APRESENTAÇÃO DE JÜRGEN HABERMAS Fundação Calouste Gulbenkian Lisboa, 28 de Outubro de 2013 José Joaquim Gomes Canotilho 1 1. Proibição de ler e escrever São transcorridos três anos desde a data em que recebi uma carta do Professor Jürgen Habermas, pedindo desculpa pela situação delicada criada pela sua não presença no Colóquio “Da virtude e fortuna da República ao republicanismo pós-nacional” (30 de Setembro de 2010), inserido no Programa Nacional de Comemoração do Centenário da República Portuguesa. Registemos que o Presidente da Comissão Nacional para esta comemoração era o Doutor Artur Santos Silva, agora Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. Os motivos da ausência do Professor Jürgen Habermas eram incontornáveis: “os médicos proibiram-no de ler e de escrever”. Trata-se, pois de uma feliz coincidência ver entre nós, vivo e redivivo, o cidadão do mundo Jürgen Habermas. No plano pessoal, é para mim uma honra poder apresentar nesta casa de cultura um dos mais notáveis pensadores de nossa contemporaneidade. Permitir-me-ei silenciar as perguntas e respostas protocolares destas apresentações. Quem é? Donde vem? Para quê? Seguirei alguns passos do cidadão defensor da aprendizagem comunicativa, democrática e cosmopolita através da discussão. 2 2. Apresentação que não é apresentação Uma apresentação protocolar corre o risco de se transformar numa ladainha irritantemente formal sobre a envergadura cívica, intelectual e científica de Habermas. Ele próprio se define como um “kantiano pragmatista”, inserido numa tradição cultural que vai do romantismo alemão até às irradiações dialécticas do jovem Marx (Wahrheit und Rechtfertigung. Philosophische Aufsätze, Frankfurt/M, 1997). Não poderemos deixar de relevar que Jürgen Habermas faz parte de um clube, - o “clube dos cinco” – que incorpora os maiores filósofos do novo milénio: P. Ricoeur, E. Lavinas, J. Derrida, K.O. Apel (assim, R. Lellouch, na introdução à tradução de Karl Otto Apel: Sur le problème d’une fondation rationnelle de l’éthique à l’age de la science: l’apriori de la communauté communicationnelle et les fondements de l’éthique, Paris, 1987). Mas não só: a sua obra seminal, A Transformação Estrutural da Esfera Pública, demonstrou o brilhantismo do sociólogo, e o trabalho Facticidade e Validade veio confirmá-lo como um dos mais inteligentes cultores da teoria do direito e da democracia. Será também tópico de apresentação obrigatória a dimensão dialogicamente aberta de Jürgen Habermas. Tão aberta que levou um dos seus parceiros de diálogo, precisamente K. Otto Apel, a sugerir que, nos confrontos discursivos, seria aconselhável, por vezes, “pensar com Habermas contra Habermas”. De forma encomiástica ou de uma forma acerbamente crítica, fala-se do “efeito Habermas”. 3 Curiosamente, este “efeito” é hoje visível num campo problemático – o do direito – em que Jürgen Habermas se considera um simples “profano”. Mas como é possível um “não jurista” vir em socorro dos juristas para reconhecer a função eminente do direito na constituição e vida das sociedades? O que fascina é a proposta de reconstrução da racionalidade jurídica no mundo prático dos humanos rebelde à verticalidade do mundo misterioso das formas. Um pensamento pósmetafísico descobre o direito para ancorar o eixo de angústias discursivas que há muito se alojavam na problematização do agir comunicativo. O tema é o da indissociabilidade de democracia e direito. Democracia sem direito e direito sem democracia não cabem na República. Chegamos assim ao caminho de Jürgen Habermas – a reabilitação da razão prática. Contra as reduções epistemológicas típicas dos positivismos, mas também contra os cepticismos da razão agitados por críticos culturais pós-modernos, Jürgen Habermas prossegue o discurso radicado na razão pós-analítica para, nesta medida, manter vivo o projecto da modernidade. É isso que o leva a interrogar discursiva e racionalmente a “verdade”, a “validade”, a “correcção”, a “universalidade”, no campo das condutas e comportamentos humanos e a combater ou denunciar as perspectivas emotivistas, instrumentalistas e estratégicas. Reabilitar a razão prática significa convocar todo o pensamento ocidental, a começar pela razão prática de Kant. Somente na autonomia – pessoal e política – se unifica a razão e a vontade. 