro elemento importante é que nos Atos nos Apóstolos a
Igreja nunca é denominada “Igreja de Cristo”, mas sempre como “Igreja de
Deus”. Isto encontra sua explicação no fato da expressão ter sido retirada do
Antigo Testamento e evidentemente deve expressar o pensamento de que aqueles
que acreditam em Cristo são os legítimos herdeiros do povo de Deus238.
Em Paulo a palavra ekklesia aparece 65 vezes, na maior parte dos casos
significando a igreja local239, mas também a universal. É o primeiro a usar o termo
no plural (ekklesiai) para indicar a igualdade das várias igrejas locais240. Em
Efésios e Colossenses utiliza-o com referência aos seguidores de Jesus, dispersos
pelo mundo. Fala de Cristo como cabeça do corpo, princípio mediante o qual se
realiza a plenitude da Igreja241. Vê em Cristo o esposo da Igreja242, modelo de
amor que os maridos devem testemunhar às suas mulheres. Por esta imagem,
retoma a antiga concepção de Yahweh como o esposo de Israel243.
A imagem da Igreja como corpo de Cristo também está na base do
pensamento paulino. Segundo ele, cada cristão é chamado a desempenhar com
amor sua função no corpo. Paulo dá aos membros da Igreja o título de “santos”,
isto é, aqueles que amam a Deus, aqueles que são santificados em Cristo, que
235
Cf. At 15,22.
Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 433; At 10,1ss.
237
Cf. At 20,28.
238
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. IV. 1: a Igreja um mistério de fé. Petrópolis: Vozes, p.
20.
239
Cf. 1Ts 1,1; 1Cor 1,1; 2Cor 1,1; 1Cor 16,1; 1Cor 16,19; Fm 2.
240
Cf. 1Ts 2,14; 1Cor 4,17; 11,16; 16,1; 2Cor 8,1.
241
Cf. Ef 1,22-23; Cl 1,18.
242
Cf. Ef 5,25ss.
243
Cf. Os 2,2ss; Jr 2,2.
236
60
foram chamados a ser santos244, os eleitos de Deus245. Títulos que entendem a
Igreja como o verdadeiro Israel, a legítima herdeira da promessa da Aliança246.
Para ele, onde quer que os crentes se reúnam e formem uma comunidade em
Cristo aí se realiza a ekklesia de Deus em sentido pleno; ali está a Igreja de Cristo
de maneira inteira e concreta247. Na Igreja particular se entrevê e se realiza a
Igreja universal248.
Nos textos de João a palavra ekklesia três vezes na terceira carta249 e vinte
vezes no Apocalipse, sempre com referência a igrejas particulares. Entre outras
atribuições, como no seu evangelho, Jesus é descrito como o Bom Pastor, que dá a
vida por suas ovelhas, os seus discípulos. Em outra passagem250 estes também são
descritos como ramos os quais devem estar unidos ao tronco, que é Cristo. Ao
final do seu evangelho, Jesus pede ao Pai pela unidade do rebanho251 e o confia a
Pedro, que seria o seu pastor252.
Todos esses textos têm em comum a consciência da ekklesia como igrejas
locais, reunidas em torno de uma organização própria. Gozam da união e da
presença do seu fundador. A Igreja é sempre compreendida como o corpo
organizado através do qual a salvação de Cristo é transmitida a toda a
humanidade. Vêem na Igreja a herdeira da Aliança e das promessas do Antigo
Israel, a manifestação e a propagadora do Reino de Cristo entre os homens253.
Essa realidade é apresentada pela Sagrada Escritura através de imagens
representativas, que têm como finalidade ajudar a entender e expressar aquilo que
é a Igreja do Senhor. É o que passamos a aprofundar agora.
4.3
Imagens da Igreja
Os autores sagrados nos apresentam esta nova realidade da ekklesia através
de imagens, em especial Paulo, com o objetivo de expressar aquilo que é a Igreja
244
Cf. 1Cor 1,2.
Cf. Cl 3,12; 2Tm 2,10; Tt 1,1.
246
Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 433; SCHMAUS, M. A fé da Igreja. vol. IV.1…, p. 20.
247
Cf. 1 Ts 2,14; KEHL, M., op. cit., p. 257.
248
SCHMAUS, A fé da Igreja. vol. IV… p. 20.
249
Cf. 3Jo 6.9.10
250
Cf. Jo 15.
251
Cf. Jo 17,20.
252
Cf. Jo 21,15.
253
Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 434.
245
61
de Jesus Cristo na sua natureza. Entretanto, considerando a grande variedade de
possibilidades, escolhemos apenas três para o nosso aprofundamento: Povo de
Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito. Os critérios para a escolha dos
mesmos foram a importância e a originalidade com que são apresentadas pelos
autores.
4.3.1
Povo de Deus
A multiplicidade de termos utilizados pela Sagrada Escritura para designar a
Igreja resulta de que nenhum deles consegue abranger na totalidade a sua
realidade. A expressão “povo de Deus”
254
visa ressaltar o caráter mistérico e
histórico da Igreja. Mistérico enquanto encontra sua origem na iniciativa divina.
Não se trata de um esforço humano para chegar até Deus, mas de um povo
constituído historicamente pelo próprio Deus, um povo que recebeu um chamado
e o acolheu. Histórico porque é um povo operante no mundo, num tempo e num
espaço, e que caminha na história, ainda não chegou à sua pátria definitiva. Nesta
relação o mistérico constitui o histórico e o histórico evidencia e revela o
mistérico.
Fazendo referência a Agostinho, E. Schillebeeckx nos diz que esse povo
surgiu num tempo bem anterior ao da Nova Aliança estabelecida por Cristo e foi
preparado por três etapas, as quais compreendem as três fases da Igreja255.
A primeira é referente ao paganismo religioso, quando pelo senso religioso
(sensus fidei) o homem percebe que é chamado a uma vida de comunhão com
Deus; trata-se de uma fase obscura, caracterizada pelo politeísmo.
Toda a
humanidade está sujeita ao apelo interior de Deus, que convida a comunhão de
graça com ele. No paganismo este apelo vago, na medida que é ouvido por um
coração sincero, suscita logo um sentimento obscuro de Deus redentor que se
empenha pessoalmente pela salvação dos homens. Mas tal experiência religiosa
interior, operada pela graça, não alcançava ainda a forma visível desta graça, que
permanecia, por assim dizer, oculta, sob a forma desconhecida, no mais profundo
254
A palavra povo, Láos em grego, é muito significativa. Comporta um caráter salvífico, isto é, a
missão da Igreja na continuação da obra de Cristo. O que designa a qualidade diferencial desse
povo é o adjunto adnominal restritivo a ele atribuído: de Deus. Não se trata de um povo qualquer,
mas o “povo do alto”, os “cidadãos do céu”.
255
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 13.
62
do coração humano. Também o paganismo procurou dar forma à sua expectativa
interior, que originou uma diversidade de formas religiosas. Por não terem eles a
sustentação de uma revelação especial e visível de Deus tornaram-se um
emaranhado de religiosidades, de deformações e até de decadência moral. Apesar
disso, a “comunidade religiosa pagã”
futura Igreja de Jesus Cristo
257
256
foi o primeiro e providencial esboço da
.
A segunda fase trata do povo de Deus presente no Povo de Israel. É a Qahal
Adonai258, onde acontece a primeira manifestação visível da graça de Deus, cujo
tema é aliança259 e o lema, a fidelidade: “Sereis o meu povo e eu serei o vosso
Deus”
260
. Do ponto de vista semântico, esse conceito está associado
principalmente ao diálogo entre Iahweh e Israel. É empregado, sobretudo, quando
Deus ou um dos seus profetas interpela Israel e quando Israel ora a Iahweh. Nos
tempos pós-davídicos, a expressão “povo de Deus” é aplicada na maioria das
vezes para referir-se a todo o Israel. Expressa a sua autocompreensão de ser o
povo de propriedade de Iahweh, que ele escolheu para si e com o qual ele sabe ser
comprometido em aliança261.
A terceira fase refere-se à Igreja dos primogênitos, fundada sobre os
apóstolos e instituída na nova Aliança. O Novo Testamento designa tanto Israel
quanto a Igreja como Povo de Deus. Todavia, esse emprego com referência ao
Israel contemporâneo restringe-se somente àquela parte que aceitou a fé em Jesus
Cristo262. Pode-se dizer que as fases anteriores à Igreja cristã foram para esta uma
preparação e que por este Israel que se tornou cristão a Igreja está em
continuidade com o povo de Deus do Antigo Testamento e com a aliança que este
fez com ele263. Deste modo, encontramos a imagem da vinha, do pastoril, do
corpo místico, da casa de família, do povo de Deus, entre outras. Dentre todas
essas o Concílio Vaticano II preferiu dar maior enfoque à compreensão da Igreja
como povo de Deus, pois ressalta a comunhão dos batizados e a sua dimensão
256
Expressão utilizada pelo próprio autor. Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 16.
Cf. Ibid., p. 14-16.
258
Expressão hebraica usada no Antigo Testamento para designar o povo escolhido, a assembléia
de Deus reunida em oração.
259
Cf. Dt 8,6-7.
260
Cf. Ex 6,7.
261
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 272.
262
Cf. At 3,23; 15,4; Rm 9,24.
263
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 274.
257
63
histórica enquanto presente neste mundo e evidencia a natureza comunitária da
Igreja. Sobre isto nos diz a Constituição Dogmática Lumen Gentium:
Deus (...) escolheu, por isso, a nação israelita para Seu povo. Com ele estabeleceu
uma aliança; a ele instruiu gradualmente, manifestando-Se a Si mesmo e ao
desígnio da própria vontade na sua história, e santificando-o para Si. Mas todas
estas coisas aconteceram como preparação e figura da nova e perfeita Aliança que
em Cristo havia de ser estabelecida e da revelação mais completa que seria
transmitida pelo próprio Verbo de Deus feito carne. Eis que virão dias, diz o
Senhor, em que estabelecerei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova
aliança... Porei a minha lei nas suas entranhas e a escreverei nos seus corações e
serei o seu Deus e eles serão o meu povo... Todos me conhecerão desde o mais
pequeno ao maior, diz o Senhor (Jer 31, 31-34). Esta nova aliança instituiu-a
Cristo, o novo testamento no Seu sangue ( 1Cor 11,25) 264.
Esse povo nasce da fé em Cristo. É o “povo que em outro tempo não era
povo mas agora é povo de Deus”265. Tem por cabeça Cristo, por condição a
dignidade de filhos de Deus, por lei o mandamento do amor e por ideal a busca do
Reino de Deus. A Constituição Dogmática Lumen Gentium no capítulo 13 afirma
que todos são chamados a fazer parte desse povo. Nele não há mais separação
entre judeus e gentios266. Seus membros são verdadeiramente irmãos267, pois são
filhos do mesmo Pai268. Pertencem a Cristo, porque são seus discípulos269.
Ao novo Povo de Deus todos os homens são chamados. Por isso, este Povo,
permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os
séculos, para se cumprir o desígnio da vontade de Deus que, no princípio, criou
uma só natureza humana e resolveu juntar em unidade todos os seus filhos que
estavam dispersos (Jo 11,52). Foi para isto que Deus enviou o Seu Filho, a quem
constituiu herdeiro de todas as coisas (Hb 1,2), para ser mestre, rei e sacerdote
universal, cabeça do novo e universal Povo dos filhos de Deus. Para isto Deus
enviou finalmente também o Espírito de Seu Filho, Senhor e fonte de vida, o qual é
para toda a Igreja e para cada um dos crentes princípio de agregação e de
unidade na doutrina e na comunhão dos Apóstolos, na fração do pão e na oração
(At 2,42) 270.
Neste novo povo se cumprem as promessas ao antigo Israel, de tal forma
que Paulo pode aplicar a Igreja a fórmula da primeira aliança: “ Serei o seu Deus e
264
Cf. LG 9.
Cf. 1Pd 2,10
266
Cf. At 15,14.
267
Cf. Mt 18,34.
268
Cf. Mt 18, 1-4.
269
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 324.
270
Cf. LG 13.
265
64
eles serão o meu povo”271. Chama a Igreja de “Israel de Deus”272 e a distingue do
Israel segundo a carne273. Vê nos cristãos os descendentes de Abraão e os
herdeiros da promessa274. Aplica à Igreja predicados atribuídos a Israel: “Vós,
porém, sois uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo
adquirido para Deus, a fim de que publiqueis as virtudes daquele que das trevas
vos chamou à sua luz maravilhosa” 275.
Apesar disso, deve-se rejeitar toda idéia de que o “novo” povo de Deus viria
para substituir ou romper com o Antigo Testamento. Ao contrário, o povo de
Deus no Novo Testamento é um conceito teocêntrico, que garante a continuidade
da história de Deus com Israel. Assim como há um só Deus, assim também há um
só povo de Deus276.
O Evangelho de Mateus é o que mais nos permite seguir a origem e a
transformação desse Povo. Para ele, a Igreja é o verdadeiro Israel. Todo o enfoque
que Mateus dá à revelação do Antigo Testamento é para mostrar que há uma
continuidade entre a Antiga e a Nova Aliança, que o teocentrismo do Antigo
Testamento se realiza em Cristo Jesus. Ele é o messias esperado, em quem se
realizou a promessa de Deus. Identifica o Reino de Deus com o Reino pregado
por Cristo e vê o Povo de Deus como uma das manifestações desse Reino,
presente entre nós277. Para ele, Jesus é o novo Moisés, o qual tem a missão de
conduzir o povo à sua nova pátria, à terra prometida, que agora passa a ser o
Reino dos céus.
Lucas também tem suas características próprias. Desenvolve uma teologia
da história da salvação. Para ele os acontecimentos do mundo se desenrolaram
numa perpétua evolução dirigida por Deus. Mostra que é o Espírito quem
assegura a presença e a ação de Deus nas comunidades, a unidade e a comunhão
da Igreja. Segundo ele, a Igreja, bem como toda a história da salvação, foi
preparada por Deus na sua providência278.
Tanto Mateus quanto Lucas destacam que o Mestre veio para dar início a
um novo tempo e a uma nova economia de salvação. Ora, na última ceia, no
271
Cf. 2Cor 6,16.
Gl 6,16.
273
Cf. 1Cor 10,18.
274
Cf. Gl 3,29.
275
Cf. 1Pd 2,9.
276
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 274.
277
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 324.
278
Cf. Ibid., p. 325.
272
65
momento em que o drama da paixão atingiria o seu ponto máximo Jesus anuncia a
eclosão da Nova Aliança. Dá sua vida pela redenção de muitos. Seu próprio
sangue é o selo dessa Aliança. Diz que estará presente nas reuniões daqueles que o
invocarem279 e que os discípulos renovarão essa benção do pão e do cálice em sua
memória, na esperança da sua volta280. O grupo dos doze se vê no centro de uma
forma nova de aliança baseada na morte redentora de seu mestre e na continuação
de seu sacrifício 281.
Mas a escolha de Doze apóstolos282 também não foi ocasional. Seu número
relembra o das doze tribos de Israel. Os Apóstolos passam a ser entendidos como
os novos patriarcas, sobre quem Cristo estabeleceu o novo Povo283. Trata-se do
início de um novo tempo, o da Igreja. “Ninguém entre os evangelistas é tão
explícito sobre os caracteres da Igreja como Mateus. Coloca-nos diante dum
grupamento tão organizado que se pode falar de instituição” 284.
Mostra que os apóstolos são conscientes da sua unidade, função, poderes e
missão285 e que ser discípulo implica comunhão de existência com os outros
discípulos e com Mestre, bem como o reconhecimento de Jesus como Messias.
Participam das instruções especiais, levam uma vida semelhante à de Jesus. Por
fim, participam da mesma sorte do seu mestre: sofrimento, morte e
ressurreição286.
A Igreja é o germe da salvação, início do Reino de Deus aqui na terra, a
reunificação definitiva de Israel, instrumento de redenção para todos, sacramento
universal de salvação.
4.3.2
Corpo de Cristo
Essa imagem é própria de São Paulo e reflete a comunicação que Cristo faz
de sua vida aos ressuscitados pelo Batismo e pela Eucaristia287. Os cristãos são
membros uns dos outros por participarem da mesma vida divina de Cristo. O
279
Cf. Mt 18,20.
Cf. Lc 22,19.
281
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 326.
282
Cf. Mt 10,9.
283
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 326.
284
Cf. Ibid., p. 324.
285
Cf. Mt 18, 17-18.
286
Cf. Mt 17, 21; BARAÚNA, G., op. cit., p. 324.
287
Cf. 1Cor 10,16; 12,12-27; Rm 12,4-8.
280
66
elemento fundamental de comunhão pelo qual todos os fiéis se tornam membros
desse corpo é a vida nova em Cristo obtida pelos méritos de sua redenção.
A figura da Igreja como corpo está na base do apelo Paulino à unidade e à
cooperação dos cristãos288. Desenvolve esta imagem a partir de dois níveis: o
primeiro, na Carta aos Coríntios e aos Romanos. Nelas Paulo enfatiza a dimensão
horizontal da comunhão cristã, isto é, a relação de cooperação e solidariedade
entre os membros do Corpo. Trata-se da caridade como princípio de unidade,
comunhão e solidariedade entre as igrejas locais e dos membros de cada igreja
entre si.
Já o segundo nível, se dá na Carta aos Efésios e aos Colossenses. Nestas
Paulo enfatiza a necessidade da unidade do corpo com a cabeça, que é Cristo
(dimensão vertical) para lutar contra os principados e as potestades, que tentam
fazer com que os membros da Igreja se percam. Neste segundo nível, a Igreja
aparece como uma realidade celestial, repleta das forças divinas.
Estes dois níveis se desenvolvem na Igreja a partir de três realidades:
Primeiro, a partir do próprio Cristo, que por nós se entregou reconciliando-nos
com Deus e entre nós289; segundo Paulo ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja290.
Dele todo o corpo recebe crescimento e desenvolvimento na sua edificação291.
Como cabeça, Cristo também é o sustentador e o conservador deste corpo social,
que é a Igreja292. Esta imagem é própria de Efésios e Colossenses293 e não se
encontra nas outras cartas de Paulo 294.
