Os Estigmas Sociais e a construção de novos espaços na região de Ribeirão
Preto: o caso do Assentamento Sepé Tiaraju no município de Serra Azul (SP)
Elisa Pinheiro de Freitas (Mestrado em Geografia Humana/FFLCH/USP)
Júlio César Suzuki (orientador)
Resumo: A partir do processo de formação do Assentamento Sepé Tiaraju no
interior do município de Serra Azul, integrante da Região de Ribeirão Preto,
pretendemos discutir como os Estigmas sociais lançados sobre o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) – que foi o movimento social
responsável pela organização das famílias no processo de ocupação da
Fazenda Santa Clara e, a posteriori, na constituição do assentamento
destinado à reforma agrária metamorfoseou-se numa força que tem
possibilitado a territorialização de camponeses, trabalhadores rurais etc por
toda essa região cuja monocultura da cana-de-açúcar é predominante,
permitindo o início da democratização ao uso da terra na “Califórnia Brasileira”.
Palavras-chaves: Assentamento rural, Reforma Agrária, Estigmas Sociais,
Territorialização
1. Introdução
A princípio, podemos salientar dois fatores que nos conduziram ao início do
nosso processo de investigação na região de Ribeirão Preto. O primeiro fator
está relacionado à territorialidade da monocultura da cana-de-açúcar, nessa
área do Estado de São Paulo, no atual período, já que, indubitavelmente, a
cultura da cana exerce uma grande influência na produção desse espaço. Já o
segundo fator tem haver com o processo de luta pela terra de trabalho nessa
região que se iniciou com a atuação da FERAESP. Está abriu o caminho para
a atuação de um dos mais importantes movimentos sociais do Brasil: o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Dentre os acampamentos instalados em vários municípios da região e que
foram organizados pelo MST, o Sepé Tiaraju, em Serra Azul, constitui-se, por
enquanto, no único que se transformou em Assentamento de reforma agrária.
Mas, como se configurou, no tempo e no espaço, a formação desse
Assentamento? Qual foi a trajetória seguida pelo MST? Como o setor
sucroalcooleiro reagiu em relação às famílias acampadas na Fazenda Santa
Clara, local que atualmente é a sede do Assentamento Sepé Tiaraju? E qual
foi o papel dos Estigmas Sociais nesse processo? É o que buscaremos,
brevemente, discutir em nossa análise.
2. Sepé Tiaraju: um novo espaço
A ação do MST, na região de Ribeirão Preto, iniciou-se com a ocupação de
uma fração do território, neste caso, a Fazenda Santa Clara, de propriedade
governamental, segundo informações fornecidas pelo promotor do Ministério
Público de Ribeirão Preto – Marcelo Goulart. No entanto, embora sendo uma
área pública, as terras da Fazenda Santa Clara eram utilizadas pela Usina
Nova União, instalada no município de Serrana.
Dessa forma, cerca de 130 famílias vindas de diversos municípios da região
(Araraquara, Franca, Barreto etc) ocuparam as terras da Fazenda Santa Clara,
no dia 17 de abril de 2000, dando início ao processo de luta pela terra de
trabalho.
Logo após essa primeira fase, a da ocupação da Fazenda Santa Clara pelas
famílias sem-terra, rapidamente, os proprietários da Usina Nova União
entraram com um pedido de reintegração de posse na comarca de Cravinhos,
sendo que o juiz de direito concedeu aos proprietários da Usina a liminar que
lhes assegurava novamente a restituição da posse da terra. Nesse ínterim, as
famílias permaneceram acampadas, por aproximadamente três meses, numa
área particular e, novamente, reocuparam as terras da Fazenda Santa Clara.
No decorrer desse processo de luta e resistência travada entre as famílias
acampadas e os representantes do setor sucroalcooleiro, constatamos alguns
elementos que contribuíram para a construção do Assentamento Sepé Tiaraju.
A princípio, salientamos o papel da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que,
embora estivesse desarticulada na região de Ribeirão Preto, teve uma grande
relevância no apoio dado às famílias acampadas. Não raro, a CPT organizava
manifestações no município de Ribeirão Preto com o intuito de chamar a
atenção dos munícipes para a questão agrária e conseqüentemente exigir uma
solução para tal problema que perdura há séculos em nosso país: a
concentração fundiária.
Com o auxílio da CPT, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
(MST) conseguiu estabelecer, no centro da cidade de Ribeirão Preto, uma loja
que comercializa produtos provenientes dos vários Assentamentos de Reforma
Agrária espalhados por todo o território brasileiro. Essas ações fortalecem o
MST e contribuem para que esse movimento continue a se territorializar por
toda a região.
