XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS DIREITOS FUNDAMENTAIS JONATHAN BARROS VITA VALÉRIA SILVA GALDINO CARDIN LUCAS GONÇALVES DA SILVA Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores. Diretoria – Conpedi Presidente - Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa – UFRN Vice-presidente Sul - Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Junior - UFRGS Vice-presidente Sudeste - Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM Vice-presidente Nordeste - Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR Vice-presidente Norte/Centro - Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP Secretário Executivo -Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC Secretário Adjunto - Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto – Mackenzie Conselho Fiscal Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente) Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente) Representante Discente - Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular) Secretarias Diretor de Informática - Prof. Dr. Aires José Rover – UFSC Diretor de Relações com a Graduação - Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs – UFU Diretor de Relações Internacionais - Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC Diretora de Apoio Institucional - Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC Diretor de Educação Jurídica - Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM Diretoras de Eventos - Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen – UFES e Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA Diretor de Apoio Interinstitucional - Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira – UNINOVE D598 Direitos fundamentais [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS; Coordenadores: Lucas Gonçalves Da Silva, Jonathan Barros Vita, Valéria Silva Galdino Cardin– Florianópolis: CONPEDI, 2015. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-051-0 Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações Tema: DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de desenvolvimento do Milênio. 1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Direito fundamentais. I. Encontro Nacional do CONPEDI/UFS (24. : 2015 : Aracaju, SE). CDU: 34 Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS DIREITOS FUNDAMENTAIS Apresentação O XXIV Encontro Nacional do CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito em parceria com o Programa Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe UFS, ocorreu em Aracaju entre os dias 03 e 06 de junho de 2015 e teve como tema central DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de desenvolvimento do Milênio. Dentre as diversas atividades acadêmicas empreendidas neste evento, tem-se os grupos de trabalho temáticos que produzem obras agregadas sob o tema comum do mesmo. Neste sentido, para operacionalizar tal modelo, os coordenadores dos GTs são os responsáveis pela organização dos trabalhos em blocos temáticos, dando coerência à produção e estabelecendo um fio condutor evolutivo para os mesmos. No caso concreto, assim aconteceu com o GT DIREITOS FUNDAMENTAIS. Coordenado pelos professores Jonathan Barros Vita, Lucas Gonçalves da Silva e Valéria Galdino Cardin, o referido GT foi palco da discussão de trabalhos que ora são publicados no presente e-book, tendo como fundamento textos apresentados que lidam com diversas facetas deste objeto fundamental de estudos para a doutrina contemporânea brasileira. Como divisões possíveis deste tema, na doutrina constitucional, o tema dos direitos fundamentais tem merecido também a maior atenção de muitos pesquisadores, que notadamente se posicionam em três planos: teoria dos direitos fundamentais, direitos fundamentais e garantias fundamentais, ambos em espécie. Logo, as discussões doutrinárias trazidas nas apresentações e debates orais representaram atividades de pesquisa e de diálogos armados por atores da comunidade acadêmica, de diversas instituições (públicas e privadas) que representam o Brasil em todas as latitudes e longitudes, muitas vezes com aplicação das teorias mencionadas à problemas empíricos, perfazendo uma forma empírico-dialética de pesquisa. Como o ato de classificar depende apenas da forma de olhar o objeto, a partir da ordem de apresentação dos trabalhos no GT (critério de ordenação utilizado na lista que segue), vários grupos de artigos poderiam ser criados, como aqueles que lidam com: questões de raça, religião e gênero (8, 10, 12, 13, 15, 24 e 27), concretização de direitos fundamentais (1, 5, 9, 11, 16, 18, 19 e 22), liberdade de expressão e reunião (3, 6, 17 e 25), teoria geral dos direitos fundamentais (7, 14) e temas multidisciplinares que ligam os direitos fundamentais a outros direitos (2, 4, 20, 21, 23, 26 e 28) 1. A inclusão nos mecanismos de produção de riqueza face à relativização do princípio da igualdade pelos programas de transferência de renda, de Rogério Piccino Braga 2. Benefícios da clonagem terapêutica e as células-tronco embrionárias frente ao princípio da dignidade humana no ordenamento jurídico brasileiro, de Janaína Reckziegel e Luiz Henrique Maisonnett 3. As teses revisionistas e os limites à restrição da liberdade de expressão, de Rodrigo De Souza Costa e Raisa Duarte Da Silva Ribeiro 4. A inviolabilidade do domicílio no curso da fiscalização tributária, de Pedro Cesar Ivo Trindade Mello 5. Acessibilidade: um direito fundamental da pessoa com deficiência e um dever do poder público, de Flavia Piva Almeida Leite e Jeferson Moreira de Carvalho 6. Biografias não autorizadas e o direito à privacidade na sociedade da informação, de Narciso Leandro Xavier Baez e Eraldo Concenço 7. O princípio da igualdade e suas dimensões: a igualdade formal e material à luz da obra de Pérez Luño, de Giovanna Paola Batista de Britto Lyra Moura 8. Intolerância contra as religiões de matriz africana: uma análise sobre colisão de direitos através de casos judiciais emblemáticos, de Ilzver de Matos Oliveira e Kellen Josephine Muniz De Lima 9. A criança e o adolescente e os direitos fundamentais - o papel das mídias sociais e das TICs sob o prisma do princípio da proteção integral e da fraternidade, de Bruno Mello Corrêa de Barros e Daniela Richter 10. Laicidade e símbolos religiosos no brasil: em defesa da liberdade religiosa e do estado democrático de direito, de Eder Bomfim Rodrigues 11. O serviço público adequado e a cláusula de proibição de retrocesso social, de Paulo Ricardo Schier e Adriana da Costa Ricardo Schier 12. Sobre a dominação masculina (re)produzida na publicidade: reações da sociedade vistas a partir de denúncias ao CONAR, de Helio Feltes Filho e Taysa Schiocchet 13. É para rir? A atuação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos casos envolvendo liberdade de expressão e racismo nos discursos humorísticos, de Caitlin Mulholland e Thula Rafaela de Oliveira Pires 14. O poder judiciário, a constituição e os direitos fundamentais: ativismo judicial no STF pela crítica de Antônio José Avelãs Nunes, de Tassiana Moura de Oliveira e Ana Paula Da Silva Azevêdo 15. Mudança de sexo e a proteção dos interesses de terceiros, de Kelly Cristina Presotto e Riva Sobrado De Freitas 16. Os custos dos direitos fundamentais e o direito prestacional/fundamental à saúde, de Rubia Carla Goedert 17. Democracia na era da internet, tática black bloc e direito de reunião, de Gilton Batista Brito e Lucas Gonçalves Da Silva 18. A pessoa com espectro autista e o direito à educação inclusiva, de Carolina Valença Ferraz e Glauber Salomao Leite 19. A problemática dos custos no campo de execução dos direitos fundamentais: alternativas e soluções para o cumprimento do mínimo existencial, de Diogo Oliveira Muniz Caldas 20. Direitos fundamentais: questões de princípios entre o viver e o morrer, de Robson Antão De Medeiros e Gilvânklim Marques