XXIV ENCONTRO NACIONAL DO
CONPEDI - UFS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
JONATHAN BARROS VITA
VALÉRIA SILVA GALDINO CARDIN
LUCAS GONÇALVES DA SILVA
Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
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Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem
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D598
Direitos fundamentais [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS;
Coordenadores: Lucas Gonçalves Da Silva, Jonathan Barros Vita, Valéria Silva Galdino
Cardin– Florianópolis: CONPEDI, 2015.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-5505-051-0
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de
desenvolvimento do Milênio.
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Direito fundamentais. I.
Encontro Nacional do CONPEDI/UFS (24. : 2015 : Aracaju, SE).
CDU: 34
Florianópolis – Santa Catarina – SC
www.conpedi.org.br
XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Apresentação
O XXIV Encontro Nacional do CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Direito em parceria com o Programa Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
de Sergipe UFS, ocorreu em Aracaju entre os dias 03 e 06 de junho de 2015 e teve como
tema central DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos
de desenvolvimento do Milênio.
Dentre as diversas atividades acadêmicas empreendidas neste evento, tem-se os grupos de
trabalho temáticos que produzem obras agregadas sob o tema comum do mesmo.
Neste sentido, para operacionalizar tal modelo, os coordenadores dos GTs são os
responsáveis pela organização dos trabalhos em blocos temáticos, dando coerência à
produção e estabelecendo um fio condutor evolutivo para os mesmos.
No caso concreto, assim aconteceu com o GT DIREITOS FUNDAMENTAIS. Coordenado
pelos professores Jonathan Barros Vita, Lucas Gonçalves da Silva e Valéria Galdino Cardin,
o referido GT foi palco da discussão de trabalhos que ora são publicados no presente e-book,
tendo como fundamento textos apresentados que lidam com diversas facetas deste objeto
fundamental de estudos para a doutrina contemporânea brasileira.
Como divisões possíveis deste tema, na doutrina constitucional, o tema dos direitos
fundamentais tem merecido também a maior atenção de muitos pesquisadores, que
notadamente se posicionam em três planos: teoria dos direitos fundamentais, direitos
fundamentais e garantias fundamentais, ambos em espécie.
Logo, as discussões doutrinárias trazidas nas apresentações e debates orais representaram
atividades de pesquisa e de diálogos armados por atores da comunidade acadêmica, de
diversas instituições (públicas e privadas) que representam o Brasil em todas as latitudes e
longitudes, muitas vezes com aplicação das teorias mencionadas à problemas empíricos,
perfazendo uma forma empírico-dialética de pesquisa.
Como o ato de classificar depende apenas da forma de olhar o objeto, a partir da ordem de
apresentação dos trabalhos no GT (critério de ordenação utilizado na lista que segue), vários
grupos de artigos poderiam ser criados, como aqueles que lidam com: questões de raça,
religião e gênero (8, 10, 12, 13, 15, 24 e 27), concretização de direitos fundamentais (1, 5, 9,
11, 16, 18, 19 e 22), liberdade de expressão e reunião (3, 6, 17 e 25), teoria geral dos direitos
fundamentais (7, 14) e temas multidisciplinares que ligam os direitos fundamentais a outros
direitos (2, 4, 20, 21, 23, 26 e 28)
1. A inclusão nos mecanismos de produção de riqueza face à relativização do princípio da
igualdade pelos programas de transferência de renda, de Rogério Piccino Braga
2. Benefícios da clonagem terapêutica e as células-tronco embrionárias frente ao princípio da
dignidade humana no ordenamento jurídico brasileiro, de Janaína Reckziegel e Luiz
Henrique Maisonnett
3. As teses revisionistas e os limites à restrição da liberdade de expressão, de Rodrigo De
Souza Costa e Raisa Duarte Da Silva Ribeiro
4. A inviolabilidade do domicílio no curso da fiscalização tributária, de Pedro Cesar Ivo
Trindade Mello
5. Acessibilidade: um direito fundamental da pessoa com deficiência e um dever do poder
público, de Flavia Piva Almeida Leite e Jeferson Moreira de Carvalho
6. Biografias não autorizadas e o direito à privacidade na sociedade da informação, de
Narciso Leandro Xavier Baez e Eraldo Concenço
7. O princípio da igualdade e suas dimensões: a igualdade formal e material à luz da obra de
Pérez Luño, de Giovanna Paola Batista de Britto Lyra Moura
8. Intolerância contra as religiões de matriz africana: uma análise sobre colisão de direitos
através de casos judiciais emblemáticos, de Ilzver de Matos Oliveira e Kellen Josephine
Muniz De Lima
9. A criança e o adolescente e os direitos fundamentais - o papel das mídias sociais e das
TICs sob o prisma do princípio da proteção integral e da fraternidade, de Bruno Mello Corrêa
de Barros e Daniela Richter
10. Laicidade e símbolos religiosos no brasil: em defesa da liberdade religiosa e do estado
democrático de direito, de Eder Bomfim Rodrigues
11. O serviço público adequado e a cláusula de proibição de retrocesso social, de Paulo
Ricardo Schier e Adriana da Costa Ricardo Schier
12. Sobre a dominação masculina (re)produzida na publicidade: reações da sociedade vistas a
partir de denúncias ao CONAR, de Helio Feltes Filho e Taysa Schiocchet
13. É para rir? A atuação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos casos
envolvendo liberdade de expressão e racismo nos discursos humorísticos, de Caitlin
Mulholland e Thula Rafaela de Oliveira Pires
14. O poder judiciário, a constituição e os direitos fundamentais: ativismo judicial no STF
pela crítica de Antônio José Avelãs Nunes, de Tassiana Moura de Oliveira e Ana Paula Da
Silva Azevêdo
15. Mudança de sexo e a proteção dos interesses de terceiros, de Kelly Cristina Presotto e
Riva Sobrado De Freitas
16. Os custos dos direitos fundamentais e o direito prestacional/fundamental à saúde, de
Rubia Carla Goedert
17. Democracia na era da internet, tática black bloc e direito de reunião, de Gilton Batista
Brito e Lucas Gonçalves Da Silva
18. A pessoa com espectro autista e o direito à educação inclusiva, de Carolina Valença
Ferraz e Glauber Salomao Leite
19. A problemática dos custos no campo de execução dos direitos fundamentais: alternativas
e soluções para o cumprimento do mínimo existencial, de Diogo Oliveira Muniz Caldas
20. Direitos fundamentais: questões de princípios entre o viver e o morrer, de Robson Antão
De Medeiros e Gilvânklim Marques De Lima
21. A Amazônia e o paradoxo das águas: (re)pensando a gestão hídrica urbana, de Jefferson
Rodrigues de Quadros e Silvia Helena Antunes dos Santos
22. Beneficio constitucional de prestação continuada: o recente posicionamento do Supremo
Tribunal Federal sobre o critério da renda per capita à luz da efetividade, de Benedito
Cerezzo Pereira Filho e Luiz Fernando Molan Gaban
23. Os "mortos" civilmente: aspectos políticos e jurídicos acerca da invisibilidade do preso
provisório em um estado democrático de direito, de Samyle Regina Matos Oliveira e
Edinilson Donisete Machado
24. As mulheres no mercado de trabalho: desmistificando a igualdade entre os gêneros, de
Deisemara Turatti Langoski e Olga Maria B Aguiar De Oliveira
25. Os limites entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio: uma análise sobre o caso
dos supostos justiceiros , de Rafael Santos de Oliveira e Claudete Magda Calderan Caldas
26. Tráfico de pessoas para retirada ilegal de órgãos: um crime degradante contra o ser
humano, de Fernando Baleira Leão De Oliveira Queiroz e Meire Marcia Paiva
27. O desafio da igualdade: casos de intolerância religiosa na contemporaneidade e a eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, de Jose Lucas Santos Carvalho
28. O cadastro ambiental rural como direito à informação e o sigilo de dados, de Luciana
Costa da Fonseca e Danielle Fonseca Silva
Finalmente, deixa-se claro que os trabalhos apresentados no GT DIREITOS
FUNDAMENTAIS, acima relatados, foram contemplados na presente publicação, uma
verdadeira contribuição para a promoção e o incentivo da pesquisa jurídica no Brasil,
consolidando o CONPEDI, cada vez mais, como um ótimo espaço para discussão e
apresentação das pesquisas desenvolvidas nos ambientes acadêmicos das pós-graduações.
Desejamos boa leitura a todos.
