III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA AUTOR DO TEXTO: Rubenilda Sodré dos Santos A integração entre países sul-americanos por meio da cooperação cultural e científica: desafios e perspectivas num contexto de globalização RESUMO: Este artigo se insere no campo de estudos da Sociologia Política e da Sociologia das Relações Internacionais e aborda o papel das novas formas de cooperação centradas na cultura, especialmente na área da ciência, tecnologia e ensino superior no âmbito regional sul-americano. O artigo considera a capacidade e os desafios do Estado brasileiro em atuar conjuntamente com outros países da América do Sul, em especial Argentina e Chile - ambos envolvidos nas políticas de integração regional do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) -, em ampliar ações voltadas para o desenvolvimento das áreas mencionadas. Desse modo, sustenta a idéia de que os investimentos em ciência, tecnologia e conhecimento, sobretudo em tempos de globalização, ampliam as relações democráticas e de integração entre atores envolvidos (Estados, organizações multilaterais, civis etc.) e as condições para uma maior justiça social, a partir do fomento à produção de recursos humanos e capital social na região. Globalização e cooperação Os discursos acerca da globalização têm subvertido uma série de valores tradicionais e de aceitação até então generalizada, tanto para a análise das formas de organização da sociedade e da economia quanto para a ação política moderna e a cultura. O fenômeno (ou processo) da globalização põe em evidência o sentido e o conteúdo da cultura e com isso uma série de desafios analíticos para as ciências sociais. O contato e a convivência com diferentes culturas, a intensificação dos fluxos migratórios e virtuais propiciados por novas tecnologias de comunicação e informação, a difusão de produtos e indústrias culturais, além das lutas e valorização de temas como multiculturalismo e direitos humanos são alguns elementos privilegiados quando cultura e globalização são postos em pauta. Segundo Giddens (1990) a modernidade tem separado, cada vez mais, o espaço do lugar ao reforçar relações entre outros que estão ausentes, distantes, de qualquer interação face a face. Nas condições da modernidade global há processos de desencaixe onde os locais são inteiramente penetrados e moldados por influências sociais bastante distantes, por isso não é apenas o que está presente na cena que estrutura o local, a “forma visível do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza” (p.18). A intensificação das relações sociais no nível transnacional implica em repensar categorias como cultura, identidade e integração na medida em que seus processos atuam em escala global, atravessando fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações, por um lado, e acentuando diferenças em alguns casos (nacionalismos, fundamentalismos etc.) através de novas combinações espaço-tempo, por outro lado, o que torna o mundo como realidade e como experiência mais conectado (MCGREW1, 1992 apud HALL, 2002). Nesse sentido, a cultura na América Latina deixou de ser concebida unicamente dentro de um quadro nacional para levar em conta a globalização e suas novas realidades (YÚDICE, 2006). As tendências globais imprimiram sua tônica peculiar em função da integração desses países ao mundo globalizado, incluindo estratégias de atores (estatais, não-estatais, multilaterais) em processos de integração diversos. A integração e a cooperação internacional entre países que 1 MCGREW, A. A global society. In: HALL, Stuart; HELD, David; MCGREW, Tony (Orgs.). Modernity and its futures. Cambridge: Polity Press/Open University Press, 1992. 2 compartilham valores e afinidades (tradição histórica, cultura, línguas etc.) condicionam estratégias de adaptação e desenvolvimento no complexo espaço mundial globalizado, onde o exemplo mais paradigmático é o da União Européia. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é discutir algumas formas de cooperação internacional no campo da cultura entre países sul-americanos, partindo de um estudo comparativo entre Brasil, Argentina e Chile. Pretende, então, ressaltar alguns acordos e políticas de intercâmbio a partir da atuação de atores tradicionais da cooperação, os Estados e suas ações no âmbito do MERCOSUL. Conhecimento, desenvolvimento e democracia: perspectivas sobre a justiça social Do ponto de vista deste artigo a cultura é entendida como um recurso amplo da contemporaneidade e diz respeito desde o reconhecimento social de identidades e singularidades culturais (TAYLOR, 1994; FRASER, 2000) até elementos do desenvolvimento que abrangem recursos sócio-econômicos, educacionais e intelectuais que são condições básicas para a emancipação humana e a redução das desigualdades (YÚDICE, 2006). Compreende-se que os processos de cooperação e integração ao nível cultural tendem a favorecer o desenvolvimento social como base da convivência justa e com maior equidade, que são fundamentos da democracia moderna. Nesse sentido, este trabalho enfatiza o campo de desenvolvimento da ciência e do ensino superior, porque ambos têm papel importante na consolidação de processos democratizantes. Eles propiciam, por um lado, o desenvolvimento sócio-econômico de uma sociedade e, por outro, a formação de uma cultura política com base em saberes e consciência cívica, que incrementam os vínculos sociais, produzindo o senso de pertencimento em micro e macro escalas. O acesso ao conhecimento em tempos globais configura-se também em relação à igualdade nas oportunidades de vida, tal como Heller (1998) descreve, já que estas realmente objetivam o sentido moderno de justiça e igualdade de fato. Consolidada por normas já instituídas ou por novas normas que surgem para atender às necessidades emergentes dos indivíduos, grupos ou organizações – o que a autora denominou de justiça dinâmica -, a justiça é operacionalizada tanto pela razão instrumental (leis e contratos) como pela racionalidade comunicativa que regula as trocas dos indivíduos na esfera pública, cada vez mais marcada pela pluralidade hoje (FRASER, 1992). Para entender as questões de justiça social em tempos de globalização o reconhecimento social é imprescindível para Fraser (2000). Segundo a autora, o que garante a moralidade é o procedimento, isto é, aquilo que permite a garantia da participação paritária na vida cotidiana e nas esferas públicas porque todos possuem direitos iguais a ter estima social, como condição de igual oportunidade de vida. As lutas por reconhecimento podem ajudar tanto na redistribuição de poder e riqueza quanto podem promover interação e cooperação onde há abismos entre diferenças. Portanto, ser reconhecido para a autora é ter assegurada a capacidade de participação nas diversas esferas da vida coletiva, tal como o sujeito emancipado de quem fala Touraine (1995): “O Sujeito é a vontade de agir e ser reconhecido” (p. 219-220); capaz de combinar racionalidade e subjetividade ele se torna um sujeito no mundo, que concebe a si mesmo como ator, responsável perante si mesmo e perante a sociedade. O processo da globalização tem favorecido a ampliação do espaço para aqueles envolvidos em novos arranjos políticos, novas formas de inserção no poder, atuando em movimentos sociais plurais e transnacionais; isto é, a globalização em relação à cultura política mobiliza atores políticos que extrapolam as fronteiras dos Estados-nação para defender bandeiras diversas, mas também bens públicos globais (e.g. paz, meio ambiente) e responsabilidades recíprocas (BADIE, 2000). A política global hoje 3 (international politics) se caracteriza, portanto, por um complexo sistema de tomada de decisões, no qual atores estatais e não-estatais intervêm através de seus recursos de poder (representação formal, investimentos, finanças, tecnologias, informação, cultura, símbolos) que vão do nível local ao global. A literatura sobre as relações políticas e internacionais das nações e Estados aponta atualmente para uma complexificação do campo político internacional, em contraste com as antigas relações inter-estatais, hoje marcado por um multilateralismo complexo em que atores diversos permanecem num constante processo de (re)definição das regras e procedimentos democráticos (MILANI & LANIADO, 2006). Desse modo, o campo da cooperação internacional tem acenado para trocas que vão além da política e da economia, para abarcar valores culturais como elementos imprescindíveis para entender o desenvolvimento social e econômico, e seu valor de explicação sobre a integração social. Com base nesta assertiva destaca-se o papel da cooperação cultural e científica na região sul-americana, e sua capacidade de promover as condições de formação cultural (consciência cívica e democrática) e desenvolvimento social, que são elementos preponderantes para a ação instrumental do indivíduo, para integrá-lo na nação e também integrar a nação ou grupo de nações como parte ativa no mundo globalizado (CANCLINI, 2008). Para Canclini não haverá integração no contexto