De Lima 21. A Amazônia e o paradoxo das águas: (re)pensando a gestão hídrica urbana, de Jefferson Rodrigues de Quadros e Silvia Helena Antunes dos Santos 22. Beneficio constitucional de prestação continuada: o recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o critério da renda per capita à luz da efetividade, de Benedito Cerezzo Pereira Filho e Luiz Fernando Molan Gaban 23. Os "mortos" civilmente: aspectos políticos e jurídicos acerca da invisibilidade do preso provisório em um estado democrático de direito, de Samyle Regina Matos Oliveira e Edinilson Donisete Machado 24. As mulheres no mercado de trabalho: desmistificando a igualdade entre os gêneros, de Deisemara Turatti Langoski e Olga Maria B Aguiar De Oliveira 25. Os limites entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio: uma análise sobre o caso dos supostos justiceiros , de Rafael Santos de Oliveira e Claudete Magda Calderan Caldas 26. Tráfico de pessoas para retirada ilegal de órgãos: um crime degradante contra o ser humano, de Fernando Baleira Leão De Oliveira Queiroz e Meire Marcia Paiva 27. O desafio da igualdade: casos de intolerância religiosa na contemporaneidade e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, de Jose Lucas Santos Carvalho 28. O cadastro ambiental rural como direito à informação e o sigilo de dados, de Luciana Costa da Fonseca e Danielle Fonseca Silva Finalmente, deixa-se claro que os trabalhos apresentados no GT DIREITOS FUNDAMENTAIS, acima relatados, foram contemplados na presente publicação, uma verdadeira contribuição para a promoção e o incentivo da pesquisa jurídica no Brasil, consolidando o CONPEDI, cada vez mais, como um ótimo espaço para discussão e apresentação das pesquisas desenvolvidas nos ambientes acadêmicos das pós-graduações. Desejamos boa leitura a todos. Prof. Dr. Jonathan Barros Vita - Unimar Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS Profa. Dra. Valéria Galdino Cardin - Unicesumar SOBRE A DOMINAÇÃO MASCULINA (RE)PRODUZIDA NA PUBLICIDADE: REAÇÕES DA SOCIEDADE VISTAS A PARTIR DE DENÚNCIAS AO CONAR ABOUT MALE DOMINATION (RE) PRODUCED IN ADVERTISING: SOCIETY REACTIONS FROM CONAR REPORTING Helio Feltes Filho Taysa Schiocchet Resumo O cenário sociocultural brasileiro está marcado pela violência simbólica contra a mulher, realidade que é produzida e reproduzida na publicidade. A par disso, movimentos sociais e políticos reagem a esse contexto, disseminando ideias para a construção de um novo paradigma, baseado na igualdade, respeito e negação a essa histórica opressão. Mas em que medida o esforço dessas resistências alcançam êxito? Como esta mensagem contrária à dominação masculina, notadamente aquela presente na publicidade, vem impactando na consciência social? Esta pesquisa objetiva fazer uma leitura dessa questão a partir de denúncias feitas ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), contra publicidades supostamente sexistas. Ou seja, investigar a postura da sociedade frente a tais ocorrências, aferindo até onde há uma real compreensão e oposição proativa a esse cenário, ao ponto de serem formuladas denúncias ao órgão. Embora a grande informação sobre direitos e os avanços feministas, nossa hipótese é que o número de denúncias é reduzido, o que nos levará a ensaiar reflexões sobre múltiplas causalidades. Abordaremos também o papel das agências publicitárias e do próprio CONAR, com vistas ao necessário aprimoramento da consciência social em relação a essa forma de violência de gênero. Palavras-chave: Violência simbólica. gênero. feminismo. Abstract/Resumen/Résumé The Brazilian sociocultural landscape is marked by symbolic violence against women, a reality that is produced and reproduced in advertising. Alongside this, social and political movements respond to this context, disseminating ideas for the construction of a new paradigm, based on equality, respect and denial of this historical oppression. However, to what extent the efforts of these resistances are successful? How the message contrary to male domination, especially presents in advertising, has impacted the social consciousness? This research aims to discuss this issue from complaints made to the National Council for Advertising Self-Regulation (CONAR) against supposedly sexist advertising. Inother words, to investigate the society posture to such events, checking to where there is a real understanding and proactive opposition to this scenarior. Although there is vast information about rights and feminist advances, our hypothesis is that the number of complaints is reduced, which will lead us to rehearse reflections on multiple causalities. We will also 612 explore the role of advertising agencies and CONAR, with a view to the necessary improvement of social awareness in relation to this form of gender violence. Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Symbolic violence, Genre. feminism. 613 1 INTRODUÇÃO A dominação masculina que oprime e discrimina a mulher constitui-se numa ordem fundante da sociedade. Segundo Bourdieu (1999), ela funciona como uma imensa máquina simbólica que ratifica esta condição androcêntrica, o que se vê, por exemplo, na divisão do trabalho, na estruturação dos espaços públicos e na divisão da casa. Ao mesmo tempo, observamos o crescimento de forças sociais que combatem esta condição de inferioridade da mulher, o que o próprio Bourdieu reconhece: “(...) A maior mudança está, sem dúvida, no fato de que a dominação masculina não se impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível”. Nesse sentido, ele destaca a importância do trabalho crítico do movimento feminista, o que vemos resultar hoje em tantos avanços, mormente a positivação de direitos, a criação de instrumentos de proteção contra violências e maior espaço na política. Mas em que medida tais progressos são potentes para mudar o modelo vigente? A partir de Butler (1990, p. 22) seria possível questioná-los, visto que suas ações e estratégias trabalham na base da estrutura masculina.1 Nesse raciocínio, tais conquistas acabariam não produzindo um real rompimento do paradigma dominante, mas colhendo êxitos de modo muito pontual, ora em conquistas no plano econômico, político ou das relações familiares, por exemplo. Avanços que, comumente, podem ser perceptíveis muito mais no plano formal do que nas práticas discursivas e nas vivências sociais. Desse modo, na dimensão concreta das relações cotidianas, a mulher ainda estaria distante de se ver alçada a uma condição de efetiva igualdade. Fato é que um campo profícuo para constatarmos esta violência simbólica, ainda tão tolerada social e culturalmente, refere-se à produção midiática, em especial na publicidade e propaganda, onde é reproduzido, sem melindres, este esquema perverso. Nesse sentido aponta Cruz (2008), em artigo que enfoca a mulher nas propagandas de cerveja: Desse modo, as práticas discursivas dominantes veiculadas nas propagandas de cerveja contribuem para que a dominação masculina perpetue, fortalecendo a discriminação das mulheres no âmbito público e principalmente no privado. Acredito que os agentes sociais sofrem ao mesmo tempo a ação das relações e agem sobre elas, podendo construir e modificar individualmente e/ou coletivamente, suas vidas, por meios das práticas sociais. A mulher (e por extensão o seu corpo - assim fragmentados) está presente nas propagandas para ser “consumida” assim como a cerveja. É necessário um discurso político eficaz sobre os usos do corpo feminino 1 Judith Butler, em sua obra Problemas de Gênero: feminismos e subversão da identidade, compreende não ser possível recusar as estruturas da linguagem e da política que compõem o campo contemporâneo do poder, mas propõe que de dentro desta estrutura, deve-se formular uma crítica às categorias de identidade que se engessaram e naturalizaram. Ela questiona o fato da categoria mulher só conquistar estabilidade no contexto da matriz heterossexual. Aduz que a noção estável de gênero não serviria mais à política feminista, que deve ser renovada para contestar as próprias reificações do gênero e identidade. 