Desempenho Fonético em Crianças dos 3 a 7anos de idade no P.E. Lurdes de Castro Moutinho e Rosa Maria Lima Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro (Portugal) [email protected] Abstract Based in productions of European Portuguese children between 3 and 7 years old were analysed. We considered the production of three phonemes in different structural positions (constituents) regarding the syllable. Results indicate that the production of the phoneme varies according to the constituent it is associated to. On the other hand and for a same constituent (coda) - it was observed that fricatives are acquired earlier than liquids. Keywords: Phonetics, Phonology, language acquisition, syllables. Resumo A partir de dados de um estudo transversal junto de falantes do português Europeu, as produções fonológicas de crianças entre os 3 e os 7 anos e meio foram analisadas. Considerou-se a produção de três fonemas em diferentes posições na sílaba (constituintes). Os resultados demonstram que a produção do fonema varia em função do constituinte. Para além disto, para um mesmo constituinte (coda) observa-se que o fonema fricativo é mais precocemente adquirido que os fonemas líquidos. Palavras-chave: Fonética, Fonologia; Aquisição da linguagem; Constituintes silábicos. 1 1. Introdução Caracterizar a produção normativa de crianças falantes do Português Europeu (PE) implica que sejam adotadas unidades lingüísticas relevantes. Uma questão fundamental diz respeito à suficiência do fonema enquanto unidade cuja correção articulatória exprime, per se, o estado evolutivo de uma amostra de linguagem infantil. Na atualidade, tanto a Lingüística como as abordagens empíricas do desenvolvimento tendem a questionar a utilidade de um conhecimento sobre, por exemplo, a articulação do /r/. Ao contrário, impõe-se, cada vez mais, a necessidade de conhecer a produção do fonema num dado contexto. Para que se possa questionar a suficiência do fonema, é necessário obter resultados que indiquem a dependência da produção fonêmica face a outras variáveis, nomeadamente o estatuto que o fonema ocupa enquanto elemento estrutural na sílaba. No PE, os fonemas /l/, /r/ e /S/ 1podem ocupar diferentes constituintes silábicos: o fonema /l/ pode surgir no início de uma sílaba /CV/ (como em livro), no final de uma sílaba CVC (mal) ou na segunda consoante de uma sílaba CCV (placa); o fonema /r/ pode também ser encontrado nas 3 posições (cara, parte, prato); o fonema /S/ pode ser encontrado em CV (chuva) e em CVC (pasta). Esta diversidade de contextos para um mesmo fonema foi integrada num estudo. Os dados são aqui apresentados, sendo extraídas implicações para uma leitura da aquisição do PE. 2. Referencial Teórico Diferentes modelos de estrutura da sílaba formalizam e nomeiam diferentes constituintes silábicos (Blevins, 1995), entendendo-se por constituintes os elementos estruturais da sílaba. Entre as várias versões, o modelo da ramificação binária considera a existência de ataque e rima, esta última dividida em núcleo e coda. Relativamente aos casos apontados para os formatos CV, CVC e CCV, a consoante inicial de CV é um ataque simples; a consoante final em CVC é uma coda (sendo V o núcleo); a segunda 1 Para as transcrições, adoptamos, neste artigo, a versão do Alfabeto Fonético Internacional, para o Português (http://www.phon.ucl.ac.uk/home/sampa/portug.htm), por ser uma forma mais facilitadora de apresentar as transcrições. 2 consoante em CCV constitui a ramificação do ataque, sendo o grupo CC um ataque ramificado. O impacto desenvolvimental das formalizações inerentes à Linguística – nomeadamente no âmbito da Fonologia Não Linear (Bernhardt & Stoel-Gammon, 1995)– resulta na hipótese de dependência da aquisição do fonema relativamente aos elementos designados como suprassegmentais (formato silábico, palavra, acento, etc.). Entre estes, a associação do fonema a um dado constituinte silábico figura como um factor a ter em conta quando se analisa o processo de aquisição da Fonologia de uma língua. Esta perspectiva remete para uma abordagem do desenvolvimento fonológico e, simultaneamente, um sistema de aplicação à clínica que tentam ultrapassar uma perspectiva fonema-a-fonema. Do ponto de vista das grandes tradições de leitura da aquisição, um sistema de dependência do fonema face a unidades superiores apela a conceitos de hierarquia de níveis de representação (Fonologia não linear) que são progressivamente consolidados e coloca-nos numa tradição generativista/Chomskiana de cariz inatista, articulando-se com uma gramática de princípios e parâmetros que redunda no estudo da aquisição de formatos silábicos. Para o PE, Freitas (1997) oferece uma primeira caracterização. Um estudo por nós realizado prolonga esta análise, partindo dele o enfoque que se lança neste artigo. 