AGOSTINHO NETO E A GERAÇÃO LITERÁRIA
DE 40* Continuação
1. O PROBLEMA DO SLOGAN VAMOS DESCOBRIR ANGOLA
Para aquilo que interessa por ora à nossa reflexão, importa formular
uma pergunta sobre quem terá formulado o lema “Vamos Descobrir Angola” e
em que texto tal teria sido feito?
Na entrevista concedida a Michel Laban, e respondendo a uma das
perguntas sobre este slogan, António Jacinto dizia: “Vamos Descobrir
Angola não é criação nossa, é um propósito que nós adoptámos. Porque esse
slogan já vem de 1948 – quando Viriato da Cruz e outros, se reuniam em casa
do Ilídio Machado e começaram a trabalhar no sentido de uma literatura
nova”1
Numa carta a Michel Laban, datada de 11 de Dezembro de 1988, ainda a
propósito do slogan, António Jacinto, volta ao asunto: “Uma coisa poderei
afirmar: não fui eu que o criei. Mas que existia, e está subjacente a toda a
prática e escrita da época (...). Talvez ninguém o tivesse usado em letra de
forma antes do Mário de Andrade, na Antologia de 1958. Mas o slogan
estava expresso na nossa correspondência de então (Agostinho Neto, Viriato
da Cruz, Mário de Andrade, Augusto dos Santos Abranches, António Jacinto
e talvez outros). Vamos lá saber agora quem lançou a palavra de ordem?
Talvez não tenha sido também o Viriato, que pouco ou nada evocava esse
*
Capítulo do livro MÁRIO PINTO DE ANDRADE: um intelectual na política,coord. Inocência
Mata e Laura Padilha, Lisboa, edições colibiri, 2000,pp.53-70
1
Ver Michel Laban, ANGOLA – Encontro com Escritores, Vol. I, Porto, Fundação Eng. António de
Almeida,1991 p. 146
1
tempo da sua vida. E o mais certo é que nenhum grupo de pessoas se sentou
a uma mesa e disse: “Vamos Descobrir Angola” 2.
Antero de Abreu fala de um movimento “Vamos descobrir Angola”,
que presume ter surgido em 1946, com o qual não teve contacto. Por isso
diz: “Ou eu já cá não estava, ou então isso surgiu sem eu saber, à minha
revelia”. Em 1948, encontrava-se em Portugal a estudar. Acrescenta no
entanto que “através do Neto fui sabendo do que se estava a passar aqui e
dos jornais que iam saindo e nos quais eles publicaram poesias minhas (…).3
No seu longo testemunho reunido em entrevista, também dada a Michel
Laban, Mário Pinto de Andrade, que se refere abundantemente ao slogan,
afirma: “Portanto, havia um lado ideológico que está presente na maneira
como eu me referi ao movimento “Vamos Descobrir Angola”4.
E acrescenta ainda, referindo-se ao prefácio da Antologia de Poesia: “(...)
é a primeira vez que eu o formulo para dar conteúdo ideológico à agitação
que se produziu verdadeiramente (...). Houve, portanto, um lado ideológico,
uma certa formulação que ultrapassa um pouco o real. É aí que está a
ideologia (...). Fiz assim uma formulação que não correspondia à realidade,
mas que correspondia à intenção: estava na cabeça de Viriato da Cruz. E é
isto”.
Esta confissão de Mário Pinto de Andrade é feita uma década após as
reflexões expendidas por Mário António Fernandes de Oliveira. Num texto
datado de 1977, Mário António, que esteve de certo modo ligado ao grupo de
poetas que publicaram na revista Mensagem, refere que só tomou
conhecimento do slogan, “transformado em crisma, através da Antologia de
Poesia Negra de Expressão Portuguesa, de Mário Pinto de Andrade, editada
por Pierre-Jean Oswald em Paris, em 1958”5.
No mencionado texto, Mário António recorda imagens que retinha na
memória, dizendo o seguinte: “(…) no ano de 1945, ano da nossa entrada no
Liceu, em Abril, simultânea com o exercício cívico de uma semana de
Ibidem, p. 147
Ver entrevista de Antero de Abreu concedida a Michel Laban, Ob.cit.,pp.240-241
4Ver Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban, Lisboa, João Sá da Costa, 1997,pp. 59-60
2
3
5 Mário António Fernandes de Oliveira, “Memória de Luanda (1949-1951):‘Vamos Descobrir Angola’ ”.
Texto utilizado para as palestras que se realizaram no IDL a 3 e 5 de 1977, sobre o tema “ Angola – Da
‘situação colonial’ à República Popular’ – o testemunho dos poetas”.
2
manifestações estudantis: a “malta” em cortejo até ao Consulado da
Alemanha, ao lado do Balão (…) as nossas lembranças desse ano incluem
dois ex- alunos, vestidos ‘ à adulta’, com factos azuis: um homem magro,já
trabalhando em repartição pública, o que viria a ser o primeiro presidente da
República Popular de Angola; e um homem atlético e sorridente, que tinha
acabado de sair do liceu e “ iria para a Metrópole estudar, o falecido Américo
Boavida, morto no campo de guerrilha.”
Há aqui testemunhos nitidamente complementares de dois
companheiros de geração e outro de um membro da geração imediatamente
a seguir, por conseguinte, mais novo quanto à idade. António Jacinto não
atribui a autoria da formulação a qualquer um deles. Mário Pinto de Andrade
confessa a estratégia de manipulação “ideológica” por si ensaiada, mantendose a dúvida quanto ao autor do lema ou do slogan. O que confirma a
natureza apócrifa do texto de Mário Pinto de Andrade, tal como o
caracterizou Mário António.
Uma coisa é certa, aquela manipulação arquitectada por Mário Pinto de
Andrade, traduzindo um verdadeiro discurso performativo, quando escreve
o prefácio à Antolgia na qualidade de sujeito participante do ambiente vivido
na década de 40 , acabou por estar na origem de uma cadeia de falsas
representações, encorajando em alguns investigadores a lei do menor esforço
perante a relevância de determinados aspectos históricos do fenómeno
literário angolano. Prova disso é, por exemplo, o ensaio crítico de Salvato
Trigo A poética da “Geração da Mensagem” 6que se revela como um estudo
precipitado e desprovido de qualquer ossatura quanto aos fundamentos
históricos, no que diz respeito àquilo a que chamou Movimento “Vamos
descobrir Angola”.
Não estou com isso a negar a importância de tal facto fortuito que foi,
de resto, uma autêntica consagração. Pelo contrário, julgo que o slogan
facilitou, em certa medida, a localização da literatura angolana no espaço e no
tempo.
Colocado o problema nos termos de se saber se teria o slogan sido ou
não formulado por um dos membros daquela geração, reputo indispensável a
6
Ver Salvato Trigo, A Poética da “Geração da Mensagem”, Porto, Brasília Editora, 1979; e Introdução à Literatura
Angolana de Expressão Portuguesa, Porto, Brasília Rditora,1977.
3
leitura de textos publicados na época. E vamos fazer este exercício incidindo
exclusivamente sobre a produção ensaística de um dos seus membros.
Ora, se levarmos às últimas consequências o reconhecimento do esforço
de manipulação reivindicado por Mário Pinto de Andrade, chegaremos a
conclusões reveladoras. É que a sua estratégia de formulação e reivindicação
da paternidade, traduz bem a aparente ausência de uma personalidade
liderante na geração de 48. Apesar de Viriato da Cruz ter sido aclamado
como exímio poeta, considerado “homem pivot”7 e autor moral do lema por
Mário Pinto de Andrade, o procedimento deste ensaísta parece apontar
implicitamente em Viriato da Cruz qualidades da personalidade liderante.