4 3. O porquê de um convite: o pensador preocupado com os momentos espirituais da “República”, das “Repúblicas supranacionais” e da “República Mundial” 1.Nação e República nos finais da década de 70 do séc. XX Hoje, como ontem, estamos preocupados com a situação espiritual da nossa república. Em 1978, Jürgen Habermas convidou escritores e cientistas que, naquela época, pertenciam à geração dos quarenta e cinquenta anos a elaborarem trabalhos destinados a incluir no livro 1000 da editora Surhkamp de Frankfurt/M. O livro veio à publicidade crítica em dois volumes, com o título geral de “situação espiritual da época”. No primeiro volume, intitulado “Nação e República” (Nation und Republik) discutiram-se temas intensamente políticos como a “questão nacional”, “mentalidade e mentalidades”, “Jaspers”, “pessimismo cultural”, “neo-corporativismo”, “crítica e crise”, “terrorismo”, “ingovernabilidade”, “ordem constitucional”, “sociedade de massas”, “economia política”, “liberalismo utópico”, “socialismo real”, “china”. O volume segundo, subordinado ao tema geral “política e cultura” (Politik und Kultur), é dedicado à problematização de temas como “Estado e movimentos alternativos”, “desigualdades”, “consumismo”, “educação, cultura e contracultura”, “existência e mundo da vida”, “ciências culturais”. O título da obra deixava entrever que se procurava ter em conta, para dele divergir radicalmente o trabalho de Jaspers, em 1932, “Situação Espiritual do Tempo” (Die geistige Situation der Zeit). A perspectiva 5 e retrospectiva sobre a situação espiritual deveria, desde logo, ser plural quanto aos autores e diversificada quanto aos temas. Na carta dirigida aos participantes recordava Habermas os autores que, a partir dos começos da década de sessenta, permitiram o desenvolvimento da colecção: Adorno, Beckett, Benjamim, Bloch, Brecht, Eizensberger, Irisch, Grass, Hesse, Szondi, Walser, Wriss, Wittgenstein. Seguem-se: Abendroth, Barthes, Chomsky, Foucault, Hobsbawn, Kirchheimer, Laing, Levi-Strauss, Marcuse, Mischerlich, B. Moore, Sohn-Rethel, Sweezy. Hoje, muitos destes nomes são considerados mortos. Outros estão esquecidos. Outros semearam ideias vivas. Habermas realça esta ideia: todos eles representam com pregnância a evolução cultural do pós-guerra sobre temas de explosiva densidade estética e política como humanismo, ilustração, pensamento radical, vanguarda cultural. Nos finais da década de setenta, procurava-se uma resposta não trivial aos desassossegos da contemporaneidade. Críticos, escritores, artistas, cientistas sociais e filósofos, apresentaram livremente e por escrito suas ideias. De qualquer modo, a escolha não foi arbitrária, pois os convidados deveriam reunir três requisitos: ter formado a sua identidade depois da guerra, ter exercido alguma influência na evolução da República Federal da Alemanha, incluir-se nas tradições contra as quais se instaurou o regime nazi. O desafio aos intelectuais era claro. Não se pretendia o oráculo de um mandarim da cultura, com o linguajar típico do pessimismo e da crítica cultural burguesa. Muito menos, o Pathos subjectivo de um “Mestre da Nação”. A inquietação espiritual não se tornou obsoleta. Exige, sim, ideias para hoje. Queremos ter uma outra República? Então deveremos preocupar-nos em ter mesmo essa outra República. As obras mais recentes de Jürgen 6 Habermas permitem actualizar os desassossegos espirituais do nosso tempo. Queremos uma democracia? Queremos uma Europa solidária? Queremos um mundo dotado de uma Constituição mundial civilizada? Então deveremos trazer para a esfera pública todas as discussões pragmáticas, todas as discussões ético-políticas, todas as discussões morais indispensáveis a uma comunicação cidadã, ela própria geradora de solidariedade-cidadã. Os tópicos problemáticos não são politicamente menos densos do que os da década de setenta do século passado: “globalismo”, “mercados financeiros”, “europa”, “austeridade”, “guerras inventadas”, “crise do estado social”, “democracia em conformidade com o mercado”, “liberalismo eugénico”, “constelações pós-nacionais”, “constituição para a sociedade mundo”. 