Prof. Dr. Jonathan Barros Vita - Unimar
Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS
Profa. Dra. Valéria Galdino Cardin - Unicesumar
SOBRE A DOMINAÇÃO MASCULINA (RE)PRODUZIDA NA PUBLICIDADE:
REAÇÕES DA SOCIEDADE VISTAS A PARTIR DE DENÚNCIAS AO CONAR
ABOUT MALE DOMINATION (RE) PRODUCED IN ADVERTISING: SOCIETY
REACTIONS FROM CONAR REPORTING
Helio Feltes Filho
Taysa Schiocchet
Resumo
O cenário sociocultural brasileiro está marcado pela violência simbólica contra a mulher,
realidade que é produzida e reproduzida na publicidade. A par disso, movimentos sociais e
políticos reagem a esse contexto, disseminando ideias para a construção de um novo
paradigma, baseado na igualdade, respeito e negação a essa histórica opressão. Mas em que
medida o esforço dessas resistências alcançam êxito? Como esta mensagem contrária à
dominação masculina, notadamente aquela presente na publicidade, vem impactando na
consciência social? Esta pesquisa objetiva fazer uma leitura dessa questão a partir de
denúncias feitas ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR),
contra publicidades supostamente sexistas. Ou seja, investigar a postura da sociedade frente a
tais ocorrências, aferindo até onde há uma real compreensão e oposição proativa a esse
cenário, ao ponto de serem formuladas denúncias ao órgão. Embora a grande informação
sobre direitos e os avanços feministas, nossa hipótese é que o número de denúncias é
reduzido, o que nos levará a ensaiar reflexões sobre múltiplas causalidades. Abordaremos
também o papel das agências publicitárias e do próprio CONAR, com vistas ao necessário
aprimoramento da consciência social em relação a essa forma de violência de gênero.
Palavras-chave: Violência simbólica. gênero. feminismo.
Abstract/Resumen/Résumé
The Brazilian sociocultural landscape is marked by symbolic violence against women, a
reality that is produced and reproduced in advertising. Alongside this, social and political
movements respond to this context, disseminating ideas for the construction of a new
paradigm, based on equality, respect and denial of this historical oppression. However, to
what extent the efforts of these resistances are successful? How the message contrary to male
domination, especially presents in advertising, has impacted the social consciousness? This
research aims to discuss this issue from complaints made to the National Council for
Advertising Self-Regulation (CONAR) against supposedly sexist advertising. Inother words,
to investigate the society posture to such events, checking to where there is a real
understanding and proactive opposition to this scenarior. Although there is vast information
about rights and feminist advances, our hypothesis is that the number of complaints is
reduced, which will lead us to rehearse reflections on multiple causalities. We will also
612
explore the role of advertising agencies and CONAR, with a view to the necessary
improvement of social awareness in relation to this form of gender violence.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Symbolic violence, Genre. feminism.
613
1 INTRODUÇÃO
A dominação masculina que oprime e discrimina a mulher constitui-se numa ordem
fundante da sociedade. Segundo Bourdieu (1999), ela funciona como uma imensa máquina
simbólica que ratifica esta condição androcêntrica, o que se vê, por exemplo, na divisão do
trabalho, na estruturação dos espaços públicos e na divisão da casa.
Ao mesmo tempo, observamos o crescimento de forças sociais que combatem esta
condição de inferioridade da mulher, o que o próprio Bourdieu reconhece: “(...) A maior
mudança está, sem dúvida, no fato de que a dominação masculina não se impõe mais com a
evidência de algo que é indiscutível”. Nesse sentido, ele destaca a importância do trabalho
crítico do movimento feminista, o que vemos resultar hoje em tantos avanços, mormente a
positivação de direitos, a criação de instrumentos de proteção contra violências e maior
espaço na política. Mas em que medida tais progressos são potentes para mudar o modelo
vigente? A partir de Butler (1990, p. 22) seria possível questioná-los, visto que suas ações e
estratégias trabalham na base da estrutura masculina.1 Nesse raciocínio, tais conquistas
acabariam não produzindo um real rompimento do paradigma dominante, mas colhendo
êxitos de modo muito pontual, ora em conquistas no plano econômico, político ou das
relações familiares, por exemplo. Avanços que, comumente, podem ser perceptíveis muito
mais no plano formal do que nas práticas discursivas e nas vivências sociais. Desse modo, na
dimensão concreta das relações cotidianas, a mulher ainda estaria distante de se ver alçada a
uma condição de efetiva igualdade.
Fato é que um campo profícuo para constatarmos esta violência simbólica, ainda tão
tolerada social e culturalmente, refere-se à produção midiática, em especial na publicidade e
propaganda, onde é reproduzido, sem melindres, este esquema perverso. Nesse sentido aponta
Cruz (2008), em artigo que enfoca a mulher nas propagandas de cerveja:
Desse modo, as práticas discursivas dominantes veiculadas nas propagandas de
cerveja contribuem para que a dominação masculina perpetue, fortalecendo a
discriminação das mulheres no âmbito público e principalmente no privado.
Acredito que os agentes sociais sofrem ao mesmo tempo a ação das relações e agem
sobre elas, podendo construir e modificar individualmente e/ou coletivamente, suas
vidas, por meios das práticas sociais. A mulher (e por extensão o seu corpo - assim
fragmentados) está presente nas propagandas para ser “consumida” assim como a
cerveja. É necessário um discurso político eficaz sobre os usos do corpo feminino
1
Judith Butler, em sua obra Problemas de Gênero: feminismos e subversão da identidade, compreende não ser
possível recusar as estruturas da linguagem e da política que compõem o campo contemporâneo do poder, mas
propõe que de dentro desta estrutura, deve-se formular uma crítica às categorias de identidade que se engessaram
e naturalizaram. Ela questiona o fato da categoria mulher só conquistar estabilidade no contexto da matriz
heterossexual. Aduz que a noção estável de gênero não serviria mais à política feminista, que deve ser renovada
para contestar as próprias reificações do gênero e identidade.
614
pela mídia, pois, ao fragmentar a mulher, dando evidencia somente a algumas partes
do seu corpo, ela não se constitui enquanto sujeito. O corpo está sendo utilizado de
forma “avulsa”, não sendo analisadas as consequências políticas que esse uso pode
trazer.
A mídia, de modo geral, é um terreno fértil para estudos e reflexões, considerando
que vivemos em um mundo visual, em uma sociedade de imagens, em uma cultura cada vez
mais massificada, de consumo. E justamente por isso, precisamos aprender como entender,
interpretar e criticar os seus significados e imagens, especialmente para resistir às
manipulações desse universo.
Este artigo abordará o cenário androcêntrico produzido e reproduzido pela
publicidade, e como ele vem sendo percebido e combatido pela sociedade, já que, como
dissemos, existem forças que reconhecem, denunciam e buscam subverter esta ordem. Ocorre
que, fundamentalmente, estas forças nascem e operam no seio de movimentos sociais, na
academia ou em iniciativas no âmbito político-legislativo2. Tais exemplos podem ser
relacionados a um ativismo engajado e organizado. Mas não é esta a aferição aqui pensada.
A investigação também não se propõe a realizar ou mesmo traçar conclusões a partir
de pesquisa de opinião pública, embora utilizaremos instrumentos deste tipo para construir
uma base argumentativa. Nossa averiguação outro caminho: um levantamento e uma análise
de denúncias feitas ao CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária)3
contra publicidades supostamente sexistas, com o fim de aferir a quantidade e teor destas
denúncias, o número aproximado de cidadãos denunciantes e comentar alguns julgados. A
demonstração deste panorama pode ser útil às pautas da igualdade de gênero, pois traz à tona
outro tipo de ativismo social, praticado quase sempre individualmente, por sujeitos
inconformados com o abuso publicitário, e que acabam por resultar numa força coletiva que
pode impactar na realidade em prol de uma mudança de consciência a respeito do tema. A
pesquisa se dará sob o triênio 2012/2013/2014, cuja base de dados se encontra integralmente
disponível no site do CONAR, e ser condizente com o propósito de mero ensaio deste artigo.
2
Um exemplo é o Projeto de Lei nº 11/2003 da Dep. Iara Bernardi (PT/SP), em tramitação na Câmara dos
Deputados, que visa proibir a veiculação de peças publicitárias, em qualquer meio de comunicação, que utilizem
imagens sexuais como atrativo.