Cristo é cabeça da Igreja porque avantajando-se na plenitude e perfeição dos dons
sobrenaturais, desta plenitude haure o seu corpo místico. Com efeito, notam
muitos Padres, assim como no corpo humano a cabeça possui todos os cinco
sentidos, ao passo que o resto do corpo possui unicamente o tato, assim todas as
virtudes, dons e carismas que há na sociedade cristã, resplandecem de modo
singularíssimo na cabeça, Cristo. "Aprouve que nele habitasse toda a plenitude"
(Cl 1,19); a ele exornam todos os dons que acompanham a união hipostática;
porquanto nele habita o Espírito Santo com tal plenitude de graças, que não se
pode conceber maior. A ele foi dado poder sobre a carne (cf. Jo 17,2); nele se
encerram "todos os riquíssimos tesouros de sabedoria e ciência" (Cl 2,3). A
própria ciência de visão é nele tal que supera absolutamente em compreensão e
clareza a ciência correspondente de todos os bem-aventurados. Enfim, é ele tão
288
Cf. 1Cor 12,12ss; Rm 12, 4ss.
Cf. Rm 7,4.
290
Cf. Cl 1,18.
291
Cf. Ef 4,16; Cl 2,19; CARTA ENCÍCLICA MYSTICI CORPORIS, n. 33 em www.vatican.va
292
Cf. Mystici Corporis, n. 51-57.
293
Cf. Cl 1,18; Ef 1,22; 4,15s.
294
Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 61.
289
67
cheio de graça e verdade, que todos nós recebemos da sua inexaurível plenitude
(cf. Jo 1,14-16) 295.
O segundo, diz respeito à Eucaristia, sinal de unidade e comunhão da Igreja.
Por este sacramento, a Igreja, em comunhão de fé e de oração, se torna também
ela sacramento corporal de Cristo entre nós e para o mundo296. Da participação no
único corpo os cristãos passam a ser o próprio Corpo do Senhor 297. A unidade de
um só corpo é simbolizada pela participação no único pão e no mesmo cálice298.
Por ela os irmãos se tornam um só em Cristo Jesus 299.
Ao participar realmente do corpo do Senhor, na fração do pão eucarístico, somos
elevados à comunhão com Ele e entre nós. «Porque há um só pão, nós, que somos
muitos, formamos um só corpo, visto participarmos todos do único pão» (1Cor
10,17). E deste modo nos tornamos todos membros desse corpo (1Cor 12,27),
sendo individualmente membros uns dos outros» (Rm 12,5) 300.
O terceiro e último nível é eclesiológico: o batismo no único Espírito nos
insere no único corpo301. Os membros da Igreja são um porque são batizados por
um só Espírito, na mesma fé, e inseridos em um único corpo302. Em Coríntios são
chamados de um só corpo de Cristo303.
Segundo Paulo, os batizados formam uma comunidade em Espírito, fazem
parte de um mesmo corpo. Mas não um corpo qualquer, mas o corpo de Cristo304.
Segundo Paulo, Cristo e o Espírito são o princípio unificante deste corpo uno,
criado pelo Batismo dessa comunidade uma dos crentes entre si, produzida por
esse sacramento. Neste corpo, também chamado de mistério de Cristo305, se
cumpre o eterno plano salvífico de Deus, que abrange a todos os homens, judeus e
295
Cf. Mystici Corporis, n. 47.
Cf. Fl 3,21; 1 Cor 15, 44ss; 1Cor 10,16s; 11, 24s.
297
Cf. 1Cor 12,27; Rm 12,5; KEHL, M., op. cit., p. 262.
298
“O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que
partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora
sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão” (1Cor 10,
16-17).
299
Cf. MACKENZIE, J.L., op. cit., p. 433.
300
Cf. LG 7.
301
Cf. 1Cor 12,13; Gl 3,28; Ef 4,4; Cl 3,15.
302
Cf. 1Cor 12,13.
303
Cf. 1Cor 12,27; 6,15.
304
Cf. 1Cor 12,12.
305
Cf. Ef 3,4.
296
68
pagãos na unidade de uma só fé306. Já os outros sacramentos nos fazem viver mais
intimamente a vida do corpo, em especial a Eucaristia307.
Este último se refere, sobretudo, à unidade da comunidade308 e à
solidariedade aos mais fracos e necessitados309.
Esta imagem da Igreja como corpo aparece com bastante regularidade nos
textos paulinos, mas nem sempre da mesma maneira.
Apresenta algumas
diferenças entre o uso nas epístolas pastorais e nas demais, (Coríntios,
Colossenses, Efésios e Romanos). O apóstolo fala do corpo como “membros de
Cristo”
310
, como “corpo de Cristo” ou ainda, do “corpo em Cristo”
311
. Apesar
disso, em nenhuma parte encontramos em Paulo a imagem da Igreja como corpo
místico de Cristo. O termo místico só foi associado à imagem do Corpo, bem mais
tarde, provavelmente a partir de meados do século XII, pela teologia312.
Outro elemento importante da corporalidade eclesial diz respeito aos
ministérios. Para Paulo, a unidade da Igreja também se manifesta sob a via
carismática. Assim como num corpo existem vários membros, cada um com a sua
função específica, assim também a Igreja possui uma diversidade de carismas e
funções, que compõem a sua riqueza e organicidade: apóstolos, profetas, doutores,
taumaturgos. Para ajudar a Igreja, Deus conferiu carismas de cura, assistência,
governo, línguas, e outros. Cada cristão deve cumprir a função que lhe foi
atribuída313 e usar dos diferentes dons de maneira que correspondam ao seu
destino e ao bem de toda a comunidade
314
. Em tudo, Paulo insiste na caridade
como o maior dos dons315. Sobre isto nos diz a epístola aos Romanos: “Assim
como em um só corpo temos muitos membros, mas todos os membros não têm a
306
Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 61.
Cf. Ibid., p. 59-60.
308
Cf. 1Cor 12, 12-27.
309
Cf. 1Cor 11,22ss.
310
No capítulo 6 da primeira carta aos Coríntios Paulo combate uma falsa compreensão da
liberdade cristã, que levava os cristãos a dispor de si numa busca desordenada do prazer. Contra
isso o apóstolo recorda à comunidade de Corinto que devido ao batismo o homem todo, corpo e
alma, é propriedade do Senhor e que por esse motivo, não pode mais fazer o que simplesmente lhe
apraz. Pelo batismo, o Espírito estabeleceu uma união tão intima entre Cristo e os cristãos que
podem ser denominados membros de Cristo: Não sabeis que vossos corpos são membros de
Cristo? Tomarei, então, os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta? De modo
algum! (1Cor 6,15). Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 59.
311
Cf. Ibid., p. 59.
312
Cf. Ibid., p. 58.
313
Cf. 1Cor 12,28ss.
314
Cf. MACKENZIE, J.L., op. cit., p. 433.
315
Cf. 1Cor 13, 1-13.
307
69
mesma função, assim nós, embora sejamos muitos somos um só corpo em Cristo,
e cada um de nós membros uns dos outros”316.
4.3.3
Templo do Espírito Santo
Segundo o apóstolo Paulo há um terceiro conceito fundamental, que faz
parte do conceito geral do que se entende por Igreja. É a compreensão da Igreja
como templo de Deus317: “Não sabeis que sois o templo de Deus, e que o Espírito
Santo habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá.
Porque o templo de Deus é sagrado, e isto sois vós” 318.
Este conceito está associado à idéia de um edifício e alude à Igreja como
uma estrutura orgânica, estabelecida sobre a graça de Deus319. Se evocarmos a
teologia veterotestamentária do valor do templo, passamos então a compreendê-la
como o lugar privilegiado das epifanias divinas, onde se cumpriram as promessas
feitas320 a Israel321.
Segundo Agostinho “O que é o nosso espírito, isto é, a nossa alma em
relação aos nossos membros, assim é o Espírito Santo em relação aos membros de
Cristo, ao Corpo de Cristo que é a Igreja”
322
. Esta formulação entrou nos textos
do Concílio Vaticano II. O Espírito é o princípio vital dos serviços e dos membros
da Igreja, a garantia da unidade e da presença da Igreja através dos tempos.
Relaciona-se com a Igreja de modo semelhante à relação existente entre a alma e
o corpo A imagem significa que a Igreja é o que é pelo Espírito Santo. Na sua
ação encontra sua identidade e autenticidade. É o Espírito Santo que faz da Igreja
o templo vivo de Deus entre os homens323. Segundo Santo Irineu, “onde está a
Igreja, ali também está o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus, ali está
a Igreja e toda graça” 324.
316
Cf. Rm 12, 4-5.
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 133.
318
Cf. 1Cor 3, 16-17.
319
Cf. Ef 2,19; Gl 6,10; 1Cor 3,5ss; Ef 2,19ss; 4,7ss.
320
Cf. Lv 26,11s; Ez 37,26; Zc 8,8.
321
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 134.
322
Citação de Santo Agostinho, Sermões 267,4, em CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, São
Paulo: Loyola/ Vozes, 1993, n. 797, p. 230.
323
Cf. 2Cor 6,16.
324
Citação de Santo Irineu, adv. Haer. 3,24,1 em CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit.,
797, p. 230.
317
70
O Espírito é chamado 'alma da Igreja' também no sentido de que leva sua
luz divina a todo o pensamento da Igreja, que guia para a Verdade325. É a ele que
a Igreja deve a sua existência, por ele se edifica, é ele o doador de seus dons e o
princípio de conversão para os crentes. É também por ele que o descrente é
surpreendido pelos membros da comunidade repleta do Espírito, e pode adorar a
Deus, confessando que realmente ele está no meio de nós326.
Nesta dinâmica, compreendemos como templo de Deus não só a Igreja
“toda”, pensada universalmente, mas também cada fiel particular e pessoalmente
considerado. Todo cristão, por ser membro do único Corpo de Cristo, que é a
Igreja, também é habitado pelo Espírito Santo e é conduzido por sua graça327. O
Espírito está presente na Igreja e a enche, nela ora e instrui. É ele que dá vida,
ação e movimento à Igreja. O Espírito Santo está em atividade permanente nos
membros da Igreja328. Ele é o principio de toda ação vital e verdadeiramente
salutar de cada uma das diversas partes do corpo 329.
O Espírito opera de múltiplas maneiras a edificação do corpo inteiro na
caridade: pela palavra de Deus, que tem o poder de edificar330, pelo Batismo,
através do qual forma o corpo de Cristo, pelos sacramentos, que proporcionam
crescimento e cura aos membros de Cristo, pela "graça concedida aos apóstolos,
que ocupa o primeiro lugar entre os seus dons"
331
, pelas virtudes que fazem agir
segundo o bem, e enfim pelas múltiplas graças especiais, chamadas de carismas,
através das quais torna os fiéis aptos e prontos a tomarem sobre si os vários
trabalhos e ofícios, que contribuem para a renovação e maior incremento da Igreja
332
.
A este Espírito de Cristo, como o princípio invisível, deve atribuir-se também a
união de todas as partes do corpo, tanto entre si como com sua cabeça, pois que
ele está todo na cabeça, todo no corpo e todo em cada um de seus membros 333.
Todos nós que cremos em Cristo somos as pedras vivas desse Templo.
Contudo, a chave desta casa é a vivência do amor. Por ser compreendido como o
325
Cf. Jo 16, 13-15.
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 134.
327
Cf. Ibid., p. 134.
328
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 68.
329
Cf. Mystici Corporis, n. 54-55.
330
Cf. At 20,32.
331
Cf. LG, n. 7.
332
Cf. LG, n. 12.
333
Cf. Mystici Corporis, n. 55.
326
71
amor intradivino, e a Igreja viver desse Espírito, pode-se dizer que a Igreja
aparece como a comunidade do amor. O amor é o mais profundo mistério da
Igreja, não apenas pela associação e vivência de seus membros, mas como uma
aliança decretada pelo amor de Deus334. Sobre isto nos diz o Papa João Paulo II:
“É bom pensar que esta casa está ainda em construção pelo mundo inteiro. Temos
por construtora a graça de Deus” 335.
O que o Espírito fez para a constituição da Igreja, continua a fazer no
decorrer da sua história. Ele está sempre ativo como enviado do Pai celeste, como
presente e dom, que Jesus Cristo fez à sua Igreja, que é o seu corpo. Segundo os
Atos dos Apóstolos, também é o Espírito quem dá a incumbência definitiva de
levar a salvação aos pagãos 336.
4.4
A Igreja no projeto de Deus
O Novo Testamento não chama de ekklesía a reunião dos discípulos antes
da morte de Jesus na cruz, nem designa por este termo o grupo dos doze
apóstolos. Antes, entende por ekklesía o grupo daqueles que depois da Páscoa
crêem na Ressurreição337.
Para os evangelistas, especialmente Lucas, a realidade da Igreja é
inseparável do mistério da Páscoa de Cristo, que começa na encarnação, passa
pela morte e chega ao seu máximo na ressurreição do Senhor. Neste contexto está
o Pentecostes como o grande fruto da Páscoa, a “festa da colheita” da salvação
que o Senhor realizou em nosso favor. Sua importância está no fato de que através
dele a Igreja se tornou publicamente a continuadora deste Mistério nos tempos de
hoje. Traz em si a novidade da salvação proclamada pelo Senhor.
Dentre as várias formas com que a Igreja é chamada a testemunhar a fé em
Jesus está a experiência da comunhão. Os Atos dos Apóstolos atestam que o
testemunho dos primeiros cristãos era motivo de conversão para muitos que os
viam e que o amor (caridade) era o fundamento dessa relação com o outro338. A
334
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 68.
JOÃO PAULO II em L' Osservatore Romano de 02-12-90.
336
Cf. At 28,28; SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 62.
337
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia, carne de Cristo: en las fuentes de la eclesiologia
de comunion. Verdade e Imagem: Salamanca. 1994, p. 15.
338
Cf. At 4, 32-35.
335
72
comunhão se encontra na base do projeto divino para a vida da Igreja e constitui
um dos seus elementos mais essenciais.
Mas tudo isso só é possível, pela ação do Espírito Santo, desde o início
compreendido como alma da Igreja, princípio e comunhão de Deus em si, e da
humanidade com Deus. É também por ele que os cristãos se tornam capazes de
testemunhar o ressuscitado em meio aos desafios da vida.
Assim, nos propomos a apontar, embora de maneira muito sintética, qual a
relação existente entre a Eclesiologia e a Pneumatologia e qual a contribuição que
ambas podem dar uma à outra e a partir da ação do Espírito, princípio de
comunhão, apresentar o tema da comunhão eclesial.
4.4.1.
A Igreja como obra do Espírito
Segundo os relatos do Novo Testamento, a percepção da Igreja enquanto
comunidade historicamente constituída (ekklesia) começa a acontecer a partir do
derramamento do Espírito Santo, no evento de Pentecostes339. O Espírito é visto
como o dom de Deus prometido aos crentes, o fruto da Páscoa realizada em Jesus
Cristo, para que estes possam cumprir a missão que receberam: testemunhar o
Senhor até os confins da Terra340.
Na medida em que Deus cumpre a sua
promessa, ele reúne o seu povo numa configuração verdadeira e definitiva, a
Igreja, herdeira legítima da promessa.
No dia de Pentecostes (no fim das sete semanas pascais), a Páscoa de Cristo se
realiza na efusão do Espírito Santo, que é manifestado, dado e comunicado como
Pessoa Divina: de sua plenitude, Cristo, Senhor, derrama em profusão o Espírito.
Nesse dia é revelada plenamente a Santíssima Trindade. A partir desse dia, o
Reino anunciado por Cristo está aberto aos que crêem nele; na humildade da
carne e na fé, eles participam já da comunhão da Santíssima Trindade. Por sua
vinda e ela não cessa, o Espírito Santo faz o mundo entrar nos "últimos tempos", o
tempo da Igreja, o Reino já recebido em herança, mas ainda não consumado341.
Desde o seu início, a Igreja é vista como o espaço concreto e histórico em
que se dá o agir do Espírito Santo. Tanto a Igreja como a consumação da história
na ressurreição dos mortos e na vida eterna são consideradas na fé cristã como os
339
Cf. At 2, 1-36.
Cf. At 1,8.
341
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit., n. 731-732.
340
73
modos por excelência pelos quais o Espírito atualiza permanentemente e consuma
definitivamente o evento da auto-comunicação de Deus 342.
A Igreja é o lugar destacado e indestrutível343 da presença do Espírito de
Deus no mundo, presença que une (una), santifica (santa), que abrange tudo
(católica) e faz permanecer na verdade original (apostólica).
Dentre estes modos de ação gostaríamos de destacar o aspecto da
comunhão, visto que o Espírito, como o amor unitivo de Deus, reúne os homens
numa verdadeira “comunidade de fé”. Este ponto de vista também é ressaltado
bastante pelo Concílio Vaticano II; neste sentido, encontramos na Constituição
sobre a Igreja: o mesmo Espírito une por si e por sua força, assim como os
membros unem o corpo por meio da ligação interna, produz e estimula o amor
entre os fiéis 344; ou ainda, no Decreto sobre o Ecumenismo:
O Espírito Santo, que habita nos crentes, que enche e governa toda a Igreja, é
quem realiza maravilhosa comunhão dos fiéis e une todos tão intimamente em
Cristo, sendo o princípio da unidade da Igreja. É ele quem causa a diversidade das
graças e dos ministérios 345.
Poderíamos nos perguntar: Quais os motivos para se fazer uma análise
pneumatológica da Igreja enquanto comunhão? Segundo M. Kehl, existem alguns
argumentos aos quais podemos acorrer: primeiro, o Espírito Santo como aquele
que possibilita a fé comunitária.
Normalmente, trata-se do Espírito a partir de Cristo. Pelo Cristo
historicamente perceptível, exaltado em sua morte e ressurreição, é transmitido o
Espírito Santo como dom da sua presença permanente entre nós. Em outras
palavras, para se saber quem é o Espírito Santo deve-se olhar para Jesus Cristo
histórico e glorificado. Neste sentido, o Espírito é compreendido como o dom do
amor de Deus ofertado a nós em Jesus Cristo, Deus feito homem para a nossa
salvação.