Limitando-nos às circunstâncias, à estrutura etária dos integrantes, ao
nível de formação escolar e ao momento em que se revela essa geração,
seríamos, ao invés, tentados a reconhecer o perfil da personalidade liderante
naquele jovem, cuja audácia se sublima na construção de um texto que
resume o pensamento de todos. Há algo de seminal no texto de Agostinho
Neto, relativamente à necessidade de um lema semelhante a “Vamos Descobrir
Angola”, pois ele dizia: “Acho, porém, que a mezinha apropriada para anular os efeitos
perniciosos bastante do eurotropismo seria começar por ‘descobrir’ Angola aos novos,
mostrá-la por meio de uma propaganda bem dirigida, para que eles, conhecendo a sua terra,
os homens que a habitam, as suas possibilidades e necessidades, saibam o que é necessário
fazer-se, para depois querer ”.
O espectro semântico desta ideia programática, que apresenta uma
radical pertinência com a ruptura e a inauguração de um novo discurso
poético, vem assinalar, ao lado de outros aspectos, o momento genético das
expectativas e aspirações da geração.
2. A
GERAÇÃO
LIDERANTE
DE
40
E
A
SUA
PERSONALIDADE
Diz Mário Pinto de Andrade, “Homem pivot porque participou no nascimento – pelo menos na redacção –
de todas as organizações importantes de Angola, as primeiras organizações. No nascimento e criação do
Partido Comunista Angolano, em 1955, na redacção do manifesto do MPLA, na criação, evidentemente dos
estatutos, etc. Homem de cultura, homem muito aberto e muito dinâmico no plano concreto da
organização, no plano da concepção do mundo, e na concepção do texto político”. Ver Mário Pinto de
Andrade – Uma Entrevista, p.141
7
4
Com a finalidade de Numa linguagem adequada às minhas
indagações, poder-se-á, a partir das palavras de Mário Pinto de Andrade,
discutir a problemática da existência ou não de uma figura que nessa
geração tenha assumido ou pudesse ter assumido a função de guia
intelectual.
Se o guia é aquele que lidera pelos seus posicionamentos e
intervenções, façamos então um exercício para definir os seus contornos.
Não estou aqui preocupado com a liderança política cujos critérios de
aferição são totalmente diferentes daquilo a que chamo neste contexto
personalidade liderante da geração literária. Do mesmo modo que, situandome no plano da análise histórico-literária e por razões de método, não posso
confundir o conceito de geração literária com o de geração política, apesar da sua
proximidade, pois eles intervêm em campos totalmente diferentes.
Ora do ponto de vista etário Agostinho Neto e Viriato da Cruz
apresentavam uma diferença de seis anos. Agostinho Neto nasceu em 1922.
Viriato da Cruz nasceu em 1928. Traduzidos os seis anos no plano da
escolaridade, teremos um factor susceptível de concorrer para a explicação
de uma diversa ordem de questões que se levantam a respeito daquele que
teria sido o guia intelectual dessa geração. Mas a data de nascimento, sendo
um indicador, não é aqui relevante. Há que articular todos aqueles factores
conformadores do conceito de geração literária.
É essa necessidade de articularmos na globalidade os elementos que
compõem o vasto universo da literatura angolana que justifica
a
consagração, cada vez mais, de estudos aprofundados sobre as várias
gerações literárias e seus respectivos actores.
3. AGOSTINHO NETO
NA TRADIÇÃO ENSAÍSTICA ANGOLANA
Agostinho Neto nasceu em 1922, em Kaxicane, uma aldeia situada em
Icolo e Bengo, na margem do rio Kwanza. Fez os estudos primários no lugar
natal e em Luanda.
Ora, entre 1942 e 1944, publica alguma poesia no jornal O Estandarte,
designadamente Natal do Mundo – Salvação; Da Oração; Mais Alto; Canto
5
Congregacional. Neste mesmo jornal pontificava seu pai, reverendo Agostinho
Pedro Neto 8, com textos como O Segredo da Paz em 1936 e É preciso divertir a
Juventude Evangélica em 1944.
De 1944 a 1953, publica sete textos com alguma relevância para o
objecto da nossa perquirição9, nomeadamente: A Nova Ordem Começa Em
Casa(1944); A Paz que Esperamos (1945); Instrução ao Nativo; Uma Causa
Psicológica: a “Marcha para o Exterior” (1946); Uma Necessidade(1946); O Rumo da
Literatura Negra(1951); A propósito de Keita Fodeba(1953) .
3.1.
O CONCEITO DE ENSAIO NO CAMPO LITERÁRIO ANGOLANO
Mas vou fazer uma digressão histórica acerca do se pode entender
por tradição ensaística angolana. Procurarei, em primeiro lugar, saber o que é
o ensaio, no contexto da literatura angolana.
Etimologicamente, a palavra ensaio deriva do latim exagiu(m) que
significa acção de pensar ou pesar, tendo a sua semântica evoluído para o
sentido de provar, experimentar, tentar.10
No campo literário angolano, há-de ser aquele texto, geralmente breve,
que no contexto da situação colonial e adoptando as técnicas do discurso em
prosa, se caracteriza pela abordagem de um tema de grande relevância para
a vida cultural, social, económica, histórica, filosófica, literária ou outra, em
que se observa a predominância do livre exame ou liberdade de reflexão.
Donde “o ensaio pressupõe o amadurecimento de convicções e a sua
exposição tão serena quanto possível; o seu intuito não é informar, mas
formar, e o grau de pessoalidade presente, ao invés de significar opinião,
assinala o débito das reflexões (…) para com a experiência individual 11.”
8 O reverendo Agostinho Pedro Neto morreu em 21 de Junho de 1946. Era natural de Kalomboloca.Foi
pastor evangélico e professor primário em Kaxicane onde foi colocado em 1918.Em 1925 foi ordenado
Presbítero.
9 De 1944 a 1953 a produção ensaística de Agostinho Neto comporta seis textos de inegável importância:
Instrução ao Nativo; Una Causa Psicológica: a “Marcha para o Exterior”; Uma Necessidade; O Rumo da Literatura
Negra; A propósito de Keita Fodeba.
10 Massaud Moisés, A Criação Literária (Prosa), São Paulo,Cultrix,1987
11 Idem.
6
Este tipo de texto breve, através do qual o autor, dando livre curso a
inquietações decorrentes de uma ebulição interior, consubstancia em forma
do discurso em prosa uma visão pessoal e possível da realidade, é praticado
em Angola desde a segunda metade do século XIX.
A centenária existência deste acervo de textos espalhados nas páginas
amarelecidas dos jornais e em alguns livros, representa aquilo que pode ser
considerado hoje como património angolano do discurso em prosa. Apesar
de escrito em língua portuguesa na sua grande parte, há alguma produção
em línguas endófonas. É com semelhante perspectiva que a professora
Lalage Brown,por exemplo, elaborou a sua antologia de textos do discurso
em prosa de não-ficção (non-fiction), produzidos por escritores africanos em
língua inglesa ao longo de dois séculos.12
Reconhecendo a importância historiográfica de tais textos, Joaquim Dias
Cordeiro da Matta organizou, no declinar do século passado, um compilação
de textos a que chamou Repositório de Coisas Angolenses. O critério adoptado é o
da abordagem de temas angolanos, não sendo relevante a naturalidade dos
seus autores. Mas entre estes avultam muitos autóctones. É o caso do próprio
compilador, de Ignácio de Pinho e João Vieira Carneiro.
3.2. A
PRODUÇÃO ENSAÍSTICA DE AGOSTINHO NETO
Instrução ao Nativo é um texto publicado em O Estandarte. Os outros dois,
nomeadamente, Uma causa psicológica: A marcha para o exterior” e Uma necessidade,
são publicados no jornal O Farolim, em 1946.