614 pela mídia, pois, ao fragmentar a mulher, dando evidencia somente a algumas partes do seu corpo, ela não se constitui enquanto sujeito. O corpo está sendo utilizado de forma “avulsa”, não sendo analisadas as consequências políticas que esse uso pode trazer. A mídia, de modo geral, é um terreno fértil para estudos e reflexões, considerando que vivemos em um mundo visual, em uma sociedade de imagens, em uma cultura cada vez mais massificada, de consumo. E justamente por isso, precisamos aprender como entender, interpretar e criticar os seus significados e imagens, especialmente para resistir às manipulações desse universo. Este artigo abordará o cenário androcêntrico produzido e reproduzido pela publicidade, e como ele vem sendo percebido e combatido pela sociedade, já que, como dissemos, existem forças que reconhecem, denunciam e buscam subverter esta ordem. Ocorre que, fundamentalmente, estas forças nascem e operam no seio de movimentos sociais, na academia ou em iniciativas no âmbito político-legislativo2. Tais exemplos podem ser relacionados a um ativismo engajado e organizado. Mas não é esta a aferição aqui pensada. A investigação também não se propõe a realizar ou mesmo traçar conclusões a partir de pesquisa de opinião pública, embora utilizaremos instrumentos deste tipo para construir uma base argumentativa. Nossa averiguação outro caminho: um levantamento e uma análise de denúncias feitas ao CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária)3 contra publicidades supostamente sexistas, com o fim de aferir a quantidade e teor destas denúncias, o número aproximado de cidadãos denunciantes e comentar alguns julgados. A demonstração deste panorama pode ser útil às pautas da igualdade de gênero, pois traz à tona outro tipo de ativismo social, praticado quase sempre individualmente, por sujeitos inconformados com o abuso publicitário, e que acabam por resultar numa força coletiva que pode impactar na realidade em prol de uma mudança de consciência a respeito do tema. A pesquisa se dará sob o triênio 2012/2013/2014, cuja base de dados se encontra integralmente disponível no site do CONAR, e ser condizente com o propósito de mero ensaio deste artigo. 2 Um exemplo é o Projeto de Lei nº 11/2003 da Dep. Iara Bernardi (PT/SP), em tramitação na Câmara dos Deputados, que visa proibir a veiculação de peças publicitárias, em qualquer meio de comunicação, que utilizem imagens sexuais como atrativo. 3 O CONAR é uma organização não governamental fundada em 1980, com sede em São Paulo, SP e atuação em todo o país, constituída por publicitários e profissionais de outras áreas, que visa promover a liberdade de expressão publicitária e defender as prerrogativas constitucionais da propaganda comercial. Sua missão, segundo expresso no site é “impedir que a publicidade enganosa ou abusiva cause constrangimento ao consumidor ou a empresas e defender a liberdade de expressão comercial”, o que se dá mediante o julgamento de denúncias pelo seu Conselho de Ética. O procedimento garante o contraditório e ampla defesa aos envolvidos, e se comprovada a procedência da denúncia, recomendará a alteração ou suspensão do anúncio. O órgão utiliza-se fundamentalmente, do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária e do Regimento Interno do Conselho de Ética – RICE. 615 Ademais, é em anos mais recentes que vemos a luta feminista tomar corpo de modo mais disseminado na sociedade brasileira, com a força de redes sociais e iniciativas ditas mais radicais, como a Marcha das Vadias, por exemplo. Assim, partindo da premissa de que a violência simbólica contra a mulher é uma marca da sociedade, sendo produzida e reproduzida na e pela publicidade, e sobre a qual incidem forças reagentes, o problema que colocamos é: em que medida esta sociedade vem se opondo contra publicidades supostamente sexistas ao ponto de formular denúncias ao CONAR? Sociedade essa que dispõe de farta informação, além de mecanismos dinâmicos de interação e mobilização social, inclusive para a busca de direitos. Nossa hipótese é de que tais números são reduzidos ao cotejá-los com a aparente realidade da publicidade sexista4, tendo presente que o universo de anúncios julgados pelo CONAR engloba todas as mídias: TV, internet, rádio, jornal, revistas, outdoors entre outros. E isso nos levará a questionar sobre as razões deste resultado ínfimo, o que passa por analisar até que ponto, realmente, a sociedade enxerga esta violência na publicidade, ou se a falta de denúncias estaria ligada a uma espécie de cidadania ainda sonolenta do brasileiro. A constatação também pode nos levar a (re)pensar sobre as ferramentas de denúncias hoje existentes, e como podem ser aprimoradas e melhor divulgadas. Enfim, o trabalho pretende ensaiar reflexões sobre a postura da sociedade, das agências publicitárias e do próprio CONAR, com vistas ao necessário aprimoramento da consciência social em relação a essas violências de gênero. 2 GÊNERO E RELAÇÕES DE PODER: CONCEITUANDO E DEMONSTRANDO A DOMINAÇÃO MASCULINA Estudar e debater questões de gênero implica necessariamente em adentrar nas relações de poder presentes nos enlaces sociais, o que nos remete à clássica definição de Scott (1986), para a qual o conceito de gênero implica em duas proposições integralmente conectadas: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. E este poder é, notadamente, o masculino, que oprime, discrimina e inferioriza a figura feminina. Beauvoir (1970), em sua obra O Segundo Sexo, mostra como nossa cultura se construiu tendo o masculino como fiel da balança, como neutro. Tudo que é considerado 4 O caráter sexista da nossa publicidade é premissa deste trabalho, com base nos textos doutrinários, jornalísticos, pesquisas e levantamentos de dados que serão mencionados. 616 feminino é específico, particular, desviante. O masculino, de outro lado, é universal, geral, norma. No mesmo sentido, cumpre novamente citar Bourdieu, ao tratar da dominação masculina: A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. Por conseguinte, a representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução social se vê investida da objetividade do senso comum, visto como senso prático, dóxico, sobre o sentido das práticas. E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se veem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica. Esta realidade pode ser atestada com números que revelam a violência doméstica ou a discriminação salarial no trabalho, só pra dar dois exemplos. Mais: o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)5 divulgou no dia 27/03/2014, a pesquisa “Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS)”, que revela o entendimento de brasileiros e brasileiras sobre a violência contra a mulher. De acordo com o estudo, dos quase quatro mil entrevistados, 58% responderam que “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”. E também, 26% dos brasileiros concordam com a ideia de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Já 82% disseram que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Segundo o IPEA, existe no Brasil um “sistema social que subordina o feminino ao masculino”, afirmando em seu relatório: Por ordenamento patriarcal e heteronormativo da sociedade entende-se uma organização social baseada no poder masculino e na qual a norma é a heterossexualidade. A sociedade se organiza com base na dominação de homens sobre mulheres, que se sujeitam à sua autoridade, vontades e poder. Os homens detêm o poder público e o mando sobre o espaço doméstico, têm controle sobre as mulheres e seus corpos. Por maiores que tenham sido as transformações sociais nas últimas décadas, com as mulheres ocupando os espaços públicos, o ordenamento patriarcal permanece muito presente em nossa cultura e é cotidianamente reforçado, na desvalorização de todas as características ligadas ao feminino, na violência doméstica, na aceitação da violência sexual. A família patriarcal organiza-se em torno da autoridade masculina; para manter esta autoridade e reafirmá-la, o recurso à violência – física ou psicológica – está sempre presente, seja de maneira efetiva, seja de maneira subliminar. 