3. Método Foi conduzido um estudo transversal sobre uma amostra de 432 participantes, com idades compreendidas entre os 3 e os 7 anos. As variáveis independentes inerentes à criança incluiram a idade (amostra equitativamente dividida em 9 grupos etários, com âmbito de 6 meses cada), o sexo (metade de cada sexo) e o meio (urbano vs. rural, ambos no Norte de Portugal). Foi ainda classificado o Nível Socioeconómico de cada criança, bem como a Instituição educativa frequentada. Foi desenhada uma prova de nomeação para recolha de dados relativos à produção fonológica em palavras. Mediante a apresentação de uma imagem, a criança era convidada a nomeá-la. A selecção dos materiais da prova procurou contemplar a possibilidade de avaliação do efeito de variáveis linguísticas sobre a produção. Concretamente, incluiram-se materiais passíveis de eliciar a produção da máxima diversidade ao nível de (1) fonemas, (2) formatos silábicos (CV, CVC, CCV, CGV, etc.), (3) dimensão silábica (mono, di, tri, polissílabos), (4) estatutos da sílaba quanto ao 3 acento (acentuada, não acentuada) e (5) posições da sílaba na palavra (inicial, média, final). Tendo em conta o cruzamento destas variáveis linguísticas, a selecção das palavras a eliciar visou respeitar o critério de máxima diversidade formal, ao mesmo tempo que obedeceu à necessidade de oferecer estímulos semanticamente familiares e diversificados. As produções obtidas foram submetidas a classificações relativas à correcção da palavra como um todo (i) e a correcção de cada sílaba constante da mesma (ii). Na segunda classificação (sílaba), consideraram-se níveis de resposta em função da ausência vs. presença de processos fonológicos de simplificação (omissão, substituição, harmonia, metátese, epêntese), sendo cada um dos processos especificado. A análise da produção, tendo em conta o cruzamento do nível do fonema e o nível do formato, permite apreciar o peso da constituência – i.e., do estatuto do fonema num formato – sobre a correcção articulatória do mesmo. 4. Resultados De um ponto de vista global, os resultados revelam um efeito da idade na produção fonológica, não sendo significativos os efeitos decorrentes das demais variáveis inerentes à criança. Verificou-se, nomeadamente, uma ruptura acentuada no desempenho fonológico entre os 4 anos e os 4 anos e 6 meses. Por outro lado, aos 5 anos e meio parece haver uma estabilização. Ao longo deste percurso, os fonemas e os formatos silábicos sofrem processos de aquisição diferenciados. Tendo em conta os objectivos específicos desta abordagem, centramo-nos na produção dos fonemas consonantais /S/, /l/ e /r/ nas distintas posições de constituência que eles podem ocupar na sílaba: ataque simples (CV), coda (CVC) e ramificação de ataque (CCV). Produção de fonemas consonantais em CV (ataque simples) A análise da produção dos distintos fonemas consonantais no constituinte ataque simples revela uma hierarquia que privilegia fonemas oclusivos e formatos mais simples. Na totalidade das crianças, observa-se um aumento da quantidade de desvios articulatórios na sucessão oclusivas/líquidas/fricativas (quadro 1). 4 Quadro 1. Média de desvios (percentagem relativa à produção de todas as sílabas) em consoante inicial de CV Classe Média D.P. Oclusivas 0,5% 0,012 Líquidas 5,5% 0,088 Fricativas 5,6% 0,097 Os testes de comparação de médias indicam diferenças significativas apenas entre os pares de classes oclusivas-líquidas e oclusivas-fricativas (p<0,001). Entre líquidas e fricativas não existem diferenças significativas quanto à quantidade de desvios. A tomada em conta do factor idade implica a adopção de um critério de sucesso – sob a forma de percentagem de sucesso numa dada faixa etária - para definir um momento de aquisição do fonema. Adoptaram-se dois critérios distintos – um critério de 