Agostinho Neto contava então 23 anos de idade, quando escreveu esse
texto. Mas o tom, a atitude e o tema parecem inscrever-se naquilo a que
chamo tradição ensaística angolana. Embora não tenhamos notícia de que a obra
de Pedro da Paixão Franco tivesse sido profusamente divulgada nos principais
centros urbanos de Angola, admtindo-se todavia tal probabilidade, o
12
Lalage Brown (ed.), Two Centuries of African English,London,Nairobi,Ibadan,Heinemann,1982
7
mencionado texto de Agostinho Neto remete qualquer leitor atento ao ensaio
polémico dos fins do século XIX. A propósito da problemática da instrução,
vejamos o que dissera Pedro da Paixão Franco: “ A falta de instrução nesta
província, sendo um grande mal para nós outros, os réprobos, para os
escolhidos tem sido um benefício incomparável. Por isso, enquanto nós, os
precitos, lamentamos a ausência de casas de ensino – a instrução obrigatória e
gratuita, as castas privilegiadas, que tripudiam na ignorância popular,
regozijando-se com o facto, oferecem incenso aos seus deuses – para que este
estado de coisas continue. A instrução elementar, como acertadamente alguém
comentou, há pouco – moeda corrente em quase todos os países da Europa,
sem valor, porque vai sendo considerada insuficiente mesmo para aqueles que
se entregam ao trabalho mais simples e rudimentar, é entre nós ainda moeda
rara, como o atestam as estatísticas, e , melhor ainda, o demonstram os factos
de todos os dias. O saber ler e escrever chega a ser um título mais privilegiado
do que o de barão, ou visconde e conde…
“ Neste país é fácil esbarrar com um comendador de… qualquer coisa, do
que ver quem saiba redigir duas linhas de prosa!…
“ A marcha do pensamento opõem o seu comodismo cruel!
“Têm razão.
“Livram-se de que o povo sabendo ler, aprenda a conhecer as injustiças –
dizia Camilo.
“Ai! dos sectários da Treva que, por uma aberração de casta, têm a
pretensão de serem obedecidos cegamente, expedindo raios pelas ventas e
coriscos pela boca, quando encontram oposição à realização dos seus desejos
– se 50 por cento da população de Angola soubesse ler e escrever, e tivesse
educação cívica!
“Outro galo lhes cantaria!” 13
É em Uma causa psicológica: a marcha para o exterior que lemos o seguinte
trecho: “A minha pouca experiência impediria que a voz chegasse ao céu se
eu desse conselhos. Acho, porém, que a mezinha apropriada para anular os
efeitos perniciosos bastante do eurotropismo seria começar por ‘descobrir ’ Angola aos novos,
mostrá-la por meio de uma propaganda bem dirigida, para que eles,
13
Pedro da Paixão Franco, História de Uma Traição,Vol.II,pp.117-118
8
conhecendo a sua terra, os homens que a habitam, as suas possibilidades e
necessidades, saibam o que é necessário fazer-se, para depois querer”.
Este texto não terá, certamente, passado sem repercussões no pequeno
meio literário luandense. Tanto assim é que Domingos Van-Dúnem,
secretário de redacção do jornal O Farolim à data da publicação daquele texto
de Agostinho Neto, sustenta que teria recebido “aplauso público de Tomé das
Neves, jurisconsulto santomense e um dos maiores arautos da causa africana,
que se fixa em Luanda no final dos anos 30”14.
Quando, em 1949, o cabo-verdiano Filinto Elísio de Menezes, ansioso
por influenciar o meio literário luandense com os ideais do movimento
“Claridade”, vai proferir uma palestra promovida pela Sociedade Cultural de
Angola , as suas constatações a propósito do surgimento de uma nova poesia
angolana não traziam nada de novo. Ele afirmava que “as coisas das artes e
das letras pouco interesse provocam, principalmente na juventude, e que os
poucos que lhes dedicam persistem em se deixar levar pelas formas antigas de
expressão, amarrando-se lamentavelmente aos motivos dos poetas e
prosadores do período pré - realista da literatura metropolitana”.15
Era algo já observável neste trecho de Agostinho Neto: “Os nativos
são educados como se tivessem nascido e residissem na Europa. Antes de
atingirem a idade em que são capazes de pensar sem esteio, não conhecem
Angola. Olham a sua terra de fora para dentro e não ao invés, como seria
óbvio. Estudam na escola, minuciosamente, a História e Geografia de
Portugal, enquanto que, da Colónia, apenas folheiam em sinopses ou
estudam levemente”.
Partindo desse momento genético da nova poesia de Angola e seguindo o
percurso dos dois poetas – Agostinho Neto e Viriato da Cruz – encontrá-losemos com o destino marcado pelo compromisso político. Embora tendo na
origem a literatura, a projecção e notoriedade de ambos verificam-se quer na
política, quer na literatura.
14Ob.
Cit., p.201
15
Ver Filinto Elísio de Menezes, “Apontamento sobre a poesia de Angola”, in separata do jornal Cultura,
Luanda, 1949, p.67
9
A história pessoal de cada um deles constitui um itinerário de “valores
pessoais de referência”. Devem merecer destaque a “coerência ideológica, a
fidelidade, a combatividade, o gosto da liderança, a audácia, a capacidade de
provocação ou resistência”.16
Com efeito, contrariamente ao que acontece com Agostinho Neto, a
primazia literária de Viriato da Cruz tem maior visibilidade no país e é
aplaudida pelos companheiros, porque fazia “tentativas de poesia regionalista
angolana”17 .
Poderemos nós falar de uma hibernação estratégica seguida por
Agostinho Neto, motivo pelo qual ver-se-ia afastado do mais largo leque de
contactos informais com os companheiros de geração? Talvez seja afirmativa
a resposta, se por hibernação estratégica entendermos o facto de Agostinho
Neto se encontrar em Malanje quando publica o primeiro texto de
colaboração no jornal O Farolim.
Quem o diz é Domingos Van-Dúnem, que era secretário de redacção
desse periódico: “ Um dia, fiz um suelto – género que era muito do mei
gosto – o comentário sarcástico às atitudes desses futuros líderes. A reacção
surgiu dum grupo de funcionários públicos, jovens de craveira intelectual,
colocados em Malanje, direi, semi-desterrados.” Tratava-se de Agostinho
Neto e Joffre Van-Dúnem. Domingos Van-Dúnem acrescenta: “E numa
manhã de sol, segunda-feira, recebi a visita de Agostinho Neto.
Elegentemente vestido, assumindo um ar grave que, entretanto, não escondia
a fraternidade de espírito que dominava os seus sentimentos”. “(…) Tive
assim – direi hoje – a honra de receber e levar às colunas do jornal o primeiro
artigo em que Agostinho Neto se firmava revolucionário (…)18. Mas este é
apenas um momento, porque num outro momento, em 1945 vêmo-lo
naquela manifestação a que Mário António faz alusão.
A mesma não foi a impressão de Domingos Van-Dúnem quando foi
contactado por Viriato da Cruz. A respeito deste poeta, diz : “O meu
Eduardo Lourenço, Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, Lisboa, Dom Quixote,1983,pp.88. O apelo a este
ensaísta português não é gratuito.É que a atmosfera política, cultural e literária em que vive a geração neorealista portuguesa influenciou positivamente, sob o ponto de vista ético e estético, a geração angolana de
48.
17 Ver carta de António Jacinto a Agostinho Neto publicada em Lúcio Lara, Um Amplo Movimento…,Vol.I,
Luanda, Edição Lúcio e Ruth Lara,1997,pp.440-441
18 Ver Ob.cit. pp.200-201
16
10
primeiro contacto com o Viriato da Cruz deixou-me triste. Viriato pareceume um jovem arrogante, de aspecto grave e desdenhoso. Suas perguntas
chcaram-me. Giravam à volta de conhecimentos académicos que eu não
tinha (…) até que um dia fez-me a entrega de um trabalho, como oferta
pessoal, “ para publicares, se o desejares.”19
Julgo não ser dispiciendo o facto de Agostinho Neto, já em 1945
pertencer ao funcionário público20, vivendo, por conseguinte, um tipo de
preocupações diferentes de algunss dos seus coetâneos.