Por outro lado, existe outra perspectiva um pouco menos difundida e
valorizada, não obstante a isso, igualmente legítima, que vê o espírito Santo como
a possibilidade “transcendental” da fé em Jesus Cristo. Que o Jesus histórico é
342
KEHL, M., op. cit., p. 63.
Cf. Mt 16,18.
344
LG, n. 7.
345
DECRETO CONCILIAR UNITATIS REDINTEGRATIO, n.2 em DOCUMENTOS DO
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Paulus: São Paulo, 1997.
343
74
realmente o Cristo e, portanto, o acontecer da auto-comunicação de Deus em
pessoa, que o crucificado ressuscitado dos mortos e exaltado, só pode ser
reconhecido no poder e na ação do Espírito Santo346. Neste sentido, a cristologia
implica a pneumatologia como seu pressuposto347.
Da mesma origem formal que a habitação de Deus em nós do Espírito Santo como
“espaço” único e abrangente que possibilita a nossa fé na revelação de Deus em
Jesus Cristo. Todo encontro de fé com o Deus que nos agracia acontece “no
Espírito Santo”; sem essa pré-condição do espaço do encontro, proporcionado por
Deus e que nos abre os olhos, ou seja, o Espírito Santo, não pode haver fé. Pois só
quem se permite entrar na amorosa relação entre o Pai e o Filho, neste Espírito
que os une, pode ganhar os olhos do amor, com os quais pode reconhecer nos
Jesus histórico o Filho eterno do Pai. No Espírito Santo ficamos inteiramente
preenchidos e tomados por ele, de sorte que podemos confessar na fé: “Jesus
Cristo é o Senhor!” (Rm 10,9; 1Cor 12,3; Fl 2,11). Vale, pois, para uma teoria
teológica do conhecimento: ‘Deus, por assim dizer, já está no Espírito lá onde ele
chega por meio do Logos348.
Daqui torna-se compreensível que a Igreja, enquanto relação de fé
comunitária com Deus, só pode surgir e existir na medida em que os homens
entram em comunhão com o Espírito Santo349. Na medida em que o Espírito
possibilita, de uma só vez, esta fé pessoal e comunitária em Jesus cristo como
salvador, surge a Igreja. Também por esse motivo, a Igreja torna-se o espaço que
possibilita concretamente a fé, que os indivíduos recebem, pela pregação e pelo
Batismo e a desenvolvem na comunhão com os irmãos e em outras realizações da
Igreja350.
Ele dá, então, o "penhor" ou as "primícias" de nossa herança: a própria vida da
Santíssima Trindade, que é amar "como Ele nos amou". Este amor (a caridade de
1Cor 13) é o princípio da vida nova em Cristo, possibilitada pelo fato de termos
"recebido uma força, a do Espírito Santo" (At 1,8). É por este poder do Espírito
que os filhos de Deus podem (dar fruto. Aquele que nos enxertou na verdadeira
vida nos fará produzir "o fruto do Espírito, que é amor, alegria, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio" (Gl
5,22-23). "Se vivemos pelo Espírito", quanto mais renunciarmos a nós mesmos,
tanto mais "pelo Espírito pautemos também a nossa conduta (Gl 5,25) 351.
346
Cf. 1Cor 12, 3.
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 64.
348
Cf. Ibid., p. 65
349
Cf. Ibid., p. 65.
350
Cf. Ibid., p.66.
351
Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit., n. 735-736.
347
75
Em segundo lugar, temos como argumento em prol da relação entre
eclesiologia e Pneumatologia, o Espírito Santo como comunhão em Deus. Tratase de uma perspectiva trinitária sobre a ação do Espírito Santo na realidade
intradivina.
Aqui, o Espírito Santo é entendido como a unidade, como a união e
comunhão personificadas do amor em Deus, que se oferta e recebe infinitamente.
Essa concepção nos remete a Agostinho, que na sua obra De Trinitate tenta
cuidadosamente se aproximar da natureza do Espírito Santo. Segundo Agostinho,
o Espírito é o amor entre o Pai e o Filho. A doação de um ao outro se desenvolve
neste Espírito comum. Por outro lado, porém, o Espírito também procede dessa
doação. Ao mesmo tempo em que ele possibilita a doação, é ele mesmo o fruto
dessa doação recíproca. Nele culmina o doar-se mútuo entre o Pai e o Filho, nele
“se objetiva” e assume a figura de um dom352.
Se esse Deus vier depois a se doar às suas criaturas, chegará a elas como
esse dom, como força do Espírito para estabelecer unidade com Deus e entre todas
as criaturas. E chamamos exatamente de “Igreja” a esse acontecer do dom de
Deus acolhido353.
Em terceiro lugar, M. Kehl apresenta o Espírito Santo como entrega de
Jesus crucificado e ressuscitado; Ele entregou o Espírito354. Ou seja, na morte de
Jesus se manifestou a mais íntima dinâmica do amor de Deus como entrega e
doação, pois aí se entregam inteiramente o amor do Pai e do Filho, por aquele
doado e por este aceito, como dom do Espírito Santo aos homens e, de fato,
concretamente àqueles que foram com Jesus até o fim do caminho da cruz e se
mantiveram sob a cruz. Segundo São João, tal como uma pequena célula que
representava toda a Igreja, aqueles que estavam ao pé da cruz receberam, ao
morrer Jesus, o Espírito Santo como dom que lhes permitiu viver segundo o novo
mandamento de Jesus: Amai-vos uns aos outros! Assim como eu vos amei deveis
amar-vos uns aos outros355. Amor que se manifesta concretamente na entrega de
uns aos outros356.
352
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 67.
Cf. Ibid., p. 68.
354
Cf. Jo 19,30.
355
Cf. Jo 13,34;
356
Cf. Jo 15,12ss.
353
76
Neste gesto de entrega surge a Igreja como ícone de comunhão e amor do
próprio Deus357. A água e o sangue que brotam do coração aberto de Jesus na cruz
também são significativos. Segundo os Padres da Igreja podem ser interpretados
como os sinais do Batismo e da Eucaristia (interpretação espiritual), e neste
sentido, a consumação da sua entrega por nós. Neste contexto, estes sacramentos
da Igreja seriam, dentre outras, a forma como o Espírito nos faz participantes do
mesmo mistério salvífico de Cristo e ícones desta comunhão de amor no mundo.
Juntamente a estes sinais, pode-se associar a paz com que Jesus saúda os
discípulos após a ressurreição358. Esta deve ser lida como o sinal e fruto concreto
da entrega e da vivência do amor, que se realizam ação do mesmo Espírito Santo.
Toda a missão, testemunho, comunhão e realização da Igreja, inclusive os
sacramentos, sem a ação do Espírito não passariam de ações humanas e perderiam
toda “capacidade” de salvação, que é uma atribuição estritamente divina. Sem o
Espírito, a Igreja, Corpo Místico de Cristo, deixaria de ser templo do Espírito e se
tornaria uma mera instituição. Perderia, portanto, todo aspecto místicosobrenatural, apesar de situada historicamente num tempo e num espaço.
Assim, Pneumatologia e Eclesiologia possuem uma relação inegável e que
jamais pode ser desfeita, sob pena de a Igreja perder a sua razão de existir.
4.4.2
Igreja de comunhão
A existência cristã é fundamentalmente uma existência na Igreja. Se
pudéssemos resumir numa só palavra a natureza ou o princípio da vida cristã,
deveríamos falar propriamente de “comunhão” – comunhão com Deus e com os
demais na fé, na caridade e na esperança.
Acontece, porém, que muitas vezes resumimos esta comunhão ao âmbito do
serviço, como se a comunhão fosse um mutirão de pessoas reunidas para um
determinado trabalho. Na verdade ela implica mais que um serviço, implica a
vontade de estar com os demais na confissão de um mesmo Deus, para a
promoção do Reino de Cristo. Implica a busca de um mesmo ideal. “Não nos
enganamos ao afirmar que, sempre que se fala de uma existência evangélica
357
358
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 69.
Cf. Jo 20, 19-23.
77
vivida diante de Deus, o outro se encontra necessariamente no horizonte”
359
.A
existência cristã é necessária e essencialmente uma existência de comunhão.
Outro grande equívoco quando se fala de comunhão é pensar que unidade
seja sinônimo de uniformidade, duas realidades bem diferentes. Estar em
comunhão não significa uniformidade de pensamento ou opinião. A grande
característica e riqueza da Igreja de comunhão é que a unidade se estabelece na
diversidade. A diferença não é algo estranho à comunhão eclesial, mas parte
integrante e necessária do seu ser. Este princípio vale tanto para as comunidades
particularmente consideradas quanto para a comunhão entre as Igrejas locais
(paróquias, dioceses, conferências episcopais...)
360
. É também nesse sentido que
deve ser entendida a catolicidade ou universalidade da Igreja, isto é, no sentido
que reúne na única comunhão de Cristo as diversidades que brotam de sua
capacidade criadora. A uniformidade restringe o verdadeiro espírito de comunhão
da Igreja na medida em que se fecha à diversidade dos carismas361.
Nos textos paulinos a relação com o outro é apresentada como algo
essencial. O “outro” evoca primeiramente o Cristo, objeto do evangelho de Deus:
“Cristo morreu por todos a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas
para aquele que por eles morreu e ressurgiu”
362
. Ele é a fonte da vida cristã363,
aquele através do qual o Pai estabeleceu comunhão com os seres humanos364.
Neste conjugado da relação de Cristo com o Pai e do cristão com Cristo se define
a existência cristã365.
Um estudo ainda mais atento e apurado dos textos de Paulo nos permite
perceber também que a comunhão com Cristo é igualmente uma comunhão com o
Espírito. Todas as vezes que Paulo usa a expressão “em Cristo” está sempre a
associando à expressão “no Espírito”. Isto nos permite dizer que a vida em Cristo
é também uma vida no Espírito, que estar em Cristo é estar sob o signo e o poder
359
Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 13.
Cf. Ibid., p. 21.
361
Cf. Ibid., p. 22.
362
Cf. 2 Cor 5,15.
363
Cf. Rm 8, 31-39; TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 14.
364
Cf. Gl 2, 19-20; 6,17.
365
Daqui deriva uma situação que marcará profundamente a condição cristã. “A existência cristã é
em sua fonte radicalmente, por obra de Deus, a negação absoluta de toda auto-suficiência, de todo
isolamento do indivíduo em si mesmo”. A relação com o outro- esse outro que é antes de tudo
Deus- é intrínseca à existência cristã, a constitui. Onde não há comunhão com Jesus Cristo, não há
existência cristã365. Mas a relação com Cristo é inseparável da relação com os outros. O “outro”
[Deus] implica os “outros” [os irmãos na fé]. Cf. Ibid., p. 15-16.
360
78
do Espírito Santo e que o Espírito de Cristo é de forma semelhante o Espírito dos
cristãos. Estar em Cristo é, portanto, viver esta em Comunhão com o Espírito366.
Por outro lado, não se entende a atuação do Espírito senão em relação à obra
redentora de Cristo. Santo Irineu dizia que o Filho e o Espírito são as duas mãos
de Deus. O Espírito é aquele que recorda e faz acontecer a mesma obra salvífica
de Cristo no plano da visibilidade histórica, por meio da Igreja, “manifestação
visível da graça redentora de Cristo na figura de um sinal social” 367. Isto significa
dizer que existe uma relação de comunhão entre aqueles que acolheram o
evangelho. Para falar da comunhão nesta unidade de vida que vem do Espírito na
dependência de Cristo Paulo usa a expressão “Corpo de Cristo” 368.
São João também tem expressões próprias para falar dessa comunhão. Fala
através da imagem da vinha, isto é, dos ramos ligados à videira369; Fala da morada
como lugar de comunhão: “A casa de meu pai tem muitas moradas”
370
. Mas é,
sobretudo, no capítulo dezessete que São João explicita com toda clareza o
modelo de comunhão que Cristo deseja para a sua Igreja: “Que sejam um como eu
e o Pai somos um”
371
. Aqui Jesus explicita o máximo do seu desejo de que nós
sejamos na Igreja aquilo que ele mesmo é na sua relação pessoal com o Pai. Uma
comunhão que resguarda a individualidade das respectivas pessoas e que é
estabelecida sobre a virtude do amor, tal como podemos verificar no capítulo
quinze: “Ninguém tem maior do que aquele que dá a vida pelos amigos”
372
,
portanto, “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, amor que em Tiago é
interpretado por solidariedade, sobretudo pela acolhida aos pobres373.
Somos um povo sacerdotal e a nossa verdadeira liturgia deve ser o
oferecimento da nossa vida como um sacrifício vivo agradável aos olhos de Deus,
e é também neste sentido que deve ser entendida a Eucaristia, como o ápice da
comunhão e da nossa entrega de uns para como os outros e de todos a Deus374.
366
Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 16.
Cf. SCHILLEBEECKX, op. cit. p.54.
368
Cf. 1 Cor 12,13; TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 17.
369
Cf. Jo 15.
370
Cf. Jo 15,4.
371
Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 25-27.
372
Jo 15,13.
373
Cf. Tg 2, 1-13.26.
374
Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 97-108.
367
79
Segundo São Cipriano o nosso perfeito sacrifício é a nossa paz e concórdia
fraterna e o povo reunido em comunhão 375.
Este princípio de paz e de concórdia pela comunhão fraterna tem
implicações diretas sobre a organização estrutural da Igreja. Afeta a participação e
o senso de responsabilidade dos fiéis e nos leva a uma reflexão sobre a realidade
na qual nos encontramos. Em outras palavras, comunhão implica participação. É o
que nos propomos a desenvolver no próximo ítem.
4.4.3
Povo de Deus ou casa do Pai?
“Povo de Deus” e “casa do Pai” são duas lógicas diferentes que refletem e
determinam a nossa maneira de pensar e agir na e como Igreja e que afetam
diretamente a constituição e a estrutura da mesma.
A primeira lógica, do Povo de Deus (Láos tou Theou), tem como base o
princípio de igualdade e inclusão de todos os batizados, os quais constituem a
Igreja de Cristo, e que corresponde exatamente à proposta de retorno às fontes
primitivas empreendida pelo Concílio Vaticano II. Nesta proposta todos são vistos
como membros de um mesmo corpo, com igual dignidade, embora com funções
diferentes. Essa lógica ganha importância sobretudo quando se trata de ressaltar a
missão e a dignidade do leigo contra toda forma de totalitarismo e outros abusos
por parte dos clérigos, bem como de compreender e aplicar o ministério
hierárquico como uma forma de serviço.
Em segundo lugar temos a lógica dos códigos familiares greco-romanos,
que penetrou na Igreja e transformou a experiência da igualdade fundamental e da
comunhão entre os batizados numa escala de dominações e dependências. Sua
constituição é piramidal e o poder é concentrado, na sociedade romana, nas mãos
dos homens, e, posteriormente, na Igreja, nas mãos dos clérigos. Os leigos se
tornam meros espectadores, sujeitos às resoluções dos mesmos. A grande
conseqüência desse sistema é que os leigos não são considerados membros ativos,
sujeitos-protagonistas da fé. As comunidades ficam à mercê da “boa vontade” dos
padres, sem qualquer poder de decisão ou direito à participação. Os clérigos são
colocados em grau de superioridade e os leigos em situação de subserviência.
375
Cf. Ibid., p. 109.
80
Este tema é importante porque quando se trata de recuperar a eclesiologia de
comunhão é preciso ver a todos com respeito, dignidade e igualdade. O ponto de
partida é sempre o Batismo, sacramento que nos faz todos irmãos na mesma fé e
membros de um mesmo corpo. De acordo com a proposta conciliar é preciso que
a comunidade seja o lugar privilegiado da experiência da fé, e que todos sejam
protagonistas dessa missão376.
Embora ainda encontremos inúmeras dificuldades para superar os
problemas que insistem em se sobrepor à estrutura e à prática de comunhão, a
Igreja já deu grandes passos para a sua implementação. Destacamos aqui a
proposta do Concílio Vaticano II com seus avanços e desafios.
4.4.4
Proposta do Vaticano II
O Concílio foi acelerado por uma série de mudanças histórico-culturais -proximidade do fim da Segunda Guerra Mundial, crescimento do número de
ateus, aparecimento do fenômeno da secularização, descrédito das instituições -que o tornaram indispensável para um “aggiornamento” da Igreja. Segundo João
XXIII o grande objetivo do Concílio era que a Igreja, revendo sua prática, seu
testemunho e sua experiência, pudesse promover de modo mais eficaz a
evangelização do mundo na época. A maneira do Concílio realizar isso foi uma
forte tendência de retorno às fontes da Tradição e um reatamento das relações
rompidas entre Igreja e sociedade. Pelo Vaticano II passa-se de uma visão da
Igreja como “sociedade perfeita” (Concílio Vaticano I) para uma concepção mais
bíblica da Igreja enquanto “sacramento de salvação”, fórmula que se torna
fundamento para várias outras definições da Igreja377. Vários textos conciliares
apontam para uma eclesiologia de comunhão378.
O Concílio compreende o conceito de comunhão a partir de dois sentidos:
vertical e horizontal. Entende-se por comunhão vertical a comunhão com o
próprio Deus, que sendo Trindade é também um mistério de comunhão em si
mesmo; e no sentido horizontal, a comunhão dos homens entre si. Fala da relação
entre unidade e diversidade de modo harmonioso; diz que a Igreja é plural e que a
376
Cf. TEPEDINO, A. M. Eclesiologia de comunhão: uma perspectiva. In Atualidade teológica,
Rio de janeiro, Ano VI – 2002 – n. 11 – maio/agosto, p. 161-188.
377
Cf. PIE-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia. São Paulo: Loyola, 1998, p.22.
378
Cf. LG 4, 8, 13-15, 18, 21, 24s; DV 10; GS 32; UR 2-4, 14, 17-19, 22.