5 Site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA): http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_novo.pdf. Acessado em 18/07/2014. 617 Grande repercussão teve em 2014 as notícias de violência contra alunas ingressantes no curso de medicina da USP de São Paulo, reduto de uma elite intelectual e econômica do país, mas onde se perpetuam, ano a ano, a cultura de opressão e intimidação às calouras, com humilhações e violência sexual. Portanto, vê-se aí a violência naturalizada e praticada num ambiente acadêmico, seleto, por futuros profissionais da saúde.6 Outro fato ilustrativo e recente caso “Julien Blanc”, um suíço que viaja pelo mundo ensinando técnicas para conquistar mulheres, envolvendo violência e intimidação. Justamente pela existência de algumas forças reagentes ao contexto machista, houve um movimento forte da sociedade civil brasileira, nos últimos meses de 2014, para que as autoridades negassem a ele o visto de entrada no país.7 Como sustentamos na introdução, a publicidade tem papel relevante neste contexto, pois se utiliza de imagens, ideias e significados que refletem os padrões de dominação masculinos estabelecidos socialmente. Ou seja, ela tanto cria como reproduz esta realidade, constituindo-se em peça-chave do sistema. As práticas midiáticas reforçam os estereótipos masculinos e femininos, com representações de cunho preconceituoso, e que, na maioria, acaba passando despercebido e sem questionamentos pelo senso comum.8 Cruz (2008), valendo-se do ensinamento de Thompson (1995), analisa que esta condição acaba sendo assimilada e aceita como sendo real pela pessoa, embora seja de fato imaginária. Determinada condição ou atributo da pessoa acaba sendo naturalizado, como se fosse algo que já existe ou sempre existiu. Este processo denomina-se de reificação: uma estratégia para a permanência de determinadas normas, valores e posturas como elementos contemporâneos, justamente por serem consideradas pertencentes a uma tradição “eterna” e, por esta razão, aceita e justificável, onde uma situação transitória é representada como permanente ocultando seu caráter sócio-histórico. As propagandas se apropriam de imagens e mitos contemporâneos ou eternizados para construir um tipo de mulher, aceito e partilhado socialmente por um grupo de pessoas que se identificam com tal imagem. Nesse sentido, a prática mais comum na publicidade é a construção e a disseminação de uma imagem de mulher sexualmente desejável, que todos os homens devem aspirar e possuir, paradigma esse que acaba incorporado pelas próprias mulheres como aquilo que elas devem ser ou se tornar para serem reconhecidas e valorizadas. 6 Ver notícia no endereço: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/11/alunas-da-faculdade-de-medicina-dausp-protestam-contra-abuso-sexual.html. Acessado em 25/11/2014. 7 Ver notícia no endereço: http://noticias.terra.com.br/brasil/itamaraty-confirma-veto-a-visto-de-julien-blancno-brasil,0ac5679020ba9410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html. Acessado em 15/11/2014. 8 Nesta linha, o próprio CONAR reconhece no art. 7º do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária que “a publicidade exerce forte influência de ordem cultural sobre grandes massas da população”. 618 Tais práticas, então, moldam a sociedade com a reprodução de crenças, valores e identidades sociais, porquanto os contextos sociais são constituídos pela produção das formas simbólicas. A Copa do Mundo de 2014 sediada pelo Brasil foi pródiga em produzir anúncios publicitários machistas, como chamou a atenção, a cronista Aline Valek:9 Basta olhar com atenção para o jornalismo e para as propagandas “made in Brazil” nesta época de Copa. Em um comercial da TAM, por exemplo, que dá as boasvindas a todo o tipo de torcedor, torcedoras só são mostradas quando o narrador dá as boas-vindas às “princesas”. Porque é claro que se mulheres marcam presença nos estádios é para agradar o olhar masculino. Isso fica ainda mais evidente no jornalismo punheteiro que elege as “musas” da torcida, reforçando que a existência da mulher só serve ao propósito de embelezar o ambiente que ela frequenta, no caso, a arquibancada. Muito elucidativo trazer as reflexões de um recente documentário espanhol sobre a realidade da mulher brasileira, intitulado “MUJERES BRASILEÑAS: Del icono mediático a la realid”.10 O documentário aponta dados do Instituto Nacional de Geografia e Estatística, de que 47% das mulheres brasileiras se declaram brancas, enquanto 53%, pardas, negras, amarelas e outras. E essa grande maioria, não se vê representada na mídia e publicidade. A mulher que aparece é a branca, magra, jovem e heterossexual. O filme argumenta que os meios de comunicação no Brasil são controlados apenas por seis famílias, e esta concentração gerou disputas por públicos e mercado. Aos poucos, foram-se criando standards de beleza e comportamento, acabando com a diversidade e complexidade na reprodução da imagem da mulher. Hoje, só vai ao ar o que é facilmente consumido pelo público, que corresponde àquele padrão único, antes descrito. Uma das entrevistadas, Jacira Melo, diretora do Instituto Patrícia Galvão, diz que a desconcentração do poder da mídia é fundamental, mas também prega a necessidade de uma legislação que “dê conta de se discutir a produção dos conteúdos”. Portanto, temos aí a problemática da criação de estereótipos, dominação, além da exclusão da maior parcela da mulher brasileira. Já Rita Freire da Rede Mulher e Mídia, afirma que a mulher é insumo de negócio na mídia. Explica que a mídia tem como alvo o público em geral, e não específico, ou seja, 9 “A mulher brasileira existe, mas não para satisfazê-los: como a imagem propagada para o mundo contribui para a ideia equivocada de que somos apenas corpos disponíveis”. Crônica de Aline Valek do blog Escritório Feminista. Publicado no site Carta Capital em 18/06/2014. http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritoriofeminista/nos-existimos-mas-nao-para-satisfaze-lo-6118.html. Acessado em 14/07/2014. 10 Tradução livre: “Mulheres brasileiras: de ícone midiático à realidade”. Resenha (em espanhol): Las mujeres brasileñas son constantemente cosificadas para la venta de productos y la conquista de las audiencias. Un modelo de concentración de los medios en seis familias de gran poder, una cultura machista y la maximización del beneficio económico son algunas de las claves para entender por qué los grandes medios de comunicación presentan un modelo único de mujer y ocultan la gran diversidad existente en Brasil. El vídeo incluye entrevistas a Terezinha Vicente y Rita Freire, de la Rede Mulher e Midia; Jacira Melo, directora del Intituto Patricia Galvao; iris Miranda, psicóloga y activista, y Melissa Miranda, periodista y activista. 