Talvez assim se compreenda que Mário Pinto de Andrade tenha travado
amizade com Agostinho Neto em 1949, encontrando-se todos eles em
Portugal frequentado a universidade. Agostinho Neto era estudante de
Medicina, matriculado na Universidade de Coimbra desde o ano lectivo
1947-48.
Mário Pinto de Andrade que era estudante de Filologia Clássica da
Faculdade de Letras de Lisboa, no ano lectivo de 48-49, diz: “Portanto, é um
homem que eu conheci nesse momento, que não conhecia em Luanda, não
me lembro de o ver (...)”.
Tendo em atenção o seu tipo de inquietações, é curioso constatar a
indiferença de Mário Pinto de Andrade perante aquele texto de Agostinho
Neto, escrito a escassos três anos antes do seu primeiro contacto, quando
ainda era estudante no colégio das Beiras, em Luanda. Mas confessa que
conhecia e lia o jornal O Farolim.21
Agostinho Neto atravessava nessa altura a fase de maturidade. O que
pode ser comprovado pelos textos produzidos.
No entanto, em 195122, estudantes e intelectuais africanos residentes em
Lisboa fundam o Centro de Estudos Africanos de que fazem parte, entre
Idem,Ibidem
Na edição de Novembro e Dezembro de 1944 de O Estandarte lê-se uma notícia que dá conta da deslocação
de Agostinho para Malange onde iria ocupar o cargo de funcionário em para que fora nomeado.
21 "Na época havia ainda um pequeno jornal que se imprimia de uma maneira bastante irregular: o
Farolim, que eu ainda lia… É muito ambíguo: há artigos de exaltação de colaboradores, colaboradores
mestiços, no movimento de Restauração de Angola (…)(Entrevista,p.44)
22 Nesse ano era criado o Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola. Segundo Mário
António, “ o que se fazia em Luanda naturalmente ganhava corpo intelectual com a participação de
19
20
11
outros, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, que
constituíam o grupo de pensamento mais politizado.
A partir de fins da década de 50 e de toda a década de 60, Agostinho
Neto e Viriato da Cruz intensificam a sua intervenção na actividade política.
O primeiro, sucessivamente, é encarcerado nas cadeias da polícia política
portuguesa. O segundo , após um período de retiro na cidade da então Sá da
Bandeira por razões de doença, sai de Angola por volta de 1957, e lança-se
com Mário Pinto de Andrade na campanha internacional pela
autodeterminação e independência de Angola, ao mesmo tempo que criam
uma organização política no quadro do movimento de libertação nacional.
Neste breve olhar sobre os actores da geração literária de 40, o seu
comportamento no plano da criatividade e a provável personalidade
liderante, fica o último testemunho do malogrado ensaísta angolano, Mário
Pinto de Andrade: (Viriato da Cruz e Agostinho Neto) “eram totalmente
opostos (...), eram duas autoridades, duas forças autocráticas (...). Ambos
tinham vocação para chefe (...)”.
4.
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•
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AS IDEIAS DE AGOSTINHO NETO E SUA EVOLUÇÃO DE
1943 A 1953
A paz e o fim da segunda guerra mundial e suas consequências para
Angola
Os nativos e o imperativo da instrução na segunda metade do século xx
Uma Necessidade: O Manifesto do nativismo literário
Contra arte e literatura colonial
Defesa de uma arte e literatura africana
Sobre a unidade e o associativismo dos nativos
ausentes, entre eles, como se verá Mário Pinto de Andrade. Confirma-o a carta de António Jacinto a
Agostinho Neto.
12
•
A ideia de tradição literária e intelectual
ANEXO
13
A NOVA ORDEM
COMEÇA EM NOSSA CASA
Ameaça atingir a altura do Himalaia, a quantidade de papel em que se
delineam planos para a construção dum novo mundo; um mundo de
igualdade, e de liberdade em que todos possam viver.
Mas está reconhecido que a nova ordem que não tenha por base o
amor evangélico falha com certeza. O pilar da liberdade dos povos só
pode ter por alicerce a Bíblia.Fora daí, nada seguro se pode tentar.
Será nas igrejas evangélicas que o povo deve começar a sentir a
satisfação duma vida melhor, duma irmandade real, duma paz cristã. É nas
nossas igrejas, nas nossas classes, nas nosas casas que devemos buscar o
exemplo da fraternidade, se é que a queremos ver no mundo.
Quando a igreja ainda põe ricos dum lado e pobres doutro; sábios
aqui e ignorantes ali, quando uma igreja não considera ainda a todos filhos
do mesmo Pai, não pode contar que o mundo, em que a maioria não
conhece Deus, estabeleça normas melhores.
Se em nossa casa, a mulher é a escrava, os criados são máquinas e os
filhos motivos de aborrecimento, não lhes dando o lugar de pessoas que
também carecem de carinho, de amor, de um pouco de liberdade, não
14
esperemos que a nova ordem nos liberte de sermos subjugados pelos
nossos superiores.
Nós, os evangélicos, é que devemos começar; e se achamos que não
vale a pena, que é difícil, que o mundo se rirá de nós, então esperemos
pelos piores dias que não tardarão a chegar.
No lar, todos são pessoas, seres humanos, que devem ser tratados
com bondade.
Na igreja, são todos filhos do mesmo Pai, e nada de separações, de
distinções, de escadarias em que uns ficam acima e outros abaixo.
A nova ordem começa em nossa casa.
A.A.Neto
O Estandarte, Ano XI, Luanda,Setembro e Outubro de 1944,nº102 e 103
A PAZ QUE QUEREMOS
Já acabou a guerra; pelo menos a militar.
Agora, os países que nela estiverem envolvidos; que foram
danificados por ela; que sacrificaram seus filhos e seus haveres; exaustos,
procuram reedificar, reconstruir, transformar as indústrias bélicas em
indústrias de paz; fazer esquecer os horrores da luta; desejam que o
mundo a levantar sobre as ruínas deixadas pelos explosivos, sejam menor
que o anterior.
Minorar o espectro da fome e da subalimentação; afastar o espectro
do desemprego; afastar o desconhecimento que revolta; reconciliar as
nações; impossibilitar a consumação de novas guerras – é o que nós todos
profundamente ansiamos se acorde.
Melhoramento das condições de vida e facilidade de transporte –
promessa do formidável avanço da ciência -; barateamento da energia a
empregar nos locomóveis – promessa optimista da era atómica -;
aumento da produção agrícola; encurtamento da distância; rapidez;
segurança; tranquilidade – é o que nós estamos esperando.
A recompensa justa do trabalho ao grego e ao troiano; o fim do
despotismo capitalista; o acesso igualmente concedidoa judeus e a gentios,
15
pela inteligência e pela capacidade de produção de cada um, o términus
das classes privilegiadas e das desprezadas; as facilidades igualmente
concedidas a todas as raças para que todas igualmente possam progredir –
é o que nós sinceramente desejamos.
*
* *
Tememos porém, que a concorrência natural, determinada pela
struggle for life não deixe os homens em concórdia. A luta, sempre a luta
entre os indivíduos, as classes e as nações – nós tememos.
Esperaram os judeus, durante séculos pela paz messiânica – paz de
que nunca chegaram a disfrutar, porque eles a esperavam sob a forma
palpável e ela apareceu impapável.
E nós também estamos esperando…
Queremos; ansiamos; mas que está fazendo cada um de nós para
colaborar na construção da PAZ?
Enquanto não houver sincero desejo, vontade firme em cada
indivíduo, em cada lar, em cada classe, em cada nação, para uma
concórdia entre todos, não existirá PAZ.