7 4. A esfera pública A Fundação Calouste Gulbenkian publicou recentemente, em português, uma das obras fundamentais de Jürgen Habermas. Referimo-nos ao livro Transformação Estrutural da Esfera Pública (Lisboa, 2012). Através deste livro, permitir-me-ia dizer que conheço Jürgen Habermas há mais de quarenta e seis anos. Com efeito, as “palavras raciocinantes” de “esfera pública burguesa”, “esfera pública de representação”, “privacidade referida ao público”, “esfera pública literária”, “esfera de autonomia privada”, “estado de direito burguês”, “opinião pública”, “público que raciocina sobre cultura” e “público que consome cultura”, “publicidade produzida”, “opinião não pública”, entraram no restrito círculo académico através da obra do meu antecessor na cadeira do direito constitucional. Poderá talvez afirmar-se que o Direito Público e Sociedade Técnica de Rogério Soares (Coimbra, 1967) apresentou, ainda na década de 60, embora de forma indirecta, os traços fundamentais de um best seller mundial. O Prefácio escrito para a reedição da obra de 1990 (que poderá ler-se na tradução portuguesa) antecipou muitos dos desenvolvimentos posteriores sobre a alteração do quadro teórico – teoria da democracia, teoria do direito, teoria da justiça, teoria do discurso – a que nos referiremos nas considerações subsequentes. Registaremos também a dedicatória: “dedicado a Wolfgang Abendroth, em sinal da minha gratidão”. Acontece que W. Abendroth foi também o meu “Maître penseur” quando, nos já longínquos anos de 1980-1983 desenvolvi em Freiburg im Breisgau as pesquisas destinadas à elaboração de minha 8 Habilitationschrift sobre a “Constituição Dirigente e Vinculação do legislador”. Isso significa que, também por este lado, afivele uma comoção intelectual contida. Já nessa altura, contra os defensores do conservadorismo do Estado de Direito que expulsavam a dimensão social da constituição para a alojarem no seio do estado administrativo, Abendroth, aplaudido por Habermas, entendia o princípio do estado social como uma “máxima hermenêutica prioritária para a interpretação da Constituição e como uma máxima de definição de política para o legislador. No fundo – as palavras são de Habermas a “ideia de Estado Social destinava-se a servir de alavanca a um reformismo democrático radical que, no mínimo, deixava em aberto a perspectiva de transição para o socialismo democrático”. Vislumbra-se o rasto de uma “fascinante programática” posteriormente irradiante para a Constituição portuguesa de 1976. Não custa aceitar que a visão mais holística e dirigente deste pensamento hegeliano-marxista carece, hoje, de uma profunda revisão, tendo em conta a “diferenciação funcional da sociedade moderna” e a experiência falhada do socialismo de Estado. J*urgen Habermas assinala o seu afastamento progressivo desta narrativa políticodiscursiva. Ficou sepultada a utopia da justiça social? 9 5. Ninguém persegue por gosto uma utopia “Ninguém persegue por gosto uma utopia…”. Esta confissão de Jürgen Habermas aparece escrita num texto com o título inquietante “Aprender com as catástrofes? Um diagnóstico retrospectivo do curto século XX – inserido no livro Die postnationale Konstellation (Frankfurt/M., 1998). Jürgen Habermas não disse apenas que “ninguém persegue por gosto uma utopia…”. Acrescentou mais alguma coisa: “ninguém persegue por gosto uma utopia, sobretudo, hoje, quando as energias utópicas parecem ter-se esgotado definitivamente”. O esgotamento de energias utópicas tende a ser mesmo um tópico obsessivo da discursividade habermasiana dos últimos vinte e cinco anos. No livro Die Neue Unübersichtlichkeit. Klein politische Schriften (Frankfurt//M., 1985), havia já procurado abordar critico-racionalmente a “nova opacidade” a propósito da crise do Estado Social (cfr. “Die Krise des Wolfahrtsstaates und die Erschöpfung utopischer Energien”, republicado em Zeitdiagnosen Zwölf Essays, Frankfurt/M., 2001, p. 27-50). Não é este o lugar apropriado para discutir o fim das utopias, mas talvez seja importante registar a lucidez das análises de Jürgen Habermas sobre o fim do compromisso do Estado Social. A diagnose temporal é esta: “o fim do século apresenta sinais de uma ameaça estrutural para o capitalismo domesticado pelo Estado Social com a revitalização de um neoliberalismo sem preocupações sociais”. É a constatação da “quadratura do círculo” (formulação linguística que Jürgen Habermas foi confessadamente recolher em R. Dahrendorf) – “políticas de 10 adelgaçamento do Estado que prejudicam a coesão social e submetem a uma dura prova a estabilidade democrática da sociedade” – que conduz Jürgen Habermas a olhar “para além do Estado Nacional”. A ideia de “constelação pós-nacional” leva-o a estudar longamente os pressupostos da economia globalizada, a miragem do “keynesianismo num só país”, o “fim da sociedade do pleno emprego”, a “não regulação dos mercados”, a justificação funcionalista do neoliberalismo e os projectos de “federalismo europeu”. Estas matrizes pós-nacionais não podem nem devem ser apenas comunidades epistémicamente económicas. Por isso, Jürgen Habermas coloca uma questão crucial: (i) como é possível uma legitimação democrática das decisões para lá da organização estatal; (ii) sob que condições pode transformar-se a autocompreensão de actores capazes de acção global, de forma a que os Estados e os sistemas supranacionais se entendam cada vez mais como membros de uma comunidade que não têm outra alternativa senão tomar em consideração os seus interesses recíprocos e a defesa dos interesses gerais?” Interesses gerais? Tanto na tradição republicana como na tradição liberal a participação dos cidadãos era entendida num sentido essencialmente voluntarista. possibilidades, todos devem Todos indicar devem ter as efectivamente mesmas as suas preferências, todos podem expressar vinculantemente a sua vontade política quer para a prossecução dos interesses próprios quer com vista ao resultado do desfrute da sua autonomia política. Habermas acrescentará: a função epistémica da formação democrática da vontade transporta também a dimensão Kantiana do uso público da razão. A acrescentaria ainda: só as exigências procedimentais dos 11 processos de comunicação e decisão sob a óptica da teoria do discurso permitirão desconstruir as condições de legitimidade democrática. Estes últimos anos da crise parecem pôr em causa a energia utópica (apesar de tudo “energia utópica”) e da sua razão discursiva pósnacional. Mas perguntamos: será possível falar de um republicanismo pós-nacional inclusivamente social? O artigo de Heike Brunkhorst – “Globale Solidarität. Inklusionsprobleme der modernen Gesellschäft” – inserido no livro que foi editado em sua homenagem (L. Wingert/K. Günter, Die Öffentlichkeit der Vernunft und die Vernunft der Öffentlichkeit, Frnkfurt/M., 2001, p. 605-627) parece dar a ideia de que, afinal, têm razão os republicanos franceses e os estudiosos italianos do republicanismo como Viroli e Rusconi. Haverá solidariedade republicana com os outros no mundo de outros? 12 6. Da normalidade da República à inclusão dos outros na República A partir de meados da década de noventa, a teoria do Republicanismo e os momentos da vida da República nunca mais deixaram de preocupar Jürgen Habermas. Em 1995, numa obra sugestivamente intitulada “A Normalidade de uma República de Berlim” (Die Normalität einer Berliner Republik) discorre sobre a “demasiada normalidade” de uma República que passou de Bonn para Berlim, reagrupando a família alemã, mas dissimulando alguns fantasmas que Jürgen Habermas, denunciou de forma clara e frontal. Alguns anos depois – numa outra obra – “A Inclusão do Outro” (Die Einbeziehung des Anderen Studien zur Politischen Theorie, 1999) – aborda o tema do republicanismo no contexto da teorização dos modelos normativos da democracia. Como os estudiosos das propostas científicas de Habermas têm salientado, não está ainda totalmente elaborada uma teoria do discurso republicano. É possível falar de um republicanismo de um povo de diabos? Esta pergunta é para levar a sério. Peter Niessen no livro de homenagem a Jürgen Habermas (Lutz Wingert/Klaus Günther (org.), Die Öffentlichkeit der Vernunft und die Vernunft der Öffentlichkeit, Frankfurt/M., 2001), aproveita o conceito de “republicanismo Kantiano” avançado por Jürgen Habermas para aprofundar o tópico: “Republicanismo de um povo-de-diabos. A questão dos fundamentos morais da democracia liberal (Volk-vonTeufeln-Republikanismas. Zur Frage nach den moralischen Ressourcen der Liberalen Demokratie). 