latino-americano enquanto não for incluído na agenda da cooperação entre esses países formas de cidadania mútua que reconheçam os direitos de todos os que produzem e interagem dentro ou além de seus territórios. Os países que abrangem este trabalho - Argentina, Brasil e Chile - compartilham diversas similitudes e apresentam convergências no contexto sul-americano. Analiticamente, entre aspectos aglutinantes destacam-se os idiomas de origem ibérica; a matriz católica de colonização; o caráter de sociedades/economias capitalistas tardias ou periféricas e o peso de relações sociais tradicionais que marcaram o campo político, social e as formas estatais de poder. Ademais, estes países atravessaram regimes políticos ditatoriais durante os anos 1960-1970, para somente em seguida iniciar processos de redemocratização com a abertura política. As mudanças ocorrem sob uma matriz sociopolítica fundada num desenvolvimento com autonomia relativa entre Estado e sociedade civil, associados, ainda, a uma densa rede de movimentos sociais e atores coletivos. A organização e o desenvolvimento da sociedade civil nesses países foram – antes que em outros países da região – mais fortes e produziram mais espaços de autonomia relativa. Concomitantemente, o Estado e os partidos políticos também se fortaleceram como atores centrais da política. Esse processo resultou em maiores taxas de participação cidadã, sobretudo a partir de meados dos anos 1980, através da expansão do sufrágio universal e pela evidência de novos movimentos sociais, debilitando, conseqüentemente, formas oligárquicas de controle social e do Estado e transformando a cultura política da região (SIERRA, 2008). Em termos de conjuntura histórica, a democratização na América Latina ocorreu simultaneamente à globalização produzindo o paradoxo entre mais democracia e mais concentração de riqueza. Portanto, pretende-se buscar uma (re) significação em relação ao papel da cooperação científica e cultural enquanto ações destacadas porque estas são responsáveis não só pela formação de recursos de alto nível e produção de conhecimento, condições indispensáveis ao deslocamento destes países do patamar de países periféricos para o patamar de uma inserção mais ativa no mundo globalizado (MAROSINI, 1998), mas também funções a serem construídas na formação da integração cidadã e ampliação de espaços mais democráticos de vivência e reprodução social. 4 Cooperação cultural e científica no âmbito do MERCOSUL A ótica da cooperação internacional considerada na conjuntura global após a queda da bipolaridade (Estados Unidos X União Soviética) se explica por novas dinâmicas e pela intensificação da interdependência (econômica, tecnológica, ambiental etc.) entre as diferentes unidades do sistema-mundo, além dos desafios lançados pelos novos atores transnacionais que emergem na cena atual. Se por um lado há um enfraquecimento do Estado, por outro testemunha-se o renascimento do político associado a uma multiplicação e difusão de instâncias de decisões políticas, representação de interesses e negociação no nível transnacional (BECK, 1997; MELUCCI, 1989). Há um processo de transformação gradual da política tradicional em novas relações políticas baseadas em trocas e negociações que, por meio de confronto e mediação de interesses, produzem decisões onde antes havia apenas mecanismos para transmitir regulações através dos meios convencionais de poder. Nesse sentido, a integração regional como espaço de troca e negociação apresenta potencialidades para a superação de obstáculos que condicionam o processo de desenvolvimento em diversas partes do mundo e, especialmente, na América do Sul que é o tema deste artigo. A articulação entre a globalização e os processos de integração regional resulta na ampliação do sentido das trocas e da reciprocidade generalizada (LANIADO, 2001) que vão além da escala local e dos valores nacionais, para construções mais solidaristas com ganhos reais para o desenvolvimento dos países envolvidos. A cooperação Sul-Sul visa hoje beneficiar-se das possibilidades do sistema internacional. No campo político, a nova ordem global aponta para a necessidade das sociedades partilharem de normas internas comuns identificadas com um pluralismo democrático e demais convergências sociais. A opção pelo regionalismo, que se traduz desde formas superficiais de cooperação entre países até experiências mais profundas de um mercado comum, tornou-se uma opção importante de inserção e interdependência no campo econômico sul-americano, mormente