10% e um de 5% (gráfico 1). Idade de aquisição de classes de modo segundo 2 critérios líquidas 95% 90% Fricativas oclusivas 0 1 2 3 4 5 6 Gráf. 1. Idade de aquisição de oclusivas, fricativas e liquidas segundo 2 critérios. Para um critério de <10% de erro/>90% de sucesso, verifica-se que a aquisição de oclusivas ocorre na primeira metade da faixa dos 3 anos (3a) e que a aquisição de fricativas e líquidas ocorre aos 4ª (primeira metade da faixa etária dos 4 anos). Para um critério de <5% de erro/>95% de sucesso, as oclusivas adquirem-se aos 3a, seguindo-se as líquidas aos 4b (segunda metade da faixa dos 4 anos) e as fricativas 5 apenas aos 5b. Na adopção deste último critério torna-se visível a maior dificuldade imposta pelas fricativas. Parece, assim, revelar-se uma tendência de aperfeiçoamento mais tardio nas fricativas, apesar de constituírem, ao longo do percurso, uma dificuldade equiparável à que é oferecida pelas líquidas: como vimos, o desvio obtido nas duas classes para todas as crianças não difere significativamente. É ainda de referir que os dados não convergem com os de Lamprecht (1993), obtidos com crianças falantes do Português do Brasil. Formulando uma ordem de aquisição de classes de modo de articulação, a autora refere a sequência oclusivas<fricativas<líquidas. O peso do vozeamento (surda-sonora) e do lugar de articulação (anteriorposterior) faz-se sentir no mapeamento das idades de aquisição de cada fonema. Observa-se que as sonoras são, de forma geral, mais tardias e que as anteriores são facilitadas relativamente às posteriores (gráf.2). Quanto ao factor vozeamento, este cria diferenças significativas entre produção de oclusivas (surdas mais facilitadas que sonoras) e ao nível das fricativas (o mesmo acontece). Neste contexto, as fricativas sonoras constituem o último estádio, sendo preservada a seqüência [1]. [1] oclusivas (surdas->sonoras) < fricativas (surdas->sonoras). O privilégio no domínio das consoantes surdas parece compatível com resultados como os de Lamprecht (1993), que apontam para a presença de processos de dessonorização (desvozeamento) no conjunto de processos de substituição encontrados na amostra analisada, sendo inexistentes os processos - inversos - de sonorização ou vozeamento. A autora afirma ainda que, no processo de aquisição "...o modo de articulação é o factor mais poderoso, sendo a dessonorização superada nas plosivas alguns meses mais cedo que nas fricativas..." (p.104). Os nossos resultados parecem indicar um mesmo sentido no processo de aquisição. Quanto à influência do ponto ou lugar de articulação na produção de consoantes iniciais em CV, Lamprecht (1993) afirma ser "...mais comum a aquisição na ordem labiais>dentais>alveolares>palatais/velares" (p.102). É, portanto, um eixo no sentido antero-posterior o que se estabelece. Os nossos resultados sugerem a existência de um eixo anterior-posterior para oclusivas sonoras e fricativas sonoras. No caso das fricativas sonoras, é de salientar que o fonema /v/ recebeu um claro privilégio face aos demais. Julgamos que este dado - para além de atestar a sua posição anterior - se deve ainda ao facto de , em grande parte dos participantes, este se ter realizado como variante dialectal (do Norte de Portugal) da 6 classe das oclusivas imperfeitas. Ao contrário, para oclusivas surdas e para nasais, o ponto não actua como diferenciador de idades de aquisição. Nas fricativas surdas, o carácter tardio dos fonemas integrantes desta classe não acompanha um estrito critério anterior-posterior. Verifica-se, nomeadamente, que a palatal /S/ antecede a alveolar /s/. O mesmo tipo de inversão surge quando consideramos a ordenação obtida para a totalidade das líquidas. Observa-se então que uma velar (R) antecede uma palatal (L). Consideradas subclasses de líquidas (laterais e vibrantes), mantém-se a ordenação anterior-posterior no interior de cada uma delas. Ao nível das nasais existe uma indiferenciação quanto a ponto de articulação, já que aí a palatal (J) surge no mesmo momento que a bilabial (m) e a alveolar (n). Em suma, observa-se que o vozeamento actua de forma consistente na geração de dificuldades (oclusivas e fricativas). O lugar opera de forma clara apenas nas oclusivas sonoras e fricativas sonoras. As líquidas apresentam a este respeito uma irregularidade. No