3
O CONAR é uma organização não governamental fundada em 1980, com sede em São Paulo, SP e atuação em
todo o país, constituída por publicitários e profissionais de outras áreas, que visa promover a liberdade de
expressão publicitária e defender as prerrogativas constitucionais da propaganda comercial. Sua missão, segundo
expresso no site é “impedir que a publicidade enganosa ou abusiva cause constrangimento ao consumidor ou a
empresas e defender a liberdade de expressão comercial”, o que se dá mediante o julgamento de denúncias pelo
seu Conselho de Ética. O procedimento garante o contraditório e ampla defesa aos envolvidos, e se comprovada
a procedência da denúncia, recomendará a alteração ou suspensão do anúncio. O órgão utiliza-se
fundamentalmente, do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária e do Regimento Interno do
Conselho de Ética – RICE.
615
Ademais, é em anos mais recentes que vemos a luta feminista tomar corpo de modo mais
disseminado na sociedade brasileira, com a força de redes sociais e iniciativas ditas mais
radicais, como a Marcha das Vadias, por exemplo.
Assim, partindo da premissa de que a violência simbólica contra a mulher é uma
marca da sociedade, sendo produzida e reproduzida na e pela publicidade, e sobre a qual
incidem forças reagentes, o problema que colocamos é: em que medida esta sociedade vem se
opondo contra publicidades supostamente sexistas ao ponto de formular denúncias ao
CONAR? Sociedade essa que dispõe de farta informação, além de mecanismos dinâmicos de
interação e mobilização social, inclusive para a busca de direitos. Nossa hipótese é de que tais
números são reduzidos ao cotejá-los com a aparente realidade da publicidade sexista4, tendo
presente que o universo de anúncios julgados pelo CONAR engloba todas as mídias: TV,
internet, rádio, jornal, revistas, outdoors entre outros. E isso nos levará a questionar sobre as
razões deste resultado ínfimo, o que passa por analisar até que ponto, realmente, a sociedade
enxerga esta violência na publicidade, ou se a falta de denúncias estaria ligada a uma espécie
de cidadania ainda sonolenta do brasileiro. A constatação também pode nos levar a (re)pensar
sobre as ferramentas de denúncias hoje existentes, e como podem ser aprimoradas e melhor
divulgadas. Enfim, o trabalho pretende ensaiar reflexões sobre a postura da sociedade, das
agências publicitárias e do próprio CONAR, com vistas ao necessário aprimoramento da
consciência social em relação a essas violências de gênero.
2 GÊNERO E RELAÇÕES DE PODER: CONCEITUANDO E DEMONSTRANDO A
DOMINAÇÃO MASCULINA
Estudar e debater questões de gênero implica necessariamente em adentrar nas
relações de poder presentes nos enlaces sociais, o que nos remete à clássica definição de Scott
(1986), para a qual o conceito de gênero implica em duas proposições integralmente
conectadas: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de
poder”. E este poder é, notadamente, o masculino, que oprime, discrimina e inferioriza a
figura feminina.
Beauvoir (1970), em sua obra O Segundo Sexo, mostra como nossa cultura se
construiu tendo o masculino como fiel da balança, como neutro. Tudo que é considerado
4
O caráter sexista da nossa publicidade é premissa deste trabalho, com base nos textos doutrinários,
jornalísticos, pesquisas e levantamentos de dados que serão mencionados.
616
feminino é específico, particular, desviante. O masculino, de outro lado, é universal, geral,
norma. No mesmo sentido, cumpre novamente citar Bourdieu, ao tratar da dominação
masculina:
A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de
estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma
divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que
confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os
habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles
funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os
membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente
partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. Por conseguinte, a
representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução social se vê
investida da objetividade do senso comum, visto como senso prático, dóxico, sobre
o sentido das práticas. E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e,
particularmente, às relações de poder em que se veem envolvidas esquemas de
pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se
expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica.
Esta realidade pode ser atestada com números que revelam a violência doméstica ou
a discriminação salarial no trabalho, só pra dar dois exemplos. Mais: o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA)5 divulgou no dia 27/03/2014, a pesquisa “Sistema de Indicadores
de Percepção Social (SIPS)”, que revela o entendimento de brasileiros e brasileiras sobre a
violência contra a mulher. De acordo com o estudo, dos quase quatro mil entrevistados, 58%
responderam que “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”. E
também, 26% dos brasileiros concordam com a ideia de que “mulheres que usam roupas que
mostram o corpo merecem ser atacadas”. Já 82% disseram que “em briga de marido e
mulher não se mete a colher”. Segundo o IPEA, existe no Brasil um “sistema social que
subordina o feminino ao masculino”, afirmando em seu relatório:
Por ordenamento patriarcal e heteronormativo da sociedade entende-se uma
organização social baseada no poder masculino e na qual a norma é a
heterossexualidade. A sociedade se organiza com base na dominação de homens
sobre mulheres, que se sujeitam à sua autoridade, vontades e poder. Os homens
detêm o poder público e o mando sobre o espaço doméstico, têm controle sobre as
mulheres e seus corpos. Por maiores que tenham sido as transformações sociais nas
últimas décadas, com as mulheres ocupando os espaços públicos, o ordenamento
patriarcal permanece muito presente em nossa cultura e é cotidianamente reforçado,
na desvalorização de todas as características ligadas ao feminino, na violência
doméstica, na aceitação da violência sexual. A família patriarcal organiza-se em
torno da autoridade masculina; para manter esta autoridade e reafirmá-la, o recurso à
violência – física ou psicológica – está sempre presente, seja de maneira efetiva, seja
de maneira subliminar.
5
Site
do
Instituto
de
Pesquisa
Econômica
Aplicada
(IPEA):
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_novo.pdf. Acessado
em 18/07/2014.
617
Grande repercussão teve em 2014 as notícias de violência contra alunas ingressantes
no curso de medicina da USP de São Paulo, reduto de uma elite intelectual e econômica do
país, mas onde se perpetuam, ano a ano, a cultura de opressão e intimidação às calouras, com
humilhações e violência sexual. Portanto, vê-se aí a violência naturalizada e praticada num
ambiente acadêmico, seleto, por futuros profissionais da saúde.6 Outro fato ilustrativo e
recente caso “Julien Blanc”, um suíço que viaja pelo mundo ensinando técnicas para
conquistar mulheres, envolvendo violência e intimidação. Justamente pela existência de
algumas forças reagentes ao contexto machista, houve um movimento forte da sociedade civil
brasileira, nos últimos meses de 2014, para que as autoridades negassem a ele o visto de
entrada no país.7
Como sustentamos na introdução, a publicidade tem papel relevante neste contexto,
pois se utiliza de imagens, ideias e significados que refletem os padrões de dominação
masculinos estabelecidos socialmente. Ou seja, ela tanto cria como reproduz esta realidade,
constituindo-se em peça-chave do sistema. As práticas midiáticas reforçam os estereótipos
masculinos e femininos, com representações de cunho preconceituoso, e que, na maioria,
acaba passando despercebido e sem questionamentos pelo senso comum.8
Cruz (2008), valendo-se do ensinamento de Thompson (1995), analisa que esta
condição acaba sendo assimilada e aceita como sendo real pela pessoa, embora seja de fato
imaginária. Determinada condição ou atributo da pessoa acaba sendo naturalizado, como se
fosse algo que já existe ou sempre existiu. Este processo denomina-se de reificação: uma
estratégia para a permanência de determinadas normas, valores e posturas como elementos
contemporâneos, justamente por serem consideradas pertencentes a uma tradição “eterna” e,
por esta razão, aceita e justificável, onde uma situação transitória é representada como
permanente ocultando seu caráter sócio-histórico.
As propagandas se apropriam de imagens e mitos contemporâneos ou eternizados
para construir um tipo de mulher, aceito e partilhado socialmente por um grupo de pessoas
que se identificam com tal imagem. Nesse sentido, a prática mais comum na publicidade é a
construção e a disseminação de uma imagem de mulher sexualmente desejável, que todos os
homens devem aspirar e possuir, paradigma esse que acaba incorporado pelas próprias
mulheres como aquilo que elas devem ser ou se tornar para serem reconhecidas e valorizadas.
6
Ver notícia no endereço: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/11/alunas-da-faculdade-de-medicina-dausp-protestam-contra-abuso-sexual.html. Acessado em 25/11/2014.
7
Ver notícia no endereço: http://noticias.terra.com.br/brasil/itamaraty-confirma-veto-a-visto-de-julien-blancno-brasil,0ac5679020ba9410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html. Acessado em 15/11/2014.