619 trabalha com o senso comum. Nesta realidade, utiliza uma linguagem chula porque precisa de um retorno imediato, que seja mais fácil de gerar reações. E nesse aspecto, a mulher é um argumento fácil para consegui-las. Como exemplo, o documentário apresenta trecho de uma matéria jornalística com mulheres seminuas jogando futebol, onde a narradora (uma mulher, aliás), afirma a união daquilo que o brasileiro mais gosta: futebol e bumbum. Jacira Melo afirma que a publicidade brasileira está atrasada, desatualizada, em descompasso em relação às mulheres brasileiras. E que quem produz a propaganda no país é uma elite: branca, masculina, machista e com uma visão europeia. Segundo ela, a objetificação da mulher ganha contornos explícitos em grande parte das propagandas, mas muito especialmente nas de cerveja, cuja mensagem é quase sempre no sentido de que o homem toma cerveja para “ganhar” uma mulher. Dentro de todo esse cenário, a entrevistada denuncia as dificuldades do Instituto Patrícia Galvão na divulgação do seu trabalho na mídia, devido à incompreensão de jornalistas e comentaristas, incluindo mulheres, que veem suas ações como opressoras e mal-humoradas. Outra valorosa contribuição para denunciar o cenário androcêntrico brasileiro, foi a recente pesquisa divulgada em 30/09/2013 pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, intitulada "Representações das mulheres nas propagandas na TV". O estudo ouviu 1.501 homens e mulheres maiores de 18 anos, em 100 municípios de todas as regiões do país, e mostrou que 56% dos brasileiros e brasileiras não acreditam que as propagandas de TV mostram a mulher da vida real. Para 65%, o padrão de beleza nas propagandas é muito distante da realidade da nossa população, e 60% consideram que as mulheres ficam frustradas quando não conseguem ter o corpo e a beleza das mulheres mostradas nos comerciais. Mas os índices mais afeitos à linha deste trabalho são estes: 58% entendem que as propagandas na TV mostram a mulher como objeto sexual; 84% concordam que o corpo da mulher é usado para promover a venda de produtos nas propagandas na TV; 62% concordam que “As propagandas na TV não mostram as mulheres que, além de ser esposa e mãe, também trabalham e estudam”; Para a frase “Nunca vejo a mulher sendo apresentada como uma pessoa inteligente em propagandas na TV”, apenas 43% discordam. Portanto, a pesquisa conforta a nossa linha de raciocínio, qual seja: de que a publicidade reproduz estereótipos, inferioriza e coisifica as mulheres, e que grande parte dos entrevistados reconhece tal fato. Mais que isso: o estudo aponta que 70% defendem punição aos responsáveis por propagandas que mostram a mulher de modo ofensivo. Assim, estes números recentes deixam clara a realidade social arquitetada na hegemonia masculina, e que a publicidade opera na criação e reprodução deste sistema; os inegáveis avanços conquistados 620 por segmentos sociais, embora não lograrem êxito em afetar a estrutura desse sistema, vêm conseguindo contaminar a sociedade de modo geral, alertando para uma tomada de consciência. Enfim, posta a base conceitual confortada com uma demonstração por dados estatísticos, resta avançar na pesquisa junto ao CONAR, a fim de averiguar até que ponto esta sociedade – que vem tomando consciência das questões – vem agindo de modo proativo em denunciar estas práticas publicitárias discriminatórias. É o que faremos a seguir. 3 PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA A investigação consistirá em levantar e analisar casos e julgamentos de propagandas denunciadas como sexistas junto ao site do CONAR, ou seja, envolvendo temática relativa à violência de gênero. Utilizaremos o recorte dos anos de 2012, 2013 e 2014, dada a brevidade deste texto, o seu propósito de mero ensaio e por se tratar de período mais recente possível, com as estatísticas integralmente apuradas. Cumpre destacar que o site apresenta-se de fácil manuseio, com visual limpo, contendo notícias e links úteis para dados institucionais, legislação, julgamentos e outros. A pesquisa foi feita por consulta direta no link “Decisões”, que conduz a duas espécies de amostragens apresentadas de forma anual: “Estatísticas” e “Casos”. No percurso “Decisões-Estatísticas” é possível verificar o número total anual de (a) processos instaurados e de (b) processos julgados, sendo cada levantamento destes, por sua vez, submetido a dois recortes: os Setores Envolvidos, como por exemplo, bebidas, moda, medicamentos, produtos de limpeza, etc., todos contabilizados em percentuais; e os tipos de Questionamentos, identificados percentualmente em diferentes categorias como: respeitabilidade, discriminação, veracidade, cuidado com público infantil, direitos autorais, padrões de decência, sustentabilidade, etc. Cada processo instaurado é classificado num Setor Envolvido, mas pode ser enquadrado em mais de um Questionamento. Os processos envolvendo violência e abuso de gênero são enquadradas nos Questionamentos de “Respeitabilidade”, onde também se incluem outras espécies como desrespeito ao idoso, à religião, à classes profissionais entre outros.11 Portanto, pelas amostragens obtidas neste 11 A respeitabilidade é um dos doze “Princípios Gerais” do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, dando título à SEÇÃO I. O art. 19 dispõe que “Toda atividade publicitária deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais, às autoridades constituídas e ao núcleo familiar”. Na mesma linha, o art. 20: “Nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade”. 621 percurso (Decisões-Estatísticas) não é possível identificar a quantidade de cada uma destas espécies, já que todas estão subsumidas ao percentual geral. De outro lado, utilizando o percurso “Decisões-Casos”, esta identificação torna-se possível para o universo de processos julgados (não os instaurados), já que é disponibilizada a leitura da EMENTA da decisão, caso a caso. Em razão disso, a pesquisa ateve-se exclusivamente aos processos julgados. Também deve ser esclarecido que os processos instaurados/julgados podem ser originados de cinco modos: por queixa dos consumidores, de ofício pelo Presidente do CONAR, pelo Diretor Executivo, por membros do Conselho Superior, ou ainda, por formulação dos associados ao órgão.12 Todavia, para nossa pesquisa esse aspecto é irrelevante, pois consideramos que qualquer destas formas deve ser compreendida como manifestação da sociedade. Quanto à instauração por queixa de consumidores deve ser dito que, por vezes, várias delas dão origem a um processo. Veja-se, por exemplo, o caso do processo 184/12, iniciado em razão de aproximadamente 1.200 reclamações, ou do processo 216/12 com cerca de 1.000. Portanto, considerando que a pesquisa busca aferir a inconformidade da sociedade com tais publicidades, mostra-se necessário não apenas contabilizar o número de processos/julgamentos, mas também quantificar o número de reclamações encaminhadas ao órgão. Contudo, esse dado não é registrado nas estimativas do site, sendo que podemos apenas mensurar uma quantia aproximada com base na descrição constante na ementa de cada decisão, na qual a informação nem sempre é precisa13. Em suma, temos essas duas dimensões para expor e cotejar: a quantidade de processos julgados e a quantidade (aproximada) de reclamações que originaram tais processos. Outro aspecto é que os julgamentos são registrados mês a mês, de fevereiro a dezembro (não há registros em janeiro). 3.1 APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS DA PESQUISA 12 Regimento Interno do Conselho de Ética do CONAR – RICE. Artigo 17: O processo contencioso objetivará anúncio ou campanha publicitária e será instaurado mediante despacho do Presidente do CONAR, em representação escrita, sempre que houver evidência de transgressão ao Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. § 1º – A representação será de iniciativa: a – do Presidente do CONAR; b – de membro do Conselho Superior; c – do Diretor Executivo do CONAR; d – de Associado; e – de grupo de Consumidores. 13 Em algumas ementas a quantificação dos reclamantes é precisa: 13, 20, etc. consumidores. Já em outros, a decisão refere que a iniciativa se deu por “vários” ou “numerosos” consumidores; ou então menciona “aproximadamente” 1.000 consumidores. 