13 Se tivéssemos então de perguntar ao nosso convidado como conceber o “republicanismo de um povo de diabos” a resposta não poderia andar longe desta. Um povo de diabos cabe dentro da República se os princípios não forem muitos e densamente éticos (como sugere o republicanismo cívico) ou se não forem apenas precipitações de conflitos de interesses (como parece sugerir o republicanismo liberal). De uma coisa não temos dúvidas: a república cosmopolita captada pelo republicanismo discursivo de Habermas conduzirá sempre à ideia de soberania do povo, à juridicidade estatal, à democracia, a protecção de direitos e liberdades iguais e à inclusão do outro, a solidariedade e à justiça. Inclusão do outro que pode ser um Estado-membro da União europeia, enredado nas malhas da “dívida soberana” e da austeridade dessolidária e tragicamente injusta. Inclusão do outro que podem ser os imigrados internos e externos das “guerras sem declaração de guerra”. Inclusão dos outros, afogados ou quase a morrer nas praias de Lampedusa. 14 7. Facticidade e Validade: um tratado de direito constitucional Com a obra Facticidade e Validade dá um salto em frente, oferecendonos uma teoria do discurso do direito como uma teoria epistémica e radical da democracia. Michelman diz precisamente isto: “visão normativa forte de uma teoria epistémica da democracia”. De uma forma sintética, poderemos dizer que aproveita vários ensinamentos colhidos em obras anteriores: (1) a derivação teorético-comunicativa da função do direito; (2) articulação sociológica da razão comunicativa e da forma do direito; (3) o direito como meio de integração social. Mas avança para propostas inovadoras em termos de razão discursiva. Em primeiro lugar, ao arvorar o princípio da democracia como critério da legitimidade do direito, Jürgen Habermas recupera as sugestões dos cultores da democracia deliberativa para implantar a teoria do discurso como teoria do direito. Em segundo lugar, eleva a princípio do discurso o modelo processual de formação da vontade política. Em terceiro lugar, procede à institucionalização do processo discursivo “O direito constitucional é institucional desde o início”. Em quarto lugar, presta atenção ao princípio de originalidade (originariedade) dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, o que lhe permite articular a originariedade igual da soberania popular e dos direitos iguais. 15 8. As novas angústias discursivas – a paz perpétua Jürgen Habermas é um “angustiado da razão”. Melhor dizendo: as novas angústias discursivas conduzem-no sempre a um novo desafio da razão. Basta olhar para os seus escritos sobre a “ordem jurídica mundial” e a “constitucionalização das relações internacionais” para verificar que aqui se situa uma nova suspensão reflexiva sobre o projecto moderno da paz perpétua e os limites da liberdade comunicativa. Em sucessivos ensaios (“Kantsidee des ewigen Friedens aus dem historischen Abstand von 200 Jahren”, in Die Einbeziehung des Anderen, p. 192 – 236; “Hat die Konstituzionalisierung des Völkerrechts noch eine Chance”, in Der gespaltene Westen. Kleine Politische Schriften X, 2004, p. 113 – 193; “Wege aus der Weltunordnung. Ein interview mit Jürgen Habermas“, in Blätter für deutsche und internationale Politik, 49, 2004, p. 27 – 45; “Eine politische Verfassung für die pluralistische Weltgesellschaft”, in Zwischen Naturalismus und Religion, 2005, p. 324 – 365; Kommunikative Rationalität und grenzüberschreitende Politik: eine Replik”, in Wiesen/ Herborth (org.), Anarkie der Kommunikativen Freiheit Jürgen Habermas und die Theorie der internationalen Politik, 2007, p. 406 – 454) Jürgen Habermas não esconde a atractividade do ideal da paz perpétua: “A paz perpétua que o abade St. Pierre já invocara, é para Kant um ideal que deve conferir atractividade e força elucidativa à ideia de condição cosmopolita”. Diríamos que o esforço de razão cosmopolita obriga a uma nova etapa da teoria do discurso: o discurso cosmopolita. Este discurso não pode 16 deixar de ser um imperativo da ordem republicana. “A ordem republicana de um Estado Constitucional baseada nos direitos humanos exige não apenas uma imersão atenuada em relações internacionais”, mas também, no plano do direito interno, a ideia de constituição em consonância com o “direito natural do ser humano” de forma a que se possa, ela própria, considerar como uma “condição jurídica global que una os povos e elimine as guerras”. 