8
Nesta linha, o próprio CONAR reconhece no art. 7º do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária
que “a publicidade exerce forte influência de ordem cultural sobre grandes massas da população”.
618
Tais práticas, então, moldam a sociedade com a reprodução de crenças, valores e
identidades sociais, porquanto os contextos sociais são constituídos pela produção das formas
simbólicas. A Copa do Mundo de 2014 sediada pelo Brasil foi pródiga em produzir anúncios
publicitários machistas, como chamou a atenção, a cronista Aline Valek:9
Basta olhar com atenção para o jornalismo e para as propagandas “made in Brazil”
nesta época de Copa. Em um comercial da TAM, por exemplo, que dá as boasvindas a todo o tipo de torcedor, torcedoras só são mostradas quando o narrador dá
as boas-vindas às “princesas”. Porque é claro que se mulheres marcam presença nos
estádios é para agradar o olhar masculino. Isso fica ainda mais evidente no
jornalismo punheteiro que elege as “musas” da torcida, reforçando que a existência
da mulher só serve ao propósito de embelezar o ambiente que ela frequenta, no caso,
a arquibancada.
Muito elucidativo trazer as reflexões de um recente documentário espanhol sobre a
realidade da mulher brasileira, intitulado “MUJERES BRASILEÑAS: Del icono mediático a la
realid”.10 O documentário aponta dados do Instituto Nacional de Geografia e Estatística, de
que 47% das mulheres brasileiras se declaram brancas, enquanto 53%, pardas, negras,
amarelas e outras. E essa grande maioria, não se vê representada na mídia e publicidade. A
mulher que aparece é a branca, magra, jovem e heterossexual.
O filme argumenta que os meios de comunicação no Brasil são controlados apenas
por seis famílias, e esta concentração gerou disputas por públicos e mercado. Aos poucos,
foram-se criando standards de beleza e comportamento, acabando com a diversidade e
complexidade na reprodução da imagem da mulher. Hoje, só vai ao ar o que é facilmente
consumido pelo público, que corresponde àquele padrão único, antes descrito. Uma das
entrevistadas, Jacira Melo, diretora do Instituto Patrícia Galvão, diz que a desconcentração do
poder da mídia é fundamental, mas também prega a necessidade de uma legislação que “dê
conta de se discutir a produção dos conteúdos”. Portanto, temos aí a problemática da criação
de estereótipos, dominação, além da exclusão da maior parcela da mulher brasileira.
Já Rita Freire da Rede Mulher e Mídia, afirma que a mulher é insumo de negócio na
mídia. Explica que a mídia tem como alvo o público em geral, e não específico, ou seja,
9
“A mulher brasileira existe, mas não para satisfazê-los: como a imagem propagada para o mundo contribui para
a ideia equivocada de que somos apenas corpos disponíveis”. Crônica de Aline Valek do blog Escritório
Feminista. Publicado no site Carta Capital em 18/06/2014. http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritoriofeminista/nos-existimos-mas-nao-para-satisfaze-lo-6118.html. Acessado em 14/07/2014.
10
Tradução livre: “Mulheres brasileiras: de ícone midiático à realidade”. Resenha (em espanhol): Las mujeres
brasileñas son constantemente cosificadas para la venta de productos y la conquista de las audiencias. Un modelo
de concentración de los medios en seis familias de gran poder, una cultura machista y la maximización del
beneficio económico son algunas de las claves para entender por qué los grandes medios de comunicación
presentan un modelo único de mujer y ocultan la gran diversidad existente en Brasil. El vídeo incluye entrevistas
a Terezinha Vicente y Rita Freire, de la Rede Mulher e Midia; Jacira Melo, directora del Intituto Patricia Galvao;
iris Miranda, psicóloga y activista, y Melissa Miranda, periodista y activista.
619
trabalha com o senso comum. Nesta realidade, utiliza uma linguagem chula porque precisa de
um retorno imediato, que seja mais fácil de gerar reações. E nesse aspecto, a mulher é um
argumento fácil para consegui-las. Como exemplo, o documentário apresenta trecho de uma
matéria jornalística com mulheres seminuas jogando futebol, onde a narradora (uma mulher,
aliás), afirma a união daquilo que o brasileiro mais gosta: futebol e bumbum.
Jacira Melo afirma que a publicidade brasileira está atrasada, desatualizada, em
descompasso em relação às mulheres brasileiras. E que quem produz a propaganda no país é
uma elite: branca, masculina, machista e com uma visão europeia. Segundo ela, a
objetificação da mulher ganha contornos explícitos em grande parte das propagandas, mas
muito especialmente nas de cerveja, cuja mensagem é quase sempre no sentido de que o
homem toma cerveja para “ganhar” uma mulher. Dentro de todo esse cenário, a entrevistada
denuncia as dificuldades do Instituto Patrícia Galvão na divulgação do seu trabalho na mídia,
devido à incompreensão de jornalistas e comentaristas, incluindo mulheres, que veem suas
ações como opressoras e mal-humoradas.
Outra valorosa contribuição para denunciar o cenário androcêntrico brasileiro, foi a
recente pesquisa divulgada em 30/09/2013 pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão,
intitulada "Representações das mulheres nas propagandas na TV". O estudo ouviu 1.501
homens e mulheres maiores de 18 anos, em 100 municípios de todas as regiões do país, e
mostrou que 56% dos brasileiros e brasileiras não acreditam que as propagandas de TV
mostram a mulher da vida real. Para 65%, o padrão de beleza nas propagandas é muito
distante da realidade da nossa população, e 60% consideram que as mulheres ficam frustradas
quando não conseguem ter o corpo e a beleza das mulheres mostradas nos comerciais.
Mas os índices mais afeitos à linha deste trabalho são estes: 58% entendem que as
propagandas na TV mostram a mulher como objeto sexual; 84% concordam que o corpo da
mulher é usado para promover a venda de produtos nas propagandas na TV; 62% concordam
que “As propagandas na TV não mostram as mulheres que, além de ser esposa e mãe,
também trabalham e estudam”; Para a frase “Nunca vejo a mulher sendo apresentada como
uma pessoa inteligente em propagandas na TV”, apenas 43% discordam.
Portanto, a pesquisa conforta a nossa linha de raciocínio, qual seja: de que a
publicidade reproduz estereótipos, inferioriza e coisifica as mulheres, e que grande parte dos
entrevistados reconhece tal fato. Mais que isso: o estudo aponta que 70% defendem punição
aos responsáveis por propagandas que mostram a mulher de modo ofensivo. Assim, estes
números recentes deixam clara a realidade social arquitetada na hegemonia masculina, e que a
publicidade opera na criação e reprodução deste sistema; os inegáveis avanços conquistados
620
por segmentos sociais, embora não lograrem êxito em afetar a estrutura desse sistema, vêm
conseguindo contaminar a sociedade de modo geral, alertando para uma tomada de
consciência.
Enfim, posta a base conceitual confortada com uma demonstração por dados
estatísticos, resta avançar na pesquisa junto ao CONAR, a fim de averiguar até que ponto esta
sociedade – que vem tomando consciência das questões – vem agindo de modo proativo em
denunciar estas práticas publicitárias discriminatórias. É o que faremos a seguir.
3 PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA
A investigação consistirá em levantar e analisar casos e julgamentos de propagandas
denunciadas como sexistas junto ao site do CONAR, ou seja, envolvendo temática relativa à
violência de gênero. Utilizaremos o recorte dos anos de 2012, 2013 e 2014, dada a brevidade
deste texto, o seu propósito de mero ensaio e por se tratar de período mais recente possível,
com as estatísticas integralmente apuradas. Cumpre destacar que o site apresenta-se de fácil
manuseio, com visual limpo, contendo notícias e links úteis para dados institucionais,
legislação, julgamentos e outros. A pesquisa foi feita por consulta direta no link “Decisões”,
que conduz a duas espécies de amostragens apresentadas de forma anual: “Estatísticas” e
“Casos”.