Porém, antes de apontarmos os outros elementos que estão envolvidos na
constituição do Assentamento Sepé Tiaraju, queremos ressaltar uma questão
importante no desenrolar desse processo que é a relação cidade-campo. No
período atual, é de extrema importância o papel da cidade como lócus no qual
ocorrem os eventos relativos às manifestações dos movimentos sociais. Dessa
maneira, a luta pela terra de trabalho no campo se realiza também na cidade.
Assim, a relação cidade-campo não pode ser entendida como uma oposição e
sim como uma união dialética. Isso significa que a compreensão dos eventos
aos quais temos acompanhado, como ocupação de prédios públicos, marchas,
passeatas etc, promovidos, sobretudo, pelo MST deve incorporar essa nova
concepção de cidade-campo, para que não corramos o risco de interpretarmos
a realidade de maneira equivocada.
Não poderíamos deixar de destacar, por um lado, a atuação das Universidades
da região (USP dos Campi de Ribeirão Preto e de São Paulo e UFSCAR,
dentre outras) como um dos elementos que têm contribuído, decisivamente,
para o êxito do Assentamento Sepe Tiaraju. Não raro, pesquisadores de
diferentes áreas têm prestado auxílio às famílias assentadas. Desse modo, os
saberes produzidos nas Universidades têm atingido essa parcela do território.
Este fato vem confirmar a necessidade de ser realizada, com urgência, a
reforma agrária. As famílias assentadas passam a ter acesso aos bens que
são básicos, como educação, saúde, segurança, moradia e alimentação. Por
outro lado, o MST tem conquistado a simpatia de vários estrangeiros que, nos
períodos de férias, se instalam nos acampamentos e assentamentos. Isso
significa um grande ganho para o movimento, uma vez que o apoio da
sociedade civil é muito relevante.
Todavia, consideramos os Estigmas Sociais como elemento chave no
processo de constituição do assentamento Sepé Tiaraju. Dessa forma,
buscaremos tratar, de forma breve, do papel dos Estigmas na configuração
desse novo espaço.
3. Fazenda Santa Clara: territorialização do Estigma
Antes de se tornar um assentamento de reforma agrária, o Acampamento
Sepé Tiaraju passou por um contínuo processo de mudança em sua
organização interna, devido ao fluxo de entrada e saída de famílias, bem como
ações de ordem jurídica e ações de ordem sociopolítica.
Em novembro de 2001, em pesquisa de campo, obtivemos a informação da
possível venda da Fazenda Santa Clara para os representantes do setor
sucroalcooleiro da região. No entanto, as famílias continuaram a ocupar as
terras da fazenda, uma vez que tinham o objetivo de pressionar o governo a
acelerar a formação do assentamento. O leilão ocorreu, de fato, em junho de
2002. Segundo informações coletadas em campo, havia quatro compradores.
Entretanto, os compradores desistiram de efetuar o negócio, devido à
ocupação das famílias sem-terra.
Este fato nos impressionou muito. Por que os compradores desistiram de
adquirir a Fazenda Santa Clara? Acrescentamos ainda a seguinte contradição:
apesar das famílias do MST estarem ocupando a fazenda, isso não significa
que a mesma perdeu suas condições naturais e/ou artificiais. Condições essas
que possibilitam a (re)produção ampliação do capital. Como podemos
observar, as ótimas condições da Fazenda, não foram suficientes para a
concretização de sua própria venda.
Dessa forma, para compreendermos essa realidade complexa, buscamos, na
teoria dos estigmas sociais, os possíveis caminhos para elucidar questões que
no desenrolar da formação desse assentamento de reforma agrária foram
emergindo.
Nesse sentido, parece-nos evidente a essencialidade de apreender
todos os conjuntos de ações que dinamizam os movimentos sociais, neste
caso especifico, empreendidos pelo MST, pois as ações, mediadas pelo
simbólico e legitimadas pelo discurso, tornam-se responsáveis pelo processo
de estigmatização dos grupos ou movimentos sociais. Assim, a análise do
papel dos estigmas que são atribuídos ao MST constitui um elemento central
para a elucidar a dinâmica do processo de territorialização do MST pela região
de Ribeirão Preto.
A princípio, a noção de estigmas muitas vezes é confundida com uma série de
outros termos correlatos como: discriminação, preconceito, segregação,
exclusão, marginalização etc. Na verdade, a noção abrange todos esses
termos. Dessa forma, concordamos com a seguinte definição, proposta por
Erving Goffman, sobre o que é o estigma: “um estigma é, então, na realidade,
um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo” (Goffman: 1978, 13).