após a estruturação do MERCOSUL. O bloco foi criado através do Tratado de Assunção firmado em 1991, entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai; mas, somente em 1994 foi assinado o Protocolo de Ouro Preto que lhe concedeu uma estrutura institucional. Desde 1996, o Chile participa do MERCOSUL como membro associado/observador, conformando uma Zona de Livre Comércio com processos próprios de adequação. No caso particular do MERCOSUL, este se apresenta como uma resposta regional para a competição econômica global, liderada pelos EUA, e comporta uma relativa subordinação das economias satélites à do país nuclear, neste caso, o Brasil (YÚDICE, 2006). A tão buscada integração regional pode ser definida neste trabalho como “um processo dinâmico de intensificação em profundidade e abrangência das relações entre atores levando à criação de novas formas de governança políticoinstitucionais de escopo regional” (HERZ & RIBEIRO HOFFMANN, 2004), onde se integrar significa que os atores passam a fazer parte de um sistema político - de tomada de decisão - comum. Embora a integração cultural esteja ausente no NAFTA (North American Free Trade Agreement) e relativamente fraca na União Européia, ela está em condições de se transformar na América do Sul num dos principais motores da cooperação e do desenvolvimento, fundamentada em princípios como direitos humanos e diversidade cultural. Atualmente vem ocorrendo um processo de aproximação maior entre os países sul-americanos em que o estreitamento dos laços transfronteiriços entre o Brasil e seus vizinhos é uma evidência empírica desse elemento. Pode-se afirmar que, além disso, a mola propulsora da integração física, amparada, sobretudo no setor infra-estrutural regional e de energia, tem favorecido uma regionalização de políticas externas entre estes países sul-americanos (GALVÃO, 2009). Ademais, presencia-se a construção de uma estratégia regional, principalmente com a aproximação entre a Comunidade Andina e o MERCOSUL, e da União das Nações Sul-americanas (Unasul) criada em 2008 no plano regional, além do alinhamento de grandes fóruns internacionais contra as barreiras 5 protecionistas que limitam o acesso aos mercados dos países desenvolvidos, e uma oposição sistemática às assimetrias da economia globalizada, elementos que evidenciam um processo de construção identitária em curso na América do Sul (GALVÃO, 2009). Em contraste como o NAFTA, o MERCOSUL tem um complemento cultural oficial, evidente em suas diversas organizações, especialmente as profissionais (incluindo ministros e secretários de cultura dos países-membro) que se reúnem para discussão de assuntos sociais, educativos, comerciais e culturais partindo do regional. Na primeira dessas reuniões anunciou-se um “MERCOSUL da Cultura” ou zona cultural integrada dos países do MERCOSUL, ressaltando a promoção do bilingüismo espanhol/português na educação e outras esferas e a livre circulação de bens e serviços culturais para que os países se conhecessem mutuamente. No entanto, a imbricação entre cultura e economia, que está na base da criação do MERCOSUL Cultural, deve atentar para o fato de que integração e inclusão democrática dos países e de suas regiões incorrem no risco de marginalização de certas áreas/territórios dos países-membro e da predominância da perspectiva comercial dos produtos culturais (YÚDICE, 2006; CANCLINI, 2008). No campo cultural o Estado é o promotor direto de programas e ações de cultura seja através da institucionalização do sistema escolar, da propriedade e regulamentação das mídias ou da implantação de órgãos administrativos específicos voltados para a formulação, gestão e implementação de políticas públicas. No âmbito sul-americano o Estado é o lugar de articulação entre os governos e atores privados, demais entidades e sociedade civil, é o agente de regulação, arbitragem e responsabilidade pelo acesso aos bens culturais e na relação com outras nações. Associada ao papel de arbitragem do Estado, a atuação de organismos internacionais para a promoção da cultura é fundamental, sobretudo a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) que é também um ator privilegiado neste âmbito. Ela congrega hoje cento e noventa Estados-membros em sua órbita o que lhe confere uma amplitude significativa de atuação e influência sobre a formulação de políticas culturais nesses países. Desafios e perspectivas da integração cultural e científica: alguns dados empíricos sobre o tema De acordo com Saraiva e Almeida (1999) o desenvolvimento