A PAZ não virá de além fronteiras, como vem a guerra; ela nos não
aparece ded for a; deve começar interiormente.
Nós entendemos assim.
Colaboremos, com o auxílio de Deus, para a PAZ que esperamos.
28 de Agosto de 1945
A.A.Neto
O Estandarte, Luanda,Agosto de 1945, Ano XII, nº113
16
INSTRUÇÃO AO NATIVO
A instrução aos nativos está muito aquém daquilo que já poderia e
deveria ter????? feito. No continente Europeu, o Estado Novo fomentou
grandemente, por intermédio do Ministério de Educação Nacional a
instrução ao povo de todas as regiões de Portugal. Não sucedeu porém,
nesta parcela do Império, onde ainda não começou a ser encarado a sério,
pelas entidades oficiais, o problema do aumento do nível de instrução aos
naturais.
À parte o desenvolvimento escolar que se vem notando nos grandes
aglomerados de população europeia e o interesse posto na educação da
criança branca, nada, no sentido de se instruir o natural tem sido feito.
Às Missões Religiosas, é que está, em grande parte, confiada a
instrução aos nativos e às Missões Evangélicas têm, há algumas dezenas
de anos cumprido com relativa eficiência, a tarefa do ensino. Das escolas
das Missões Evangélicas espalhadas peloos distritos de Malange e Luanda,
têm saído muitos dos nativos que hoje exercem funções públicas, são
professores, pastores de igreja e uma boa parte da massa do operariado
nativo, bem como alguns europeus.
17
Porém, neste momento em que o mundo se está preparando
para a nova era, é necessário fazer-se mais. Na nossa maneira de ver, era
preciso colocar ao lado de cada capela, uma escola como sucede, com
algumas excepções, no Icolo e Bengo e Luanda. Era necessário fazer-se
seguir esta prática também na úbere e prometedora região dos Dembos e
fomentar-se o ensino na Província de Malange e em Cuanza Norte.
Sabemos bem quanto, principalmente devido à questão financeira,
estão carecendo de pessoal docente as nossas Missões e quanto essa falta
tem dificultado o permanente funcionamento de algumas escolas já
abertas.
No entanto, parece-nos também possível, desde que haja verdadeiro
interesse em resolver-se,ou,pelo menos em aumentar o número de
possibilidades de o nativo se instruir, contratar mais professores e abrir
mais escolas.
Por exemplo, temos conhecimento de que ainda não se deu destino
às importâncias há tempos arrecadadas para a formação do Fundo
Evangélico (cuja criação não foi consentida pelo Governo).
Porque se não aplicou tais quantias, e outras que porventura se
venham a obter, resultantes de contribuições de nativos espalhados nas
àreas de influência da sociedade Metodista, quer sejam evangélicas, quer
não?
A.Agostinho Neto
O Estandarte 1945
18
UMA CAUSA PSICOLÓGICA: A ‘MARCHA’ PARA O
EXTERIOR
É voz corrente dos observadores que os elementos constitutivos da
classe nativa têm a tendência para se isolarem uns dos outros, ou por meio
de grossa camada de indiferença ou por espinhoso egoísmo, quando se
trata de defender os interesses daquela.
O desamor à causa é principalmente notado em aqueles, com uma
certa cultura ou uma boa dose de inteligência geralmente reconhecida,
são capazes de ajudar os empreendimentos sociais, mas raramente se
congregam aos restantes e dão apoio às suas iniciativas. Para a clase nativa
são inúteis, fúteis e só aparentemente, por questão de complacência ou
patriotismo mentiroso, dão o seu fugidio auxílio às coisas nativas.
Tal indiferença de uns para outros indivíduos com interesses comuns,
não é muito compreensível, uma vez que estes são o único motivo de
aliança entre indivíduos, classes ou nações. É paradoxal a desunião entre
nós, nativos,que, para não citar outros aspectos do interesse comum, têm
que lutar coesos pela sua economia e pelo aumento do seu nível cultural.
A fraca compreensão da necessidade de trabalho em comum tem sido
também atribuído a “esta” geração e atirado às costas da mulher africana.
19
A geração moderna, porém, abraçou apenas um movimento geral da
humanidade para o “diferente”. O mundo está sofrendo intensamente as
consequências duma evolução social. São a velocidade fatigante, a técnica
que atrai os riscos procurando prolongar a vida, que dão uma ânsia de
viver extenuante e transformam a vida em despreocupação, ou melhor:
inquietação geral lançada sobre os ombros, por desventura bastante
estreitos, do rapaz de bigode, cabeleira abundante e casaco descendente,
dizendo-se que ele prejudica a clase.
Porém, em todo o mundo, os homens andam preocupados com esta
geração – standard que se está afastando do viver clássico e cuja plástica de
linha recta pretende fazer palpitar os corações em todas as latitudes. Olhase com certa pena para esse produto ersatz a quem as metafísicas
amedrontam e as causas ocultas atemorizam.
Não é só aqui que esta geração é inobjectiva,aérea, é-o em todas as
partes do mundo. É a desunião entre os nativos não é posterior à
fabricação em série do rapaz moderno.
A mulher africana moderna assimilando a inobjectividade da vida,
dissemelhando-se da avozinha pacatemente crocheteante, adoptando a
despreocupação, o bâton, a sola de cortiça e a saia ascendente; deixou-se
apenas arrastar pelo movimento geral que transformou o homem, que
(digamo-lo de passagem) é difícil ser-se rebelde!
A maior parte das acusações que se fazem à mulher africana são um
reflexo de uma psicologia distorcida de que adiante falaremos.
--0--
Os nativos são educados como se tivessem nascido e residissem na
Europa. Antes de atingirem a idade em que são capazes de pensar sem
esteio, não conhecem Angola. Olham a sua terra de for a para dentro e
não ao invés, como seria óbvio. Estudam na escola, minuciosamente a
História e Geografia de Portugal, enquanto que as da Colónia apenas as
folheiam em sinopses ou estudam muito levemente. Ingenuamente,
20
suspiram pelas regiões temperadas do norte, por onde lhes arda o coração.
Não compreendem esta gente que aqui habita, os seus costumes e
idiossincrasia. Não têm tradições. Não têm orgulho da sua terra porque
nela nada encontram de que se orgulhar; porque não a conhecem. Não
têm literatura, têm a alheia. Não têm arte sua. Não têm espírito.
Não adoptam uma cultura; adaptam-se a uma cultura.
Os indivíduos assim formados têm a cabeça sobre vértebras
nativas,mas o seu conteúdo escora-se em vértebras estranhas, de modo
que as ideias, as expirações do espírito são estranhas à terra. Daí o olharse esta, a sua gente e hábitos, o mundo que os rodeia,como estranhos a si
– de fora.
É como se um habitante da Terra teimasse em imaginar-se
alcandorado na Lua e julgasse que via os seus semelhantes de tal distância.
Produz-se no nativo uma distorção na sua personalidade que se
reflecte na vida social, desequilibrando-a.
Lá fora há o hábito de depreciar quanto é nativo; e os moços nativos
cujos espíritos derivaram para o exterior e em quem está atinente um
quantum de vaidade ( como em qualquer ser humano) têm vergonha em
considerar-se incluídos naquela esfera depreciada e não somente não a
auxiliam como procuram desprezar as iniciativas de carácter puramente
nativo porquanto o seu cérebro afina por diapasão estranho; porque foi
psicologicamente distorcido pelo eurotopismo.
Cada um, é claro, tem consciência do prejuízo que causa furtando-se
à luta comum, mas procura convencer-se de que a identificação com o
longínquo é um mal… necessário!