622 Iniciamos expondo o levantamento do ano de 2012 em tabela, com as devidas considerações logo a seguir.14 MÊS PROC. PARTES RESUMO DECISÃO Mar 227/11 Maio 095/12 Sindic. Secret. SP e grupo cons. X Platense 1 consumidor X Subway Sustação e advertência Arquivado Jun 116/11 Jun 108/12 Jul 75/12 Grupo consumidores X Duloren Ago 142/12 Set 154/12 Set 184/12 Set 204/12 Set 214/12 Set Nov 231/12 216/12 13 consumid e Secret. Nac. Prom. Iguald Racial X Bombril Vários consumid. X 3 Fazendas Aproximad. 1200 cons. X DKT do Brasil Vários consumid. X Unilever 1 consumidor X Kerocasa (cooperativa habit.) 20 cons. X Lojas Marisa Aprox. 1000 consumid. X Schincariol Produtos eróticos em site. Fotos desabonadoras, ofensivas e machistas. Anúncio desrespeitoso. Relação sanduíche com mulher provocante. Homem abastece veículo e frentista mulher (macacão justo e decotado) indaga “Não quer trocar o óleo também? Desrespeito com frentista e a mulher. Anúncio machista: "A receita é simples: fique forte! E pegue mais mulheres. Somos fúteis, mas somos pegadores". Mulher com roupas íntimas e quepe militar. Ao fundo, policial com uniforme desabotoado. Favela carioca pacificada. Machismo. Vulgarização da mulher. Racismo da Bombril, associando palha de aço ao cabelo da mulher negra. Discriminação. Sensualidade excessiva com modelos/ trajes provocantes. Peça abusiva, desrespeitosa. Incentivo violência sexual contra a mulher. Machismo e desrespeito. Com o produto "você começa a acumular mulheres". Outdoor com foto de modelo com lingerie. Slogan: “Pense no futuro, conheça a Kerocasa. Anúncio sexista. Amigos na praia “invisíveis”. Desrespeito. Apologia ao estupro. Federação Empregados de Postos (sindicados) e vários consumidores X Diário de S. Paulo 1 consumidor X Monsters Gym Sustação Arquivado Sustação Arquivado Alteração Sustação e advertência Alteração (do texto) Advertência (anúncio apelativo) Arquivado Arquivado No ano de 2012 ocorreram doze (12) julgamentos, dos quais sete (07) foram julgados procedentes, isto é, determinaram a sustação e/ou advertência ou a alteração do anúncio, o que representa 58%. Os demais cinco (05) processos foram arquivados, por entender que o anúncio não ofendeu o Código de Ética ou outra legislação invocada, importando 42%. Todos os processos foram instaurados por queixa de consumidores, cujo número não pode ser indicado com precisão. Veja-se, por exemplo, os processos 227/11 e 116/11: o primeiro teve provocação do Sindicato das Secretárias de São Paulo e de um “grupo” de consumidores. O sindicato, embora se trate de uma pessoa (jurídica), representa uma categoria numerosa de profissionais; no segundo, um dos denunciantes foi a Federação de Empregados 14 Como dissemos, os processos/julgamentos são organizados mensalmente. Se determinado mês não contou na tabela, significa que no período não ocorreram julgamentos sobre o tema pesquisado. 623 de Postos de Combustíveis, portanto, um órgão que representa sessenta (60) sindicatos do país e 500 mil profissionais15. De todo modo, buscando um levantamento mais objetivo possível, podemos destacar três (03) órgãos representativos: FENEPOSPETRO (Federação Nacional dos Empregados em Posto de Serviços de Combustíveis e Derivados de Petróleo), SINSESP (Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo) e a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial, os quais representam o interesse de várias pessoas e grupos. Como não é possível computar o número desses representados, e nem se todos eles concordariam com a iniciativa da denúncia, consideraremos para nosso estudo que cada órgão se equivale a um denunciante. Em relação ao número de consumidores individuais, tivemos três situações: (a) informação precisa do número de consumidores, no caso, 1, 13 e 20; (b) informação de número “aproximado”, sendo num processo 1000 e em outro, 1200; e (c) informações imprecisas apontando “vários” consumidores ou “grupos” de consumidores. Nestes casos, deduzimos que se trata de uma ou algumas dezenas, pois quando se tratou de número mais expressivo, houve a menção desta quantidade (ver letra “b”). Deste modo, podemos deduzir que o total de consumidores individuais corresponde a um número variável entre 1300 e 1500. Agora, o ano de 2013 e suas observações: MÊS PROC. PARTES RESUMO DECISÃO Mar 022/13 048/13 Mar Mar 181/13 311/12 Mar 320/12 Abr 292/12 11 consumidores X Dafra Motos Maio 078/12 15 consumidores X VW Veículos Maio 081/13 Maio 118/13 Jun 127/13 Aproximad. 10 consumidores X Oi Vários consumidores X O Boticário 3 cons. X Eudora Anúncio discriminatório contra a mulher negra. Desrespeito e discriminatório contra as mulheres. Desrespeito com as mulheres Anúncio abusivo, discriminatório e machista. Desrespeito à mulher. Duas moças em trajes sumários se massageiam, despindo homem e perfumando-o com desodorante. Modelo de biquíni reclinada sobre uma moto da empresa com o título “Dafra – Compre que eu dou pra você”. Mecânica “fácil” para mulheres. Desrespeito e discriminação com a condição feminina. Modelo seminua anuncia serviços da “Oi”, no Dia Internac. da Mulher Sexismo em anúncio para TV, que insinuaria infidelidade da mulher. Tratamento preconceituoso à mulher. Arquivado Mar 4 consumidores X Duloren 3 consumidores X Renault 30 cons. X Unilever 34 consumidores X Agência Black 1 consumidor X Unilever Arquivado Arquivado Sustação e advertência Sustação e advertência Sustação e advertência Arquivado Sustação Arquivado Arquivado 15 Informação obtida no site do FENEPOSPETRO. Endereço: http://frentista.org.br/a-fenepospetro/. Acessado em 23 agosto de 2014. 624 Jul Jul Jul 095/13 137/13 173/13 1 consumidora X Ellus 1 cons. X Peugeot Aproximad 100 consumidores X Yamaha Set 080/13 31 consumidores X Rechitt B. Brasil Out 232/13 15 consumidores X FIAT Nov 231/13 5 consumidores X Tema Propaganda Machismo e violência contra a mulher Machismo em anúncio de TV. Publicidade ofensiva e machista. Associa toques de buzina a cantadas dirigidas a "tipos" de garotas: “Asfalto", "Garupa", "Delivery", "Família" etc Anúncio machista e preconceituoso, propondo trocar o "tanque velho" por um "homem tanquinho". Publicidade machista e ofensiva. Apologia ao assédio sexual Anúncio desrespeitoso e discriminatório. Título: “Redator procura diretora de arte charmosa, cheirosa e talentosa. Ok, se você for um diretor de arte talentoso e com experiência, também serve". Arquivado Arquivado Sustação Arquivado Arquivado Arquivado No ano de 2013 ocorreram dezesseis (16) julgamentos, dos quais apenas cinco (05) foram julgados procedentes, o que representa 31%. Os outros onze (11) foram arquivados, correspondendo a 69%. Aqui também, todos os processos foram instaurados por queixa de consumidores, mas com um quadro bem diferente do ano anterior: não há órgãos representativos de grupos, e as quantidades de consumidores apresentam-se em número mais baixo, embora também em número impreciso. Contudo, é possível apontar um número entre 270 e 300 consumidores, portanto, bem abaixo do período anterior. Abaixo, o ano de 2014: MÊS PROC. PARTES RESUMO DECISÃO Mar 008/14 029/14 Mar 033/14 Mar 319/13 Mar 339/13 Maio 049/14 Alusão excessiva à sensualidade e incentivo ao turismo sexual. Suposto preconceito machista em spot de rádio da cerveja Itaipava. Peça publicitária educativa contra jogar bitucas de cigarro no chão e areia das praias. Apelo ao corpo feminino. Desrespeito e discriminação. Alusão da “bunda caída” ao lixo. Apelo excessivo à sensualidade (preservativo Olla). Anúncio de máquinas agrícolas. Desrespeito. Jovens, roupas provocantes dançando em torno dos produtos. Comercial desrespeitoso com as mulheres. Cantor Compadre Washington chama mulher de ‘ordinária’. Arquivado Mar 4 consumidores X COCA-COLA 1 consumidora X Cervejaria Petrópolis 100 consumidores (aprox.) X Move Rio Apelo excessivo à sensualidade em campanha da cerveja Antarctica. Arquivada Maio 072/14 100 consumidores (aprox.) x Hypermarcas 4 consumidores X Stara 50 consumidores X Bom Negócio (Compadre