81
unidade se dá na diversidade de carismas e expressões. Dentre os documentos de
maior relevância do Concílio destacamos:
Lumen Gentium: resgata a perspectiva da Igreja como mistério de
comunhão sob a insígnia de “Povo de Deus” 379, capaz de unir os homens entre si
e, numa dimensão mais profunda, os seres humanos a Deus. Realça a condição
cristã comum a todos os batizados, embora esse princípio ainda não tenha sido
bem assimilado. Valoriza o sacerdócio comum dos fiéis. Questiona o modelo de
eclesiologia estabelecido a partir da hierarquia. Dá mais valor às iniciativas e
tradições das igrejas particulares/ locais 380, bem como à idéia de colegialidade
entre os conselhos, conferências e igrejas particulares. Passa de uma eclesiologia
onde o sujeito adere à Igreja para uma outra em que o sujeito é Igreja,
participante, membro ativo da comunidade de fé.
Gaudium et Spes: insere propriamente a Igreja no contexto no mundo atual.
Denuncia tudo o que ofende a dignidade e a vida humanas; ressalta o valor do
matrimônio e da família; valoriza o papel dos leigos no mundo para a construção
de uma nova civilização pautada no amor e na palavra de Cristo; são chamados a
ser testemunhas de Cristo no meio da sociedade381; ressalta também o valor da
cultura e dos meios de comunicação de massa; pede que seja empreendida e
concretizada uma “mentalidade de comunhão” 382; o cristão é compreendido como
aquele que deve viver a comunhão com Deus, com a Igreja e com a humanidade,
sobretudo através da promoção da justiça, da caridade e da paz. Apresenta a idéia
da comunhão através das imagens bíblicas do corpo de Cristo e do povo de Deus.
Vê a comunhão na Igreja como uma abertura para um diálogo com o mundo de
hoje.
Outro ponto também importante que não poderíamos deixar de mencionar
diz respeito ao ecumenismo, que a partir do Vaticano II teve grandes progressos.
A Constituição Lumen Gentium e o documento Unitatis Redintegratio
desenvolveram longas reflexões sobre o tema. Entre os avanços está a
compreensão de que a Igreja “subsiste” na Igreja católica, e não “é” a Igreja
Católica, compreendendo assim a legitimidade da presença de Cristo em outras
379
Cf. LG 2.
LG 23.
381
Cf. GS 36.
382
Cf. GS 53.
380
82
denominações religiosas cristãs383 e a denominação das outras confissões a partir
da sua auto-compreensão como “igrejas e comunidades eclesiais”, com as quais a
Igreja Católica está em comunhão ou conjunção384.
4.4.5
Hierarquia e laicato
Durante séculos a ação evangelizadora e apostólica da Igreja tem se
debruçado com muito exclusivismo sobre os clérigos e religiosos, sobre os que de
alguma forma fazem profissão de segregar-se do mundo ou apartar-se das coisas
terrenas para dedicar-se às coisas divinas.
Hoje a Igreja recorda aos fiéis leigos que a ação apostólica é também
incumbência sua, e que esta é a hora em que a eles compete principalmente,
atenção aos sinais dos tempos, por sentido e sinal cristão em todas as coisas de
nosso tempo, com o testemunho de sua vida e com sua intervenção, sobretudo nas
coisas temporais: família, sociedade, política, cultura... É exatamente pelo que são
que os leigos foram chamados a desempenhar uma ação apostólica de tipo laical,
secular, mas autenticamente eclesial.
O interesse da Igreja pela questão do laicato passa, historicamente, pelo
movimento de secularização. Este fenômeno marcou profundamente os primeiros
ensaios teológicos do Concílio e gerou discussões e reações em relação à entrada
desta realidade na definição tipológica do leigo. Segundo E. Schillebeeckx, tal
discussão teve o mérito de contribuir para que o termo leigo fosse definido
eclesiologicamente, isto é, a partir da própria natureza da Igreja, embora, num
primeiro momento, fosse lhe dada uma definição teológica e canônica negativa,
em oposição ao clero e aos religiosos, do leigo como “o não clero” 385. O Concílio
definiu como Leigo:
O conjunto dos fiéis, com exceção daqueles que receberam uma ordem sacra ou
abraçaram o estado religioso aprovado pela Igreja, isto é, os fiéis que, por
haverem sido incorporados em Cristo pelo Batismo e constituídos em Povo de
Deus, e por participarem a seu modo do múnus sacerdotal, profético e real de
383
Cf. LG 8.
Cf. LG 15; UR 13-24.
385
Cf. SCHILLEBEECKX, E. La définition typologique du laic chretien selon Vatican II em
BARAÚNA, G., L’Eglise de Vatican II. tomo 3. Paris: Cerf, 1966, p.1013.
384
83
Cristo, realizam na Igreja e no mundo, na parte que lhes compete, a missão de
todo povo cristão386.
Para J.B. Libânio foi fundamental a inversão da ordem dos capítulos da
Constituição, que coloca o Povo de Deus (cap.2) antes da hierarquia (cap.3) - ele
chama de “revolução copernicana” da Eclesiologia.
A importância de tal
“revolução” está em que o documento parte não de uma distinção de classes, mas
da igualdade fundamental e da comunhão estabelecida entre os batizados, que os
leva ao serviço de uns aos outros e que dá a todos direito e dignidade de
participação na mesma obra387. Porém, o fato de ter chegado ao nível do consenso
teológico não foi ainda suficiente. Segundo o mesmo autor, a definição de leigo
permaneceu ambígua, faltando-lhe ainda um caráter ontológico, que lhe desse
consistência na ordem do ser, do existir, e não fosse uma mera descrição
impressionista. 388.
O leigo é definido pelo Concílio por sua pertença ativa ao povo de Deus, a
Igreja. E por este motivo é visto como aquele que “compartilha da missão integral
da Igreja toda” 389. “Frisa a riqueza e a qualidade de ser membro e põe em relevo
tudo que é comum ao sacerdote e ao leigo no seu ser cristão e na sua atividade
cristã”
390
: Leigos e clérigos são igualmente membros do povo de Deus. O
Concílio reconhece as distintas funções do clero e dos leigos sem, no entanto,
deixar de vê-los como uma única comunidade (koinonia). Trata-se de uma
distinção funcional, pois no nível do valor intra-eclesial possuem a mesma
dignidade391. Hierarquia e laicato são vias complementares de ação para a
edificação de um mesmo edifício, que é a Igreja; longe de se oporem, devem se
completar.
Segundo E. Schillebeeckx, o reconhecimento do mundo como campo de
missão, foi uma grande conquista do Concílio, apesar de todas as hesitações392. A
partir dela o Concílio pode perceber e valorizar a presença daqueles que também
são membros da Igreja, participantes da “encarnação eclesial de Cristo” e, por ela,
386
LG 31.
Cf. LIBÂNIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 113.
388
Cf. Ibid., p. 114.
389
Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique…, p. 1023.
390
Cf. Idem.
391
Cf. LG 32.
392
Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique..., p. 1024.
387
84
da sua da tríplice função, sacerdote, profeta e rei393. Através dos leigos a Igreja se
faz presente e atuante na sociedade. São agentes propagadores do Reino nos
meios seculares.
A Igreja tem uma missão a cumprir no mundo e a grande peculiaridade do
leigo é esta: ser sal da terra e luz no mundo. O mundo como campo de experiência
e transfiguração cristã é propriedade irrenunciável do leigo394: viver no tempo
cada uma das atividades e profissões, bem como a vida familiar e social para nelas
testemunhar o Cristo. Só assim responderão à sua vocação e serão
verdadeiramente cristãos395.
No único povo de Deus, o Espírito suscita os pastores chamando-os a uma
função essencial de magistério, de governo e de santificação; a distinção entre os
pastores e laicato é e continua sendo de direito divino. Contudo, a continuação da
obra da salvação é tarefa de todos os fiéis396. Não é ocasional que no número 32
da Lumen Gentium se fala de “verdadeira igualdade” quanto à dignidade e ação
comum dos fiéis, o que indica uma relação de necessidade recíproca e de coresponsabilidade na missão. Em certos lugares, inclusive, a ação da Igreja só se
torna possível através da presença dos leigos397.
Tal definição, entretanto, ficou restrita ao âmbito jurídico, dependente da
“benevolência” do clero. Contudo, existe um tipo de participação dos leigos na
missão salvífica da Igreja que não depende da vontade da hierarquia: é uma
participação que brota de uma perspectiva sacramental e encontra a sua fonte nos
sacramentos do Batismo e da Crisma. Segundo M. Gozzini a solução deste
problema está na superação do aspecto jurídico pelo sacramental398, que, segundo
ele, é também uma das vias de superação do clericalismo.
De extraordinário auxílio pode ser a aplicação rigorosa e severa da reforma
litúrgica. A missa como ato comunitário do celebrante e do povo juntos,
requerendo participação pessoal e não somente assistência de espectadores pode
393
Cf. MONSEGÚ, B. In Concílio Vaticano II: comentarios a la Constituición sobre la Iglesia.
BAC: Madrid, 1966, p.643.
394
Cf. Ibid., p. 644-645.
395
Cf. Ibid., p. 650-651.
396
Cf. LG 30.
397
Cf. LG 33.
398
Entende-se por perspectiva sacramental do povo de Deus a missão que brota dos sacramentos
que receberam. Não se trata de um reconhecimento por parte do clero dos carismas e aptidões dos
leigos, mas de uma exigência que brota do próprio sacramento e que independe do aspecto jurídico
da Igreja.
85
ser uma imagem perfeita da vida eclesial autêntica, com o fiel que leva ao altar a
sua vida, como verdadeira hóstia viva ao Senhor. Só quando uma consciência
deste gênero tiver sido universalmente afirmada em todos quantos se dizem
católicos, e o comportamento prático destes houver se modificado também nas
relações com a hierarquia poderão ser vividas numa perspectiva diversa, e não
mais clericalista. Trata-se de uma passagem de um catolicismo meramente
sociológico e/ou de tradição a um catolicismo autêntico, que nasce de uma
decisão interior, de modo que todos os fiéis se sintam testemunhas e apóstolos, em
conseqüência dos sacramentos recebidos399. Trata-se ainda de um elemento
fundamental para uma frutuosa vida religiosa dos leigos.
Em segundo lugar, manifesta-se em medida sempre crescente a necessidade
de um conhecimento mais profundo da fé professada: “Os leigos procurem
diligentemente um conhecimento mais profundo da verdade revelada, e
instantemente peçam a Deus o dom da sabedoria”
400
. Enquanto a hierarquia
continuar a manter numa espécie de menoridade os leigos, não os preparando para
assumir as tarefas que lhes seriam próprias; enquanto a fé dos leigos não dispuser
de raízes mais profundas e a hierarquia se fiar nos leigos que aguardam as ordem
eclesiásticas para agir sem prepará-los para iniciativas próprias; a Igreja
continuará sendo uma Igreja clericalista.
Sabem os pastores que não foram instituídos por Cristo a fim de concentrarem em
si sozinhos toda a missão salvífica da igreja no mundo. Seu preclaro múnus é
apascentar de tal forma os fiéis e reconhecer suas atribuições e carismas, que
todos, a seu modo, cooperem unanimemente na obra comum401.
Todavia não seria justo esperar que as inovações venham dos institutos e a
formação dos fiéis seja um fato adquirido. A participação nasce do interior das
comunidades menores402.
É necessário que se comece logo a inovação dos
costumes. E que se comece pela supressão dos vários títulos aplicados aos bispos;
que a hierarquia seja entendida numa perspectiva paterno-fraterna; ao laicato seja
motivado o diálogo com a hierarquia e não somente uma obediência passivo-
399
Cf. GOZZINI, Mario. Relations entre les laïcs et la hierarchie em BARAÚNA, G., L’Eglise de
Vatican II..., p. 1087- 1088.
400
Cf. LG 35.
401
LG 30.
402
Cf. LIBÂNIO, J. B., op. cit., p. 117.
86
servilista; que a hierarquia se abra um diálogo que valorize os carismas e as
aptidões dos leigos.
Dentro dessa perspectiva levanta-se também outro problema, o da falta de
respaudo aos leigos por parte do Direito canônico, que na maioria das vezes só os
menciona em relação ao clero. “O mal estar freqüentemente sentido na Igreja,
decorre de que a parte canônica, legislativa, que deveria dar corpo a tal intuição
do Concílio Vaticano II, não a acompanha, antes fica presa ao esquema anterior ao
da "virada copernicana” 403.
Corrigir quando necessário está certo, mas extinguir, fechar a possibilidade
de uma ação, isto não é certo! “A providência que bloqueia, ou mesmo o conselho
negativo, devem ser algo excepcional, e não um exercício freqüente; porque há
uma virtude superior à obediência, isto é, a caridade, o amor à Igreja, o impulso
apostólico. E sobre esta virtude devem se conduzidos também os juízos de
oportunidade” 404.
No tocante à representatividade, os organismos episcopais dos leigos
deveriam reunir em torno do bispo, com uma estrutura o menos possível rígida e o
mais possível ágil e aberta às situações particulares e às diversas inspirações dos
homens, aqueles que servem de ponte entre a Igreja e o mundo.
Com efeito, há situações que os leigos se deparam mais freqüentemente e
fazem com que estejam mais informados que o clero, sobretudo no que tange aos
assuntos temporais; sabem quais são as necessidades mais gritantes do mundo e
da Igreja. Tornar participantes, e de algum modo co-responsáveis na vida da
Diocese ou da paróquia todos os chefes de família é uma orientação indispensável
para vitalizá-las.
A partir dessa afirmação aparece como uma das conseqüências mais
concretas e importantes da Constituição que os leigos possam participar, ao menos
parcialmente, da administração dos bens eclesiásticos em todos os níveis405.
403
Cf. Ibid., p. 116.
Cf. GOZZINI, M., op. cit., p. 1091.
405
Cf. GOZZINI, M., op. cit., p. 1095-1099.
404
87
4.4.6
Histórico e definição etimológica de leigo
Muitas foram as dificuldades encontradas pelo Vaticano II para chegar a
uma definição do leigo que correspondesse de fato à sua realidade.
Com efeito, a própria palavra leigo suscita diversas dificuldades. Segundo
M. Kehl ela deriva só indiretamente da palavra grega láos, a qual significa povo,
multidão do povo. Na Septuaginta, designava o Povo de Israel e, posteriormente,
no Novo Testamento, o Povo de Deus, a Igreja406, contraposto ao povo profano ou
pagão407.
“Diretamente a palavra leigo procede do adjetivo grego laikos, com o qual
no grego extra bíblico originalmente se designavam objetos profanos, não
destinados ao culto, o que ocasionalmente influenciou também a linguagem das
traduções do Antigo Testamento fora da Septuaginta. Esporadicamente também se
fala aí de pessoas ou do povo como “leigos” em oposição aos sacerdotes 408 e aos
seus dirigentes409. No Novo Testamento não aparece esse adjetivo, pois todos são
“santos” e “eleitos de Deus”, “templos do Espírito Santo” e membros de um único
povo. “Se no Antigo Testamento havia distinção entre sacerdotes ou profetas e o
povo, isso não ocorre no Novo Testamento” 410.
Na literatura cristã o termo leigo aparece pela primeira vez na Carta de
Clemente referindo-se à ordem litúrgica judaica. Com relação a uma diferenciação
entre os detentores do ofício sacerdotal e os demais fiéis (leigos), só aparece no
século III em Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano e alguns outros, como
uma tentativa de ressaltar a sacralidade do ofício ministerial, sobretudo o do
bispo. A oposição teológica e política, como uma divisão de classes, entre o clero
e os leigos só acontece a partir do século XI com a reforma gregoriana, que
atingiu o seu ápice na Idade Média 411. Havia, portanto, antes da reforma, uma
relação de igualdade entre os membros do corpo no que se refere à sua dignidade,
embora os ofícios fossem diferentes.
406
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 110
Cf. MONSEGÚ, B., op. cit., p. 641.
408
Cf. Is 24,2; Os 4,9; KHEL, M., op. cit., p. 111.
409
Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique…, p. 1014.
410
Cf. KHEL, M., op. cit., p. 110.
411
Cf. KHEL, M., op. cit., p. 111.
407
88
Segundo B. Monsegú, a compreensão do termo leigo também foi fortemente
marcada pela Revolução Francesa, por correntes irreligiosas e anti-religiosas, que
o deram um sentido pejorativo. Proclamando-se leigos os Estados modernos
pretenderam quebrar a linha da tradição cristã, que prevalecia na Europa desde os
tempos de Constantino e que teve sua expressão mais alta na Idade Média, quando
o civil e o religioso, o Estado e a Igreja, andavam intimamente unidos, estando a
“espada a serviço da Cruz”.
Contra esta espécie de hipoteca que padecia todo o humano, de forma
particular o cultural e político, no início da Idade Moderna, começaram a rebelarse as novas nacionalidades, que sob a influência da Reforma protestante,
empreenderam a Revolução Francesa. Uma das suas primeiras medidas era
proclamar-se leigos, separando a religião e a política, a Igreja do Estado412.
Houve, portanto, uma espécie de seqüestro ou “secularismo" da palavra leigo, que
perdeu seu sentido cristão: leigo é aquele que nada tem a ver com a religião. Tal
separação gerou no leigo um estranhamento em relação à Igreja, como se a igreja
fosse exclusivamente os clérigos413.
4.4.7
O tríplice múnus dos fiéis
Pelo tríplice múnus, sacerdotal, profético e régio, os leigos receberam a
missão de consagrar o mundo “co-naturalizando-se” com ele414.
Membros de um corpo sacerdotal, a Igreja, sacerdotalmente nascida de
Cristo e fundada sobre o seu sacerdócio, e, por isso, também sacerdotes em Cristo,
os leigos, consagrados por este caráter, devem oferecer e consagrar a Deus o
mundo em que vivem. Possuem um caráter sacramental que os distingue dos não
crentes. São chamados a oferecer com sua vida, por sua fé em Cristo, um contínuo
culto de louvor ao Senhor. O ápice do oferecimento de si e do exercício do seu
sacerdócio é a celebração Eucarística onde, em torno da mesa sagrada, o cristão se
solidariza com o sacrifício de Cristo, sacerdote e vítima, dá testemunho da
unidade cristã, une suas orações ao do presidente da celebração, se apropria dos
sentimentos de Cristo, e faz seu o próprio sacrifício do Cristo ao Pai. Exclui-se a
412
Cf. MONSEGÚ, B., op. cit., p. 640.