--0-A minha pouca experiência impediria que a voz chegasse ao céu se
eu desse conselhos. Acho porém, que a mèzinha apropriada para anular
os efeitos perniciosos bastante do eurotropismo, seria começar por
“descobrir” Angola aos novos, mostrá-la por meio de uma propaganda
bem dirigida, para que eles, conhecendo a sua terra, os homens que a
21
habitam, as suas possibilidades e necessidades, saibam o que é necessário
fazer-se, para depois querer.
A.Agostinho Neto
O Farolim 1946
UMA NECESSIDADE
O nosso filão espiritual vem do dilúculo histórico, untado de
religiosidade e da nota erótica. Actualmente, a alma negra delicia-se na
exploração periférica da cadência rítmica e na manifestação das suas
reminiscências poéticas. É a música, em que o ritmo, com o condão de
excitar os centros motores constitui oitenta por cento da sua preocupação,
enquanto que quinze são deixados para a harmonia eufónica e cinco por
cento para a melodia, que se transmite em cada enxada, em cada parcela
de esforço, em cada momento de prazer. É o sentimento poético, mãe
silenciosa da música, que os momentos de relaxamento invocam. A
completar as manifestações artísticas negras há apenas a materialização
sádica da música na dança.
Existem temas para grandiosas obras na vida deste povo primitivo e,
mesmo, saltando um grande abismo, no relativamente recente e notável
conjunto de civilizados.
Porém, absorvidos completamente pelas lutas económico-sociais,
não atentamos na Arte. Tudo quanto a este respeito se pode dizer,
limitou-se a fazer côro com as frases admirativas que famigeraram
“Gioconda”, “Nôtre-Dame”, Camões e ultimamente o arranha-céus e o
22
fox-trot; admirando o gótico; deliciando-se com as valsas de Strauss,
devorando Shakespeare e ao mesmo tempo acotovelando o próximo que
pretendia espezinhar-se, para obter um lugar na sociedade e fazermo-nos
lembrados na feitura dos orçamentos, sem que a originalidade pesasse
coisa alguma na balança das nossas preocupações espirituais.
Nem podia ser doutra maneira, quando preconceitos pretendiam
segregar indivíduos integrados na civilização, servindo-se de obsoletos
processos. Enquanto os interesses do estômago e da vaidade não
estivessem, até certo ponto, salvaguardados, nada poderia o espírito
produzir que trouxesse impresso o sentimento das massas nativas. Fomonos assim divorciando do nosso espírito como entidade racial construtiva,
para nos aliarmos a manifestações, possivelmente sentidas, mas não
vividas. O grande salto que os africanos deram por sobre civilizações e
eras históricas, fazendo-os ombrear, de jacto, com os maiores nos
campos das ciências, da arte e do desporto, deixou atrás o espírito que
mais lentamente se vai revelando, em razão directa com a atenuação da
luta por uma existência condigna.
Já com um relativo bem-estar e também por consequência da
struggle for life foi-se notando a lacuna deixada no campo do espírito e
tem-se feito esforço para restabelecer os vínculos que ligam o homem
material ao homem espiritual. Um caso concreto dessa preocupação por
parte dos indivíduos cultos foi a tentativa, há uma dezena de anos
passados, da criação de um Círculo de Estudos na Liga Nacional Africana
para fins intelectuais e artísticos, que não vingou. O referido Círculo não
seria isento de defeitos, dos quais salta à vista o mal da erudição que devia
prejudicar bastante os seus trabalhos num ambiente onde seria necessário
transmitir conhecimentos por via acessível. E quero crer que os dirigentes
acruais das colectividades africanas não se deixarão absorver
completamente pelos problemas materiais e com os fugidios prazeres que
algumas horas de contacto social prporcionam, num momento como este
em que a nossa cultura tende a elevar-se como nunca.
Dir-me-á o meu único leitor que o nosso espírito não anda tão
desprezado como pretendo fazer supôr e que temos uma plêiade honrosa
de intelectuais de valor. Não são do meu desconhecimento. Sei-o
23
perfeitamente e aprecio com desculpável facciosismo os nossos artistas.
Contudo, observarei que salvo poucas e lisonjeiras excepções, estes
sofrem do mal de seguir escola (e que escola!) trilhando o caminho
seguido oelas literatices colonialistas que se resumem em pretender dar
um ar exótico (é este o termo exacto) à África; nunca fazendo volver os
olhos para a realidade e destinando as suas produções quasi que
exclusivamente ao consumo externo. Certos contos, por exemplo, em que
os negros estilizados me dão a impressão de manequins vestidos de tanga,
parecem mais quadros de naturezas mortas que retratos de um povo vivo.
O que necessitam os nossos artistas e escritores é imprimir mais
sinceridade nas suas obras e menos preocupações em adoptar a maneira
de ver dos escritores colonialistas.
As produções com elevada percentagem de espírito africano, com
caracteres tipicamente locais, determinarão um “clima” espiritual diferente
daquele que estamos acostumados a sentir, ao mesmo tempo que
enaltecedor para a nossa qualidade de luso-angolanos.
Porém, não será mostrando-nos ao mundo como cartaz de garota
bonita, sistematicamente leviana e ansiosa de aplausos, que formaremos o
ambiente espiritual desejado, antes como pessoas sensatas que sabemos
ser.
Aqueles que cépticos porventura não acreditem na existência do
himalaia de assuntos artísticos estratificados por séculos de vida e
tradições na alma negra e estravasados apenas chãmente, perifericamente,
recomendarei que ergam os olhos para esses admiráveis países do Novo
Mundo em que só com stocks nacionais, os átomos anímicos dos povos
são desintegrados numa fluência que submerge extradordinariamente o
mundo em produções com pesar embora dos puritanos europeus cujos
padrões de beleza são unicamente os tipos da sua antiga arte.
Desejo deixar bem frisado no espírito do leitor que não estou
idealizando uma “nova arte colonial”. Eu idealizo uma “ arte africana”.
Uma derivação do pensar para a nossa casa;para o sofrimento e a
alegria, fará surgir uma forma de beleza quasi desconhecida, nova,
africana, muito nossa, que assombrará o mundo e transformará as
fraquezas que ainda nos atribuem no Byron que transformou a sua perna
24
côxa – em força que emprestará mais auto-confiança para vencermos o
caminho que ainda temos de trilhar.
O meu experimentado leitor, cujo caminho pela Vida é mais longo e
cujos dotes de inteligência ou profundidade de conhecimentos são
maiores, creio não deixou de notar que temos queimado esforço a mais
para exibir perante o mundo a nossa competência e a nossa inteligência,
desmentindo a fábula da inferioridade, do que para formarmos
personalidade.
Eu acho, porém, que já é tempo de andarmos de braço dado com a
sensatez.
A.Agostinho Neto
O Farolim 1946
O RUMO DA LITERATURA NEGRA*
A literatura, como índice da cultura dum determinado agrupamento
humano, só pode ser compreendida na medida em que se torna possível a
limitação e isolamento desse grupo, permitindo-se deste modo o
conhecimnento de sua índole social, das tendências psicológicas e mesmo
das suas realizações materiais.
Partindo deste princípio e para compreendermos a literatura negra,
devemos conhecer primeiro que indivíduos para ela contriubu; a fim de
evitar a confusão de conceitos que actualmente se faz ao referirmo-nos
aos negros, grupo aliás difícil de limitar em virtude das divergências de
pontos de vista existentes quer sobre o aspecto sociológico, quer ao
considerar o critério étnico. Incapazes pois, de encontrar definição
adequada para os indivíduos que vamos considerar, encará-lo-emos
apenas dentro do quadro social-literário em que se desenvolvem ou a que
se adaptaram.