Washington) Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres X AMBEV Arquivado Arquivada (pela perda do objeto) Alteração Arquivada Alteração (alterada em grau de recurso, arquivada) 625 Maio 073/14 50 consumidores X P&G Maio 089/14 5 consumidores X TSE (Tribunal Sup. Eleit.) Maio 304/13 Jul 031/14 Jul 085/14 Jul 155/14 Jul 156/14 Set 191/14 Out 049/14 (Recurs o) 2 consumidoras X Cervejaria Petrópolis 1 consumidora X Sul América 1 consumidor X Mitsubishi 1 consumidor X CONDOR 7 consumidores X Mondelez Brasil/Belvita 4 consumidores X Química Amparo (prod. Limpeza) 50 consumidores X Bom Negócio (Compadre Washington) Nov 201/14 Nov. 220/14 Nov. 073/14 (Recurs o) 2 consumidoras X Agência AlmaBBDO 2 consumidoras X Casa Di Conti 50 consumidores X P&G Comercial desrespeitoso, machista e homofóbico. Desodorante apresentado como sendo para "homens homens". Arquivada Anúncio do TSE para participação política da mulher, que estimularia guerra entre os sexos e machismo. Machismo e desrespeito à mulher. Arquivada Desrespeito à condição feminina em spot de rádio da Sul América. Desrespeito à mulher em anúncio promovendo a marca Mitsubishi. Anúncio de supermercados considerado desrespeitoso à figura feminina. Comercial com casal de atores famosos, considerado desrespeitoso à mulher. Desrespeito à mulher (só seria dela a responsabilidade de cuidar da casa e da família). Comercial desrespeitoso com as mulheres. Cantor Compadre Washington chama mulher de ‘ordinária’. Arquivada Anúncio internet. Desrespeito à mulher e seu corpo. Despida. Abuso sexualidade. Anúncio no Facebook, machista e ofensivo, com a chamada: “Tenho medo de ir no bar pedir uma rodada e o garçom trazer minha ex”. Comercial desrespeitoso, machista e homofóbico. Desodorante apresentado como sendo para "homens homens". (em grau de recurso, mantido arquivamento) Arquivada Arquivada Arquivada Arquivada Arquivada Arquivado (mesmo proc. de Maio) Arquivada Sustação e Advertência Arquivada (mesmo proc. de Maio) No ano de 2014, de fevereiro a dezembro, ocorreram dezenove (19) julgamentos, contudo, dois (02) deles foram recursos de processos julgados no mês de maio. Assim, para fins deste trabalho, onde levamos em conta o número de “denúncias”, consideraremos o total de dezessete (17) processos. Desses, apenas dois (02) tiveram acolhimento, com alteração ou sustação do conteúdo, sendo os demais arquivados sob o fundamento de não ofenda ao Código de Ética ou outra legislação invocada. Cumpre mencionar que o processo 049/2014 (Cumpadre Washington), foi primeiramente alterado, tendo o entendimento sido alterado em grau de recurso, para o arquivamento da denúncia. Os processos foram instaurados por um total aproximado de 334 consumidores individuais, e um deles por um órgão público, a Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Consideramos, portanto, um número final de 335 (aproximadamente). 626 3.2 ENTRE O CERCEAMENTO E A LIBERALIDADE: DESTACANDO ALGUNS JULGADOS Determinados julgados podem ser considerados paradigmáticos para afirmar que as decisões do CONAR seguem uma linha, digamos, flexível e permissiva. Nos casos a seguir, fica clara uma postura pró-liberdade de expressão e da livre criação, em detrimento de um rigor que pudesse, no mínimo, conter uma carga pedagógica aos anunciantes, visando enfrentar a questão da coisificação feminina. No processo 108/12, instaurado contra uma academia de ginástica, o anúncio ao público masculino era “A receita é simples: fique forte! E pegue mais mulheres. Somos fúteis, mas somos pegadores". O anúncio, em que pese nos pareça uma clara mensagem de objetificação da mulher e supremacia masculina, restou arquivado por entenderem que a peça tinha mero caráter humorístico. No processo 204/12, o anúncio de desodorante masculino afirmava que usando o produto “você começa a acumular mulheres". Portanto, sob o ponto de vista de muitos discursos feministas e pró-igualdade dos sexos, um texto destacadamente machista e desrespeitoso. O relator iniciou o seu voto informando preocupação em não incentivar "a patrulha comandada pelos politicamente corretos". Segundo ele, os ataques têm sido "contínuos e persistentes e, cada vez mais, o que é censura vem sendo interpretado como boas intenções". Foi adiante: “Para nós, do Conselho de Ética, é cada vez mais desafiador distinguir o que é tentação autoritária travestida de boa intenção do que é, de fato, desrespeito ao Código e, portanto, à sociedade e ao mercado". No mérito, ele não julgou condenável a imagem apresentada ou o apelo, mas sim o termo "acumular mulheres". Seu voto, pela alteração desta parte do texto, foi aceito por unanimidade. Já o processo 216/12 tratou de um comercial bastante famoso, da cerveja Skin, onde amigos na praia se imaginam “invisíveis”, seguindo-se com as cenas “imaginárias” onde eles invadem um banheiro feminino, beliscam moças, desamarram laços de biquínis. A denúncia argumentou desrespeito à condição feminina, supondo que o comercial beiraria a fazer uma "apologia do estupro". Inclusive a peça já havia sido objeto de processo anterior, de nº 062/12, que foi arquivada. Tendo em vista inúmeras novas reclamações, inclusive contra a decisão do órgão pelo arquivamento, a direção do CONAR resolveu levar o filme novamente a exame pelo Conselho de Ética, especialmente para verificação de cometimento de nova infração – o suposto estímulo à prática de ação criminosa. O novo julgamento, a exemplo do primeiro, 627 entendeu pelo arquivamento por não haver ofensa ética. Foi acompanhado por unanimidade. Cumpre transcrever trecho do voto: Esse inconformismo levou alguns a ofender o CONAR. Não levei em consideração as ofensas porque sei que são totalmente desprovidas de base. Mas é exatamente esse ímpeto, essa vontade de impor uma crença sobre qualquer outra coisa que impede os manifestantes de observar, com um mínimo de atenção, que a legislação citada por eles não foi violada, de forma alguma. A mim, parece claro que as mulheres que aparecem no filme foram surpreendidas com liberdades – excessivas para as condições normais – tomadas por rapazes na condição de invisibilidade. Penso que nem o mais severo dos juízes conseguiria interpretar a lei de forma tão restritiva. Parece-me que o emocional se sobrepôs ao racional, e os manifestantes não atentaram para essa ausência de dolo. Em linha semelhante, destacamos o processo 078/12 contra a Volkswagem, com o anúncio publicitário “Mecânica ‘fácil’ para mulheres”. A denúncia alegou desrespeito e discriminação com a condição feminina, já que sedimenta a imagem estereotipada da mulher que não entende nada de carro. A defesa enviada pelo VW negou tal intenção, enfocando o caráter humorístico do texto. A relatora concordou com essa argumentação e propôs o arquivamento, que foi aceito por unanimidade. Disse ela: “Observo que há, sim, um tom jocoso no anúncio, mas que tem o dom de despertar muito mais a simpatia do público atingido do que um sentimento machista". No processo 137/13 encontramos uma decisão que bem representa o tom em vários julgamentos. A consumidora viu insinuação de machismo em filme para a TV da Peugeot. A relatora não concordou com esse ponto de vista e, depois de estudar a defesa enviada por anunciante e agência, propôs o arquivamento. Disse ela: Acredito que seja uma das funções dessa Casa não só zelar pela ética na propaganda, como também defender posição para a que a criatividade publicitária não se torne engessada e impossibilitada de buscar artifícios e caminhos diferentes para divulgar produtos e serviços. Em sentido parecido, pode-se apontar o processo 231/13, no qual o anúncio ostentava o título “Redator procura diretora de arte charmosa, cheirosa e talentosa”. Ok, se você for um diretor de arte talentoso e com experiência, também serve". Em que pese poder ser taxado de uma pérola androcêntrica, a relatora recomendou o arquivamento do caso, o que foi aceito por unanimidade. Um trecho do voto: Tolher a liberdade de criação de um anúncio como esse é admitir que a publicidade politicamente correta deva fazer parte do nosso cotidiano", escreveu, em seu voto. Seria, como entende, "um tiro no pé, um convite à chatice e à conclusão de que nossos consumidores não têm inteligência suficiente para discernir o exagero do humor daquilo que efetivamente se configura desrespeito. 