entanto, se considerarmos líquidas laterais, a tendência replica-se. Estes dados surgem em abono da realidade psicológica/articulatória das classes de vibrantes e laterais. O agrupamento de ambas na classe das líquidas pode, neste contexto, perder relevância. Existe, assim, um cruzamento de influências sobre a produção do formato CV afectando o constituinte ataque simples. Essas influências configuram níveis de dificuldade específicos para a aquisição de consoantes passíveis de ocupar mais que um constituinte - /S/, /l/ e /r/.Consideramos, em primeiro lugar e de forma mais próxima, o posicionamento de cada um destes fonemas na hierarquia de aquisição em CV. Em seguida, atendemos ao estatuto dos fonemas /l/ e /r/ nos constituintes coda (CVC) e ramificação de ataque (CCV). Consideramos separadamente o fonema /S/, já que este apenas pode associar-se à coda e não a uma ramificação de ataque. 7 Idade de aquisição de Consoantes em CV segundo critérios de 90%, 95% e 98% 98 95 90 8 7 Idade 6 5 4 3 2 k t p v b d m n nh f x l R r g s lh z j Consoantes Gráf. 2. Idade de aquisição para cada fonema consonântico em função de 3 critérios. São assinalados os fonemas /S/, /r/ e /l/. Produção dos fonemas /S/, /l/ e /r/ em CV Tal como é legível no gráf. 2, o fonema fricativo /x/ tem uma idade de aquisição correspondente a 3a, para um critério de 90% de sucesso. O mesmo se pode ler no gráf. 3, podendo aí apreciar-se que se trata de um fonema de aquisição mais precoce que outras fricativas. Idade de aquisição das fricativas para critério de 90% v f S s z Z 0 2 4 6 8 Gráf.3. Idade de aquisição das fricativas. O fonema /S/ é destacado. 8 Os fonemas /l/ e /r/ apresentam, para o mesmo critério, a idade de aquisição de 4a, sendo de aquisição mais precoce que a líquida /L/ (gráf. 4). Idade de aquisição das líquidas para critério de 90% l r R L 0 1 2 3 4 5 6 Gráf. 4. Idade de aquisição das líquidas. Os fonemas /l/ e /r/ são destacados. Produção dos fonemas /l/ e /r/ em CVC e CCV Para a totalidade das crianças, podem ser apreciados os valores de desvio respeitante à articulação dos fonemas /l/ e /r/ nos diversos constituintes (gráf. 5). média de desvio (valores relativos) Desvios por constituência em /l/ e /r/ 0,3 0,25 0,2 l r 0,15 0,1 0,05 0 ataque ramificação coda Gráf. 5. Desvios por constituência em fonemas l e r Como pode ser lido, a associação das duas consoantes a um ataque simples comporta percentagens de erro da ordem dos 5%. Nos demais contextos (ramificação de ataque e coda), as percentagens de erro elevam-se substancialmente. Existem diferentes perfis para cada um dos fonemas: 9 (1) O fonema /r/ comporta maior quantidade de desvios relativamente ao constituinte homólogo /l/; (2) Esta diferença é mais acentuada na posição de ramificação de ataque (“prato”) coloca claramente mais dificuldades que (“planta”); (3) A influência do constituinte sobre cada fonema é distinta: para /l/, a coda impõe mais dificuldades que a ramificação de ataque (“mal” é mais difícil que “planta”); para /r/ a ramificação de ataque (“prato”) será mais geradora de dificuldades que a coda (“parto”). Do ponto de vista da idade de aquisição dos fonemas, observa-se que as posições de coda e de ramificação de ataque (gráf. 6) comportam, de forma semelhante, um nível de dificuldade substantivamente mais elevado que o observado no formato CV. Idade de aquisição de /l/ e /r/ em CCV e CVC para critério de 90% r l 0 2 4 coda ramificação 6 8 ataque Gráf. 6. Idade de aquisição de /l/ e /r/ em função do constituinte. O fonema /l/ em coda passa a ser adquirido apenas aos 7a e, em ramificação de ataque, aos 5a. O fonema /r/ em coda passa a ser adquirido aos 6b e, em ramificação de ataque, aos 6a. Na globalidade, surge a hierarquia de acesso [2] [2] ataque l/ataque r<ramificação l<ramificação r<coda r<coda l. Produção do fonema /S/ em CV e CVC A coexistência de codas fricativas (S) com codas líquidas (l e r) impõe ainda o levantamento do estatuto das primeiras no percurso de acesso aos fonemas em causa. 