da cooperação científica, embora muito marcado por participações do setor privado, apóia-se basicamente em orientações do setor público, que deve implementar políticas para este fim. O Estado deve atuar de forma complementar às iniciativas privadas e como coordenador do conjunto de empreendimentos nesta área. Na região sul-americana, em especial entre Brasil, Chile e Argentina, as políticas públicas de ciência e tecnologia enfrentaram historicamente dificuldades pelo seu isolamento no conjunto das políticas públicas, falta de recursos e fraqueza das instituições responsáveis, além das diferenças existentes entre as políticas científicas e as questões de titulação e ensino universitário nos países. Apesar destas limitações, existem alguns esforços no sentido do que se pode chamar de cooperação científica e tecnológica, ainda em curso para uma integração mais consistente da região. No que se refere ao campo da educação superior e pós-graduação, desde 1995 foi firmado um protocolo no âmbito do MERCOSUL que estabelece a aceitação por parte dos Estados-membros e associados de títulos universitários expedidos por instituições de ensino reconhecidas entre estes países. No mesmo ano, outro protocolo estabeleceu a busca de padrões e critérios comuns de avaliação de programas de pós-graduação e o compromisso dos países em adaptar estes programas a uma formação igual ou equivalente; ademais, o protocolo estabelece uma política de intercâmbio de estudantes e pesquisadores entre países da sub-região; fatores importantes para a integração 6 educacional (VELOSO, 1999). No Brasil, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) tem ressaltado a presença de cursos de pós-graduação brasileiros nestes países e de cursos brasileiros reconhecidos em toda a América Latina. Da mesma forma o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), por seu turno, reserva para seus Grupos de Pesquisa um papel de destaque para o diálogo com pesquisadores de universidades do MERCOSUL (SARAIVA & ALMEIDA, 1999). Esta resolução é reforçada pelo acordo que admite a validade dos títulos de graduação e pós-graduação para as atividades de docência e pesquisa nas instituições de ensino superior entre os países, favorecendo a troca e o intercâmbio de pesquisadores, estudantes e docentes. 2 Por outro lado, os países vêm adotando políticas públicas que visam à aproximação entre universidades e empresas, com alguns projetos e experiências relacionando universidades e setor produtivo no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. A interação se dá por meio de políticas sob a intervenção do Estado na elaboração de mecanismos que promovam a incorporação dos resultados das pesquisas científicas às aplicações comerciais (VELHO 1998). Na verdade, desde sua criação, o MERCOSUL privilegiou, ao menos no nível do discurso oficial e da previsão de ações, as atividades de cooperação em ciência e tecnologia (C&T). Os esforços, ainda que modestos, dos paísesmembros para fortalecer parcerias em C&T são anteriores à criação formal do bloco. É o caso de Argentina e Brasil que já na década de 1980 estabeleceram missões conjuntas em setores estratégicos, tais como o aeronáutico/espacial e novas tecnologias, incluindo a pesquisa nuclear (VELHO 2001). Ainda que a cooperação na área seja privilegiada com parceiros da Europa e Estados Unidos, dentro do marco institucional do Mercosul existe um fórum específico de debate e coordenação de questões de C&T denominada Reunião Especializada em Ciência e Tecnologia (RECYT); todas as diretrizes elencadas por este fórum para os países constituintes envolvem atividades de cooperação. Velho (2001) destaca a cooperação por meio de universidades que ocorre de forma mais ativa em relação à pesquisa científica e formação de recursos humanos no nível de pós-graduação, que é marcada por com um fluxo invariável em direção às universidades do sudeste brasileiro. Este fato deve-se à estrutura consolidada de pesquisa e pós-graduação do sudeste do país, um pólo de atração para estudantes de toda a América Latina. Para ilustrar a questão, a autora destaca dados do Programa de Bolsas de Pós-graduação para Estudantes Estrangeiros (PEC/PG) que, de 1994 a 1997 concedeu 82 bolsas para a Argentina, 48 para o Chile, 70 para o Paraguai e 79 para o Uruguai, totalizando 279 bolsas (COSTA & VELHO, 1997). A recente experiência da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), impulsionada pelo governo brasileiro e sancionada no corrente ano de 2010 pelo presidente da