II Encontro Nacional de Estudos da Imagem
Anais
12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR
O CORPO COMO IMAGEM RELIGIOSA: ASCESE E CORPOLATRIA NA BOLA DE NEVE+074+0
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fo.*
Resumo: Meu objetivo aqui é identificar algumas das diferentes representações que a igreja neopentecostal
Bola de Neve estabelece em relação ao corpo dos seus freqüentadores. A corpolatria, ou supervalorização
do corpo, parece receber estímulos por parte desta igreja, enquanto um determinado discurso doutrinal
prega uma ascese fundamentada na abstenção da sexualidade e no controle e regulamentação do corpo e
do desejo sexual dos fiéis. Estas diferentes apropriações da imagem do corpo do fiel são aqui vistas como
produto de embate entre formas discursivas diferentes que se interpolam. A História do Tempo Presente,
ao se valer da identificação destas relações, pode trazer maior grade de análise e inteligibilidade a estes
fenômenos.
Palavras-chave: Bola de Neve Church – corpo como imagem religiosa - História do Tempo Presente
Abstract:
My goal here is to identify some of the different representations that the neopentecostal church Bola de
Neve provides for the body of the faithful. The corpolatria, or overvaluation of the body, it seems to
receive incentives from this church, while a certain doctrinal’s speech preaches asceticism substantiated
in the abstention of sexuality and the. control and regulation of body and sexual desire of the faithful.
These different appropriations of the body’s image of the faithful are seeing here as a collision’s product
between different discursive forms that are interpolated. The Present Time’s History, claiming the
identification of these relationships, can bring a higher grade of analysis and comprehension of these
phenomena
Keywords: Bola de Neve Church – body as a religious image - Present Time’s History
Disse Deus: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”
Gênesis 1. 26
Entendo que, dentro de um discurso religioso mais amplo, discursos marcados por
algumas especificidades podem vir a surgir. Dentre as várias representações possíveis de um
discurso religioso, entendo que duas, que aqui convenciono como discurso estético e discurso
doutrinal, adquirem destes contornos particulares e se interpolam.
Cada uma destas representações discursivas guarda formas diferentes de olhar, descrever
e policiar o corpo de seus freqüentadores. No discurso estético, estimula-se uma imagem do
corpo como saudável e desejável, enquanto no discurso doutrinal, trata-se de regulamentar
este mesmo corpo, bem como os desejos inerentes a ele.
Minha intenção aqui é a de contribuir para a identificação de como essas ações discursivas,
aparentemente conflitantes, podem vir a induzir ao amoldamento das vontades de seus
freqüentadores, bem como de uma determinada imagem corporal e estética, constituindo
assim este corpo como imagem religiosa representativa desta igreja.
A título de contextualização, tomo a liberdade de partir para um breve histórico sobre a
igreja Bola de Neve, ou Bola de Neve Church1. Antes, uma explicação necessária: A igreja
Bola de Neve se insere na chamada corrente neopentecostal do protestantismo cristão. Mas o
que seria afinal o neopentecostalismo?
A gênese do neopentecostalismo parece estar na criação no Rio de Janeiro da Igreja
Universal do Reino de Deus em 1977, e da Igreja Internacional da Graça de Deus no ano
seguinte. Os empreendimentos de Edir Macedo e R.R. Soares foram tão bem-sucedidos que
inspiraram o nascimento de outras igrejas de caráter similar, como a Igreja Apostólica Renascer
em Cristo e a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, criadas em São Paulo no ano de 1986
e no Distrito Federal em 1992, respectivamente pelos casais Estevam e Sonia Hernandes e
Robson e Lúcia Rodovalho. Entendo que o neopentecostalismo traga características originais,
em relação aos movimentos pentecostais que o precederam. Segundo Bruna Dantas 2 (2006),
há algumas características que distinguem a corrente neopentecostal das anteriores. Seriam:
a velha “mensagem da cruz”, tão valorizada pela doutrina pentecostal, que exorta o
cristão a resistir ao sofrimento terreno para ser posteriormente recompensado com bênçãos
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espirituais, foi abandonada pelos neopentecostais. Conforme essa premissa teológica, os
convertidos ao pentecostalismo estão destinados à aflição mundana. Padecerão no mundo,
mas caso resistam com perseverança à dor, serão recompensados com a paz eterna. Devem,
pois, aceitar com resignação o triste destino que está reservado à sua vida na terra. O que
lhes conforta é a possibilidade da felicidade etérea. (...) Os neopentecostais, por sua vez,
buscam a alegria terrena, rejeitam o sofrimento e pregam a prosperidade física e material
para todos os que se convertem à sua doutrina (Dantas, 2006, pp. 92-93).
Uma troca simbólica de valores – ao bom estilo fast-food – se associaria à mercantilização desses
produtos religiosos através da Teologia da Prosperidade, onde, as inquietações humanas seriam
sublimadas pela adequação do fiel às práticas rituais – como a contribuição dizimal - e à aquisição
de produtos tangíveis e intangíveis; ou segundo Montes; “é dando-se à igreja que se recebe a graça
de Deus” (Montes, 2000, p.121).
Para além da importância da teologia da prosperidade, haveriam, segundo Dantas,
características que particularizariam o neopentecostalismo, como a intensificação da batalha
espiritual e da utilização de práticas exorcísticas, a modernização da linguagem e a liberalização
dos rígidos costumes de santidade. Para esta autora,
as igrejas neopentecostais se submeteram a várias mudanças, adotaram novos padrões
comportamentais e flexibilizaram o rígido conteúdo doutrinário, realizando, desse modo, ajustes
em sua estrutura burocrática e legislativa e possibilitando, assim, uma maior adequação às novas
condições da sociedade moderna. Mostram-se, pois, menos sectárias, não demonstrando repúdio à
ideologia do mundo capitalista. Em vez do isolamento intramundano, os grupos neopentecostais
esforçam-se para obter prestígio social, respeitabilidade política e poder econômico (Dantas, 2006,
p. 92).
Das características citadas acima, as que mais me interessam aqui são as duas últimas,
a modernização da linguagem e a liberalização dos rígidos costumes de santidade, que parecem
trazer íntima relação com a construção social da aparência do fiel, do seu corpo como espaço
religioso, que se adapta aos costumes de seu meio, através da identificação a este (e talvez
os perverta através de táticas de insubmissão).