Cf. Ibid., p. 648.
414
Cf. Ibid., p. 672.
413
89
participação mecânica ou de mera assistência (como expectador) na celebração
dos sacramentos.
Na sua missão sacerdotal o leigo deve consagrar o mundo sem mundanizarse; fazer com que, pelo seu sacerdócio, todas as coisas mundanizadas sejam
restauradas em Cristo. Tudo deve ser convertido em sacrifício a Deus através de
sua vida e ação415.
Com a salvação oferecida e sua ascensão aos céus, Cristo finalizou uma
etapa para dar início a uma outra: a da Igreja. O novo povo de Deus, a Igreja, tem
também como missão prolongar no tempo e na história a ação salvífica de Cristo,
por meio da sua missão profética.
Cristo é o sacramento do Pai, a Igreja é o Sacramento de Cristo e, num
sentido amplo, podemos dizer que os leigos são também sacramentos da Igreja,
pois são os instrumentos da evangelização, sinais de fé, canais por aonde a
verdade de Cristo chega aos demais homens e mulheres. O testemunho profético
dos leigos no mundo é, portanto, um sacramento de salvação.
Segundo G. Heras “o testemunho dos leigos é muito mais persuasivo que
dos sacerdotes, pois que ninguém suspeitará de um interesse, já que não vivem do
altar. O melhor gênero de pregação será a sua santidade de vida”
416
, embora
também seja necessário que esse testemunho se prolongue pela palavra417.
Tem singular importância o testemunho da vida matrimonial-familiar, onde
se encontra, diz a Constituição, “verdadeiro exercício de uma alta escola de
apostolado dos leigos. Nela têm os cônjuges a própria vocação para serem, um
para o outro e para os filhos, testemunhas da fé e do amor de Cristo” 418.
A vocação matrimonial é uma missão na Igreja419. Um chamado que não se
reduz a uma tendência natural a um estado de vida, mas uma missão concreta
dentro do mistério da Igreja. Esta vocação realizam os esposos juntamente com
seus filhos sendo testemunhas da fé e do amor em Cristo. Descobrir e desenvolver
o sentido da fé é tarefa dos esposos e filhos cristãos. A família é o verdadeiro
templo e a escola do amor. Os filhos são o principal sinal do amor dos esposos.
415
Cf. MONSEGÚ, B., op. cit., p. 666-673.
Cf. HERAS, J. G. em Concílio Vaticano II: comentarios a la Constituición sobre la Iglesia.
BAC: Madrid, 1966, p. 678.
417
Cf. Ibid., p. 680.
418
Cf. LG 35; Infelizmente a própria palavra vocação, utilizada pelo texto da constituição, tem
sido utilizada quase exclusivamente para significar o chamado ao estado sacerdotal ou religioso.
419
Referência à distinção de Philips entre vocação à Igreja e vocação na Igreja, em HERAS, J. G.,
op. cit., p. 686-687.
416
90
Entretanto, a família é uma das instituições que mais tem padecido nos tempos
modernos. Correntes como o laicismo, o materialismo, o egoísmo e o hedonismo
têm contribuído para uma grande crise de valores nas famílias.
Ainda sobre a missão profética do leigo, não se diga que o apostolado
acontece também na vida secular, pois o leigo evangeliza também pelo simples
fato de ser um bom profissional.
E ainda, os leigos não realizarão plenamente sua missão profética se
carecerem de um conhecimento profundo da Revelação. A propagação do
Evangelho é impensável sem um sólido conhecimento da teologia. Em outras
palavras, como o leigo tem a missão de propagar a fé é necessário que ele a
conheça, por isso a necessidade de um estudo teológico. A ignorância religiosa é
sem dúvida um dos grandes males do nosso tempo420. O mesmo se poderia dizer
da necessidade de uma espiritualidade mais sólida.
4.4.8
Espiritualidade de comunhão
Entende-se por espiritualidade de Comunhão “ter o olhar do coração
voltados para o mistério da Trindade, que habita em nós e cuja luz deve ser
percebida também no rosto dos irmãos que estão em nosso redor” é igualmente “a
capacidade de sentir o irmão de fé na unidade profunda do Corpo Místico, como
‘um que faz parte de mim”
421
. Significa ver na Trindade o modelo perfeito de
comunhão entre pessoas. O documento de Puebla afirma que “o Pai, o Filho e o
Espírito vivem em perfeita comunhão de amor” e que nisto consiste “o mistério
supremo da unidade” 422.
“Jesus, tendo cumprido a vontade do Pai, volta para Ele e envia-nos o
Espírito Santo que edifica, santifica e guia a Igreja na sua missão de salvação
universal. É o Espírito que continuamente enriquece a Igreja com os seus dons e a
“cada um é dada à manifestação do Espírito em ordem ao bem comum”
423
.O
Espírito é a superabundância do amor divino, o Espírito é vida e doa esta vida a
todo homem. Enquanto doador de vida, o Espírito gera na Igreja a comunhão. Sua
ação principal e fundamental é a Koinonia. Ele nos comunica os dons que o Pai
420
Cf. Ibid., p. 705.
JOÃO PAULO II. Carta apostólica novo millennio ineunte. São Paulo: Loyola, 2001, n. 43.
422
PUEBLA 212.
423
1Cor 12, 7.
421
91
deu ao Filho e ao mesmo tempo nos faz participar da plenitude da vida divina424.
Ele nos leva a uma vida de perfeita comunhão com as demais pessoas da
Trindade, fazendo com que o Pai e o Filho venham ao nosso encontro e passem a
agir em nós.
O valor dessa Espiritualidade de comunhão está no fato de que por meio
dela é possível superar problemas como o individualismo, a competição e o
indiferentismo. O grande desafio se torna ser um com o outro, valorizando-o,
como o exemplo da Trindade. Tanto João Paulo II quanto o atual Bento XVI
apresentam a amizade com Deus e com o próximo, como possíveis vias para uma
autêntica espiritualidade de comunhão425.
Não se trata de um privilégio para a Igreja, mas de uma necessidade, que
brota da experiência do conhecimento do próprio Deus, que é comunhão, por que
é Trindade. A experiência da comunhão torna-se ainda mais necessária quando
ouvimos do Senhor: “que sejam um como eu e o Pai somos um”, e mais, “para
que o mundo creia”. A salvação ou a aceitação da Palavra de Deus por parte dos
que não crêem passa, segundo as palavras de Cristo, pela experiência da
comunhão eclesial. Grande responsabilidade, que, apesar das grandes reflexões
apresentadas pelo Concílio, teve, na prática, ainda poucas assimilações ou
repercussões práticas.
Todos estes elementos são importantes para que a Igreja seja realmente
testemunha de Cristo no mundo. Sem a vivência da comunhão, do amor, da
solidariedade, entre tantas outras coisas, a Igreja se distanciaria da palavra de
Cristo e da sua vontade. Deixaria de dar testemunho daquele por quem e para
quem foi constituída. Seu testemunho tem como principal finalidade fazer com
que também outros creiam em Jesus como salvador e que nenhum daqueles que
foram confiados ao Cristo se perca. Trata-se da Igreja como instrumento da
salvação cristã, ou, como é o tema da nossa pesquisa, sacramento de salvação.
424
425
Cf. OLIVEIRA, J. L. M. Teologia da vocação. São Paulo: Loyola, p. 40-41.
BENTO XVI. Carta encíclica Deus é amor. São Paulo: Loyola, 2006, n.18.
92
5
A igreja, sacramento de salvação
5.1
Introdução
Cristo é a luz dos povos. Por isso, este sagrado Concílio, congregado no Espírito
Santo, deseja ardentemente que a luz de Cristo, refletida na face da Igreja ilumine
todos os homens, anunciando o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16,15). E,
porque a Igreja é em Cristo, como que sacramento, isto é, sinal e instrumento, da
união íntima com Deus e da unidade de todo gênero humano, retomando o ensino
dos concílios anteriores, propõe-se explicar com maior clareza aos fiéis do mundo
inteiro, a sua natureza e missão universal426.
O derramamento do Espírito sobre os apóstolos reunidos em Jerusalém, no
acontecimento de Pentecostes, constitui um evento importantíssimo para a
realização da Igreja no Novo Testamento. Ele constitui a manifestação pública da
sua natureza e da sua presença no mundo427. Nele encontramos aquilo que
caracterizou a eclesiologia do Vaticano II: a comunhão, princípio fundamental que
valoriza a diversidade das igrejas particulares, mas que as congrega em torno de
uma única convicção, a fé em Jesus Cristo.
Não existe, no Novo Testamento, uma uniformidade de compreensão a
respeito da Igreja. Pode-se constatar que, de acordo com os diversos autores e
livros da Sagrada Escritura, existe também uma variedade de percepções sobre
pontos que afetam a natureza e a missão da comunidade de fé. Essa diversidade
não significa necessariamente uma contradição, mas impõe um desafio quando se
pretende chegar a uma harmonia entre as diversas visões.
De fato, todas essas interpretações têm um mesmo fundamento, a fé em
Jesus Cristo. Todos crêem firmemente pertencer à comunidade dos discípulos do
Senhor, comunidade de salvação que vem de Deus e está ligada à promessa do
426
Cf. LG 1.
Não há, entre os teólogos, uma uniformidade de pensamento sobre o momento exato do
surgimento da Igreja. Uns colocam-no no momento em que Jesus convoca e institui o grupo dos
Doze apóstolos; outros, no momento da cruz quando, transpassado pela lança, jorraram de seu
peito aberto sangue e água; outros ainda encontram na ceia eucarística o momento do seu
surgimento, expressão de um novo culto e, portanto, de uma nova religião. Esta variedade de
interpretações é devida às diferentes possibilidades de leitura global que se pode fazer do mistério
pascal de Cristo. Cf. TILLARD, J. M. R. Iglesia de Iglesias. Salamanca: Ed. Sígueme. 1999, p.1415. Segundo a Encíclica Mystici Corporis, “o divino Redentor começou a fábrica do templo
místico da Igreja, quando na sua pregação ensinou os seus mandamentos; concluiu-a quando,
glorificado, pendeu da Cruz; manifestou-a enfim e promulgou-a quando mandou sobre os
discípulos visivelmente o Espírito paráclito” (MC 25). Já na Lumen Gentium lemos: “descendo
sobre os apóstolos, o Espírito Santo deu início à Igreja” (LG 19).
427
93
Reino, nasce da fé e está encarregada de anunciar a boa nova. No entanto, apesar
dos elementos em comum, também é possível encontrar várias diferenças sobre o
ser e a práxis eclesiais.
Neste contexto, entendemos que um olhar atento, à procura de uma
definição ontológica para a Igreja, não pode se deter única e exclusivamente nos
dogmas de fé existentes hoje e/ ou em algumas contribuições exegéticas, mas que
é preciso um retorno às origens da tradição cristã para compreender a caminhada e
o processo pelos quais se desenvolveram tais definições 428.
A temática da Igreja como sacramento de salvação passa também pela
experiência da comunhão. Valoriza a vocação e a atuação de todos os cristãos,
seja na Igreja ou na sociedade, e reconhece que todos são membros do mesmo
Povo de Deus e, por isso, possuem dignidade e responsabilidade, cada um
segundo a sua vocação e carisma próprios.
Nossa proposta neste quarto capítulo é desenvolver o tema central do nosso
trabalho: em que sentido a Igreja é sacramento de salvação? Quais as suas
implicações para a teologia e pastoral das comunidades de fé? É o que nos
propomos a abordar nesta seção da nossa pesquisa.
5.2
Sacramentos, prolongamento da sacramentalidade de Cristo
Cristo é o sacramento primordial, o sinal de Deus por excelência429. Aquele
sobre quem está estabelecida toda a realidade da salvação, o único nome debaixo
do céu pelo qual podemos ser salvos430. Sua vida é a própria manifestação do
amor de Deus pela humanidade. Ao encarnar-se, o Filho de Deus tornou-se
homem como nós e no encontro com ele temos um encontro com o Deus vivo,
pois aquele homem é, pessoalmente, o Filho de Deus, o sacramento revelador do
Pai no meio da humanidade431.
Mas esta afirmação nos coloca diante de um problema: como podemos
encontrar o Senhor glorificado se após a sua ressurreição e glorificação ele
428
Cf. TILLARD, J. M. R., Iglesia de Iglesias..., p. 11-13.
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 20.
430
Cf. At 4,12.
431
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 47.
429
94
desapareceu do nosso horizonte visível? Porventura a salvação teria cessado com
o retorno de Cristo para junto do Pai? Se não, como continua a realizá-la?
Após sua ressurreição e ascensão, “Cristo torna sua presença ativa de graça
visível e palpável entre nós, não diretamente por sua corporeidade, mas
prolongando, por assim dizer, sua corporeidade celeste sobre a terra, em formas de
manifestações visíveis, que exercem entre nós a ação de seu corpo celeste. São
precisamente os sacramentos o prolongamento terrestre do corpo do Senhor. E
concretamente, a Igreja.432. Assim como Cristo é o sacramento do Pai, a Igreja é o
sacramento de Cristo.
O retorno de Cristo para junto do Pai, por ocasião da sua ascensão433, não
foi o fim da sua missão salvífica junto a nós. Antes, a sua realização plena. Seu
desaparecimento e glorificação constituem a antecipação da nossa união corporal
glorificada com o Senhor, inaugurada pela Parusia, o ponto final e eterno de toda
vida cristã. Precede, por assim dizer, a nossa divinização, isto é, a perfeita união
do ser humano com Deus. Por sua glorificação Cristo preparou-nos uma
morada434 junto do Pai 435.
A vida cristã é um constante advento. Aguardamos vigilantes o retorno
glorioso do Senhor e a implantação definitiva do seu Reino. Sofremos como em
dores de parto o dia-a-dia da espera por esta manifestação definitiva, cuja
realização não sabemos como e quando se dará436. Enquanto somos parcialmente
privados deste encontro pessoal com Jesus Cristo, vemos como num espelho,
marchando para o encontro e ansiando pelo dia em que o veremos face-a-face437.
Esta espera pelo encontro em plenitude só é compreensível porque já temos,
em certa medida, o Cristo glorificado, não apenas pela lembrança dos fatos
acontecidos no passado, ou tão somente por uma fé imaginária, mas porque Cristo
também torna sua presença ativa e palpável entre nós, não diretamente por sua
corporeidade, mas pelos sinais concretos e eficazes da sua graça, prolongamentos
de sua corporeidade, denominados sacramentos.
A resposta do porque ou para que existem esses prolongamentos estão na
própria pedagogia de salvação: Deus sempre nos propôs o Reino dos céus de uma
432
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48.
Cf. At 1, 6-11.
434
Cf. Jo 14,2.
435
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48.
436
Cf. Mt 24,36.
437
Cf. 1Cor 13,12; SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48.
433
95
maneira terrena, sob formas e manifestações humanas. Se não fosse assim, um
aspecto profundamente humano da encarnação de Deus teria se perdido por não
conseguirmos atingir e compreender a sua comunicação a nós438. Não bastaria a
boa vontade de Deus em se comunicar a nós ao se encarnar se não pudéssemos
compreender e aceitar a sua proposta de salvação.
Encontro humano inclui reciprocidade. É verdade que por sua humanidade
glorificada Cristo celeste pode atingir e influenciar a todos. Mas nós, seres
humanos, não podemos encontrá-lo em sua carne viva por causa da sua
invisibilidade. Daí se segue que se Cristo não der, de uma maneira ou de outra, a
sua corporeidade celeste uma visibilidade no plano de nosso mundo, sua redenção
não acontecerá mais para nós. Sua mediação humana seria sem significado e uma
vez realizada a redenção, a humanidade de Cristo não teria mais sentido de
continuar a existir439.
O mistério da redenção através da corporeidade se fundamenta no próprio
mistério da encarnação e da redenção cristã. Na pessoa de Cristo, a corporalidade
se tornou fonte de glória, redenção e santificação para nós440. Toda convivência,
inter-relação e comunicação humanas só são possíveis dentro e pela corporeidade.
Ela é condição necessária nos relacionamentos humanos.
Segundo E. Schillebeeckx, a possibilidade de nos influenciar por sua graça
como homem é dada pela ressurreição. Isto tem uma importância capital. Temos
sempre a tendência de dissolver a vida humana de Cristo e olhar para além da sua
humanidade, para sua divindade. Mas é enquanto homem que Cristo é mediador
de graça, em sua humanidade e segundo sua humanidade441. Sua mediação de
graça supõe sua corporeidade. Em outras palavras, é a humanidade de Cristo que
o permite influenciar-nos442.
Aqui entendemos o porque se tornou necessário tratar dos símbolos no
primeiro capítulo deste nosso trabalho. Eles constituem como que a matéria prima
da Revelação cristã. Um elemento de característica essencial para a compreensão
da economia sacramental. Da mesma forma, entendemos o porque da necessidade
dos sacramentos. Eles constituem a face da redenção voltada para nós, a forma
438
Cf. Ibid., p. 49.
Cf. Ibid., p. 50.
440
Cf. Catequeses de João Paulo II em 21/07/82 em http://www. vatican.va.
441
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 49.
442
Cf. Ibid., p. 50.
439
96
pela qual encontramos o Cristo vivo após a sua ascensão e glorificação celeste.
Assim que o sacramento primordial deixou o mundo, por ocasião da sua ascensão,
entrou em ação, como prolongamento da encarnação, a Igreja, que por sua vez,
nos possibilita os outros sacramentos443.
A sacramentalidade lança uma ponte sobre o afastamento ou desproporção
que existe entre o Cristo celeste e a humanidade não glorificada, e torna possível o
encontro humano recíproco entre Cristo e a humanidade, após a sua ascensão. A
existência e religiosidade cristãs são necessariamente uma existência e
religiosidade sacramentais. A economia sacramental é parte integrante e
constitutiva do seu ser. E encontra como fundamento a própria revelação do
Cristo feito homem444.