república, também se constitui como um exemplo de ação de governos voltada para a cooperação cientifica na região. A UNILA pretende valorizar a integração regional apoiada no conhecimento compartilhado, através da cooperação entre diversas universidades latino-americanas. A universidade conta em sua estrutura com 50% de professores brasileiros e 50% de professores estrangeiros dos diversos países latino-americanos; compõe-se de aproximadamente vinte cursos de graduação em diversas áreas e a universidade foi implementada para também receber alunos provenientes de países latino-americanos; a UNILA está integrada a uma rede com cerca 2 Este acordo foi sancionado pelo Decreto nº 5.518, de 23.08.2005 e antecedido pela aprovação do Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 800, de 23.10.2003, estando esses diplomas legais em perfeita consonância com os artigos. 49, I, e 84, VIII, da Constituição Federal (Fonte: www.capes.gov.br). 7 de vinte e duas universidades de toda a região e pretende um ensino de caráter trans e interdisciplinar. A UNILA iniciou suas atividades no segundo semestre de 2009, juntamente com a implantação do Instituto MERCOSUL de Estudos Avançados (IMEA), instituído pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), instituição tutora da UNILA e tem suas atividades sediadas no Parque Tecnológico de Itaipu (PTI), Foz do Iguaçu (PR) 3. Atualmente, alguns de seus cursos de graduação encontram-se no aguardo da aprovação pelo Ministério da Educação brasileiro. Quanto ao setor produtivo envolvido na cooperação, nota-se com mais destaque a transferência de conhecimento específico e fluxos de informação com mais freqüência para o Brasil e algumas empresas (EMBRAER, USIMINAS, SOFTEX MERCOSUL etc.). Na Argentina destaca-se o setor da biotecnologia, cujas empresas têm filiais e licenças concedidas a brasileiras. O resultado mais direto do impacto do MERCOSUL na conformação de uma rede regional de cooperação em C&T parece ser a modalidade de parceria que visa à harmonização de normas técnicas, padronização e regulamentação de produtos e processos (Metrologia, Normalização e Qualidade); entre os parceiros estão as universidades, empresas estatais, institutos de pesquisa, autarquias do governo federal, entre outros (VELHO, 2001). Pode-se dizer que, ainda que as experiências de cooperação em C&T sejam modestas em termos de volume, variedade e valor, elas demonstram um potencial integrativo com políticas impulsionadas por convergências e pela proximidade entre os países envolvidos e, principalmente, pela relevância estratégica das instituições de ensino e pesquisa na região, como motor para o desenvolvimento e a justiça social que ele pode trazer. Considerações finais O contexto da globalização tem influenciado os processos de integração regional em diversas partes do mundo, através da formulação de estratégias protecionistas e blocos de países frente o mercado neoliberal e às próprias conseqüências negativas da globalização, como o aumento das desigualdades. Na América do Sul, observa-se uma aproximação maior entre os Estado-nação atualmente em virtude também do reconhecimento de similitudes, identidades e convergências históricas neste contexto. Este artigo discutiu brevemente algumas iniciativas de cooperação científica e cultural como elementos de aproximação e integração tendo em vista suas possibilidades, a partir da ação dos Estados, em proporcionar maior desenvolvimento na região através de integração de políticas capazes de favorecer a formação de recursos humanos e democráticos. Estas formas de cooperação refletem pontos de debilidade e limitações, mas também revelam ações potenciais e iniciativas exitosas que caminham para o enfrentamento de desigualdades regionais e uma maior interação e diálogo entre os países envolvidos. Destarte, estas ações podem fortalecer ainda mais os processos de integração cultural e científica que são tão importantes para o posicionamento de qualquer país frente um mundo globalizado. Referências: 3 Informações do site oficial www.unila.ufpr.br e dados de pesquisa de campo (2010). 8 BADIE, Bertrand. Múltiplas crises. In:______ O fim dos territórios: ensaio sobre a desordem internacional e sobre a utilidade social do respeito. Edição Portuguesa, 1995. BADIE, Bertrand. Um mundo sem soberania: os Estados entre o artifício e a responsabilidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS; BECK; LASH. Modernização reflexiva. São Paulo: Ed. Uesp, 1997. 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