A essas características se associam, no caso da Bola de Neve Church e ainda segundo
Dantas,
a utilização da tecnologia informacional e da mídia eletrônica, a formação de comunidades virtuais,
a flexibilização comportamental e a transformação da identidade estética dos seus membros a
tornam uma denominação menos sectária e ascética. Ela parece integrada à sociedade da informação,
à racionalidade tecnológica e à economia de mercado. Não se exclui nem se isola. Muito pelo contrário,
assimila as transformações sociais, inserindo-se no mundo contemporâneo. A fim de conquistar
novos adeptos, os pastores adotam a linguagem do jovem moderno, promovem eventos musicais e
realizam campeonatos de surfe e skate nas praias (Dantas, 2006, p. 109).
Ricardo Mariano3 (1999) , neste sentido, comenta que
nas igrejas neopentecostais, “(...) tanto a observância, pelo fiel, dos preceitos de santidade quanto
sua luta contra o mundo não se processam via fuga, afastamento. Mas sim e, primordialmente, pelo
enfrentamento, pelo desbravamento e conquista de áreas por eles ainda não alcançadas, pela
participação nas esferas que pretendem cristianizar, pela ousadia missionária e pela intrepidez
evangelística” (Mariano, 1999, p. 228).
A igreja neopentecostal Bola de Neve, ou Bola de Neve Church foi fundada em 1999
pelo pastor Rinaldo Luiz de Seixas, surfista, formado em propaganda e marketing e pósgraduado em administração. Tendo feito parte da liderança da Igreja Apostólica Renascer
em Cristo, muito de sua identidade religiosa e das representações estéticas e doutrinárias
criadas para a Bola de Neve Church advieram desta, bem como a proposição de se identificar
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ao público jovem. Rinaldo também incorporou o sistema de “indústria da fé” da Renascer
em Cristo, com gravadora própria para a reprodução de seus CDs de reggae e hard rock,
Bíblia adaptada à linguagem da “galera do surfe”, e a exportação de suas filiais para o
exterior – Austrália e Peru, no caso4 . Conforme Bruna Suruagy Dantas (2006),
no mercado saturado de ofertas pentecostais, o pastor Rina, como é conhecido, teve a ousadia e
perspicácia de escolher um segmento pouco prestigiado e explorado pelas igrejas evangélicas. Decidiu
dirigir seu discurso religioso a surfistas, skatistas, fisiculturistas, lutadores de jiu-jitsu e esportistas
de modo geral. Pretendia atingir a geração dos esportes radicais através de uma linguagem especial,
menos formalizada. Criou uma imagem própria capaz de seduzir um grupo específico (Dantas, 2006,
p. 125).
Segundo o sítio oficial da igreja5, Rinaldo Seixas teria realizado seus primeiros cultos no
auditório de uma empresa de artigos de surfwear, a HD, ou Hawaiian Dreams, com capacidade
para 130 pessoas. Não haveria muita estrutura no local para a realização de celebrações
religiosas, mas o pastor conseguiu conduzir a situação. Ainda segundo o sítio, em uma dada
reunião, Rinaldo, ou Rina, como prefere ser chamado, teria percebido que não havia um
suporte adequado para apoiar a Bíblia, e avistando uma prancha de longboard, pertencente à
loja, resolveu convertê-la em púlpito, o que se tornou a marca da congregação, símbolo da
representação da Bola de Neve Church como uma igreja de surfistas, e de gente jovem e
alternativa. Segundo a revista Época6,
o novo grupo evangélico “hardcore”, formado por jovens de 15 a 30 anos, cresce como uma bola de
neve. Em três anos, entre 2000 e 2003, a igreja cresceu 1100%, passando de 250 para três mil
membros em todo o país (Revista Época, 2003).
ele:
Em entrevista7, assim teria comentado Rinaldo Seixas, sobre a instituição criada por
sei que os dogmas da igreja tradicional afastam a moçada da religião. Criei um local em que todos
se sentissem à vontade e tivessem contato com a palavra de Deus (...) Não foi estratégia
de marketing, ficou simplesmente a cara da liderança. Mas é claro que esse visual ajuda a quebrar
estereótipos, principalmente daqueles que tinham aversão à igreja e à religiosidade. Aqui a
identificação dos jovens com a igreja é muito grande, aqueles que estão pegando onda com eles no
domingo são os mesmos que no sábado estão pregando ou estão na liderança da igreja (Dantas,
2006, p. 129).
Ainda segundo Bruna Dantas (2006),
o sucesso da igreja se deve à identificação do jovem com a imagem e propósito da instituição, à
aproximação dos pastores, à informalidade dos cultos e à linguagem descontraída. Fazem parte da
identidade da Bola de Neve a negação de alguns padrões tradicionais e a ruptura dos rituais religiosos,
que sempre afastaram os adolescentes das congregações evangélicas. Os pastores fazem questão
de divulgar a notícia de que a igreja não está preocupada com dogmas e regras. De fato, a igreja
não oferece restrição às vestimentas, às tatuagens, aos piercings, aos esportes radicais, em suma,
à aparência do crente. Contudo, empenha-se em proibir o uso de drogas de todo tipo, a
homossexualidade e o sexo antes do casamento (Dantas, 2006, pp. 127-8).
Entendo ainda que igrejas do neopentecostalismo contemporâneo como a Bola de Neve
Church se associam a um “mercado dos bens de salvação8” que visa, através de diferentes
mídias, utilizar conteúdos religiosos para conquistar o envolvimento e a adesão emocional de
fiéis, se ligando à utilização de linguagens contemporâneas em seus discursos. Entendo também
que as representações do discurso religioso inserido na modernidade fluida (segundo
conceituação de Zygmunt Bauman, como mostro a seguir) se desenvolve por caminhos
particulares, associando autoritarismo e polissemia líquida, também associando em um mesmo
ethos a aparente contrariedade do culto ao corpo às interdições ao prazer e à sexualidade.