Esta necessidade, ao mesmo tempo antropológica e cristológica, “mostra
que os sacramentos da Igreja não são coisas, mas encontros de homens sobre a
terra com o homem glorificado445, Jesus, mediante uma forma visível. São, na
dimensão da visibilidade histórica, uma manifestação concreta do ato de salvação
celeste de Jesus Cristo” 446.
Os sacramentos nos permitem entrar em contato vivo com o próprio
mistério santificante de Cristo. Sob o véu terrestre os sacramentos são esse
mistério da manifestação terrestre da salvação cristã447.
Embora a atual presença de Cristo seja ainda uma presença abscôndita e
muito provisória, ela nos impele para o encontro pleno e desvelado com ele facea- face, para estar plenamente junto de Deus. Essa presença provisória, mas real e
pessoal, é atestada e realizada por Cristo através desses sinais palpáveis, que a fé
percebe como lugares fidedignos de sua ativa presença no Espírito, entre os quais
está a Igreja, comunidade dos fiéis, Corpo de Cristo, templo vivo da Graça de
Deus448.
443
Cf. Ibid., p. 51.
Cf. Ibid., p. 51.
445
Esta afirmação é de grande importância para a teologia pastoral sacramental. A compreensão
dos sacramentos, não como “coisas”, mas como “encontro” exige necessariamente uma catequese
mistagógica e menos sacramentalista; A experiência da fé passa a ter como foco não o “objeto” em
si, mas aquele que se pode conhecer por meio do “objeto”. A conseqüência prática dessa idéia será
uma Igreja mais consciente da sua missão e comprometida no discipulado de Nosso Senhor Jesus
cristo, que é proposta da última conferência do Conselho Episcopal Latino Americano, em
Aparecida/SP.
446
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 52.
447
Cf. Ibid., p. 52.
448
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1. p. 388.
444
97
“A Igreja terrestre é a aparição dessa realidade de salvação no plano da
visibilidade histórica. Ela é a comunidade visível da graça”
449
, “manifestação
visível da graça redentora de Cristo na figura de um sinal social”. “Ela é, pois, de
modo quase idêntico, “o Corpo do Senhor”” 450, o “sacramento primordial”
451
de
Cristo.
Assim, a Igreja aparece como o próprio “braço” de Cristo, que perpetua na
história sua ação salvadora, concretizada no sacrifício da cruz e corroborada por
sua ressurreição e glorificação pelo Pai.
A compreensão da Igreja como sacramento tornou-se uma das principais
categorias da eclesiologia atual, situando-se inclusive entre as mais adequadas
quando se trata de exprimir a profunda ligação da Igreja com o mistério de Cristo,
os aspectos visíveis e invisíveis da sua constituição natural, bem como para
designar a sua índole missionária e sua designação como servidora da
humanidade.
Mas em que sentido a Igreja é o sacramento de Cristo? Sendo sacramento, a
Igreja é um prolongamento da corporeidade de Cristo sobre a terra. Para que
existe esse prolongamento? Quais as implicações desse pensamento para a
doutrina e para a pastoral da Igreja?
5.3
A Igreja, sacramento radical
A concepção da Igreja como sacramento não é uma novidade trazida pelo
Concílio Vaticano II, mas a retomada de uma concepção presente já na literatura
bíblica452, dos Padres da Igreja e, embora ofuscada e sem grande relevância,
também na Idade Média. Entretanto, constitui para a modernidade uma mudança
eclesiológica importantíssima, pois impõe uma nova concepção do que é a
comunidade de fé, gerando “uma espécie de decentração da Igreja com relação a
449
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 53.
Cf. Ibid., p. 54.
451
Embora a expressão “Sacramento primordial” seja aplicada com propriedade à pessoa de
Cristo, E. Schillebeeckx e O. Semmelroth aplicam-na também à Igreja, designando-a “sacramento
primordial de Cristo”. Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 60.
452
“Embora, no Novo Testamento, mal se encontre uma expressa caracterização da Igreja como
sacramento e na Patrística seja muito rara, não existe, provavelmente, nenhuma expressão mais
apropriada para a originária visão da Igreja do que a categoria sacramental”. Cf. BARAÚNA, G.,
op. cit., p. 397.
450
98
si mesma e colocando-a em relação a Cristo”
453
. Fornece uma nova chave de
leitura para uma nova consciência eclesial, fundamentada na encarnação e, de
modo mais amplo, no evento da salvação em Jesus Cristo454.
Apesar disso, o Concílio foi cauteloso em sua formulação, pois na
constituição sobre a Igreja (n.1), diz que ela é em Cristo “como um sacramento ou
sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero
humano”. Contudo, a palavra “como” é omitida no texto do capítulo segundo455,
onde afirma que a Igreja é convocada e constituída por Deus para ser um
sacramento visível da unidade. Neste segundo capítulo a nota remete a
Cipriano456, o qual assegura que a Igreja é o sacramento indissolúvel da
unidade457.
Vários teólogos modernos aplicaram o termo sacramento à Igreja: M.
Scheeben, E. Schillebeeckx, H.U.Von Balthasar, K. Rahner, Y.M.J. Congar. Sua
retomada aconteceu na década de 30 com o movimento jesuíta francês de retorno
às fontes – a Novelle Theologie - e teve como grande precursor e expoente o
teólogo católico Henri de Lubac458, na sua obra Catholicisme, publicada em 1938,
na qual diz que “se o Cristo é o Sacramento de Deus, a Igreja é para nós o
sacramento de Cristo” 459. Em Méditation sur l’Eglise faz as mesmas afirmações:
A Igreja é um mistério, isto é, um sacramento. Lugar total dos sacramentos
cristãos, ela é, ela mesma, o grande sacramento que contém e vivifica todos os
outros. Ela é aqui em baixo o sacramento de Jesus Cristo, como Jesus Cristo, ele
mesmo é para nós, na sua humanidade, o sacramento de Deus. 460. A Igreja, toda a
453
Cf. Ibid., p. 396.
Cf. TIHON, P. A Igreja em SESBOUÉ, B. (Org). História dos dogmas: Os sinais da salvação.
Tomo 3. Loyola: São Paulo, p. 433.
455
LG 9.
456
Citação da Carta 69, 6 em LG 9.
457
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol. V. 2: Caráter sacramental da Igreja. Petrópolis: Vozes,
1980, p. 7.
458
Nascido em Cambrai, na França, no ano de 1896, Henri De Lubac é um dos personagens que
mais representa a última renovação teológica e seu pensamento atual. Jesuíta tomista, professor de
Teologia Fundamental e História das Religiões nas faculdades católicas de Lyon, empreendeu
junto à “Escola de Fourvière” um importante movimento de superação da estagnação de uma
teologia escolástica que havia se estabelecido e se fechava às possibilidades de um diálogo com o
pensamento contemporâneo.
459
“Si le Christ est le sacrament de Dieu, l’Eglise est pour nous le sacrament du Christ”. Cf. DE
LUBAC, H. Catholicisme: les aspects sociaux du dogme. Paris: Cerf, 1983, p.50.
460
Cf. DE LUBAC, H. Méditation sur l’Eglise. Paris: Aubier, 1968, p. 164: “L’Eglise est un
mystére, c’est-à-dire, aussi bien, un sacrement. <<Lieu total des sacrements chrétiens, elle est ellemême le grand sacrement qui contient et vivifie tous les autres. Elle est ici-bas le sacrament de
Jésus-Christ, Comme Jésus-Christ lui-même est pour nous, dans son humanité, le sacrament de
Dieu”
454
99
Igreja, e só a Igreja, esta de hoje como a de ontem e a do amanhã, é o sacramento
de Jesus Cristo 461.
São as primeiras intuições, sem grandes elaborações. Idéias que não são
originais de De Lubac, mas que ele recupera da literatura Patrística, sobretudo de
Irineu e Cipriano462, suas fontes principais. Vê na Igreja o “ponto de encontro dos
desejos do homem e dos desejos de Deus”
463
. Teve o mérito de ser o primeiro a
recuperar, na modernidade, esta concepção, que mais tarde seria aprofundada e
sistematizada por O. Semmelroth e, posteriormente, por K. Rahner, que também
deu grandes contribuições464.
Igual relevância teve a Encíclica Mystici Corporis, do papa Pio XII, lançada
em 1943. Embora não designe a Igreja pelo nome de sacramento, o documento,
que gira em torno da temática da Igreja como corpo, ofereceu grandes
contribuições aos teólogos. Estes entenderam a corporalidade como a forma
mediante a qual Deus encontra o ser humano e vice-versa, e nisto, o que a
qualifica como sacramento.
O Concílio Vaticano II, valendo-se das contribuições desses teólogos
também aplicou à Igreja o conceito de sacramento para determinar sua relação
específica com o agir salvífico de Deus em prol do mundo465. Expressou com este
conceito a unidade inseparável e a diversidade inconfundível entre a Igreja e a
auto-comunicação de Deus em Jesus Cristo, no Espírito Santo. A Constituição
sobre a Igreja começa afirmando que Jesus é a luz dos povos e que a Igreja é o
reflexo dessa luz 466. “Ela é como que o sacramento, isto é, sinal e instrumento, da
união íntima com Deus e da unidade de todo gênero humano” 467. E é justamente
neste sentido que a Igreja é entendida como sacramento da salvação, isto é, como
o reflexo e sinal eficazes da salvação realizada pelo Pai, em Jesus Cristo. A Igreja
461
“L’Eglise, toute l’Eglise, la seule Église, celle d’aujour-d’hui comme d’hier et de demain, est le
sacrament de Jesus Christ”. Cf. DE LUBAC, H. Méditation…, op. cit. p. 171.
462
Cipriano denomina a Igreja “sacramentum unitatis”. Cf. citação de CIPRIANO. De cat. Eccl.
Unitate, 4 em BORÓBIO, D., op.cit., p. 301.
463
Cf. DE LUBAC, Catholicisme…, op. cit., p.234.
464
Na verdade, H. De Lubac não teve a preocupação de uma sistematização ou um
aprofundamento mais elaborado do tema, mas recuperar a teologia presente no início da Igreja, de
forma especial, na Patrística, da qual De Lubac era grande conhecedor e se servia para fazer suas
meditações. O mérito de O. Semmelroth em relação a H. De Lubac foi que ele sistematizou e
aprofundou a problemática levantada pelo teólogo francês. Foi o primeiro, pode-se dizer, a
sistematizar o tema. Cf. Ibid., p. 433; GIBELLINI, R. A teologia do século XX. Loyola: São
Paulo. 2002, p. 182-191.
465
Cf. LG 1, 9, 48, 59; SC 5, 26; GS 42,45; AG 1,5.
466
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 77-78.
467
LG 1.
100
é, no mundo de hoje, o meio pelo qual Cristo continua a realizar a sua obra
redentora, o sinal ordinário pelo qual continua a levar os homens ao conhecimento
da sua salvação: É o sacramento de Cristo para comunicar aos homens a vida nova
468
.
Assim entendemos em que sentido Jesus e a Igreja são designados como
sacramentos:
Sacramento é o eterno desígnio salvador de Deus que se revela e se realiza com
eficácia entre os homens. Ou é ação e obra divinas nas quais Deus, enquanto
manifesta seu plano salvador, o realiza sobre a terra para que os homens
reconheçam o Deus salvante nessa velada Revelação e realização em curso,
creiam nele, afirmem-no, deixem-se apreender por ele, e se salvem neste pessoal
encontro com o Deus de sua salvação. É de Deus ao mesmo tempo uma ação e
uma obra porque tanto a iniciativa e atividade divina quanto a sua execução
podem ser assinaladas no interior do homem. É um sinal eficaz por ser uma
expressão da força salvadora divina de cima nos homens e converte a si 469.
A Igreja é o sacramento primordial de Cristo, seu corpo sobre a terra470;
encontra nele, sacramento do Pai, o fundamento e a razão da sua própria
sacramentalidade. É sacramento enquanto Cristo é sacramento e enquanto
participa da sacramentalidade do seu Senhor. É sacramento enquanto
continuadora da sua obra salvífica sobre a terra. Daí, por exemplo, o motivo de O.
Semmelroth denominar a Igreja não como sacramento original de salvação, mas
sacramento radical de Cristo, vendo em Cristo o sacramento que dá origem a
todos os outros sacramentos, e a Igreja como raiz plantada na pessoa de Cristo471.
Isto significa dizer que a Igreja, que recebeu a salvação, tem a capacidade e
missão de transmitir a salvação, não por seu próprio poder, mas como instrumento
de Jesus Cristo. Isto lhe confere o caráter de um sacramento universal de segunda
ordem. Possui uma função mediadora na comunicação da salvação472.
Seus atos devem, como em Jesus, encarnar a palavra do Pai e torná-la
palpável aos homens: “O homem de nossos dias sente-se psiquicamente onerado
468
Cf. PUEBLA 922.
Cf. BARAÚNA, G., A Igreja do Vaticano II..., p. 410.
470
Cf. 1Cor 12, 12-30.
471
Cf. SEMMELROTH, O. A Igreja como sacramento de salvação em FEINER, J.; LOEHRER,
M. Mysterium salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica. Vol. IV/2. Vozes: Petrópolis,
1975, p. 89-90.
472
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol. V. 2..., p. 10.
469
101
de ver, precisamente quando busca uma fé interior, sincera e pessoalmente
profunda, que a Igreja signifique tanto para uma fé assim” 473.
A Igreja, enquanto comunidade de fé, é também a comunidade dos fiéis, já
que “são os fiéis o sujeito comunitário da fé em Deus”; “O indivíduo torna-se fiel
em pleno sentido, não tanto pela opção individual isolada do seu interior, mas por
integrar-se à comunidade de fé da Igreja, dando com isso à sua fé individual uma
expressão histórica salvificamente determinada”
474
, é o que chamamos de
testemunho, que, segundo O. Semmelroth, possui dois aspectos: primeiro, o
anúncio das maravilhas divinas por palavra e obra; segundo, a presença da Igreja
como motivo de credibilidade475.
D. Borobio apresenta três razões pelas quais a Igreja é sacramento: em
primeiro lugar porque manifesta visivelmente as realidades invisíveis do Cristo e
do Espírito; é um sinal histórico salvífico-social. Em segundo lugar, por que é
testemunha-presença de Deus no mundo por seu comportamento ético: “E sereis
minhas testemunhas”
476
. Em terceiro lugar, pelos sinais que acompanham a sua
atuação: “Ide, portanto e fazei que todas as nações se tornem discípulos,
batizando-os em nome do Pai e do Filho e do espírito Santo” 477.
E. Schillebeeckx afirma que “o homem messiânico Jesus é impensável sem
a sua comunidade de salvação”
478
. Recorre a Agostinho para dizer que “Cristo
morre para que a Igreja nasça em sua morte” 479. Segundo ele a sacramentalidade
da Igreja se dá também pela via carismática, isto é, da visibilização da graça pela
atividade dos pastores e dos fiéis480. Entende que a ministerialidade é um
elemento constitutivo do ser eclesial e que a manifestação sacramental da Igreja
realiza-se também de maneira formal, ministerial e funcional481.
Os sacramentos, neste contexto, tornam-se auto-realizações da própria
Igreja para o cumprimento da sua missão, a partir da salvação de cada um de seus
membros482. São atos do sacramento primordial que é a Igreja, expressão da
473
Cf. Cf. SEMMELROTH, O. A Igreja como sacramento..., p. 81-82.
Cf. Ibid., p. 83.
475
Cf. Ibid., p. 84.
476
At 1,8.
477
Mt 28,19-20.
478
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo sacramento do Encontro..., p. 53.
479
Cf. Ibid., p. 53.
480
Cf. Ibid., p. 58.
481
Cf. Ibid., p. 55-56.
482
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300-304.
474
102
comunhão na graça. São a atividade da salvação em Cristo sob a forma da
aparição de um ato eclesial 483.
A consciência de uma Igreja sacramental afeta diretamente a atuação e a
consciência que os fiéis têm da sua participação na Igreja e do seu papel no
mundo. Vivemos num tempo de recuperação do valor do leigo como membro
ativo da Igreja; tempo de desafios no que se refere ao ecumenismo e à comunhão
entre as religiões. Tempo em que a presença da Igreja em muitos continentes
começa a ser escassa e a laicização dos Estados se torna fator determinante para o
cerceamento das atividades evangelizadoras, senão até a sua proibição. Tempo,
enfim, em que a falta de sentido e grande variedade de alternativas religiosas,
todas requerendo para si o primado da verdade, aliados à falta de testemunho por
parte daqueles que dizem crer, fazem com que cada vez mais cresça o número
daqueles que se dizem sem religião, ou ainda, ateus.
Ser sacramento de salvação, sinal vivo da presença ativa de Cristo no
mundo, é mais que um privilégio, tornou-se uma necessidade. Talvez por isso o
Concílio tenha definido o tema da sacramentalidade da Igreja como um dos seus
mais importantes conceitos e definições. Ser sacramento de Cristo é perceber-se
um membro ativo deste grande corpo, que é a Igreja. É reconhecer que na sua
missão evangelizadora não somos apenas expectadores, mas protagonistas
principais.
Esta consciência também se faz presente na compreensão dos ritos
sacramentais. Depois do Vaticano II, os sacramentos deixaram de ser entendidos
somente como atos do sacrifício de Cristo para serem compreendidos também
como expressões da sacramentalidade da Igreja. Aliás, esse passa a ser o foco
principal da teologia sacramental. Sem deixar de lado o elemento sacrifical, passase a enfocar a dimensão comunitária dos sacramentos. É o que nos propomos a
aprofundar em seguida.
5.4
Ritos sacramentais: manifestações da sacramentalidade eclesial
O mistério da salvação que nós chamamos sacramento é também o mistério
da união da palavra salvadora ao sinal salvífico instrumentalizado. A cruz do
483
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro..., p. 60.
103
Gólgota está presente de um modo dinâmico-atuante nos sinais sacramentais. Em
cada um deles se mostra um aspecto concreto sob o qual se torna presente o
sacrifício da cruz. Na ceia Eucarística, por exemplo, encontramos o mesmo
sacrifício pessoal de Jesus ao Pai. Por meio dele tornam-se presentes a morte e a
ressurreição do Senhor e se cria e aprofunda a comunhão dos irmãos entre si e
destes com Deus. Já na Crisma se atualiza a cruz de Cristo sob o aspecto de que
nesta o salvador se opôs vitoriosamente ao mal à vista de todo o mundo484.