Incluir neste grupo todos os indivíduos negros , os seus descendentes
e apenas por este motivo, seria um erro portanto, embora a sua cor,
muitos deles – por qualquer motivo; a educação por exemplo – não
25
possuem aquele mínimo da cultura africana para serem encarados dentro
deste sector literário, mesmo quando observamos a multiplicidade da vida
actual.Escritores que não traduziram nenhum aspecto negro na sua obra,
melhor serão enquadrados nas correntes literárias dos países ou povos
cuja cultura reflectem. O reticente Machado de Assis é um exemplo.
Gonçalves Crespo outro. Adoptando o mesmo critério consideramos
integrados na literatura negra as obras daqueles autores que de alguma
forma reflectem a maneira de ser dos povos negros, os seus sentimentos,
os seus processos de reacção; sendo este reflexo não apenas uma
tradução, mas uma verdadeira identificação. Assim, não incluimos aqui
aquelas obras “bem intencionadas” de escritores que, à caça do pitoresco
ou para inspirar piedade enfileiraram no negrismo. A Cabana do Pai Tomás
ou os poemas de Jorge Lima não pertencem à literatura negra. Tão pouco
a desconcertante literatura colonial que por vezes extasia os europeus
como crianças diante de espécimes dum Jardim Zoológico. Mesmo os
negros que encarreiraram pelas puras ideias europeias são excluídos do
campo literário que nos ocupa. Rui de Noronha, negro moçambicano é
literariamente, apenas um poeta português, mesmo ao tomarmos
conhecimento do seu poema “Surge et Ambula”, dos poucos em que ele
se apercebe da existência da África.
Para que determinada obra literária se atribua nacionalidade é
necessário que ela se baseie na vida dos representantes dessa
nacionalidade sem remeter esta palavra à estreiteza do seu sentido político.
E para que isso seja possivel é necessário que o autor tenha
conhecimento da vida dos seus elementos constituintes. Ora, o
conhecimento dos negros,actualmente, não está ao alcance de todos os
autores rotulados de negros. Conhecer, neste caso, não é apenas
coleccionar percepções sensacionais é ainda ter uma noção da parte
psíquica dos homens, é ainda assumir certa atitude afectiva. Este
conhecimento só o tem quem é capaz de se identificar psicologicamente
com a maioria dos indivíduos do seu grupo para poder sentir com eles, os
incidentes do dia a dia e as manifestações de carácter cultural ou material.
Não sabemos, por exemplo, até que ponto os indivíduos de cultura
europeia podem entender o “Sabás”, de Nicolas Guillén. Segundo a nossa
26
maneira de ver, o verso ( Porqué Sabás, la mano abierta?) exige não só a
intervenção da inteligência, mas também a identificação com Sabás para
podermos reprovar em cada negro, com essa ternura insinuante de
Guillén, a inconsequência da atitude de “mão aberta”. Só um profundo
conhecimento, não realizado da experiência, e a aceitação insofismada da
realidade do nosso mundo pode ajudar a apreender a latitude daquele
verso; a submissão psicológica, aparente ou não do negro da rua, ou o
“arrivismo flagrante do negro beneficiado pelo poder,pela cultura, ou pela
riqueza”(2), ou seja a atitude de “mão aberta”.
Porém o conhecimento do negro, tem sido prejudicado pelas
condições da sua vida desde o século XVI.
O seu contacto com o europeu ficou marcado com um acto violento
– a conquista. Depois outros actos não menos violentos o forçaram a ir
exercer um papel essencial na edificação dos países das Américas, como
esclarece Gilberto Freyre (3) e a manter-se até hoje na sua situação de
inferioridade perante os outros povos, ante a possibilidade de educação
em larga escala e às dificuldades na vida social dos países que habitam,
além de outras razões que não importa trazer aqui.
Estas violências determinarão a submissão do negro, que por vezes se
traduz em desejo de penetrar com direitos de cidade na cultura europeia e
na sua vida social, umas vezes com a persistência consciente e outras com
franco desespero ante a intransigência branca. E grande parte das obras
literárias “verdadeiramente negras” reflecte com maior ou menor
evidência este estado de espírito – orgulho ferido, ambições frustradas,
desejos irrealizados, impotência. Literatura de sensibilidade, acima de
tudo, por vezes autêntica os muros de lamentações sem consequências
construtivas.
Os povos negros atravessam o seu período de confusão,por terem
abandonado de chofre a sua cultura, modificando totalmente o sistema de
vida em uma ou duas gerações, para adquirir uma cultura europeizada a
estruturada sobre bases frágeis. Esquecendo-se e ao seu povo, para
pretender ingressar definitivamente na civilização europeia em que os seus
instrumentos lhe são cruelmente sonegados, o negro experimenta, a par
da frustração, uma fase ainda mais prejudicial para a sua personalidade, do
27
que as chacinas no campo de batalha ou o chicote da escravidão
declarada.
Hoje, negros conscientes já encaram os seus problemas de modo
racional. O desejo de reencontrar a sua cultura perdida ou esquecida é
dos sintomas mais animadores. Os movimentos culturais de negros se vão
etabelecendo nas Américas e na África, especialmente da cultura francesa,
são sinais desejáveis para que este povos se encontrem e continuem o seu
rumo na história da humanidade.
Cremos que destes movimentos sairá a falange de escritores capaz
de carrear definitivamente a literatura negra para o seu verdadeiro rumo.
-//A literatura é um reflexo da vida social dos povos e da estrutura
histórica que a suporta. Não é este reflexo, porém, que encontramos em
muitos escritores negros antigos e em alguns modernos, arrastados pelas
correntes literárias da Europa. Estes são, para empregar uma expressão
corrente, os escritores “a pesar de” negros. Assim é Costa Alegre, o negro
santomense e de quem não conhecemos sobre a sua raça senão algumas
frases poéticas que, ao lado da sua importante obra, parecem mais
produtos dos momentos de fastio do poeta. Esta característica, de certo
modo paradoxal, dever-se-á à falta de consciência de povo ou então a um
egoísmo tal que torna impossível a manifestação daquela “personalidade
humana” que irradia, poe exemplo, do “Batouala”, de René Maran.
No panorama actual da literatura negra, tende a desaparecer este
desencontro entre o escritor e a sua obra. E ainda bem, para todos nós. A
realidade dos povos negros deve ser encarada sem a cobertura dos
remendos convencionais, num contributo para a sua elevação cultural.
Só assim podemos tomar a literatura, no sentido em que J.Paul
Sartre(5) vê a poesia negra: “La poésie négre est évangelique, elle annonce
la bonne nouvelle: la négritude est retrouvée”.
____//______
Ao consumar-se o acto violento a que atrás nos referimos, os negros
viram-se destituídos do bem mais precioso dum povo: a língua. Ainda que
seja empregada pela maioria (em África), ela deixou de ser instrumento
28
útil no contacto por aqueles que a terminologia colonial rotulou de
evoluídos ou assimilados.
…..
A literatura negra não é conhecida da maioria dos negros, já pela
dificuldade que há nos iniciados na leitura de entenderem uma língua que
não beberam com o leite materno, embora a cessibilidade dos modernos.
Cremos que os escritores do futuro criarão novas formas de expressão,
ao sofrerem a influência do povo, quando trabalharem in loco. Essas
formas ainda não apareceram. De resto hoje escreve-se menos para os
negros (ou para os africanos) do que pra os brancos (ou para os
europeus), como se depreende.
Por outro lado, não existem traduções para as línguas nativas, o que
ajudaria a difusão do livro. Com consequências benéficas, até mesmo no
respeitante à propagação das técnicas e de noções específicas.
Ainda que evidente esta impossibilidade expressional, que afasta o
escritor do seu povo, o homem negro vai deixando de figurar na literatura
como vítima passiva, no intuito de condenar as organizações sociais que
lhe entravam o desenvolvimento – como vemos ainda em Richard
Wright- para tomar já a figura do homem com certeza no olhar para o
futuro, como o encontramos em Langston Hugues, em Aimé Césaire e
em outros.