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Para se entender a construção e apropriação da imagem do corpo como imagem representativa
religiosa é relevante apreender algumas das diversas representações do discurso religioso,
que por sua vez, se inserem em um dado tempo, convencionado aqui como modernidade
líquida9. Esses discursos, ao contribuírem para a construção espacial e imagética do corpo,
têm intenções que a ele se embutem, em direta associação com seu fruidor, ou fielconsumidor10, e com o tempo em que este vive. Para tal, busco como referência Zygmunt
Bauman11 (2001) que desenvolveu o conceito de “modernidade líquida”. Podemos entender
em Bauman as características de modernidade líquida:
a primeira seria o “colapso gradual e rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um
fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um estado de perfeição
a ser atingido amanhã (...) um firme equilíbrio entre oferta e procura e a satisfação de nossas
necessidade; da ordem perfeita (...) do domínio sobre o futuro (...)e a idéia de aperfeiçoamento se
trasladou para a auto-afirmação do indivíduo. (...) Há a realocação do discurso ético/político da
“sociedade justa” para o dos “direitos humanos”, o direito dos indivíduos permanecerem diferentes
e escolherem seus próprios modelos de felicidade (Bauman, 2001, pp. 37-38).
Para Bauman, o comportamento mais sintomático desta sociedade – que se associa ao
individualismo - é o consumismo. Ele demonstra como as pessoas tratam outros indivíduos
também como bens de consumo, inclusive nas relações amorosas, tal como fariam com
mercadorias postas em uma prateleira ou vitrine. Mais que isso, vêem a si mesmo como
portadores de identidades múltiplas e alcançáveis mediante esforço de identificação junto ao
outro e conseqüente auto-representação.
Anexam diferentes personas à sua individualidade com a intenção de ocupar espaço
social junto ao outro, e buscam neste, a aprovação para sua identidade fragmentária e
fluida. Logo, nesta sociedade que não é mais vista como produtora (tal como ocorria na
modernidade “pesada”), e sim consumidora, tudo se relaciona a bens consumíveis, e isso não
é diverso em relação aos bens simbólicos religiosos, como convenciono chamar – parafraseando
o termo já usado por Pierre Bourdieu: “bens de salvação”.
Estabeleço uma breve olhada sobre o indivíduo da modernidade líquida em relação às
igrejas neopentecostais: os indivíduos escolhem o que pretendem ou lhes é mais conveniente
seguir, dentre vários produtos e “sítios expositores de produtos”. Este intercâmbio de bens
simbólicos religiosos tangíveis e intangíveis entre o “fiel-consumidor” e o “sacerdote-ofertante
de bens de salvação”, nos remete à noção de “reversibilidade do discurso12” explicada por
Orlandi. Conforme também comenta Eduardo Paegle13:
neste supermercado de bens religiosos, os fiéis escolhem os seus produtos de maneira à la carte. Um
fiel-cliente quer um pregador incisivo, outro, um animador de auditório, outro, ainda, prefere grupo
de coreografias e diferentes estilos musicais, outro, um culto mais tradicional, litúrgico. Nesta
individualidade, cada fiel consome uma forma diferente de experiência religiosa em face aos produtos
simbólicos religiosos oferecidos. (...) Na prática, isso significa uma religião do self (Paegle, 2008).
Dado isto, a partir deste ponto convenciono uma tipologia com dois parâmetros do
discurso religioso: o “discurso doutrinário” e o “discurso estético”, que analisarei com brevidade,
procurando perceber nestes a sua inserção na modernidade líquida e em que medida eles
transparecem uma polissemia, para depois associá-los à construção da espacialidade do corpo
na Bola de Neve Church.
É a partir da noção de polissemia14 que me lanço à análise do tipo identificado como
discurso doutrinário, vendo este conteúdo doutrinal em seus dogmas, mandamentos e
convenções, sendo de caráter estrutural dentro da instituição e portador do que Eni Orlandi15
(1987) denomina “polissemia contida”. Ainda segundo Orlandi, os sinais da associação deste
tipo de discurso com o discurso autoritário estão no fato deste referente ser ausente, pois ele
mesmo se referenciaria, ou seja, sua qualificação se encontraria em si mesmo; e também
pelo fato de haver a existência de uma “voz autorizada”, que se qualifica a partir de um
dispositivo, que é a sua identificação com algo que a pressupõe qualificável, no caso, a
própria voz de Deus.
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Associa-se a este discurso doutrinário, outra forma de representação do discurso, que
eu convenciono como estética. Esta diz respeito ao modo como os sacerdotes e demais
líderes dos estabelecimentos neopentecostais tratam seus fiéis-consumidores, bem como à
liberalização e flexibilização dos usos e costumes. Obedece-se a um processo de derretimento
e amoldagem constantes do discurso, inseridos à uma polissemia. A forma deste discurso é
bastante lúdica, como diria Orlandi, e dotada de uma polissemia do tipo aberta, mas não é
indiciária de uma categoria deste tipo de discurso: a relação triádica entre o locutor, o
ouvinte e o referente (o significante), já que, como dito, o referente se encontra ausente,
“oculto pelo dizer”. Assim, esta relação lúdica e liquefeita do discurso se dá apenas no
aspecto formal, na adesão emocional favorável ao líder, o que Hans-Robert Jauss chamaria de
“identificação associativa simpática ao herói”; na construção de um imaginário de liberdade
religiosa promovida pela liberdade de escolha de bens de salvação, tanto tangíveis como
intangíveis e na representação de um diálogo horizontalizado entre sacerdote-ofertador e
fiel-consumidor. Esta forma de discurso, portanto, obedece a um processo de derretimento e
amoldamento constantes do discurso, inseridos à uma polissemia.
Entendo que a forma discursiva que convenciono como estética se associa à flexibilização
dos costumes promovida pela Bola de Neve Church e ao amoldamento e adaptação da
estética e do desejo do fiel, criando uma representação da imagem do corpo e do desejo
deste. Creio que a produção desta imagem do corpo se dê através da interatividade com o
meio, através da imersão social no universo simbólico da igreja Bola de Neve. Como comenta
Dantas:
as igrejas neopentecostais assumiram uma postura mais liberal e flexível em relação aos hábitos e
à aparência dos fiéis. Atualmente, não definem a identidade estética dos jovens nem impõem um
perfil para os cristãos seguir. Não há restrição quanto ao tipo de roupa, ao corte de cabelo e ao uso
de maquiagem e jóias. Não é proibido ouvir rádio, assistir televisão, praticar esportes, freqüentar
cinemas e teatros, ir à praia, fazer passeios, participar de competições esportivas e torcer por
times de futebol (Dantas, 2006, p. 104).
A liturgia da Bola de Neve Church é aparentemente polissêmica, esteticamente aberta e
associada fluidicamente à modernidade líquida. Como também mostra Dantas:
a Igreja Bola de Neve apresenta estilo descontraído, linguagem moderna e postura liberal. Promove
eventos, organiza festividades e adota um discurso informal que favorece a identificação dos jovens.