17 9. Sempre na publicidade crítica – a humildade da razão e o discurso racional 1.Réplicas e críticas Estamos de novo perante uma situação espiritual caracterizada pela deriva de “des-sensibilização” crítica inevitavelmente conducente à normalidade da colonização do mundo da vida. Aqui e ali, mas com muita frequência, erguem-se as mãos do decisionismo. Aqui e ali, de forma mais ou menos explícita, recupera-se o institucionalismo dos “sujeitos inseguros”, propondo-se, em termos constitucionais, um novo direito geral à segurança. Os tetranetos de Hegel retomam as eticidades estatais, oferecendo-nos um neo-hegelianismo pósilustração, propício à radicalização de xenofobias profundas. Tudo isto Jürgen Habermas tem criticado mantendo-se sempre na publicidade crítica. Respondendo a algumas críticas às suas posições políticas, Jürgen Habermas confessa: “com certeza um acontecimento da história universal como o colapso do Império Soviético obriga qualquer um a repensar a sua posição política. Faz muito tempo, no entanto, que defendo o reformismo radical. Apesar de todas as mudanças de minha posição teórica, vinculo a teoria do discurso do direito com um sentido radicalmente democrático” (cfr. Die Einbeziehung des Anderen). Jürgen Habermas não é, nunca foi um dogmático. Reconhece as suas dívidas teóricas. Assim, no Apêndice à sua obra Facticidade e Validade, utiliza o seu direito de réplica para dizer coisas como as seguintes: “Não é fruto do acaso o facto de Frank Michelman estar 18 entre os três ou quatro escritores contemporâneos que citei com mais frequência. Foi dos seus trabalhos que aprendi sobre política deliberativa, e foi através dessa leitura que me vi encorajado a aplicar a concepção do discurso ao direito e à criação do direito – à “jurigenese”, como ele mesmo diria”. Na réplica sobre a “Neutralização de conflitos de valor” elogia Thomas MacCarthy de uma forma humildemente autocrítica: “Thomas McCarthy é um caso de sorte para mim: na maioria dos casos, tenho a impressão de que ele compreende os meus textos melhor de que eu próprio”. Ao referir-se às críticas sobre a lógica dos discursos jurídicos, especialmente a R. Alexy, escreve: “A tese de doutoramento de Alexy, por sua vez, encorajou-me a alargar também ao direito e ao Estado Constitucional a Teoria do discurso que desenvolvi para a moral”. 19 10. Novos Temas: religião e identidade genética Para Jürgen Habermas nada o que diz respeito aos problemas das pessoas e dos povos lhe é alheio. Não admira, por isso, que ele coloque a própria religião no espaço público da razão, arriscando mesmo, como dizem alguns, a colocar neste espaço público o elemento teológico de Jerusalém em frente à Atenas do logo. O livro Zwischen Naturalismus und Religion (2005) discute, precisamente, problemas da religião na publicidade, procurando definir os pressupostos cognitivos para a utilização racional pública por parte dos cidadãos religiosos e seculares. É a religião que está na base do seu notável trabalho sobre a constituição e a sociedade pluralista (“Eine Politische Verfassung für die pluralistische Weltgesellschaft”) e do seu diálogo com o Cardeal Ratzinger (O Papa Emérito, Bento XVI). Nesta nova ambiance cultural ousou escrever um novo livro sobre o “Futuro da Natureza Humana. A caminho de Eugenia Liberal” (Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik, Frankfurt/M., 2001). Existem aqui – diz-se – “abismos filosóficos” (cfr. Posfácio a esta obra) na discussão referente aos fundamentos naturais da autocompreensão de pessoas que agem responsavelmente. A “ida às compras ao supermercado da genética” coloca como, é óbvio, o princípio da defesa da identidade genética. As posições de Jürgen Habermas procuram ir ao fundo da questão. Questão que, como sempre, nos coloca perante as discussões da Verdade e da Justificação. 