No percurso “Decisões-Estatísticas” é possível verificar o número total anual de (a)
processos instaurados e de (b) processos julgados, sendo cada levantamento destes, por sua
vez, submetido a dois recortes: os Setores Envolvidos, como por exemplo, bebidas, moda,
medicamentos, produtos de limpeza, etc., todos contabilizados em percentuais; e os tipos de
Questionamentos,
identificados
percentualmente
em
diferentes
categorias
como:
respeitabilidade, discriminação, veracidade, cuidado com público infantil, direitos autorais,
padrões de decência, sustentabilidade, etc. Cada processo instaurado é classificado num Setor
Envolvido, mas pode ser enquadrado em mais de um Questionamento. Os processos
envolvendo violência e abuso de gênero são enquadradas nos Questionamentos de
“Respeitabilidade”, onde também se incluem outras espécies como desrespeito ao idoso, à
religião, à classes profissionais entre outros.11 Portanto, pelas amostragens obtidas neste
11
A respeitabilidade é um dos doze “Princípios Gerais” do Código Brasileiro de Autorregulamentação
Publicitária, dando título à SEÇÃO I. O art. 19 dispõe que “Toda atividade publicitária deve caracterizar-se pelo
respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais, às
autoridades constituídas e ao núcleo familiar”. Na mesma linha, o art. 20: “Nenhum anúncio deve favorecer ou
estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade”.
621
percurso (Decisões-Estatísticas) não é possível identificar a quantidade de cada uma destas
espécies, já que todas estão subsumidas ao percentual geral.
De outro lado, utilizando o percurso “Decisões-Casos”, esta identificação torna-se
possível para o universo de processos julgados (não os instaurados), já que é disponibilizada
a leitura da EMENTA da decisão, caso a caso. Em razão disso, a pesquisa ateve-se
exclusivamente aos processos julgados.
Também deve ser esclarecido que os processos instaurados/julgados podem ser
originados de cinco modos: por queixa dos consumidores, de ofício pelo Presidente do
CONAR, pelo Diretor Executivo, por membros do Conselho Superior, ou ainda, por
formulação dos associados ao órgão.12 Todavia, para nossa pesquisa esse aspecto é
irrelevante, pois consideramos que qualquer destas formas deve ser compreendida como
manifestação da sociedade.
Quanto à instauração por queixa de consumidores deve ser dito que, por vezes, várias
delas dão origem a um processo. Veja-se, por exemplo, o caso do processo 184/12, iniciado
em razão de aproximadamente 1.200 reclamações, ou do processo 216/12 com cerca de 1.000.
Portanto, considerando que a pesquisa busca aferir a inconformidade da sociedade com tais
publicidades,
mostra-se
necessário
não
apenas
contabilizar
o
número
de
processos/julgamentos, mas também quantificar o número de reclamações encaminhadas ao
órgão. Contudo, esse dado não é registrado nas estimativas do site, sendo que podemos
apenas mensurar uma quantia aproximada com base na descrição constante na ementa de cada
decisão, na qual a informação nem sempre é precisa13. Em suma, temos essas duas dimensões
para expor e cotejar: a quantidade de processos julgados e a quantidade (aproximada) de
reclamações que originaram tais processos. Outro aspecto é que os julgamentos são
registrados mês a mês, de fevereiro a dezembro (não há registros em janeiro).
3.1 APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS DA PESQUISA
12
Regimento Interno do Conselho de Ética do CONAR – RICE. Artigo 17: O processo contencioso objetivará
anúncio ou campanha publicitária e será instaurado mediante despacho do Presidente do CONAR, em
representação escrita, sempre que houver evidência de transgressão ao Código Brasileiro de
Autorregulamentação Publicitária. § 1º – A representação será de iniciativa: a – do Presidente do CONAR; b –
de membro do Conselho Superior; c – do Diretor Executivo do CONAR; d – de Associado; e – de grupo de
Consumidores.
13
Em algumas ementas a quantificação dos reclamantes é precisa: 13, 20, etc. consumidores. Já em outros, a
decisão refere que a iniciativa se deu por “vários” ou “numerosos” consumidores; ou então menciona
“aproximadamente” 1.000 consumidores.
622
Iniciamos expondo o levantamento do ano de 2012 em tabela, com as devidas
considerações logo a seguir.14
MÊS
PROC.
PARTES
RESUMO
DECISÃO
Mar
227/11
Maio
095/12
Sindic. Secret. SP e
grupo cons. X Platense
1 consumidor X Subway
Sustação e
advertência
Arquivado
Jun
116/11
Jun
108/12
Jul
75/12
Grupo consumidores X
Duloren
Ago
142/12
Set
154/12
Set
184/12
Set
204/12
Set
214/12
Set
Nov
231/12
216/12
13 consumid e Secret.
Nac. Prom. Iguald Racial
X Bombril
Vários consumid. X
3 Fazendas
Aproximad. 1200 cons.
X DKT do Brasil
Vários consumid. X
Unilever
1 consumidor X
Kerocasa (cooperativa
habit.)
20 cons. X Lojas Marisa
Aprox. 1000 consumid.
X Schincariol
Produtos eróticos em site. Fotos
desabonadoras, ofensivas e machistas.
Anúncio desrespeitoso. Relação
sanduíche com mulher provocante.
Homem abastece veículo e frentista
mulher (macacão justo e decotado)
indaga “Não quer trocar o óleo também?
Desrespeito com frentista e a mulher.
Anúncio machista: "A receita é simples:
fique forte! E pegue mais mulheres.
Somos fúteis, mas somos pegadores".
Mulher com roupas íntimas e quepe
militar. Ao fundo, policial com uniforme
desabotoado. Favela carioca pacificada.
Machismo. Vulgarização da mulher.
Racismo da Bombril, associando palha
de aço ao cabelo da mulher negra.
Discriminação.
Sensualidade excessiva com modelos/
trajes provocantes.
Peça abusiva, desrespeitosa. Incentivo
violência sexual contra a mulher.
Machismo e desrespeito. Com o produto
"você começa a acumular mulheres".
Outdoor com foto de modelo com
lingerie. Slogan: “Pense no futuro,
conheça a Kerocasa.
Anúncio sexista.
Amigos na praia “invisíveis”.
Desrespeito. Apologia ao estupro.
Federação Empregados
de Postos (sindicados) e
vários consumidores X
Diário de S. Paulo
1 consumidor X
Monsters Gym
Sustação
Arquivado
Sustação
Arquivado
Alteração
Sustação e
advertência
Alteração
(do texto)
Advertência
(anúncio
apelativo)
Arquivado
Arquivado
No ano de 2012 ocorreram doze (12) julgamentos, dos quais sete (07) foram julgados
procedentes, isto é, determinaram a sustação e/ou advertência ou a alteração do anúncio, o que
representa 58%. Os demais cinco (05) processos foram arquivados, por entender que o
anúncio não ofendeu o Código de Ética ou outra legislação invocada, importando 42%.
Todos os processos foram instaurados por queixa de consumidores, cujo número não
pode ser indicado com precisão. Veja-se, por exemplo, os processos 227/11 e 116/11: o
primeiro teve provocação do Sindicato das Secretárias de São Paulo e de um “grupo” de
consumidores. O sindicato, embora se trate de uma pessoa (jurídica), representa uma categoria
numerosa de profissionais; no segundo, um dos denunciantes foi a Federação de Empregados
14
Como dissemos, os processos/julgamentos são organizados mensalmente. Se determinado mês não contou na
tabela, significa que no período não ocorreram julgamentos sobre o tema pesquisado.
623
de Postos de Combustíveis, portanto, um órgão que representa sessenta (60) sindicatos do país
e 500 mil profissionais15.
De todo modo, buscando um levantamento mais objetivo possível, podemos destacar
três (03) órgãos representativos: FENEPOSPETRO (Federação Nacional dos Empregados em
Posto de Serviços de Combustíveis e Derivados de Petróleo), SINSESP (Sindicato das
Secretárias do Estado de São Paulo) e a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade
Racial, os quais representam o interesse de várias pessoas e grupos. Como não é possível
computar o número desses representados, e nem se todos eles concordariam com a iniciativa
da denúncia, consideraremos para nosso estudo que cada órgão se equivale a um denunciante.
Em relação ao número de consumidores individuais, tivemos três situações: (a)
informação precisa do número de consumidores, no caso, 1, 13 e 20; (b) informação de
número “aproximado”, sendo num processo 1000 e em outro, 1200; e (c) informações
imprecisas apontando “vários” consumidores ou “grupos” de consumidores. Nestes casos,
deduzimos que se trata de uma ou algumas dezenas, pois quando se tratou de número mais
expressivo, houve a menção desta quantidade (ver letra “b”). Deste modo, podemos deduzir
que o total de consumidores individuais corresponde a um número variável entre 1300 e 1500.
Agora, o ano de 2013 e suas observações:
MÊS
PROC.