Alguns valores do mundo moderno foram por ela assimilados. Estratégias de comunicação e
expedientes publicitários contribuem para ampliar o seu público e propagar a imagem de igreja
pouco convencional. Foram criadas novas técnicas de pregação, novas formas de transmissão das
mensagens religiosas e novas tecnologias de evangelização, o que a torna uma grande novidade no
mercado neopentecostal. A novidade e a espontaneidade são as principais características da Igreja
Bola de Neve, que seduzem especificamente o público juvenil. Os jovens que a freqüentam, em
virtude da informalidade, não são estereotipados. Eles rejeitam o estigma e o rótulo do jovem da
igreja pentecostal, considerado ultrapassado
e anacrônico. Exibem uma nova imagem estética e novos hábitos comportamentais, buscando desse
modo assemelhar-se àqueles que não estão vinculados a nenhuma congregação evangélica (Dantas,
2006, p. 140).
Sobre a aparência dos fiéis da Bola de Neve Church, Dantas relata que os rapazes e
moças da igreja
se mostram diferentes do público que freqüenta os cultos evangélicos. Alguns são musculosos, outros
bronzeados, outros esportistas. Muitos parecem surfistas, usam roupas despojadas, bermudas
folgadas, camisetas, bonés e chinelos. Para completar o figurino esportivo, possuem piercings e
tatuagens pelo corpo. As meninas exibem corpos bonitos, bronzeados e esbeltos, que chamam a
atenção. As barrigas ficam à mostra, expondo o piercing localizado no umbigo. Tatuagens no pescoço,
nas costas e na barriga aparecem como acessório importante. Algumas delas são versículos bíblicos,
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o nome de Jesus ou um símbolo da vida religiosa. As calças justas, mini-blusas e saias curtas são
peças utilizadas pelas garotas. Porém, enquanto umas se vestem de forma sofisticada e usam
maquiagem, outras são mais despojadas e fazem uso de roupas esportivas. Muitos fiéis praticam
esportes radicais, como o surfe e o skate. Outros fazem musculação, lutam jiu-jitsu e jogam futebol.
Alguns são profissionais, outros amadores. Na igreja há, portanto, jovens de diferentes estilos
(Dantas, 2006, p. 116).
Como a Bola de Neve Church é uma igreja associada ao esporte, à saúde e à juventude,
é comum ver rapazes “cuidadosamente despojados” em suas vestimentas, alguns de chinelos,
outros de tênis, com bermudas de surfistas ou skatistas, camisetas regatas, largas ou agarradas
ao corpo. Da mesma maneira, as moças costumam desfilar seus corpos em tops, bustiês,
regatinhas, sainhas, bermudas, adornadas com acessórios, maquiladas. Assim, há corpos em
evidência a todo o tempo, e isso se mostra adequado, senão até desejável. Dantas ainda
conclui que
eles procuram apresentar um visual moderno a fim de se diferenciar do estereótipo do jovem
evangélico. Querem se aproximar, pelo menos na aparência, das pessoas que não freqüentam
congregações pentecostais, o que contribuiria para o processo de evangelização. Procuram, pois,
secularizar a imagem (Dantas, 2006, p. 116)
Se, em uma igreja pentecostal tradicional, a vestimenta se amparava em dados padrões
estéticos bem fundamentados, como o terno e a gravata, a saia longa, o cabelo curto para os
homens e comprido para as mulheres, no neopentecostalismo há a relativa flexibilização dos
costumes de santidade, a liberalização dos códigos de conduta e o aparecimento de uma nova
padronização do corpo como espaço e territorialidade religiosa. Segundo Dantas,
nesse sentido, a Igreja Bola de Neve mostra-se liberal. Os jovens que freqüentam seus cultos possuem
estilos variados, usam tatuagens e piercings, vestem roupas descontraídas que exibem o corpo,
utilizam artigos da moda, pertencem a diferentes “tribos” e apresentam os mais diversificados
perfis estéticos. Não há, pois, regulamentação das vestimentas nem padronização de estilos (Dantas,
2006, pp. 104-105).
Associado a isto, também comenta Mariano (1999, apud Dantas, 140) que os novos fiéis
pretendem romper com o perfil padronizado do crente tradicional. Estão em busca de novos
estilos de vida e novas aparências, que os distanciem do modelo estético das denominações
pentecostais. Reproduzem os padrões de beleza, o culto ao corpo perfeito e a ideologia da
eterna juventude em vigor na sociedade contemporânea. Querem parecer liberais e modernos.
A identidade da igreja, portanto, encontra-se associada à descontração e à jovialidade, em
função do público que dela faz parte, e aqui se insere a idéia de corpolatria 16, citada por
Stephanè Malysse17 (2002), ou supervalorização do corpo e da aparência.
A Bola de Neve Church, ao permitir esta maior plasticidade em relação aos usos e
costumes, como é o caso do modo de se vestir do fiel, mostra a clara exposição de um
discurso estético que caracterizo como liberal e polissêmico. O fiel pode se vestir de modo
descontraído e isso é estimulado por seus líderes. Através desta (ao menos aparente)
liberalização, a imagem do corpo do fiel é espaço polissêmico e apropriado de um discurso,
que prega a fluidez e plasticidade esperadas da sociedade do contemporâneo, ou modernidade
líquida. Existe assim, dentro do âmbito do que chamo de discurso estético, uma construção
deste corpo como espaço de polissemia discursiva.
Entretanto, discordo de alguns pontos da análise de Dantas (2006). O primeiro seria o
de que a “igreja não definiria a identidade estética dos jovens nem imporia um perfil para os
cristãos seguir” (Dantas, 2006, p. 104). Ao meu ver, a adequação e o estímulo às modas
majoritárias que circulam por este espaço religioso, como a surf wear e a skate wear (moda
surfe e moda skate)18, acabam por gerar um perfil estético razoavelmente coeso e socialmente
desejável.
Assim, instala-se a imagem do corpo como espaço de discurso religioso: A aparência
corporal se mostra como um produto de uma demanda “real”, a da parcela de membros que
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já eram surfistas ou adeptos da moda surf wear antes de ingressar ali. Mas para além disto,
instaura-se a moda surf wear como a vestimenta adequada e desejável do crente da Bola de
Neve Church 19. Avento a possibilidade de que, ao se inserir nesta comunidade, a pessoa seja
induzida a trajar-se de modo semelhante às demais, e vestir-se à lá Bola de Neve, ou
aparentar-se com um surfista após sair da praia ou um skatista após deixar o half pipe.