10 Para o conjunto das crianças, a coda fricativa gera menos desvios que a líquida lateral e esta que a líquida vibrante. Do ponto de vista da idade de aquisição (critério de 90% de sucesso), verifica-se que a apropriação deste tipo de codas ocorre em momento substancialmente mais precoce (gráf. 7). S r l 0 2 4 6 8 Gráf. 7. idade de aquisição de codas fricativas ( S) e líquidas (r e l) para critério de 90% de sucesso. Encontramos, assim, uma idade de aquisição da coda fricativa correspondente a 3a – a mesma que é apurada quando se analisa o desempenho das mesmas crianças para o formato CV (constituinte ataque simples). A distância entre esta faixa etária e as que marcam a aquisição das codas líquidas (6b para /r/ e 7a para /l/) é clara. Isto significa que – tendo em conta apenas a coda - a articulação da palavra “pista” ou da palavra “patos” será mais precocemente conseguida que a das palavras “perto” ou “mal”. Há, no entanto, que fazer uma salvaguarda – no caso da coda fricativa, entram em jogo as forças associadas às marcas de plural. Na verdade, quando a criança acede à produção da palavra “patos”, actualiza também uma imposição linguística do foro morfológico. Neste sentido, o sucesso em “patos” resulta - não apenas da consolidação de representações fonológicas – mas, também, da consolidação de representações gramaticais. A hipótese segundo a qual a concorrência destas duas forças pode constituir factor de catalização deste tipo de aquisição merece, em consequência, ser examinada. 11 Se a hipótese em causa for confirmável, então o factor "posição da sílaba na palavra" afectará o perfil de desempenho nas codas. Concretamente, espera-se que as sílabas finais (portadoras das marcas de plural) induzam um sucesso mais claro. O privilégio das codas fricativas em sílabas em final de palavra é, de facto, confirmado, tal como o gráfico 8 indica. Média de respostas correctas a CV /S/em função da posição da sílaba na palavra (início, meio e fim) 1 0,8 0,6 0,4 0,2 0 início meio fim Gráf.8. Posição da sílaba na palavra e sucesso em codas fricativas. 5. Discussão Verificou-se que os fonemas passíveis de ocupar os três constituintes (ataque, ramificação de ataque e coda - fonema /l/ e fonema /r/) desencadeiam comportamentos fonológicos muito distintos, conforme a associação dos mesmos a cada um dos constituintes. Nos trabalhos de Freitas (1997, 2001), o factor constituência surge associado à definição de uma hierarquia de formatos silábicos . No entanto, as líquidas em causa emergem, aí, ambas na ordem ataque não ramificado< rima ramificada (coda)< ataque ramificado. Na presente investigação verificou-se que a produção dos segmentos em ataque simples é invariavelmente melhor sucedida na totalidade das crianças. No entanto, o grau de dificuldade manifesto junto dos outros dois constituintes (ramificação de ataque e coda) surge invertido. Para /l/ e /r/, as codas constituem-se como o último dos estadios adquiridos (ataque<ataque ramificado<coda). Há que salientar que, segundo um critério de 70% de sucesso, em /r/ ocorre o inverso – as codas são mais precoces que as ramificações de ataque. Ao mesmo tempo, 12 os resultados para a totalidade das crianças indicam o mesmo – as codas com maior sucesso que as ramificações de ataque. Isto poderá sinalizar que o fonema /r/, ocupando o constituinte "ataque ramificado", é de uma efectiva maior dificuldade na totalidade do percurso de aquisição mas é, ao mesmo tempo, objecto de uma aprendizagem terminal mais precoce (critério de >90%). Se, no caso do fonema /r/, os resultados são relativamente ambíguos, para o fonema /l/ surge um padrão de alguma forma surpreendente face aos dados até agora disponíveis para a língua portuguesa. Este surge sob a forma de inversão do padrão esperado para o fonema /l/. A formulação do mesmo pode ser feita em duas perspectivas: existe uma aparente "dificuldade" inerente à coda /l/ e, simultanemanete, uma correlativa da "facilidade" da ramificação de ataque /l/ (relativamente . A especial dificuldade da coda /l/ no PE pode levantar a hipótese explicativa da não vinculação a marcas gramaticais, ao contrário do que acontece com a coda /r/ (verbos). Trata-se de uma hipótese a merecer posteriores abordagens. A análise do comportamento linguístico das crianças face aos fonemas /l/ e /r/ em diferentes constituintes faz, assim, notar a variabilidade da produção do fonema em função da constituência. Este quadro não é mantido quando se trata do fonema /S/,já que a idade de aquisição deste tipo de codas é a mesma que se verifica para formato CV. Assim, muito embora os resultados ao nível do formato