Assim se vai precisando cada vez mais a identificação entre o escritor
“como” negro e o negro “como” homem.
A influência das modernas tendências literárias é evidentíssima nos
autores negros, e não admira que assim seja, pois é em escolas europeias
que eles se formam, regra geral; mas essa influência não é o único factor
que imprime novas directrizes à nossa literatura. Esse novo ritmo, esse
novo novo humanismo que se vai afastando do tipo de reacção pura e que
enternece num antegozo de melhores dias para a Humanidade, é o
anúncio do renascimento negro para alma negra.
Se houver – como é de esperar – dentro dos anos próximos, num
aumento do nível de instrução e se fosse possível traduzir para as línguas
africanas as grandes obras literárias, muitas possibilidades haveria de ver
os rumos da literatura negra, mais acentuadamente dirigidos para o seu
29
povo onde, inevitavelmente, deve ir buscar os motivos de inspiração e
exercer a sua função – que é a de toda a Arte – a consciencialização dos
povos ante os seus problemas e os do mundo.
Cremos que o ritmo da literatura negra está traçado nesse sentido.
Março de 1951
*Extractos de uma reflexão que seria publicada na revista projectada pelo Centro de Estudos
Africanos
A PROPÓSITO DO TEATRO DE KEITA FODÉBA
Para uma maioria da Europa, e de certo modo na África, o caso
negro é um caso americano, e quando muito, um caso sul-africano. E,
transposto assim para um plano nacional, ele perde o seu verdadeiro
carácter. Porém, o caso negro é essencialmente africano, apesar dos
desvios seculares e actuais que tem sofrido.
Para essa maioria, o caso negro reside apenas na possibilidade de
integração do negro numa dada sociedade nacional, como por exemplo
na americana, e o racismo contra o negro consiste no fundo somente em
qualquer coisa semelhante à violenta expressão da lei de «Lynch».
Para essa maioria, o caso negro não consiste senão na desumana
expressão do «apartheid» de «Mister» Malan e nos baixos salários dos
trabalhadores das minas de ouro.
Mas o caso negro transcende os planos puramente nacionais a que se
tem feito referência, para ser um caso totalmente e principalmente
africano. Em toda a África ele encontra expressão, mais ou menos
abertamente, mais ou menos veladamente, segundo as circunstâncias.
Tanto do ponto de vista social, como do ponto de vista cultural.
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Para essa maioria, a Arte Negra, não é senão um «caso particular» da
arte da Europa, adicionada de novas formas ao contacto com os povos
negros. Assim, a grande parte substancial da música negra, que se
«modernizou» desde o Norte ao Sul da América, não é, para essa maioria
senão uma forma enriquecida da música europeia. No fundo, ela não é
senão um somatório de novos ritmos de uma nova espiritualidade, não é
senão mais uma aquisição de pitoresco, ao juntar aos outros potorescos
europeus, como por exemplo, ao «idioma» musical espanhol.
Alguns chegaram mesmo a dizer que não existe Poesia Negra. Que a
chamada Poesia Negra deixará de ser, quando o negro tomar o lugar
devido dentro da sociedade a que pertence. Sociedade nacional, entendese.
Porém, para chegar a estas conclusões, é necessário esquecer África.
Elas são o resultado duma visão distorcida dum problema que permanece
africano e ultrapassa a actualidade social do mundo negro. Elas são afinal
uma outra face da tese de Gunther acerca da interferência ariana na
criação das várias civilizações do mundo.
Ainda hoje, quando a África se transforma em centro de atenções de
cientistas e artistas que nos estão revelando, persiste-se em ver na África
artística apenas uma fonte de motivos para a arte – a arte europeia. Fonte
aonde os artistas vão beber mas que esquecerão para então vir realizar-se
através da Europa.
Os próprios artistas africanos (africanos culturalmente, claro) são
duma maneira geral «acarinhados» por apresentarem uma faceta nova
dentro das linhas estéticas habituais da Europa. E só por isso.
Há a tendência de a enquadrar nos caixilhos europeus, considerandoas artes subalternas, ou quando muito e como atrás referimos, como
fontes aproveitáveis. No folclore negro de Nova Orleães ou da Baía ou de
Cuba, costuma ver-se o episódio esclavagista, tendo como fonte
geográfica distante, a África. Mas o mestiçamento biológico ( passe o
termo anticientífico) ou na aculturação das gentes que hoje povoam a
América, o material humano ou os diversos instrumentos de cultura que a
África enviou pr intermédio desses mesmos homens, respiravam uma
África mais viva do que seria de esperar duma fonte estática. É ela mesmo
31
que vive noutra paisagem geográfica e social. É ela mesma que, na
interdependência com os outros elementos culturais, nativos e estranhos,
se misturou, se miscegenou, sem fatal e implícita abdicação da sua
autenticidade.
Na «negritude» dos modernos poetas negros, desde Hughes até
Césaire, além daquilo que os quadros locais oferecem, é a África que vive,
na semelhança dos ritmos e na preocupação cultural. Não uma África
estática, feita fonte, mas uma África com fundo emotivo, com fundo
cultural vivo e progressivo.
Nos artistas africanos de África, embora a aculturação introduzida
pelo contacto com arte europeia e as limitações de ordem cultural e
social, é um cunho essencialmente negro, africano, que se imprime nas
suas obras, enquanto produzam. Não como se a África fosse
simplesmente uma fonte, mas como representando uma força viva, uma
força cultural e progressiva.
Porquanto – é preciso lembrá-lo – a cultura africana é uma
realidade. Uma realidade viva, progressiva, alimentando o fundo
emocional de cada africano e sendo neste, mais ou menos aparente
segundo a permeabilidade consentida pelo verniz europeu, adquirido intre
e extra-muros.
E é a capacidade de exprimir essa realidade que constitui a principal
preocupação dos artistas
africanos de hoje. Exprimi-la
independentemente da hierarquização obsoleta que é hábito admitir,
paralelizando-se à condição social das classes em que o artista se induz
como se em arte se pudesse admitir qualificação semelhante.
Assim o encontramos desde o centro da América (em Étienne Léro,
em Jacques Roumain, em Guillén,etc.) e o norte da América (em
L.Hughes, em Dunbar e em outros) até a África (em Diop, em Senghor).
Assim o encontramos nos africanos, não apenas como resultante
actual e local da sua luta económica ou social, mas apenas no aspecto
reivindicativo pela integração total na sociedade nacional de que faz
parte, mas também com ritmo, como sensibilidade autêntica, negra
africana, que se torna evidente na expressão dos artistas.
32
Assim o encontramos na equipa intelectual negra que constitui a
«Présence Africaine», em Paris e em Dakar.
Assim o encontramos no artista senegalês Keita Fodéba.
Keita Fodéba é estudante e poeta. Está realizando em França um
teatro autenticamente negro. Negro como expressão de «negritude».
Negro no ritmo das músicas. Negro na cor da pele das figuras: cantores,
dançarinos, declamadores, etc. Negro na concepção dos motivos das
peças, interpretendo uma África viva, sensível, progressiva. Longe das
estilizações calculadas nos gabinetes de estudo de qualquer estudioso
como por exemplo, as que deram nome a Katherine Dunham.
Em Keita Fodéba, o fundo é a vida das sanzalas, os contos
conservados por tradição oral e relatados pelos trovadores, as lendas, as
canções cheirando a lenha queimada das fogueiras, o ritmo negro, as
melodias de xilofone, enfim: o substracto emocional artístico da cultura
africana, a vida africana.
Deste modo, pela mão de Keita Fodéba, como doutros artistas
verdadeiramente negros, a África viva vem ao encontro do mundo.
Regozijemo-nos com o facto.
Lisboa, 13 de Março de 1953
Publicado em Angola, Revista da Liga Nacional Africana, nº148, Novembro de 1953
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AGOSTINHO NETO