Primeiramente devemos dizer que os sacramentos só podem ser
compreendidos corretamente se os entendemos em comunhão com a perspectiva
geral da História da Salvação. Estes são uma forma especial de transmissão da
salvação pela palavra sinalizada. A Meta dos sacramentos é estabelecer um
diálogo entre Deus e os homens e dos homens entre si. Através da palavra e do
sinal a salvação se torna inteligível e eficaz. Em virtude da sua transcendência,
Deus não pode ser visto e ouvido imediatamente. Sua comunicação com a
humanidade só se torna possível mediante o uso de instrumentos audíveis, visíveis
e concretos. Este instrumento é, sobretudo, a Igreja, que está capacitada para esse
fim em virtude da sua união com Cristo485.
Isto só se torna compreensível se entendemos a relação de Cristo com a
Igreja e do Pai com Cristo. Após ter cumprido todo o plano da salvação, Cristo
voltou para o Pai. Hoje, ele se faz presente no mundo por meio da Igreja. Por
meio dela se dá o chamado para o seguimento a Cristo. Quem se deixa captar por
esse chamado, participa do movimento vital de Jesus Cristo, cabeça desta
comunidade, pois na Igreja está presente a vida de Jesus. E aqui está a
sacramentalidade da Igreja.
Neste contexto é que devem ser entendidos os sete ritos sacramentais, como
concreções, sínteses, manifestações da sacramentalidade total da Igreja.
Manifestações que se adequam às situações vitais do indivíduo e da comunidade
eclesial.
A comunidade necessita de uma festa (Eucaristia). Tem necessidade de um rito de
aceitação para os novos membros (Batismo). Requer uma contínua reflexão sobre
si mesma e auto-renovação (Penitência). Ela há de superar o problema da
enfermidade e da morte (Unção dos Enfermos). Necessita de uma ordem interna
(Ordem). Há de resolver o problema de como cada cristão realiza sua fé em Cristo
484
485
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. V.2..., p. 16.
Cf. Ibid., p. 16-17.
104
dentro da vida diária diante das tentações (Confirmação). Além disso, o homem e
a mulher devem realizar seu encontro sexual dentro da comunidade marcada por
Cristo em forma adequada à sua fé nele (Matrimônio) 486.
De acordo com a fé católica, todos os sete ritos foram instituídos, direta ou
indiretamente, pelo próprio Cristo. Entretanto, uma análise cuidadosa da Sagrada
Escritura nos mostra que alguns dos sacramentos sequer são mencionados por ele.
Ora, só podemos falar sobre a vontade de Cristo de instituir os sacramentos se na
Sagrada Escritura encontrarmos textos que pelo menos germinalmente dêem
testemunho dessa vontade. E de fato encontramos tais pontos de apoio. Estes se
referem, sobretudo, ao Batismo e à Eucaristia, sobre os quais encontramos textos
diretos487. Quanto aos demais sacramentos, pode- se dizer que a Sagrada Escritura
nos dá apenas indícios e que sua raiz está no período apostólico. A modalidade
dos sinais continuou a se desenvolver para além do século I, de acordo com as
necessidades do tempo, mas sem abandonar o núcleo do seu conteúdo
fundamental488.
O ato do Concílio de Trento de estabelecer uma ordem diversificada para os
sacramentos, ressaltando o Batismo e a Eucaristia sobre todos os outros, se
harmoniza perfeitamente com a diferença relativa à clareza do testemunho e à
modalidade do sinal no Novo Testamento489.
O sinal sacramental é a manifestação e a forma de comunicação divina da
salvação, que é a Graça. Não se trata de um recipiente, no sentido de que o sinal
contém em si mesmo o que comunica, como dizia a Escola de Hugo de São
Victor, no período Escolástico, mas de uma espécie de “agente comunicador”, no
sentido de que o sacramento é um “símbolo real” daquilo que evoca, um
instrumento tal como uma corporalização social e histórica daquilo que significa,
a Graça. O valor não está no sinal em si, mas na graça que ele comunica. Ora, na
medida em que se atribui o valor ao sinal comunicador, e não ao que é
comunicado, pode-se desembocar numa espécie de magia ou superstição,
atribuindo um poder divino a uma simples criatura490.
486
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. V. 2..., p. 20.
Lc 22,14-20; Mc 14, 22-25; Mt 26, 26-29; Lc 3, 21-22; Mc 1, 9-11; Mt 3, 13-17.
488
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. V. 2..., p. 21.
489
Cf. Ibid., p. 21.
490
Cf. Ibid., p. 27.
487
105
Esta realidade pode ser compreendida ainda melhor levando-se em conta
que o sinal está essencialmente constituído pela palavra. Isto significa dizer que
enquanto se anuncia o projeto salvífico de Deus, torna-se evento a sua vontade
salvífica.
É o que Karl Rahner chamou de causa sine qua non, isto é, os
sacramentos, não como simples sinais externos, mas como forma e caminho da
autocomunicação divina. Exercem sua eficácia pelo ato de significação. Têm uma
função não só interpretativa, mas também criadora, no sentido de que faz
acontecer aquilo que significa e é anunciado491.
Também os sacramentais (pequenos sacramentos) devem ser compreendidos
a partir da sacramentalidade geral da Igreja. Compreendem-se sob este termo
aquelas bênçãos e consagrações pelas quais a Igreja ora sobre determinados
objetos e lugares, a fim de que as pessoas que os usam com devoção cresçam na
fé e na caridade. Estes provocam e convidam os fiéis a estenderem para
quotidiano de suas vidas os sinais da santidade e da graça salvífica de Cristo492.
Devido à sua relevância, vamos agora abordar alguns sacramentos
particularmente. Tendo em vista que o foco do nosso trabalho não está nos ritos
sacramentais em si, mas em que sentido eles manifestam a sacramentalidade
eclesial, não discorreremos sobre todos os sacramentos, mas nos limitaremos aos
ritos da iniciação cristã, por sua importância e características.
5.4.1
Batismo
O Batismo é o sacramento que nos introduz na vida Igreja. Ocupa um dos
lugares de maior importância entre todos os sacramentos. Pode-se dizer que ele
configura e determina toda a vida cristã. É o sacramento através do qual a Igreja
incorpora a si novos membros, assegura e amplia incessantemente a sua
existência. Mas não somente isto. É, também, um elemento salvífico. Desde o
início, pertence ao conteúdo do anúncio da fé. Segundo as Escrituras, a pregação
precede ao Batismo e interpreta a existência do batizado. Neste contexto, o
Batismo aparece como a resposta de fé à pregação e como a base da existência
cristã, sinal concreto da adesão do convertido à pessoa de Cristo. Pela adesão
491
492
Cf. Ibid., p. 28.
Cf. Ibid., p. 35.
106
formal, através do batismo, o novo crente é enxertado no corpo de Cristo, que é a
Igreja, e, por ele, no mistério salvífico cristão493.
O Novo Testamento trata do Batismo sob a perspectiva de uma nova vida.
Vê o Batismo como um banho renovador e regenerador494. Uma vez batizado, o
cristão deve levar uma vida afastada do mal e do pecado e deixar que a Luz de
Cristo, recebida no sacramento, a salvação, irradie por toda a sua vida e daqueles
com os quais convive495.
O sentido que mais se destaca é o de destruição e morte, imagem presente já
no Antigo Testamento, nos eventos do dilúvio e da travessia do Mar vermelho
496
,
entre outros. Esses dois simbolismos são freqüentemente aplicados ao batismo
cristão
497
e fazem referência à morte e ressurreição do Senhor
498
. Segundo as
Escrituras, o batizado é aquele que morreu com Cristo para viver uma nova vida,
segundo a Graça de Deus. Proveniente do aramaico, a expressão “ser batizado”
alude à idéia de submersão e elevação. Submersão enquanto passagem pela morte
de Cristo, e ressurgimento para a nova vida499. Trata-se de uma passagem da
morte ao pecado e à injustiça para a vida na bondade e na graça “crísticas”.
Assim como os judeus seguiram Moisés e passaram, com ele, pelas águas da
morte, simbolizadas pelo mar vermelho, e encontraram, dessa maneira, a vida e a
liberdade, do mesmo modo os cristãos que agora seguem o destino de Jesus até a
morte, que se expressa simbolicamente pelas águas do batismo, encontram no
sacramento o destino de sua vida e a verdadeira liberdade500. Morrer com Cristo
significa morrer para o mundo e para os seus poderes 501, para escravidão da lei 502
e a vida no pecado 503.
A morte de Jesus, portanto, é a chave para a compreensão do Batismo
cristão. O batizado é a pessoa que assume na vida o destino da morte de si pelos
493
Cf, Ibid., p. 109.
Cf. Tt 3,5; Ef 5,26; Hb 10, 22.
495
Cf. Rm 6,4; 1Jo 3,9.
496
Cf. Gn 7,18-24; Ex 14.
497
Cf. 1Pd 3,20s; 1Cor 10,1s.
498
Cf. Rm 6,3-5.
499
Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 41.
500
Cf. Ibid., p. 42.
501
Cf. Cl 2,20.
502
Cf. Rm 7,6.
503
Cf. Rm 6,6.
494
107
outros, que entrega sua vida livremente pela salvação do próximo. Ele deve
morrer para tudo aquilo que não seja a vida que o Senhor o ensinou504.
A primeira conseqüência dessa adesão é que quem o recebe é revestido de
Cristo 505. Pelo Batismo a mesma vida de Cristo está presente e age naquele que o
recebeu
506
. Trata-se de uma referência à mudança ontológica operada pelo
sacramento naquele que o recebe, mas também à conduta que deve assumir a
partir dessa nova constituição.
Outro aspecto de grande relevância diz respeito à relação entre o batismo e à
ação do Espírito Santo. A presença do Espírito no batizado é característica
essencial e específica do batismo cristão. Segundo os relatos do Novo
Testamento, o batismo cristão não é só um batismo na água, como o de João, mas
o próprio mover do Espírito na vida do crente
507
. O Espírito também é o
fundamento da experiência de força, amor, alegria e liberdade que impulsionou e
impulsiona ainda hoje tantos homens e mulheres à experiência da missão, da
comunhão e do serviço508. Trata-se de uma experiência forte que age com energia
na vida do cristão e o impulsiona a testemunhar
autoridade a mensagem de Jesus
510
509
com audácia, liberdade e
.
Neste sentido, o batismo só pode ser entendido a partir do mistério pascal de
Cristo, o qual compreende sua morte, ressurreição e o derramamento do Espírito
sobre a Igreja, no evento de Pentecostes. A Igreja é a manifestação histórica desse
mistério, seu sinal visível para a humanidade. Ela é, no mundo, o sinal visível da
páscoa eterna
511
. E o Batismo é um dos modos pelos quais a Igreja atualiza esse
mistério na vida dos crentes.
Da mesma maneira que a passagem pelo Mar Vermelho foi, para os
israelitas, a passagem da escravidão à liberdade e o que os vinculou ao destino de
Moisés
504
512
, assim também o batismo cristão se tornou a experiência fundamental
Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 43.
Cf. Gl 3,27.
506
Cf. Rm 6,3; 11,36; 1Cor 8,6; 12,13; Ef 2,15.21-22.
507
Cf. Mt 3,11; Mc 1,8; Lc 3,16; Jo 1,33; At 1,5; 10,47; 11,15-17; 19,3-5; 1Cor 12,13.
508
Cf. Mc 13, 11; Mt 10, 20; Lc 2,27; At 13,4; 20,23; Lc 10,21; At 9,31; Rm 5,5; 14,17; 15,30;
1Cor 13,13; 2Cor 3,17.
509
Cf. At 1,8; 4,31.
510
Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 43.
511
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro…, p. 161.
512
Cf. 1Cor 10,2.
505
108
de liberdade. Não se trata de uma libertação para a libertinagem
513
, mas uma
libertação do pecado e da vida profana 514.
De acordo com os elementos que se podem apreender da comunidade
primitiva, o Batismo é, desde o início, entendido como a porta de entrada para a
recepção na comunidade de salvação515. Por ele tornamo-nos membros do povo de
Deus, povo que é Filho do Pai, pela virtude do Espírito de filiação que já nos é
dada no Batismo. Por ele também somos inseridos nessa mesma força do Espírito,
a fim de rendermos culto filial ao Pai516.
A Igreja, sacramento de salvação, é também a comunidade dos batizados,
daqueles que foram configurados a Cristo por sua morte e ressurreição. Por sua
vocação batismal, tem que ser, no mundo e na sociedade, a comunidade dos que
livre e conscientemente assumiram um destino de vida: sofrer e dar a vida pelos
outros. É a comunidade dos que se revestiram de Cristo e que, por este motivo,
devem reproduzir na própria vida o que foi a vida de Jesus.
Enfim, depois de tudo o que dissemos só podemos entender que o Batismo
que é um sacramento fundamental para a compreensão da sacramentalidade
eclesial. Ele constitui a base da experiência cristã, a razão pela qual devemos ser
Cristo para o mundo. Tal como no Batismo esta exigência também brota da
Eucaristia, sacramento de tão grande importância para a vida de fé da Igreja e para
o aprofundamento do nosso estudo.
5.4.2
Eucaristia
A Constituição sobre a Igreja afirma que o sacrifício Eucarístico é a “fonte e
o centro de toda a vida cristã”
517
. Dela a Igreja “vive e cresce”
518
. Já o
Documento Ecclesia de Eucharistia, recuperando o texto da Constituição, afirma
que “a Igreja vive da Eucaristia”
519
. A Eucaristia ocupa lugar central na vida da
experiência eclesial:
513
Cf. Rm 6,1.
Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 44.
515
Cf. At 2,41.
516
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro..., p. 164.
517
Cf. LG 11
518
Cf. LG 26
519
Cf. JOÃO PAULO II, Ecclesia de Eucharistia. 12ªed. São Paulo: Paulinas, 2005, n.1, p. 3
514
109
Sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, na qual ‘Cristo, nossa Páscoa,
foi imolado’ (1Cor 5,7), realiza-se também a obra da nossa redenção. Pelo
sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a
unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em Cristo (cf. 1Cor 10,17) 520.
Desde o princípio os cristãos reconheceram o vínculo existente entre a
Eucaristia e a vida fraterna. Este vínculo pode ser verificado na própria Sagrada
Escritura. A última ceia celebrada por Jesus com seus apóstolos foi
verdadeiramente uma cena de comunhão. O rito da fração do pão significava antes
de tudo que ao redor da mesa se estabelecia uma verdadeira comunidade. A
comunhão no mesmo cálice significava a mesma sorte, o mesmo destino com
aquele que lhes dava de comer e beber, uma partilha de vida521. “Ao oferecer-lhes
o seu corpo e sangue como alimento, Cristo envolvia-os misteriosamente no
sacrifício que iria consumar-se dentro de poucas horas no Calvário” 522.
Paulo fala de um só pão partido e de um só cálice distribuído entre todos523.
Já a Didaqué nos diz que a Eucaristia é o Sacramento prefigurativo da comunhão
de todos no Reino: “Da mesma maneira como este pão quebrado primeiro fora
semeado sobre as colinas e depois recolhido para tornar-se um, assim das
extremidades da terra seja unida a ti a tua igreja (assembléia) em teu reino; pois
tua é a glória e o poder pelos séculos! Amém.”
524
. Quando, provavelmente na
África, em meados do século III, aparece a forma explícita do simbolismo da água
e do vinho na liturgia, Cipriano vê no símbolo destas duas substância mescladas,
tanto a unidade de todos os cristãos com Cristo como a unidade mútua entre eles
mesmos525. Esta unidade tem seu fundamento em Deus e é fruto do Batismo, que
a Eucaristia leva à consumação526. O efeito principal da Eucaristia está, portanto,
na inserção no Corpo de Cristo. Corpo que tem como cabeça o Senhor
ressuscitado, é vivificado pelo Espírito e formado pelos membros batizados.
A incorporação em Cristo, realizada pelo Batismo, renova-se e consolida-se
continuamente através da participação no sacrifício Eucarístico, sobretudo na sua
forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer que cada um de nós
recebe Cristo, mas também que Cristo recebe a cada um de nós. Ele intensifica sua
amizade conosco: “Chamei-vos amigos” (Jo 15,14). Mais ainda, nós vivemos por
520
Cf. LG 03
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia... p. 44.
522
Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia..., n.21.
523
Cf. 1Cor 10,17.
524
Cf. DIDAQUÉ: Catecismo dos primeiros cristãos. 4ªed. Petrópolis: Vozes, 1983, n. 9,4, p.32.
525
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 46.
526
Cf. Ibid., p. 47.
521
110
ele: “O que me come viverá por mim” (Jo 6,57). Na comunhão Eucarística,
realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo:
“permanecei em mim e eu permanecerei em vós” 527.
Nos primeiros séculos os sacramentos da iniciação cristã (Batismo, Crisma e
Eucaristia), além de nunca serem pensados de forma separada, eram concedidos
juntamente, numa única celebração. Nesta unidade ritual a Eucaristia constituía o
momento sacramental em que se significava e se selava a inserção do novo
membro de Cristo no Corpo onde viveria a nova vida528.
Segundo Agostinho, na Eucaristia a Igreja recebe aquilo que ela mesma é,
um único pão, sinal da unidade dos fiéis. Através do pão e do vinho, pela ação do
Espírito, o sacrifício redentor de Cristo é renovado na comunidade dos fiéis. Do
mesmo modo, os membros da Igreja devem ter a sua vida animada e movida pela
graça de Deus, transformada todos os dias em hóstia viva, oferecida com Cristo,
ao Pai. Pelo Espírito, os cristãos, membros do único corpo, formam uma unidade
inseparável 529.