apontem para a anterioridade do ataque simples (CV) face à coda (CVC), a especificidade fonemática da coda parece ser um factor de peso. Significa isto que – tratar-se de uma coda não é, em si, um factor absolutamente determinante da produção linguística, já que no caso do /S/ parece ser indiferente tratar-se de um ataque simples ou de uma coda. Também os dados de Freitas (1997) a este respeito colocam as codas fricativas em vantagem desenvolvimental. Lamprecht (1993) reforça ainda esta ideia, situando o "fechamento com a fricativa..." (p.103) até aos 3:08 no máximo e, aos 4:01, o fechamento com a líquida não lateral. A coda líquida lateral é apresentada por Lamprecht (idem) como não constituindo dificuldade, por ser semivocalizada. Esta é, contudo, uma particularidade do português brasileiro que inviabiliza qualquer comparação com os resultados de crianças falantes do português europeu. Existe, contudo, convergência quanto à precedência da coda fricativa relativamente à líquida não lateral . Em suma, existem forças concorrentes. Por um lado, o factor constituência (ataque vs. coda vs. ramificação de ataque) interfere na aquisição de fonemas. Porém, 13 no caso das codas (/s/, /l/, /r/), o fonema que a constitui determina ele próprio formas diferentes de domínio. Assim, não representa igual nível de dificuldade uma coda quer ela seja fricativa, líquida lateral ou líquida vibrante. Por esta razão, deixa de fazer sentido a definição de um só estadio para a aquisição de codas. Quanto ao aspecto específico da posição da sílaba com coda fricativa na palavra, confirma-se a tendência - observada na clínica - para o privilégio das codas fricativas em posição de final de palavra face às codas fricativas em outras posições. Esta tendência - de resto geral na totalidade das sílabas - reforça um princípio de facilitação oriundo dos marcadores morfossintácticos (marcas de plural). A partir dos resultados obtidos, verifica-se que as situações em que a coda fricativa é efectivamente um plural posição final de palavra - são mais facilitadas na sua produtividade fonológica. Isto não impede que - como vimos atrás - a coda fricativa seja, em geral, de mais fácil produção. 6. Principais conclusões A consideração do fonema como unidade de estudo na abordagem da aquisição de uma língua tem um fundamento parcial, já que o modo, o ponto e o vozeamento interferem a níveis diversos na realização das distintas consoantes iniciais de um mesmo formato - CV. No entanto, parece existir uma clara relação "top-down" (determinação da sílaba sobre o segmento). Por um lado, a emergência de /r/ e /l/ em codas e ramificações de ataque é claramente mais tardia que em ataque simples. Se a aquisição da estrutura silábica é, em parte, condição para a realização do fonema, o inverso também ocorre. A aquisição de codas obedece a hierarquias distintas conforme se trata de fonemas líquidos ou da fricativa. Desta forma, uma sequência de aquisição de constituintes problemáticos parece não ser totalmente independente do tipo de fonema em causa. Por tudo isto, em geral, a noção de aquisição de fonema, tal como ela foi abordada em diversos estudos numa perspectiva histórica, surge como frágil à luz das determinações demonstradas. Adquirir o segmento não é, em suma, algo que ocorra de forma autónoma e dissociada dos contextos suprassegmentais que os incluem. Parecem surgir, no termo deste percurso, um conjunto de novas problematizações que se nos afiguram relevantes, quer para um conhecimento do percurso real de aquisição nas crianças falantes do PE, quer para o próprio . 14 Referências BERNHARDT, B. & STOEL GAMMON, C. Nonlinear phonology: introduction and clinical applications. Journal of Speech and Hearing Research, 37, 123-143. 1994. 15 BLEVINS, J. The syllable in phonological theory. In J. GOLDSMITH (Ed.), The Handbook of Phonological Theory. Cambridge: Blackwell. 1995. DICIONÁRIO de SOCIOLOGIA (1988) Tipologia PCS. FREITAS, M. Aquisição da Estrutura Silábica do Português Europeu. [Tese de Doutoramento]. Lisboa: Universidade de Lisboa. 1997. FREITAS, M. J. & SANTOS, A. Contar (histórias de) Sílabas. Lisboa: Colibri. 2001. LAMPRECHT, R. A aquisição da fonologia do português na faixa etária dos 2:9 - 5:5. Letras de Hoje, 20, 99-105. 1993. DICIONÁRIO de SOCIOLOGIA (1988) Tipologia PCS. 16