Vestir-se assim, seria conveniente como mecanismo de inserção e pertença social. De modo
análogo, disse Malysse que “na busca de um corpo ideal, os indivíduos incorporam as imagensnormas de uma nova estética corporal e ficam literalmente condenados à aparência (MALYSSE,
2002, 71)”. Assim, o corpo como espaço, é instalado e estimulado como forma de identificação
e associação ao meio, de representação de si mesmo para o outro, e também de constituição
e reforço de uma auto-identidade como membro da coletividade, neste caso, da igreja Bola
de Neve. A imagem do corpo é o eixo da relação com o mundo, o espaço e o tempo, e é onde
o ator social tem sua existência assegurada, e sua inserção neste ethos comum vai de
encontro com seu amoldamento estético e valorativo. Em minha opinião, entendo que a
igreja auxilia no amoldamento destes corpos individuais, de acordo com as suas representações
do corpo, estabelecendo, ao contrário da idéia de Dantas, na imagem de seu fiel, um perfil
estético (e valorativo) razoavelmente bem definido. A reverberação de um senso comum, ou
“imagem-norma”, como convenciona Malysse, seria então responsável por, através de
convenções sobre a estética corporal, dar molde a um corpo socialmente desejável, aqui
entendido não só pela estética, mas também pelos desejos e práticas sociais diárias relativas
ao mesmo. Assim, o eu físico do fiel é produto da incorporação de imagens-normas relativas
a uma dada estética do corpo, e são representações simultâneas do fiel e da comunidade
onde ele se insere. Esse senso comum influenciaria diretamente as construções sociais e as
práticas diárias dos atores sociais, onde a imagem assumiria o papel de imitadora do normal,
onde “na arte de utilizar o corpo humano, os fatos de educação dominam e o que se passa é
uma imitação prestigiosa (MALYSSE, 2002, 71)”, onde as imagens que se tem do corpo se
aproximariam de uma “figuração do corpo”.
Se acreditarmos que as imagens do corpo são capazes de reproduzir e sugerir sentimentos,
valores e crenças, e serem usadas para desestabilizar o leitor em suas representações pessoais
sobre o corpo, o orientando em novas direções de construção identitária, então a imagem do
corpo deste fiel religioso é antes de tudo uma interpolação entre o social e o individual, uma
representação simultânea do indivíduo e do mundo onde ele se insere, estabelecendo-se no
que chamo de imagem-representação de discurso religioso.
Ainda a despeito da opinião de Dantas, de que “eles procuram apresentar um visual
moderno a fim de se diferenciar do estereótipo do jovem evangélico” (Dantas, 2006, p.
104), entendo que, ao se procurar um distanciamento de uma dada estereotipia, a comunidade
dos jovens da Bola de Neve acaba por promover uma nova estereotipia 20 do ser jovem
evangélico. Entendo também, contrariamente ao que diz Dantas, quando ela comenta que
“não há uma regulamentação das vestimentas nem padronização de estilos” (Dantas, 2006,
pp. 104-105), que, com o estímulo dado pela liderança ao uso das várias estéticas relatadas,
e com a inserção dos freqüentadores a estes padrões estéticos, exista sim uma espécie de
regulamentação e padronização estilística, ainda que seguindo um mecanismo mais ou menos
tácito, silencioso. Em relação ao discurso estético da Bola de Neve Church, entendo que este
é, portanto polissêmico, viabilizando a escolha pessoal do fiel em relação à sua estética,
entretanto, entendo também que a construção e representação da imagem do corpo como
espaço social e religioso se dá através de política tácita de regulação, e conseqüente inserção
deste fiel a esta.
Como propus anteriormente, há também na Bola de Neve Church um discurso doutrinário
que tende, ao contrário do discurso estético polissêmico, à monossemia. Aqui, a construção
social da imagem do corpo se dá no amoldamento dos desejos, especialmente através da
regulamentação da sexualidade dos fieis e a uma prática ascética21. Identifico primeiramente,
quanto ao discurso doutrinal da Bola de Neve Church, a figura do sacerdote como uma voz
autorizada 22de Deus, e suas assertivas como expressão da verdade, onde o pregador tem
como “dispositivo” que o qualifica uma suposta Voz Suprema, onde o agente expositor por
excelência e unicidade seria in suposto, o próprio Criador. Corrobora-se a isto a assistência
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de instrumentos simbólicos paralelos como a palavra autorizada, que é a Bíblia, e o espaço
autorizado, que é o templo, como já se referia Bourdieu. Identifico aqui uma ilusão de
reversibilidade do discurso, onde a troca discursiva se dá apenas de modo aparente. Além da
ilusão de reversibilidade percebo baixo grau de “polissemia líquida” na estrutura religiosa, já
que o fiel-consumidor é aquele que acata a voz autorizada e seus símbolos. Assim, na estrutura
de seus ensinamentos o “discurso doutrinário-religioso” tende à monossemia e ao autoritarismo.
As tradições e ritos também são muito semelhantes aos das outras instituições protestantes,
e a respeito disso vemos em Frank Viola23 que
o cristão que freqüenta a igreja moderna observa a mesma superficialidade litúrgica cada vez que
vai à igreja. Não importa qual denominação protestante ele pertença — seja batista, metodista,
reformada, presbiteriana, evangélica livre, igreja de Cristo, discípulos de Cristo, pentecostal,
carismática, ou não denominacional — o serviço (ou culto) da igreja nas manhãs de domingo é
virtualmente o mesmo em todas as igrejas protestantes. Mesmo entre as denominações chamadas
“vanguardistas” (como Vineyard e Calvary Chapel) as variantes são mínimas. Algumas igrejas utilizam
cânticos contemporâneos, outras usam hinos. Em algumas igrejas a congregação levanta as mãos.
Em outras as mãos nunca se elevam além da cintura (...) Desconsidere detalhes superficiais que
distinguem os cultos e você encontrará a mesma prescrição litúrgica (VIOLA, 2005, p.13).