A Eucaristia também é o sinal evidente da catolicidade da Igreja, não
somente no sentido da sua presença e expansão nas diversas partes do mundo, mas
também como a entende Agostinho, isto é, como a atualização do mistério pascal
em todas as situações da vida humana. Isto significa dizer que após a sua
ressurreição, Cristo segue vivendo os dramas humanos por sua unidade
inseparável com o seu corpo, a Igreja530. O resultado da encarnação é que ele
continua inseparável do seu corpo eclesial, e por isso mesmo, ainda padece
tribulações, não mais em sua carne, mas naqueles que fazem parte da comunhão
da Igreja531.
A catolicidade da Igreja de Deus, por conseguinte, não se limita a uma reunião da
totalidade das pessoas tomadas individualmente. A Igreja é também a comunhão
entre si de todas as comunidades humanas reconciliadas em Cristo com suas
riquezas e pobrezas, suas histórias e seus projetos. Em uma palavra, é a
humanidade nova, onde a imensa variedade da obra criadora e o enriquecimento
que o lhe proporciona o gênio humano se inserem no amplo mistério do amor, que
tem a sua fonte no coração de Deus. A catolicidade da Igreja tem toda esta
527
Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia..., n.22.
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 48.
529
Cf. Ibid., p. 53-55.
530
Cf. Ibid., p. 63.
531
Cf. Ibid., p. 64.
528
111
amplitude. (...) É eucarística. Porque a carne da católica é a do corpo dado,
celebrado e reunido na mesa do Senhor. Agora se compreende o porquê 532.
A unidade da Igreja não consiste na soma dos seus membros, mas em
deixar-se integrar pelo Espírito na comunhão onde todo o humano, com suas
diferenças, diversidade, gozos e penas, se convertem em uma unidade sólida com
Cristo no amor da cruz e da ressurreição533. O corpo de Cristo é corpo de
comunhão. Na mesa eucarística os grãos de trigo, que são os crentes, se
convertem, pelo fogo do Espírito, num único pão, tal como o que recebem, que é
o Cristo assumindo a humanidade reconciliada534. A força e a coesão dessa
unidade vêm do próprio Senhor, que é em si mesmo, com o Pai e o Espírito,
mistério de unidade535.
São João Crisóstomo penetra no mistério desta unidade sob a luz do
evangelho da reconciliação. Mostra que a comunhão com Cristo acaba com toda
distinção de raça, cor, dignidade ou classe social. Em Cristo somos todos iguais.
Na fonte batismal e na mesa eucarística não existem preferências ou privilégios536.
Esta igualdade fundamental dos batizados ante os sacramentos do Batismo e da
Eucaristia é carregada de implicações e significados para a vida da Igreja. Em
especial, a solidariedade para com os mais pobres e sofridos. Socorrer e servir a
um desses pequeninos é fazer da vida cristã objeto de louvor e sacrifício a Deus. É
renovar na história o mesmo sacrifício de Cristo na cruz, dar a vida pelos que
necessitam. A Eucaristia, portanto, possui uma dimensão de comprometimento
social e histórico irrenunciável. A participação na ceia deve nos levar
necessariamente a uma atitude de compromisso e responsabilidade para com o
mundo537.
O pão e o cálice são o foco de uma comunhão evangélica chamada a
atualizar-se em gestos, em atitudes, em sentimentos de solidariedade quotidiana,
alicerçados no amor e na fidelidade à Palavra de Cristo. Seria mister que os
membros de Cristo e as comunidades cristãs entre si vivessem de verdade esta
532
Cf. Ibid., p. 88-89.
“Desde então e até o fim dos séculos a Igreja edifica-se através da comunhão através da
comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós”. Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de
Eucharistia..., n.21.
534
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 70.
535
Cf. Ibid., p. 83.
536
Cf. Ibid., p. 75.
537
Cf. Ibid., p. 79.
533
112
proposta formando um só coração e uma só alma, um só corpo por onde circulasse
nada mais que o amor. A Eucaristia é por sua própria natureza o sacramento da
Igreja, da Igreja de comunhão.
5.4.3
A Crisma
Inicialmente, convém dizermos que houve grande resistência para se
compreender e aceitar a crisma como um sacramento “autônomo”, desvinculado
do Batismo. Primeiro porque ela constitui, juntamente com o Batismo e a
Eucaristia, o rito completo de iniciação à vida cristã e, por isso mesmo, não pode
ser pensada separadamente. Depois, porque ambos estão ordenados ao mistério
pascal de Cristo, integralmente, tanto à Páscoa como ao Pentecostes. Além disso,
tanto o Batismo como a Crisma são sinais integrais da vida e da atividade da
Igreja538.
A Crisma se desenvolveu a partir do rito de iniciação cristã que
originalmente era um só, chamado de batismo, na Igreja primitiva539 e não é,
como se diz, o sacramento de Pentecostes, mas tanto quanto o Batismo é o
sacramento do mistério pascal de Cristo, que compreende tanto a sua morte e
ressurreição, como o derramamento do Espírito em Pentecostes. O erro desta
afirmação está em pensar que o derramamento do Espírito é um acontecimento
restrito à Crisma, ou que o derramamento que acontece no Batismo não é
suficiente para mover a Igreja 540.
Ora, o Batismo confere o Espírito tanto quanto a Crisma. A diferença entre
esses dois sacramentos não está no fato de comunicar ou não o Espírito, mas nos
efeitos que o Espírito Santo produz na vida do cristão a partir de cada um deles. A
missão do Espírito no dia de Pentecostes deu início ao tempo da atividade
sacramental eclesial, que durará até o retorno do Senhor. Além disso, deu início
ao novo modo da presença de Cristo, tanto na Igreja de modo geral, como em seus
membros particulares, através do seu Espírito. Mas o derramamento do Espírito
também acontece no Batismo. Depois, a crisma não faz referência somente ao
evento de Pentecostes, mas a todo o mistério pascal de Cristo.
538
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. V.2…, p. 135.
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 234.
540
At 2, 1-13.
539
113
Um outro equívoco é pensar a Crisma como o sacramento da maturidade ou
“maioridade” cristã. Deste modo, o batismo é visto como o sacramento das
crianças e a crisma, dos adultos. Ora, a crisma não vive e nem é valorizada por
uma desvalorização do Batismo. Ambos tem o seu papel e o seu valor. Talvez o
batismo de crianças tenha constituído a base para essa mentalidade. Mas essa
distinção não tem nenhuma fundamentação no Novo Testamento, nem na
Patrística, e nem mesmo na teologia medieval. Antes, contradiz a todas elas541.
Toda essa problemática nos leva a pensar que o sentido específico da crisma
ainda não está claro para todos e reflete a incerteza teológica a respeito da
importância específica deste sacramento.
Perguntamo-nos então: Qual é a operação do Espírito na crisma, que de tal
maneira se diferencia da transmissão do Espírito pelo Batismo, que se deve a um
sacramento peculiar?
Não se conhece, no Novo Testamento, um rito próprio de concessão do
Espírito, separado do Batismo, como regra de iniciação cristã542. Para o Novo
Testamento o dom do Espírito faz parte do evento batismal. Em duas passagens
dos Atos dos Apóstolos a concessão do Espírito, parte integrante do Batismo, se
encontra no contexto de uma imposição de mãos pelos apóstolos543. Na Epístola
aos Hebreus, batizar e impor as mãos são mencionados com naturalidade um após
o outro. Enumera a imposição de mãos, junto com o Batismo, a ressurreição e o
juízo eterno entre os conteúdos fundamentais da doutrina cristã544.
Por outro lado, também se pode encontrar nos Atos dos Apóstolos o
Batismo e o dom do Espírito sem fazer referência à imposição de mãos545. Além
disso, trata uma única vez de um batismo cristão no qual o Espírito não foi
concedido. Este fato se deu por ocasião das missões empreendidas pelos
missionários do apóstolo Filipe, na Samaria. Somente quando Pedro e João lhes
impuseram as mãos é que o espírito foi derramado, apesar dos sucessos na
missão546. Já os textos de João falam do derramamento do Espírito como um
541
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. V.2..., p.135.
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 235.
543
Cf. At 8, 17s; 19,6.
544
Cf. Hb 6,2
545
Cf. At 2,38; 10, 44-48.
546
Cf. At 8,16s.
542
114
renascimento “da água e do Espírito”, sem necessariamente estar ligado a algum
rito próprio de concessão547.
Na Patrística, encontramos vários testemunhos sobre a crisma. Trata-se da
imposição das mãos seguida da unção com óleo, que se seguem ao Batismo. Mas
nem sempre se pode saber com clareza se se trata de um ato que ainda pertence ao
batismo ou do sacramento da crisma como distinto daquele. Foi somente no
Concílio de Florença, por ocasião dos conflitos com os reformadores, que a
crisma foi definida como um sacramento548.
Segundo a nova compreensão litúrgica- catequética, pautada sobretudo nas
orientações do Vaticano II, pela comunicação do Espírito através da imposição
das mãos na Crisma, os discípulos recebem nova força para dar testemunho
daquilo que crêem549, bem como uma compreensão mais profunda e uma firmeza
maior na fé550. A idéia do “selo”, recuperada pelo novo rito de 1971, serviu de
base para esta nova compreensão. Significa, sobretudo para aqueles que foram
batizados ainda criança, um sinal de decisão e de fé pessoal, tal como uma
confissão de fé. Sublinha o aspecto de pertença à Igreja, com todos os direitos e
deveres próprios da vida cristã. Representa ainda o comissionamento e o
fortalecimento para o testemunho551.
Na antiguidade, o gesto de imposição de mãos estava associado à idéia de
dispensação e transmissão de vida, força, poder e benção552. Também era utilizado
para invocar a cura553 e como sinal de participação na mesma obra missionária554.
Neste sentido, a imposição das mãos na Crisma simboliza a aceitação e inclusão
na esfera de vida divina, cura da culpa alienante e o envio para a construção do
Reino de Deus555.
De igual valor simbólico está a unção com o óleo, usado na antiguidade
especialmente depois do banho, por causa do seu perfume. Também se usava a
unção antes da luta para tornar o corpo escorregadio, difícil de ser agarrado. Em
547
Cf. Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 234.
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol.V.2..., p. 137.
549
Cf. Lc 24,19; At 1,8.
550
Cf. Jo 14,26; 16,13.
551
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 239.
552
Cf. Gn 48,14s; Mc 10, 13-16.
553
Cf. Mc 5,23; 6,5; At 28,8.
554
Cf. Nm 27,15-23; Dt 34,9; At 6,1-6; 1Tm 4,14; 2Tm 1,6.
555
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 236.
548
115
Israel, sacerdotes e reis eram empossados em seus cargos por meio da unção556.
No Novo Testamento não se constata nenhum rito de unção em conexão com o
derramamento do Espírito; no entanto, a “unção” se tornou a figura para designar
a concessão do Espírito ocorrida no Batismo 557.
A relevância deste sacramento para a vida sacramental da Igreja está na
consciência mais amadurecida que se tem da fé, no compromisso do testemunho e
na identidade que cada cristão deve assumir diante do mundo. Os sacramentos não
podem ser reduzidos a meros gestos rituais, mas têm de nos projetar para um
compromisso de vida concreto, caracterizado pela conversão pessoal e a
transformação da sociedade pelo nosso diferencial de vida.
556
557
Cf. Ex 29,7; Lv 4,3; 1Sm 16, 1-13; 2Sm 2,4.
Cf. 2Cor 1,1s; 1Jo 2,20. 27.
116
6
Perspectivas
A consciência de uma Igreja sacramental afeta diretamente a atuação e a
consciência que os fiéis têm da sua participação na comunidade de fé e do seu
papel no mundo.
Tratamos, ao longo do trabalho, dentre vários outros ítens, da dimensão
simbólica da religião e mostramos o quanto ela é necessária para se entender que a
Igreja é mais que uma instituição burocrático-administrativa e humana. Tem na
base da sua reflexão uma dimensão mística, que jamais pode ser esquecida, sob a
pena de perder o próprio sentido para o qual existe.
Ora, na medida em que compreendemos a pedagogia divina, que escolheu
salvar os seres humanos e manifestar a sua divindade na nossa própria
humanidade, também passamos a compreender e a relevar as várias falhas e
necessidades humanas que nela ocorrem. Aprendemos a ver na Igreja o Cristo,
que se revela fraco, pobre, humilde, mas extremamente rica de conteúdo e de
significado, exatamente pelo fato de ser simbólica. Na realidade humana eclesial
se projeta o encontra com o divino. Na finitude do humano, a grandeza do eterno.
Trata-se do simbólico que através de si, nos projeta para além de si.
Deste modo, entramos no mistério de Deus que se fez homem para a nossa
salvação. Vimos na pessoa de Jesus o próprio sacramento do Pai, que nos ensinou,
por sua vida, a sermos também nós sacramentos uns para os outros. Seus gestos,
sua vida, suas palavras, são a própria manifestação do amor divino pela
humanidade e desta para com o Pai. O Cristo humanizado é a porta de acesso ao
Deus transcendente. Na humanidade do Verbo torna-se possível o encontro com o
divino.
O mistério da Encarnação é, portanto, o coração da sacramentalidade
eclesial. Nele está a razão pela qual a Igreja pode revelar Deus e transcender-se a
si mesma. Nele está o sentido, a autoridade e a legitimidade da sua missão no
mundo.
Para dar continuidade à sua missão, após o seu retorno para junto do Pai,
Cristo congregou a Igreja e ensinou-a a observar e reproduzir, no dia-a-dia da
nossa história, as mesmas atitudes de amor, solidariedade e compaixão para com o
117
próximo, que ele mesmo realizou. Cabe a ela, portanto, a grande tarefa de
continuar e manifestar nos tempos hodiernos a graça e a salvação Cristo,
derramadas sobre a humanidade no Sacrifício da cruz. A salvação não cessou. A
graça de Cristo continua a se manifestar. Pentecostes continua a acontecer na vida
dos fiéis. Mas isso não é tão simples quanto parece.
Vivemos num tempo de recuperação do valor do leigo e da sua atuação
como membro ativo da Igreja. Tempo de desafios no que se refere ao ecumenismo
e à comunhão entre as religiões. Além disso, a tentação de uma religião fácil, sem
compromissos ou exigências, a multiplicidade de denominações religiosas e de
ofertas para resolver os problemas quotidianos daqueles que sofrem, aliados ao o
crescimento da pobreza e das diferenças sociais se tornaram um prato cheio para
as “raposas” de plantão, isto é, pessoas mal intencionadas que longe de se
comprometerem com a verdade do evangelho, fazem da religião e da boa fé dos
seu fiéis um modo de satisfazer suas próprias vontades e caprichos.
Tempo em que a presença da Igreja em muitos continentes começa a ser
escassa e a laicização dos Estados se torna fator determinante para o cerceamento
das atividades evangelizadoras, senão até a sua proibição. Tempo, enfim, em que
a falta de sentido e a grande variedade de alternativas religiosas, todas requerendo
para si o primado da verdade, juntamente com a falta de testemunho da parte
daqueles que dizem crer, fazem com que cada vez mais cresça o número daqueles
que se dizem sem religião, ou ainda, ateus.
Ser sacramento de salvação, sinal vivo da presença ativa de Cristo no
mundo, é mais que um privilégio, tornou-se uma necessidade. Talvez por isso o
Concílio Vaticano II tenha definido o tema da sacramentalidade da Igreja como
um dos seus mais importantes conceitos. Ser sacramento de Cristo é perceber-se
um membro ativo deste grande corpo, que é a Igreja. É reconhecer que na missão
evangelizadora não somos meros expectadores, mas protagonistas principais.
Trata-se de uma prioridade nos projetos de ação, evangelização e formação da
Igreja.
Mas que modelo de Igreja queremos ser e apresentar para a sociedade?
Como fazer com que de fato a Igreja seja sinal de salvação? Que respostas
queremos dar ao mundo frente aos desafios levantados? A humanidade nos
interpela. É possível ser sinal de esperança em meio a tantos conflitos e
contradições?
118
Ora, uma Igreja mais participativa e mais consciente da sua missão passa
também pela oportunidade e pela capacitação, sobretudo daqueles que mais tem
carecido desta atenção, os fiéis leigos. Quais os passos empreendidos nesta
direção? Que atitudes concretas têm sido realizadas para que isto se aconteça?
Não seria, porventura, a hora de recuperar a idéia de comunidades mais
participativas, co-responsáveis na missão do evangelho, decentralizadas na
questão da autoridade e do poder, e iluminadas pela proposta de uma Igreja de
comunhão?
Sabe-se, que o Concílio Vaticano II deu grandes avanços com a proposta de
recuperação de alguns valores e modelos da Igreja primitiva. Contudo, também é
possível dizer que o modelo eclesial adotado pelo Concílio ainda não foi
totalmente assimilado e transmitido pela catequese que temos recebido.
No âmbito do direito, é preciso fazer com que a legislação canônica
acompanhe a renovação proposta do Concílio e que a Igreja sacramental não seja
mais um elemento utópico, no sentido de que sempre se apresenta como um ideal,
mas quase nunca como uma realidade. Do contrário, as propostas e definições da
Igreja nunca passarão de documentos.
A missão da Igreja é ser sal da terra e luz no mundo. O mundo como campo
de experiência e transfiguração cristã é propriedade irrenunciável da Igreja,
especialmente do leigo: viver no tempo cada uma das atividades para nelas
testemunhar o Cristo. Só assim responderão à sua vocação e serão
verdadeiramente cristãos.
Grande auxílio também pode nos dar a liturgia. A missa como ato
comunitário do celebrante e do povo juntos, requerendo participação pessoal e não
somente assistência de expectadores pode ser uma imagem perfeita da vida
eclesial autêntica, o fiel que leva ao altar a sua vida, como verdadeira hóstia viva
ao Senhor. Somente quando uma consciência deste gênero tiver sido
universalmente afirmada em todos quantos se dizem católicos os fiéis
compreenderão a necessidade de fazer a sua parte no trabalho da messe.
Concluímos nosso trabalho lembrando que a proposta desta pesquisa não foi
a de fechar questões ou apresentar conclusões sobre os aspectos tratados, mas
simplesmente despertar para a necessidade de um aprofundamento do tema e,
dessa forma, dar uma contribuição para a teologia e para a pastoral da Igreja. Meta
que esperamos ter alcançado.
119
7
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Felipe da Silva Braga Igreja, sacramento de salvação: a