O estigma, além de ser uma relação entre uma característica (de um indivíduo
e ou de um grupo) e o estereótipo, é também uma realidade, isto é, algo
concreto. Mas, utilizamos a noção de estigma sempre que essa característica
atribuída ao indivíduo e/ou ao grupo/movimento social for negativa: “o termo
estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente
depreciativo” (Goffman: 1978, 13). O
MST
é, sem dúvida, um movimento
estigmatizado, sobretudo, porque tem, na ocupação de terra, uma ação
fundamental para o seu contínuo processo de territorialização, "representado
pelos assentamentos que são a conquista de frações do território" ( Fernandes:
2001, 62).
No decorrer de nossas pesquisas de campo, realizadas na região de Ribeirão
Preto, constatamos alguns dos estigmas que são atribuídos ao MST. Este é
apontado como empecilho para a agroindústria canavieira; sendo o
responsável, principalmente, por trazer miséria. Acompanhemos o depoimento
do líder sindicalista dos trabalhadores rurais no município de Serrana:
O MST é um empecilho para o plantio da cana-de-açúcar, pois é esta que dá
dinheiro. Sem contar que as pessoas que estão acampadas não são da
cidade, mas vieram de outras cidades para trazer mais miséria. Dessa
forma, nós do sindicato somos mais a favor dos empregados da usina do
que do pessoal do MST (Entrevista realizada no primeiro semestre de 2000)
Podemos perceber que os movimentos sociais estigmatizados tendem a ser
desacreditados por aqueles que detêm o status quo, isto é, o poder político e
econômico, uma vez que procuram construir discursos para justificar que
certos grupos ou movimentos sociais são uma ameaça para a ordem
estabelecida:
Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua
inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando
algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como
as de classe social (Goffman: 1978, 15).
A princípio, para que haja o processo de estigmatização é preciso que o
indivíduo ou o grupo se identifique com o estigma. Nesse sentido, poderíamos
questionar até que ponto, o MST se identifica ou não, com os atributos
negativos, isto é, com os estigmas dos quais é alvo.
Assim, constatamos que as pessoas que compõem o MST (trabalhadores
rurais sem-terra, bóias-frias, ex-posseiros, desempregados rurais e urbanos
etc) incorporam estigmas e os carregam dentro si, como nos mostra o
depoimento de uma integrante do MST:
É muito difícil na cidade, porque eu fui criada na roça a gente parece que
não consegue adaptar direito na cidade. As coisas tornam-se muito difícil,
alguma coisa, sei lá, desemprego é demais, a violência, discriminação é
demais. A gente que é pobre não consegue competir com as pessoas. Aí
onde se torna a grande humilhação. Tudo isso sufoca a gente e acaba
expulsando a gente do lugar de onde a gente veio que é a roça. (Entrevista
realizada no primeiro semestre de 2000).
As pessoas que compõem o MST tendem a ser estigmatizadas, sobretudo
quando saem do campo e se dirigem para a cidade. Esse fato está bem
evidente tanto no depoimento acima quanto no depoimento do líder
sindicalista, quando este se refere de maneira depreciativa às pessoas que
vieram de outras cidades para fazerem a ocupação.
Por terem em sua grande maioria uma origem rural, as pessoas que estão no
MST são consideradas como sendo os “out-siders”, parafraseando o termo
usado por Elias e Scotoson (2000), em um ensaio teórico, ao discutirem as
relações entre estabelecidos e out-siders. Como o próprio termo já diz, os outsiders são aqueles indivíduos ou grupos que vão se fixando em um
determinado lugar, no qual já há indivíduos ou grupos estabelecidos. No caso
específico do MST, muito dos seus integrantes saíram do campo (êxodo rural)
e foram morar na cidade. Porém, muitas vezes foram estigmatizados por
serem “analfabetos”, por serem “caipira” etc.
Dessa forma, todos aqueles que se incluem dentro desses estigmas, entre
outros, passam a se reunirem como um grupo social da mesma categoria para
tentar superar os estigmas dos quais são portadores. É por isso que o MST
não é somente um caminho para retornar à terra de trabalho, mas, também,
um caminho para superar os estigmas, uma vez que:
Em sua práxis sócio-histórica, os camponeses terão passado de uma
identidade coletiva negativa – a situação comum de carência – dada a eles
pelo sistema social, a uma nova identidade, nascida do reconhecimento
mútuo, da reapropriação de direitos, consciência que lhes permite agir sobre
o sistema (Gaiger: 1987, 28).