Para Dantas, no culto da Bola de Neve Church há determinados temas recorrentes, que
se associam ao amoldamento do desejo do corpo, como o da santidade, entendido nestes
lugares especialmente como a abstinência sexual. Esta autora exemplifica, através de um
testemunho dado por um membro da Bola de Neve Church em seu dia de noivado:
a parte do culto mais festejada é o noivado. Os namorados noivam na igreja diante do público. A
cerimônia é dirigida pelo pastor, que a considera extremamente importante, pois o projeto afetivo
da Bola de Neve é a união conjugal. Em quase todos os cultos, esse ritual se repete. Primeiramente,
os noivos são convidados a fazer uma declaração de amor. A platéia fica emocionada e sente-se
contagiada pelo clima da relação amorosa. De modo geral, a declaração que os noivos fazem um ao
outro, na realidade, dirige-se a Deus. É uma confissão de amor e um momento de agradecimento a
Deus. O casal acredita que só está
junto porque o “Senhor” assim o quis. Ele providenciou essa união. “Deus preparou você para mim.
Você é melhor do que eu imaginava. Deus sempre nos dá o melhor. Eu esperei oito anos, mas Deus
me abençoou. (...) Daqui a um mês, nós estaremos subindo ao altar de Deus... com muita luta,
porque somos carne, mas subiremos em santidade em nome de Jesus” (Dantas, 2006, p. 118).
Segundo Dantas, após esta confissão publica de intenções o pastor prosseguiria o ritual,
orando pelas alianças e os abençoando, tal qual ocorre na maior parte das instituições religiosas
protestantes. Em seguida, a sensibilização da platéia é potencializada com o anúncio das
obras assistenciais da igreja, e o rito tradicional se corrobora com o pedido de dízimos e
ofertas para a igreja, o que é prontamente atendido por grande parte dos fieis. Assim, vejo
que os ritos e tradições são constantemente chamados para dentro deste seio eclesiástico,
criando uma esfera de monossemia litúrgica (apesar da aparência polissêmica). Dantas
corrobora esta tendência à monossemia:
há limites para a flexibilização doutrinária do corpo clerical. O casamento continua sendo a união mais
valorizada no contexto religioso, pois sacraliza o prazer, proibido em outros tipos de relação. Privilegiase, pois, os casados, protegidos de cometer graves pecados sexuais (Dantas, 2006, p. 108).
E complementa, dizendo que
à imagem de igreja espontânea e pouco tradicional, opõe-se a rigidez dos códigos morais e das
regras de conduta sexual. A igreja assume uma postura conservadora quando o assunto é sexualidade.
O discurso eclesiástico que normatiza e regula a vida sexual e afetiva dos fiéis é transparente,
direto e assertivo. O sistema de regulamentação da atividade sexual encontra-se claramente definido
e é transmitido ao público jovem através de uma linguagem informal e divertida, porém incisiva. A
igreja demonstra demasiado interesse pelo comportamento sexual e ritualiza o controle da
sexualidade, colocando-a no centro da sua atenção (Dantas, 2006, p. 141).
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A construção da imagem do corpo como espaço representativo e adaptado à igreja se
dá através da interdição dos desejos dos fieis. Segundo Dantas, conjuntos de regras foram
elaborados para definir o que é consentido e o que é interditado no âmbito da experiência
sexual:
no caso do pentecostalismo, a experiência sexual só é considerada legítima quando se encontra
circunscrita à esfera da vida conjugal. Embora não se restrinja apenas à procriação, a erotização da
atividade sexual não é permitida. O prazer deve ser evitado,
protegido por pudores e prescrições morais. O neopentecostalismo, no entanto, mostra-se menos
legalista e conservador, quando o tema é a sexualidade. Valoriza a prática sexual, associando-a
diretamente ao prazer. Os desejos sexuais não são mais concebidos como pecados em si mesmos.
Localizados no matrimônio, não são apenas autorizados, mas também estimulados (Dantas, 2006,
p. 107).
Questões como o celibato são horizontalizadas em direção ao controle do espaço íntimo
do fiel, ou seja, o seu corpo:
o casamento, que surgiu para proteger o sexo da promiscuidade, agora é protegido pela prática
sexual da ameaça de ruptura. Não obstante a liberalidade dos neopentecostais, a vivência sexual
continua restrita ao casamento monogâmico e heterossexual. Os solteiros devem abster-se do ato
sexual, esperando o momento oportuno – o matrimônio – para iniciar sua vida sexual (Dantas, 2006,
p. 108).
Dantas ainda exemplifica, comentando que a Bola de Neve Church
preconiza o casamento monogâmico e heterossexual, valoriza a virgindade pré-nupcial,
repudia as relações extraconjugais e condena a homossexualidade. Enquanto a maioria das
congregações demonstra preocupação com a vida conjugal dos fiéis, a Igreja Bola de Neve dedica-se
à sexualidade dos solteiros, regulamentando-a e disciplinando-a. Na área sexual, apesar do sistema
doutrinário da igreja ter se flexibilizado, prevalece a tradição cristã de controle das práticas sexuais.
A moral da igreja surfista mostra-se conservadora. Em meio à liberalização dos costumes, da imagem
dos fiéis e dos estilos musicais, sobrevive e se fortalece o conservadorismo sexual (Dantas, 2006,
p. 108).
O depoimento de um frequentador impedido pelo pastor Rinaldo de se tornar líder de
célula24 por ter tido um envolvimento físico com outra fiel, dá também um bom exemplo de
tipos de condutas rejeitadas pela igreja. Para Dantas, a punição teria reforçado o processo
de internalização do controle externo e intensificado a auto-censura:
Marcos: Foi assim, na hora rolou, a gente ficou e depois eu nunca mais vi ela. A gente parou de se
falar. Aí, passou um tempo e chegou até a boca da Sara, que a líder da minha célula. Eu estava meio
que com medo de falar, de ela chegar e falar assim: “Manda. Corta. Tira ele do curso de líder”. Eu
fiquei meio que com medo, mas tem uma palavra que até fala que não há nada que está encoberto
que não há de ser revelado. Eu cheguei e fui até... Ela veio falar comigo e eu disse: “Olha, Sara, é
verdade. Foi um momento de fraqueza. Não justifica, entendeu?”. [Ela veio falar de que forma?] Ela
veio falar e me perguntou: “Aconteceu isso mesmo?”. Eu falei: “Aconteceu”. Ela disse: “Então, a
gente vai falar com o pastor”. Aí, eu fui falar com o pastor, logo depois de meses, depois de uns
dois, três meses. (...) Naquele dia, eu cheguei e falei com ele: “É isso, isso e isso”. Aí, ele disse:
“Por essa atitude sua, você mostrou que ainda não está preparado. Agora, você vai aguardar e,
pelos seus frutos, eu vou te conhecer”. Ah, tudo bem, né? Na hora, é uma coisa que dói muito porque
é um sonho que você tem, é uma coisa que você quer, você quer ministrar, você quer pregar, você
quer ter esse... E acabou não acontecendo ainda. (...) Agora, a gente está nessa espera. Na hora
que Deus sinalizar para ela que eu estou preparado... Eu estou buscando isso. [Quem vai indicar é
ela?] É. Quem vai indicar é ela. O pastor até falou no dia: “Agora, você pede para a Sara vir falar
comigo” (Dantas, 2006, p. 145).