PARTES
RESUMO
DECISÃO
Mar
022/13
048/13
Mar
Mar
181/13
311/12
Mar
320/12
Abr
292/12
11 consumidores X
Dafra Motos
Maio
078/12
15 consumidores X VW
Veículos
Maio
081/13
Maio
118/13
Jun
127/13
Aproximad. 10
consumidores X Oi
Vários consumidores X
O Boticário
3 cons. X Eudora
Anúncio discriminatório contra a mulher
negra.
Desrespeito e discriminatório contra as
mulheres.
Desrespeito com as mulheres
Anúncio abusivo, discriminatório e
machista.
Desrespeito à mulher. Duas moças em
trajes sumários se massageiam, despindo
homem e perfumando-o com
desodorante.
Modelo de biquíni reclinada sobre uma
moto da empresa com o título “Dafra –
Compre que eu dou pra você”.
Mecânica “fácil” para mulheres.
Desrespeito e discriminação com a
condição feminina.
Modelo seminua anuncia serviços da
“Oi”, no Dia Internac. da Mulher
Sexismo em anúncio para TV, que
insinuaria infidelidade da mulher.
Tratamento preconceituoso à mulher.
Arquivado
Mar
4 consumidores X
Duloren
3 consumidores X
Renault
30 cons. X Unilever
34 consumidores X
Agência Black
1 consumidor X Unilever
Arquivado
Arquivado
Sustação e
advertência
Sustação e
advertência
Sustação e
advertência
Arquivado
Sustação
Arquivado
Arquivado
15
Informação obtida no site do FENEPOSPETRO. Endereço: http://frentista.org.br/a-fenepospetro/. Acessado
em 23 agosto de 2014.
624
Jul
Jul
Jul
095/13
137/13
173/13
1 consumidora X Ellus
1 cons. X Peugeot
Aproximad 100
consumidores X Yamaha
Set
080/13
31 consumidores X
Rechitt B. Brasil
Out
232/13
15 consumidores X FIAT
Nov
231/13
5 consumidores X Tema
Propaganda
Machismo e violência contra a mulher
Machismo em anúncio de TV.
Publicidade ofensiva e machista. Associa
toques de buzina a cantadas dirigidas a
"tipos" de garotas: “Asfalto", "Garupa",
"Delivery", "Família" etc
Anúncio machista e preconceituoso,
propondo trocar o "tanque velho" por um
"homem tanquinho".
Publicidade machista e ofensiva.
Apologia ao assédio sexual
Anúncio desrespeitoso e discriminatório.
Título: “Redator procura diretora de arte
charmosa, cheirosa e talentosa. Ok, se
você for um diretor de arte talentoso e
com experiência, também serve".
Arquivado
Arquivado
Sustação
Arquivado
Arquivado
Arquivado
No ano de 2013 ocorreram dezesseis (16) julgamentos, dos quais apenas cinco (05)
foram julgados procedentes, o que representa 31%. Os outros onze (11) foram arquivados,
correspondendo a 69%.
Aqui também, todos os processos foram instaurados por queixa de consumidores,
mas com um quadro bem diferente do ano anterior: não há órgãos representativos de grupos, e
as quantidades de consumidores apresentam-se em número mais baixo, embora também em
número impreciso. Contudo, é possível apontar um número entre 270 e 300 consumidores,
portanto, bem abaixo do período anterior.
Abaixo, o ano de 2014:
MÊS
PROC.
PARTES
RESUMO
DECISÃO
Mar
008/14
029/14
Mar
033/14
Mar
319/13
Mar
339/13
Maio
049/14
Alusão excessiva à sensualidade e
incentivo ao turismo sexual.
Suposto preconceito machista em spot de
rádio da cerveja Itaipava.
Peça publicitária educativa contra jogar
bitucas de cigarro no chão e areia das
praias. Apelo ao corpo feminino.
Desrespeito e discriminação. Alusão da
“bunda caída” ao lixo.
Apelo excessivo à sensualidade
(preservativo Olla).
Anúncio de máquinas agrícolas.
Desrespeito. Jovens, roupas provocantes
dançando em torno dos produtos.
Comercial desrespeitoso com as
mulheres. Cantor Compadre Washington
chama mulher de ‘ordinária’.
Arquivado
Mar
4 consumidores X
COCA-COLA
1 consumidora X
Cervejaria Petrópolis
100 consumidores
(aprox.) X Move Rio
Apelo excessivo à sensualidade em
campanha da cerveja Antarctica.
Arquivada
Maio
072/14
100 consumidores
(aprox.) x Hypermarcas
4 consumidores X Stara
50 consumidores X Bom
Negócio (Compadre
Washington)
Ouvidoria da Secretaria
de Políticas para as
Mulheres X AMBEV
Arquivado
Arquivada
(pela perda
do objeto)
Alteração
Arquivada
Alteração
(alterada em
grau de
recurso,
arquivada)
625
Maio
073/14
50 consumidores X P&G
Maio
089/14
5 consumidores X TSE
(Tribunal Sup. Eleit.)
Maio
304/13
Jul
031/14
Jul
085/14
Jul
155/14
Jul
156/14
Set
191/14
Out
049/14
(Recurs
o)
2 consumidoras X
Cervejaria Petrópolis
1 consumidora X Sul
América
1 consumidor X
Mitsubishi
1 consumidor X
CONDOR
7 consumidores X
Mondelez Brasil/Belvita
4 consumidores X
Química Amparo (prod.
Limpeza)
50 consumidores X Bom
Negócio (Compadre
Washington)
Nov
201/14
Nov.
220/14
Nov.
073/14
(Recurs
o)
2 consumidoras X
Agência AlmaBBDO
2 consumidoras X Casa
Di Conti
50 consumidores X P&G
Comercial desrespeitoso, machista e
homofóbico. Desodorante apresentado
como sendo para "homens homens".
Arquivada
Anúncio do TSE para participação
política da mulher, que estimularia
guerra entre os sexos e machismo.
Machismo e desrespeito à mulher.
Arquivada
Desrespeito à condição feminina em spot
de rádio da Sul América.
Desrespeito à mulher em anúncio
promovendo a marca Mitsubishi.
Anúncio de supermercados considerado
desrespeitoso à figura feminina.
Comercial com casal de atores famosos,
considerado desrespeitoso à mulher.
Desrespeito à mulher (só seria dela a
responsabilidade de cuidar da casa e da
família).
Comercial desrespeitoso com as
mulheres. Cantor Compadre Washington
chama mulher de ‘ordinária’.
Arquivada
Anúncio internet. Desrespeito à mulher e
seu corpo. Despida. Abuso sexualidade.
Anúncio no Facebook, machista e
ofensivo, com a chamada: “Tenho medo
de ir no bar pedir uma rodada e o garçom
trazer minha ex”.
Comercial desrespeitoso, machista e
homofóbico. Desodorante apresentado
como sendo para "homens homens".
(em grau de
recurso,
mantido
arquivamento)
Arquivada
Arquivada
Arquivada
Arquivada
Arquivada
Arquivado
(mesmo
proc. de
Maio)
Arquivada
Sustação e
Advertência
Arquivada
(mesmo
proc. de
Maio)
No ano de 2014, de fevereiro a dezembro, ocorreram dezenove (19) julgamentos,
contudo, dois (02) deles foram recursos de processos julgados no mês de maio. Assim, para
fins deste trabalho, onde levamos em conta o número de “denúncias”, consideraremos o total
de dezessete (17) processos.
Desses, apenas dois (02) tiveram acolhimento, com alteração ou sustação do
conteúdo, sendo os demais arquivados sob o fundamento de não ofenda ao Código de Ética ou
outra legislação invocada. Cumpre mencionar que o processo 049/2014 (Cumpadre
Washington), foi primeiramente alterado, tendo o entendimento sido alterado em grau de
recurso, para o arquivamento da denúncia.
Os processos foram instaurados por um total aproximado de 334 consumidores
individuais, e um deles por um órgão público, a Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as
Mulheres. Consideramos, portanto, um número final de 335 (aproximadamente).
626
3.2 ENTRE O CERCEAMENTO E A LIBERALIDADE: DESTACANDO ALGUNS
JULGADOS
Determinados julgados podem ser considerados paradigmáticos para afirmar que as
decisões do CONAR seguem uma linha, digamos, flexível e permissiva. Nos casos a seguir,
fica clara uma postura pró-liberdade de expressão e da livre criação, em detrimento de um
rigor que pudesse, no mínimo, conter uma carga pedagógica aos anunciantes, visando
enfrentar a questão da coisificação feminina.