20 Nos ensaios filosóficos integrados no livro já referido “Entre Naturalismo e Religião” (Zwischen Naturalismus und Religion, Frankfurt/M, 2005) enfrenta de novo a situação espiritual do tempo analisando as duas ortodoxias: a ortodoxia naturalista com a sua biogenética, investigação do cérebro, robótica, e a ortodoxia religiosa fundamentalista com a revitalização e politicização das comunidades religiosas. De um lado, a autoobjectivização e autoinstrumentalização, ou seja, a naturalização fundamentalização religiosa do espírito. apostada Do em outro lado, combater a a autocompreensão pós-metafísica e religiosa dos modernos. A proposta discursiva de Jürgen Habermas aponta um caminho racional: a secularização do poder do Estado e a liberdade de exercício da religião positiva e negativa são duas faces da mesma medalha. Só a partir de um ethos cívico estaremos prontos para a autoreflexão necessariamente conducente à consciencialização (Vergewisserung) dos limites quer da fé e da religião quer da ciência. 21 11. Os últimos livros Pelas últimas obras de Jürgen Habermas (Zur Verfassung Europas. Ein Essay, Berlin, 2011; Im Sog der Technokratie, Berlin, 2013) verificamos que ele optou decisivamente pelas Tusculanas de Cícero contra as proibições excessivas dos médicos. Docto homini, vivere este cogitari (para o sábio, viver é pensar). No último livro Im Sog der Technokratie (em rigor, uma parte da obra) fala-se de “tecnocracia”, de “solidariedade”, dos “Depardieu” deste mundo. Invoca-se, também, a justiça e a sua conexão com a solidariedade. O exemplo dado por Jürgen Habermas toca-nos profundamente. Eis as palavras do nosso convidado: “Em Portugal, o Presidente Conservador Aníbal Cavaco Silva solicitou ao Tribunal Constitucional, no fim do ano de 2012 e começo de 2013, a fiscalização do Orçamento aprovado pelos seus amigos partidários porque considerava inaceitáveis, em nome da justiça política, os resultados sociais impostos pelos padrões políticos dos credores - especialmente os sacrifícios unilaterais de funcionários, empregados públicos, beneficiários da segurança social e pensionistas” (cf. Im Sog, p. 107). Ao adoptar este procedimento, o “Presidente deu expressão, em linguagem política, que exigem a introdução da solidariedade, por parte das elites nacionais e dos países credores, em todos os países que se defrontam com a crise”. 22 Em 2011 Jürgen Habermas retoma o caminho do desassossego europeu. Seja-me permitido repetir as palavras que escrevi no prefácio à edição portuguesa de Um Ensaio sobre a Constituição da Europa: “ A inquietação pela Europa obriga-o sempre a estar presente, arranjando forças para continuar o seu longo e brechtiano impulso de melhorar a Europa e o mundo 1 . Olha para os fragmentos e as transições que vão enchendo o “vale da morte” da política, sem que seja descortinável a “espada mágica” ou o “contrafeitiço” indispensáveis à magia da razão. A imagem de uma “Europa sem Europa” espicaça as suas inquietações. Outro remédio não tem senão o de utilizar os seus “meios para tentar eliminar os bloqueios conceptuais que continuam a existir em relação a uma transnacionalização da democracia, colocando a unificação europeia no contexto de longo prazo de uma jurisdição democrática e de uma civilização do poder estatal”. 2. O desassossego é próprio de um “utópico” de longo curso. Na entrevista que concedeu a Thomas Assheuer 2 revela a sua “maior inquietação”, o desassossego a cavar fundo na sua implantação cidadã traduz-se neste grito de alma: “A minha maior preocupação é a injustiça social, que brada aos céus, e que consiste no facto de os custos socializados do falhanço do sistema atingirem com maior dureza os grupos sociais mais vulneráveis”. A injustiça social paga-se, não com dólares, libras ou euros, mas com a “moeda forte da existência quotidiana”. Longe de ser uma precipitação transitória de sistema, a injustiça ameaça resvalar para um “destino punitivo” global. Toda esta tragédia humana – este “escândalo político”, este “darwinismo social”, este “programa de submissão desenfreada do mundo da vida aos imperativos do mercado” – é acompanhada de um 1 Jürgen Habermas saúda outro grande “Maître Penseur” da nossa contemporaneidade – Ronald Dworkin – aludindo ao “testemunho comovedor deste impulso brechtiano de melhorar o próprio país”. 2 Inserido no “Anexo: A Europa da República Federal da Alemanha” (p. 76 ss). 23 “enfado com a política” ao qual não é alheia a ascensão ao poder de uma “geração desarmada em termos normativos”, incapaz de assumir objetivos, causas e esperanças. 24