O comentário feito na pesquisa de Dantas também complementa a idéia de interdição:
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Rebeca: Mas eu vejo que no Bola, apesar de ter... Como é um pessoal muito jovem, eles têm regras
mais rígidas até que em outras igrejas. Então, apesar de ser um público jovem, um pessoal mais
assim, eles seguem as doutrinas, têm as regras.
Ester: É um direcionamento da própria igreja. É a visão. Por quê? Nós estamos numa igreja onde
tem muitos jovens. E você sabe que os jovens, no mundo, eles ficam. Agora, você imagina na
igreja, se o Rina não tiver uma postura de ensinar, de orientar, o que acontece? Vai ficar um oba-oba
que ninguém vai segurar, porque se sabe que no Bola de Neve as mulheres são bonitas, os homens
são bonitos (...)No Bola, além de você orar com a pessoa um tempo, você vai ter essa parte de você
depois também ter que ir lá pedir para o pastor abençoar a gente. Então, é um direcionamento
muito importante que eu vejo. Na Renascer, não era assim (Dantas, 2006, p. 143).
É relevante salientar que o controle regulador exercido pelos líderes da Bola de Neve
Church através de seu discurso doutrinário, é entendido com clareza por este conjunto de
fieis entrevistados por Dantas, mas identificado como algo positivo e desejável. Entretanto,
como salienta Dantas,
ocorre um longo e contínuo processo de internalização da censura, que parece voluntário e natural.
A obediência imposta e exigida é tida como comportamento deliberado. Como salientou Weber
(2004), as técnicas de interiorização da interdição foram tão aprimoradas pelo protestantismo e
ficaram tão refinadas que reforçam o poder e a eficácia do imperativo moral (Dantas, 2006, p. 145).
Entendo assim, que há um choque discursivo na construção do corpo como imagem
representativa da igreja , uma contradição em relação aos meios como se opera a construção
do corpo como espaço religioso nesta igreja. Se por um lado, como demonstrei, há um
discurso doutrinal (que tende à monossemia) que se pauta pela interdição do desejo sexual,
por outro, há um discurso estético, polissêmico, que liberaliza os costumes e estimula a
valorização do corpo. Isso é, em alguma medida, corroborado em Dantas:
a flexibilização dos costumes é notável nos grupos neopentecostais. Transformações nos rituais
religiosos, nas formas de pregação, na linguagem empregada e na aparência dos fiéis redefinem os
novos movimentos pentecostais. Entretanto, apesar do liberalismo estético e musical, as igrejas
preservam e reproduzem orientações doutrinárias de caráter moralista e conservador, como a proibição
ao consumo de bebidas alcoólicas, ao uso do tabaco, à freqüência a bares e boates, à participação
no carnaval, ao homossexualismo e ao sexo pré-nupcial. Especialmente quando o assunto é
sexualidade, as denominações neopentecostais avançaram pouco. Mantiveram códigos anacrônicos
para regular a vida sexual e fizeram algumas concessões a fim de garantir o cumprimento do sistema
normativo (Dantas, 2006, p. 106).
Ainda sobre esta contradição discursiva da Bola de Neve Church, Dantas comenta que
há uma tensão, pois, entre a tradição e a novidade, a manutenção e a inovação. A linguagem
inovadora veicula a mensagem convencional. Os sistemas de comunicação modernos anunciam códigos
de conduta tradicionais, há muito conhecidos dos ambientes eclesiásticos. A flexibilidade das formas
discursivas opõe-se à rigidez das normais sexuais. A conservação das leis morais acompanha a
construção de novas redes comunicativas. O sistema normativo, há muito tempo estabelecido,
convive paradoxalmente com renovações nas cadeias de interação e nos mecanismos de comunicação
(Dantas, 2006, p. 146).
Também José Rubens Jardilino25 (1997) afirma que
apesar das mudanças na configuração da linguagem, o conteúdo moral e dogmático das igrejas
neopentecostais permanece praticamente inalterado. “Isso pode ser um ‘remendo novo em roupa velha’,
pois, no que pese sua adequação às técnicas de comunicação de massa, o conteúdo central dessas
crenças ainda parece domesticado pelos dogmas da tradição religiosa” (Jardilino, 1997: 190).
Identifico por fim que, na Bola de Neve Church, há um esforço de se criar laços de
identificação ao fiel através de um discurso estético fluido e polissêmico, cuja linguagem é
adaptada à contemporaneidade, bem como os usos e costumes relativos ao corpo. O corpo do
fiel é erigido como espaço de polissemia e fluidez, portanto.
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Em movimento aparentemente contraditório, percebo a reverberação de ritos, tradições
e convenções típicas do protestantismo, identificando a afluência de uma doutrina rígida e
que tende à monossemia da linguagem. O corpo, aqui entendido pelos anseios e desejos que
o fiel tem sobre o mesmo, tem em sua construção como espaço social e religioso o recebimento
de uma série de mecanismos que visam ao seu controle.
Estabelecem-se jogos de poder que variam da plasticidade estética à rigidez doutrinária,
onde a igreja procura instalar um regime de censura da sexualidade e dos desejos, ao mesmo
tempo em que promove a liberalização da sensualidade através da estética e culto ao corpo e
ao belo. Os fiéis vivem em movimento aparentemente paradoxal, onde se vestem de modo
despojado e atraente, e miram corpos também despojados e atraentes.
Mas avento uma última hipótese, a de que, parte destes jovens, postos frente à
dissonância do desejo sexual e do controle do corpo, venham a desenvolver, ao melhor estilo
certeauniano,26 táticas de emancipação do controle promovido pelo sistema religioso. Mas
isto fica para uma próxima discussão.