Além disso, o MST não tem hesitado em acolher os desempregados das
periferias das cidades como nos mostra o depoimento a seguir:
O nosso critério são famílias desempregadas, ou que estejam em situação
de exclusão, que nós convidamos para ir para a terra, tendo história no
campo ou não, porque achamos que todo o trabalho é possível de ser
aprendido, não é? (...) Elas podem ter uma oportunidade de aprender o
trabalho do campo (Entrevista realizada no primeiro semestre de 2000)
Sendo assim, o MST é um movimento muito bem organizado e articulado.
Mas, para atingir esse grau de organização e articulação, o MST contou e
conta com aqueles indivíduos que são “informados", isto é, “os homens
marginais diante dos quais o indivíduo que tem um estigma não precisa se
envergonhar nem se autocontrolar, porque sabe que será considerado como
uma pessoa comum" (Goffman: 1978, 37).
No caso do MST, que não se trata de um indivíduo, mas de um movimento
social, são vários os informados: estudantes, intelectuais, religiosos etc. Todos
esses agentes da sociedade civil tendem a apoiar a luta desses trabalhadores
rurais estigmatizados.
A partir do que foi discutido, podemos salientar que as diferenças entre as
classes sociais estão na base do processo de estigmatização do MST. Logo, o
grupo que tem o poder político e econômico (no caso aqui investigado, o setor
sucroalcooleiro), sente-se ameaçado pelas ações desse movimento social,
construindo um discurso depreciativo para torná-lo desacreditado perante a
sociedade.
No entanto, embora o MST seja constituído por pessoas estigmatizadas, isso
não significa que o movimento incorpore, isto é, se identifique com os atributos
negativos que são lançados sobre si, pois a incorporação dos estigmas pelo
movimento anularia o processo de territorialização do mesmo. Sendo assim,
temos que fazer uma clara distinção: o MST é um movimento constituído por
pessoas estigmatizadas e que buscam juntas superar os estigmas dos quais
são portadoras, por meio da ampliação de suas lutas pela terra, pela dignidade
entre outras. Porém, as pessoas, inseridas no movimento social, não
incorporam os atributos negativos que são lançados sobre si. Pelo contrário, é
a partir da constatação de que são alvos de estigmas, sobretudo por parte
daqueles que se sentem ameaçados pela ação do movimento social, é que
encontram forças para continuar a territorializar-se.
A questão que se coloca agora é a seguinte: se o MST não incorpora os
estigmas, então quem os incorpora? Neste caso especifico, a própria Fazenda
Santa Clara materializou os estigmas, uma vez que a mesma tornou-se uma
área desacreditada, não por causa de suas virtualidades naturais e ou
artificiais, mas, sobretudo por causa do seu conteúdo social (a ocupação da
Fazenda pelas famílias do MST). Portanto, a materialização do estigma
ocorreu no exato momento em que não foi concretizada a venda da terra,
ocasionando o processo de territorialização do estigma. Nesse sentido, o
processo de territorialização do MST, ganha uma nova força: a força do
estigma. A construção de discursos que transmitem ou dão maior relevância
aos atributos negativos referentes às ações do MST, ao invés de funcionar como
obstáculo para impedir a luta pela terra, acabam sendo um suporte para o
contínuo processo de conquista de novas frações do território. Embora,
Oliveira (2001, p.119) observe que “estamos vivendo um espetáculo
surrealista, pois os fazendeiros têm encontrado todo espaço na imprensa
escrita, falada e televisada e vão através dela divulgando suas visões sobre os
acontecimentos e com isto, perante parte da população, passam de réu a
vitima", podemos afirmar que o MST tem superado esses entraves, uma vez
que segundo um adágio popular, “o próprio feitiço se volte contra o feiticeiro”.
Ora, os atributos depreciativos, lançados sobre o MST, tornam o movimento
mais forte. É a vitória daqueles que são vistos como fracos e, por conseguinte,
a derrota daqueles que se acham fortes.
Assim sendo, procuramos, neste texto, discutir a importância dos estigmas
sociais na construção da identidade social que unifica os membros dos
movimentos sociais, para melhor compreendermos as suas implicações, na
dinâmica do processo de territorialização do MST, na região de Ribeirão Preto.
Acreditamos que é impossível compreendermos os movimentos sociais, como
o MST, se desconsiderarmos o papel ativo dos estigmas sociais na construção
de novos espaços como são os assentamentos de reforma agrária.
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Entrevistas Realizadas durante a pesquisa de campo:
Sr. Rolinha. Serrana, 2000. Entrevista concedida à Elisa Pinheiro de Freitas.
Sra. Kelly. Ribeirão Preto, 2000. Entrevista concedida à Elisa Pinheiro de
Freitas.
Sra. Áurea. Serra Azul, 2000. Entrevista concedida à Elisa Pinheiro de Freitas.
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