No processo 108/12, instaurado contra uma academia de ginástica, o anúncio ao
público masculino era “A receita é simples: fique forte! E pegue mais mulheres. Somos fúteis,
mas somos pegadores". O anúncio, em que pese nos pareça uma clara mensagem de
objetificação da mulher e supremacia masculina, restou arquivado por entenderem que a peça
tinha mero caráter humorístico.
No processo 204/12, o anúncio de desodorante masculino afirmava que usando o
produto “você começa a acumular mulheres". Portanto, sob o ponto de vista de muitos
discursos feministas e pró-igualdade dos sexos, um texto destacadamente machista e
desrespeitoso. O relator iniciou o seu voto informando preocupação em não incentivar "a
patrulha comandada pelos politicamente corretos". Segundo ele, os ataques têm sido
"contínuos e persistentes e, cada vez mais, o que é censura vem sendo interpretado como boas
intenções". Foi adiante: “Para nós, do Conselho de Ética, é cada vez mais desafiador
distinguir o que é tentação autoritária travestida de boa intenção do que é, de fato, desrespeito
ao Código e, portanto, à sociedade e ao mercado". No mérito, ele não julgou condenável a
imagem apresentada ou o apelo, mas sim o termo "acumular mulheres". Seu voto, pela
alteração desta parte do texto, foi aceito por unanimidade.
Já o processo 216/12 tratou de um comercial bastante famoso, da cerveja Skin, onde
amigos na praia se imaginam “invisíveis”, seguindo-se com as cenas “imaginárias” onde eles
invadem um banheiro feminino, beliscam moças, desamarram laços de biquínis. A denúncia
argumentou desrespeito à condição feminina, supondo que o comercial beiraria a fazer uma
"apologia do estupro". Inclusive a peça já havia sido objeto de processo anterior, de nº 062/12,
que foi arquivada. Tendo em vista inúmeras novas reclamações, inclusive contra a decisão do
órgão pelo arquivamento, a direção do CONAR resolveu levar o filme novamente a exame
pelo Conselho de Ética, especialmente para verificação de cometimento de nova infração – o
suposto estímulo à prática de ação criminosa. O novo julgamento, a exemplo do primeiro,
627
entendeu pelo arquivamento por não haver ofensa ética. Foi acompanhado por unanimidade.
Cumpre transcrever trecho do voto:
Esse inconformismo levou alguns a ofender o CONAR. Não levei em consideração as
ofensas porque sei que são totalmente desprovidas de base. Mas é exatamente esse
ímpeto, essa vontade de impor uma crença sobre qualquer outra coisa que impede os
manifestantes de observar, com um mínimo de atenção, que a legislação citada por
eles não foi violada, de forma alguma. A mim, parece claro que as mulheres que
aparecem no filme foram surpreendidas com liberdades – excessivas para as
condições normais – tomadas por rapazes na condição de invisibilidade. Penso que
nem o mais severo dos juízes conseguiria interpretar a lei de forma tão restritiva.
Parece-me que o emocional se sobrepôs ao racional, e os manifestantes não atentaram
para essa ausência de dolo.
Em linha semelhante, destacamos o processo 078/12 contra a Volkswagem, com o
anúncio publicitário “Mecânica ‘fácil’ para mulheres”. A denúncia alegou desrespeito e
discriminação com a condição feminina, já que sedimenta a imagem estereotipada da mulher
que não entende nada de carro. A defesa enviada pelo VW negou tal intenção, enfocando o
caráter humorístico do texto. A relatora concordou com essa argumentação e propôs o
arquivamento, que foi aceito por unanimidade. Disse ela: “Observo que há, sim, um tom
jocoso no anúncio, mas que tem o dom de despertar muito mais a simpatia do público
atingido do que um sentimento machista".
No processo 137/13 encontramos uma decisão que bem representa o tom em vários
julgamentos. A consumidora viu insinuação de machismo em filme para a TV da Peugeot. A
relatora não concordou com esse ponto de vista e, depois de estudar a defesa enviada por
anunciante e agência, propôs o arquivamento. Disse ela:
Acredito que seja uma das funções dessa Casa não só zelar pela ética na propaganda,
como também defender posição para a que a criatividade publicitária não se torne
engessada e impossibilitada de buscar artifícios e caminhos diferentes para divulgar
produtos e serviços.
Em sentido parecido, pode-se apontar o processo 231/13, no qual o anúncio ostentava
o título “Redator procura diretora de arte charmosa, cheirosa e talentosa”. Ok, se você for
um diretor de arte talentoso e com experiência, também serve". Em que pese poder ser taxado
de uma pérola androcêntrica, a relatora recomendou o arquivamento do caso, o que foi aceito
por unanimidade. Um trecho do voto:
Tolher a liberdade de criação de um anúncio como esse é admitir que a publicidade
politicamente correta deva fazer parte do nosso cotidiano", escreveu, em seu voto.
Seria, como entende, "um tiro no pé, um convite à chatice e à conclusão de que nossos
consumidores não têm inteligência suficiente para discernir o exagero do humor
daquilo que efetivamente se configura desrespeito.
628
De outro lado, temos dois exemplos no ano de 2014 de decisões, em certa medida,
com tom mais rígido. No processo 033/14, o arquivamento se deu pela perda do objeto, mas o
relator não perdeu a oportunidade de mencionar o conteúdo inapropriado da publicidade em
questão, que tratou de peça educativa carioca contra o ato de jogar bitucas de cigarro no chão
e nas praias, usando a imagem do corpo feminino de maneira desrespeitosa e discriminatória,
chamando a relacionar a “bunda caída” com lixo. Aludiu o relator:
Em vez de conscientizar a sociedade dos malefícios de se atirar guimba no chão, a
campanha acabou mostrando que ampla parcela da população está contra a exploração
do corpo da mulher de forma gratuita. A julgar pela centena de mensagens que fazem
parte desse processo, os cariocas se ofenderam com mais esse uso desrespeitoso do
corpo da mulher. E é essa população que deve contar com o Conar. Este órgão deve
acolher todos os cidadãos que se julgam desrespeitados pela propaganda. O que
parece ser o caso.
Já o processo 049/14 tratou de um comercial bastante famoso, onde o cantor do grupo
É o Tchan, Compadre Washington, chama uma mulher de ordinária, na verdade, um bordão
conhecido do cantor. A relatora reconheceu a forma inusitada e divertida da peça, mas aduz
que o personagem não deveria ter sido deixado “tão livre a ponto de comprometer a
linguagem do comercial”. Para ela, o fato de certos bordões serem conhecidos do público em
outras épocas, não os torna menos agressivos e ofensivos, razão pela qual, recomendou a
alteração do comercial. Contudo, em grau de recurso, o órgão reviu tal posição e determinou o
arquivamento da denúncia por entender que não houve ofensa.
Não há dúvida que a tarefa dos julgadores é dificílima, uma vez que é tênue o limite
entre o desrespeito e a liberdade, especialmente em peças humorísticas. Neste sentido, eles
mostram-se preocupados com as tendências chamadas politicamente corretas, que por vezes
podem sim, resvalar para um fundamentalismo irrazoável. De outro lado, interpretações
elásticas e condescendentes podem ocultar (e até estimular) mensagens discriminatórias e de
opressão.
O ordenamento legal oferece parâmetros suficientes para as análises decisórias,
compreendido entre normas constitucionais, consumeristas, civilistas e códigos de ética. A
questão é como operar a aplicação destas normas: se em consonância com o atual modelo
social da hegemonia masculina, ou se em direção a uma nova perspectiva de sociedade,
construída sob novos valores. Nesse (re)pensar, surgirá espaço para problematizar o próprio
modelo econômico de consumo, guiado pela produção de bens incessante e massificada, onde
valores são trocados por preços, cenário que ensejada, comumente, a ultrapassagem de limites
éticos. Como já dito, o mercado publicitário se nutre dos valores sociais e ao mesmo tempo os
629
dita. Uma retroalimentação. O CONAR (e seus julgadores), pois, atua nesta base, que
apresenta de um lado, a dimensão androcêntrica, e de outro, o império do consumo e da
produção de desejos artificiais, o que pode explicar, de certo modo, o teor de grande parte das
decisões acima relatadas, numa linha digamos, mais transigente e liberal.