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Notas
1
“Bola de Neve é porque eu sabia que seria uma coisa que cresceria. Church porque era como os primeiros
freqüentadores, esportistas que costumam usar muitas palavras em inglês, chamavam carinhosamente o
templo. Acabei incorporando”. Entrevista de Rinaldo Seixas, fundador desta igreja à revista Veja. Referência:
PEREIRA, Camila e LINHARES, Juliana. O pastor é show – os novos pastores. Revista Veja. São Paulo, ed.
1964, ano 39, n. 27, p.76-85, 12 jul. 2006.
DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Sexualidade e neopentecostalismo: representações de jovens da
igreja evangélica Bola de Neve. Dissertação em Psicologia Social apresentada à Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. Orientação do Prof. Dr. Salvador Sandoval.
2
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições
Loyola, 1999.
3
Curiosamente, assim como ocorreu com a Renascer em Cristo, esses novos ministérios perceberiam em
seu bojo evasão semelhante de fiéis e líderes, que procuram abrir suas próprias igrejas, o que identificaria
a sua fluidez doutrinária e a lucratividade desses empreendimentos. A característica mais marcante dessa
“igreja eletrônica” é justamente a adaptação às novas linguagens tecnológicas contemporâneas, como a
mídia eletrônica e a mídia cibernética, associadas ao uso de técnicas de marketing empresarial, como
planejamento estatístico e análise de resultados.
4
5
Endereço do sítio eletrônico da Bola de Neve Church: www.boladenevechurch.com.br.
6
Dados obtidos da Revista Época, de 28 de julho de 2003.
Entrevista realizada com o pastor Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, publicada pelo Jornal Último Segundo,
em 2002.
7
8
BOURDIEU, Pierre. Economia das Trocas Lingüísticas (o que falar quer dizer). São Paulo: EDUSP, 1996.
Conforme cita Zygmunt Bauman, mas entendida por outros autores como “modernidade tardia”, “pósmodernidade”, “supermodernidade”e outros epítetos.
9
Assim chamei por perceber no ethos religioso dos participantes de cultos evangélicos a característica de
consumidor de produtos e bens tangíveis e intangíveis oferecidos por estes novos templos religiosos
10
11
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Na “reversibilidade do discurso” explicada por Orlandi, um portador do discurso existe através do outro,
“um se define pelo outro”. A polissemia do discurso se opera de modo dialógico.
12
13
PAEGLE, Eduardo. A Religião fast-food. Caderno de Cultura. Diário Catarinense. Florianópolis: 02 fev.
2008.
Polissemia seria os diferentes sentidos que se embutem nas palavras, relatos, discursos. O discurso
polissêmico é aqui entendido como aquele em que há fluidez discursiva entre os agentes discursivos. Se
caracteriza pela democratização da voz. Ao contrário, no discurso monossêmico haveria uma interdição de
uma voz pela outra, a dominante.
14
ORLANDI, Eny Pulcinelli. O Discurso Religioso. In: A Linguagem e seu Funcionamento. As Formas do
Discurso. Campinas, SP: Pontes, 1987.
15
Para Stephanè Malysse, corpolatria seria a constante perseguição a um padrão corporal ideal, incorporando
as “imagens-norma” e se “condenando à aparência” (Malysse, 2002, 70). Seria uma espécie de idolatria
ao corpo, típica da sociedade do tempo presente. Culto ao corpo.
16
MALYSSE, Stéphane. Um ensaio de Antropologia Visual do Corpo ou Como pensar em imagens o corpo
visto? In: LYRA, Bernadette e GARCIA, Wilson. Corpo e imagem. São Paulo: Arte e Ciência, 2002.
17
18
Bem como outras, também identificadas à juventude e ao “alternativo”, como a moda hip hop, a moda
fitness (ou estilo academia), e a moda shopping (ou os que se arrumam como se fossem ao shopping ou à
balada).
Para um pouco além, outras modas são estimuladas, do visual de rappers, de skatistas, de patricinhas,
de praticantes de fisiculturismo, e eventualmente de modas um pouco mais “alienígenas”, como a de
roqueiros e hippies. Entretanto, estas modas todas se coadunam numa tipologia do que seria ser jovem e
alternativo à sociedade, do mostrar-se diferente, “cool”, legal.
19
Segundo Peter Burke, historiadores da História Cultural, que tratam da questão das identidades
multiculturais e transitórias tem aprofundando seus estudos sobre a questão do “Outro”, tanto como
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reflexo, extensão, possibilidade do próprio eu. Este outro pode ser abordado de forma grotesca, exótica,
monstruosa, negada, silenciada ou amaldiçoada. É patente a oposição cultural entre o belo e o mal, o
sagrado e o profano. Assim, o estereótipo pode tanto servir para produzir novos olhares sobre a cultura,
uma cultura da diferença, ou para produzir o olhar monstruoso sobre uma cultura, classe, religião. BURKE,
Peter. Testemunha ocular : História e imagem. Bauru: EDUSC, 2004.
Entendo aqui a ascese no seu sentido ocidentalizado, associado à idéia de mortificação da carne e
renúncia do mundo e dos prazeres proporcionados por este, especialmente os ligados ao prazer sexual
21
22
Expressão também utilizada por Pierre Bourdieu na obra supracitada.
VIOLA, Frank. Cristianismo Pagão. A origem das práticas de nossa Igreja Moderna. US: Present Testimony
Ministry, 2005.
23
Célula é o órgão da igreja que serve para ratificar e dar continuidade ao processo doutrinário, são
reuniões feitas em determinadas casas de fieis onde um líder, após ter feito o curso de lideres correspondente,
procura verticalizar as discussões feitas na pregação do domingo anterior.
24
JARDILINO, José R. L. Religião e Pós-modernidade: as recentes alterações do campo religioso brasileiro.
Tese de doutoramento. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997.
25
Michel de Certeau, em A Invenção do Cotidiano (1994) conceitua estas táticas. Seriam maneiras
relativamente ágeis e flexíveis de se infiltrar em meio às estratégias de dominação do sistema, para fazer
valer seus anseios e aspirações. Não faz nenhuma tentativa de enfrentar a estratégia de frente, mas tenta
preencher suas necessidades enquanto se esconde atrás de uma aparência de conformidade. CERTEAU,
Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
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Eduardo Meinberg de Albuquerque MARANHÃO FO.