4 SOBRE AS AGÊNCIAS DE PUBLICIDADE
Andrea Dip é jornalista investigativa na área de direitos humanos da Pública –
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, e publicou recente reportagem intitulada
“Machismo é a regra da casa”,16 onde traz à tona uma realidade alarmante: publicitárias
denunciando abusos de que são vítimas no trabalho das agências, afirmando que os anúncios
machistas e que causam indignação nas mulheres, nascem da cultura interna das próprias
agências. A reportagem contatou várias profissionais do meio publicitário, tendo muitas
solicitado anonimato pelo temor de perder o emprego. Os relatos trazem casos de abuso,
assédio e violência psicológica que viveram ou ainda vivem em suas carreiras.
Uma das entrevistadas identificadas, Carla Purcino, gerente de planejamento afirma:
“Quando a gente olha para a representatividade feminina na publicidade percebe que é
praticamente 50%. Mas a distribuição dentro dos departamentos é muito diferente. Entende-se
que a criação é um reduto masculino e que a mulher é mais adequada para o departamento de
atendimento”. F.B., 32 anos, aponta a mesma questão: “Existe quase uma ordem natural de
colocar as mulheres nas áreas de atendimento e gerenciamento de projeto do que e qualquer
outra. Existe uma série de piadas extremamente machistas e misóginas que ‘brincam’ com
essa relação de mulher sempre virar atendimento”. R.J., 32 anos, conta: “Trabalhei para
marcas como Brahma, Skol e Budweiser, em que o machismo impera em qualquer peça de
comunicação. Por mais que tentássemos abrandar ou mostrar um novo viés para a campanha,
sempre éramos obrigadas a seguir os conceitos e o lugar-comum das marcas de cerveja em
que a mulher é só mais um ser criado para satisfazer e obedecer o homem”.
Já a diretora de criação, Thaís Fabris, diz que para fazer parte do grupo, muitas
mulheres também acabam se masculinizando e até reproduzindo esse machismo. “É a maneira
que encontram de preservar suas carreiras. Emudecem e não questionam ou entram na lógica
e reproduzem”. Para ela, as várias formas de violências contra a mulher podem ser
incentivadas pela publicidade:
16
Acessado em 17/03/2015, pelo endereço http://apublica.org/2015/03/machismo-e-a-regra-da-casa/.
630
Nós publicitários temos que perceber a responsabilidade que temos enquanto criadores
de comunicação em massa. Não é porque uma coisa funciona, que as pessoas
compram, que a gente pode reforçar estes estereótipos muito perigosos. Quando a
gente fala em ‘mulher objeto’, essa mulher está lá na outra ponta, com o homem se
achando dono dela e acreditando que se aquele brinquedo não funcionar do jeito que
ele quer, ele pode quebrar. E você tem uma mulher morrendo a cada 90 minutos no
Brasil. A gente está sim reforçando e habilitando esse comportamento. A propaganda
que pergunta ‘você está pronta pra ir pra praia?’ tem responsabilidade sobre a mulher
que está morrendo em mesa de cirurgia ou morrendo de anorexia! A propaganda é
feita pra isso, pra influenciar decisões e gerar a compra de produtos. Mas eu já disse e
repito: antes de falar sobre publicidade machista, precisamos falar sobre machismo na
publicidade. Porque ela existe, é real, acontece todos os dias dentro das agências.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cenário sociocultural do país tem a marca da violência simbólica contra a mulher,
um fenômeno produzido e reproduzido nas publicidades em todas as mídias. A par disso,
vimos que existem esforços que reagem a esse contexto, representados em movimentos
sociais e políticos organizados, que disseminam suas ideias na sociedade, com vistas a
construir um novo paradigma, de respeito, dignidade e negação a essa histórica opressão. A
partir dessa premissa, colocamos como problema a efetiva postura da sociedade frente a tal
realidade, mensurando em que medida ela compreende e se insurge contra estes abusos, a
ponto de denunciar anúncios supostamente sexistas ao CONAR, tendo como base o triênio
2012/2013/2014.
Os dados coletados nos pareceram insuficientes para sustentar que a sociedade esteja
suficientemente atenta e mobilizada para isso. Veja-se que em 2012 tivemos 1300 a 1500
denunciantes, e em 2013, entre 270 e 300, numa redução drástica17, patamar mantido em
2014: 335 denunciantes. O fato é que no período de três (03) anos, o número de denunciantes
girou em torno de dois mil (2.000), quantidade baixa se a cotejarmos com o número
populacional do país e a produção massiva da publicidade no período. Os números de
julgamentos a respeito do tema igualmente foram ínfimos: doze em 2012, dezesseis em 2013
e dezessete em 2014, totalizando quarenta e cinco no período, dos quais apenas quatorze, ou
seja, 31% foram julgados procedentes, isto é, foram sustados ou sofreram alteração na sua
mensagem. Lembrando que o CONAR atua em todas as mídias: TV, rádio, internet, jornal,
revistas, outdoors entre outros.
17
Não é possível maiores digressões sobre esta redução significativa de um ano para outro. Para maiores
conclusões caberia uma análise evolutiva a ser feita sob um período mais longo, verificando tendências, médias
de outros anos, e considerando sempre os contextos envolvidos, como a quantidade e qualidade da produção
midiática em cada época, eventuais campanhas educativas realizadas, papel dos movimentos sociais, etc.
631
O resultado em geral – de poucos denunciantes e reduzidos julgamentos, dos quais a
maior parte foi improcedente – merece reflexão quanto às suas causas, pois destoa da
realidade aqui demonstrada, de uma sociedade (e sua publicidade produzida) marcada pela
dominação masculina e objetificação da mulher. As pesquisas de opinião aqui trazidas dão
conta de que uma boa parte da população percebe esta realidade e não concorda com ela, o
que, todavia, não está espelhado nos números objetivamente levantados junto ao CONAR.
Destarte, foi possível identificar com clareza uma baixa mobilização social para
formular denúncias, e também, uma postura dos julgadores do CONAR alinhada ao ideal
liberal do mercado e das práticas de livre expressão e criação, mostrando uma permissividade,
no mínimo, merecedora de discussão, perceptível, sobretudo, quando a peça apresenta caráter
humorístico, o que nos leva ao debate sobre os limites do humor como instrumento de
comunicação e crítica social. Estamos, pois, diante de um nicho onde a luta pela igualdade de
gênero precisa intensificar suas ações e pensar estratégias. Ainda, urge que os responsáveis
pela publicidade no país, reflitam sobre sua atuação de reprodução de estereótipos e
mensagens simbólicas de uma cultura machista; e essa mudança deve envolver todos os atores
que habitam esse campo: publicitários, empresários, clientes e os próprios julgadores do
CONAR. Outra medida, simples e objetiva, seria a maior divulgação sobre a atuação deste
órgão, por certo, desconhecido do grande público, o que poderia alavancar o número de
denúncias.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 4ª ed. Difusão Europeia do Livro. São Paulo,
1970.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina (1998). 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2002.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). 4ª
edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Ed. 2012.
Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Código Brasileiro de
Autorregulamentação Publicitária.
______. Regimento Interno do Conselho de Ética – RICE.
CRUZ, Sabrina Uzêda da. A representação da mulher na mídia: um olhar feminista sobre
as propagandas de cerveja. Revista Travessias. Vol. 2, nº 2 (2008). Publicação do Grupo de
632
Pesquisas em Educação, Cultura, Linguagem e Arte e do Programa de Pós-graduação em
Letras: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
DIP, Andrea. Machismo é a regra da casa. Reportagem publicada no site da Pública –
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. http://apublica.org/2015/03/machismo-ea-regra-da-casa/. Acessado em 17/03/2015.
MUJERES BRASILEÑAS: Del icono mediático a la realid. Tradução livre: “Mulheres
brasileiras: de ícone midiático à realidade”. Direção: Laura Toledo Daudén, Andrea Gago Menor
e Alba Onrubia García. Produção: Pueblos-Revista de Información y Debate y Paz con
Dignidad. Duração: 14 minutos. Espanha, março de 2014. Disponível:
http://www.youtube.com/watch?v=MyDfr4N7dWk.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica, 1986.
VALEK, Aline. A mulher brasileira existe, mas não para satisfazê-los: como a imagem
propagada para o mundo contribui para a ideia equivocada de que somos apenas corpos
disponíveis. Crônica publicada no blog Escritório Feminista, no site de Carta Capital em
18/06/2014. http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/nos-existimos-masnao-para-satisfaze-lo-6118.html. Acessado em 14/07/2014.
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