628 De outro lado, temos dois exemplos no ano de 2014 de decisões, em certa medida, com tom mais rígido. No processo 033/14, o arquivamento se deu pela perda do objeto, mas o relator não perdeu a oportunidade de mencionar o conteúdo inapropriado da publicidade em questão, que tratou de peça educativa carioca contra o ato de jogar bitucas de cigarro no chão e nas praias, usando a imagem do corpo feminino de maneira desrespeitosa e discriminatória, chamando a relacionar a “bunda caída” com lixo. Aludiu o relator: Em vez de conscientizar a sociedade dos malefícios de se atirar guimba no chão, a campanha acabou mostrando que ampla parcela da população está contra a exploração do corpo da mulher de forma gratuita. A julgar pela centena de mensagens que fazem parte desse processo, os cariocas se ofenderam com mais esse uso desrespeitoso do corpo da mulher. E é essa população que deve contar com o Conar. Este órgão deve acolher todos os cidadãos que se julgam desrespeitados pela propaganda. O que parece ser o caso. Já o processo 049/14 tratou de um comercial bastante famoso, onde o cantor do grupo É o Tchan, Compadre Washington, chama uma mulher de ordinária, na verdade, um bordão conhecido do cantor. A relatora reconheceu a forma inusitada e divertida da peça, mas aduz que o personagem não deveria ter sido deixado “tão livre a ponto de comprometer a linguagem do comercial”. Para ela, o fato de certos bordões serem conhecidos do público em outras épocas, não os torna menos agressivos e ofensivos, razão pela qual, recomendou a alteração do comercial. Contudo, em grau de recurso, o órgão reviu tal posição e determinou o arquivamento da denúncia por entender que não houve ofensa. Não há dúvida que a tarefa dos julgadores é dificílima, uma vez que é tênue o limite entre o desrespeito e a liberdade, especialmente em peças humorísticas. Neste sentido, eles mostram-se preocupados com as tendências chamadas politicamente corretas, que por vezes podem sim, resvalar para um fundamentalismo irrazoável. De outro lado, interpretações elásticas e condescendentes podem ocultar (e até estimular) mensagens discriminatórias e de opressão. O ordenamento legal oferece parâmetros suficientes para as análises decisórias, compreendido entre normas constitucionais, consumeristas, civilistas e códigos de ética. A questão é como operar a aplicação destas normas: se em consonância com o atual modelo social da hegemonia masculina, ou se em direção a uma nova perspectiva de sociedade, construída sob novos valores. Nesse (re)pensar, surgirá espaço para problematizar o próprio modelo econômico de consumo, guiado pela produção de bens incessante e massificada, onde valores são trocados por preços, cenário que ensejada, comumente, a ultrapassagem de limites éticos. Como já dito, o mercado publicitário se nutre dos valores sociais e ao mesmo tempo os 629 dita. Uma retroalimentação. O CONAR (e seus julgadores), pois, atua nesta base, que apresenta de um lado, a dimensão androcêntrica, e de outro, o império do consumo e da produção de desejos artificiais, o que pode explicar, de certo modo, o teor de grande parte das decisões acima relatadas, numa linha digamos, mais transigente e liberal. 4 SOBRE AS AGÊNCIAS DE PUBLICIDADE Andrea Dip é jornalista investigativa na área de direitos humanos da Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, e publicou recente reportagem intitulada “Machismo é a regra da casa”,16 onde traz à tona uma realidade alarmante: publicitárias denunciando abusos de que são vítimas no trabalho das agências, afirmando que os anúncios machistas e que causam indignação nas mulheres, nascem da cultura interna das próprias agências. A reportagem contatou várias profissionais do meio publicitário, tendo muitas solicitado anonimato pelo temor de perder o emprego. Os relatos trazem casos de abuso, assédio e violência psicológica que viveram ou ainda vivem em suas carreiras. Uma das entrevistadas identificadas, Carla Purcino, gerente de planejamento afirma: “Quando a gente olha para a representatividade feminina na publicidade percebe que é praticamente 50%. Mas a distribuição dentro dos departamentos é muito diferente. Entende-se que a criação é um reduto masculino e que a mulher é mais adequada para o departamento de atendimento”. F.B., 32 anos, aponta a mesma questão: “Existe quase uma ordem natural de colocar as mulheres nas áreas de atendimento e gerenciamento de projeto do que e qualquer outra. Existe uma série de piadas extremamente machistas e misóginas que ‘brincam’ com essa relação de mulher sempre virar atendimento”. R.J., 32 anos, conta: “Trabalhei para marcas como Brahma, Skol e Budweiser, em que o machismo impera em qualquer peça de comunicação. Por mais que tentássemos abrandar ou mostrar um novo viés para a campanha, sempre éramos obrigadas a seguir os conceitos e o lugar-comum das marcas de cerveja em que a mulher é só mais um ser criado para satisfazer e obedecer o homem”. Já a diretora de criação, Thaís Fabris, diz que para fazer parte do grupo, muitas mulheres também acabam se masculinizando e até reproduzindo esse machismo. “É a maneira que encontram de preservar suas carreiras. Emudecem e não questionam ou entram na lógica e reproduzem”. Para ela, as várias formas de violências contra a mulher podem ser incentivadas pela publicidade: 16 Acessado em 17/03/2015, pelo endereço http://apublica.org/2015/03/machismo-e-a-regra-da-casa/. 630 Nós publicitários temos que perceber a responsabilidade que temos enquanto criadores de comunicação em massa. Não é porque uma coisa funciona, que as pessoas compram, que a gente pode reforçar estes estereótipos muito perigosos. Quando a gente fala em ‘mulher objeto’, essa mulher está lá na outra ponta, com o homem se achando dono dela e acreditando que se aquele brinquedo não funcionar do jeito que ele quer, ele pode quebrar. E você tem uma mulher morrendo a cada 90 minutos no Brasil. A gente está sim reforçando e habilitando esse comportamento. A propaganda que pergunta ‘você está pronta pra ir pra praia?’ tem responsabilidade sobre a mulher que está morrendo em mesa de cirurgia ou morrendo de anorexia! A propaganda é feita pra isso, pra influenciar decisões e gerar a compra de produtos. Mas eu já disse e repito: antes de falar sobre publicidade machista, precisamos falar sobre machismo na publicidade. Porque ela existe, é real, acontece todos os dias dentro das agências. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O cenário sociocultural do país tem a marca da violência simbólica contra a mulher, um fenômeno produzido e reproduzido nas publicidades em todas as mídias. A par disso, vimos que existem esforços que reagem a esse contexto, representados em movimentos sociais e políticos organizados, que disseminam suas ideias na sociedade, com vistas a construir um novo paradigma, de respeito, dignidade e negação a essa histórica opressão. A partir dessa premissa, colocamos como problema a efetiva postura da sociedade frente a tal realidade, mensurando em que medida ela compreende e se insurge contra estes abusos, a ponto de denunciar anúncios supostamente sexistas ao CONAR, tendo como base o triênio 2012/2013/2014. Os dados coletados nos pareceram insuficientes para sustentar que a sociedade esteja suficientemente atenta e mobilizada para isso. Veja-se que em 2012 tivemos 1300 a 1500 denunciantes, e em 2013, entre 270 e 300, numa redução drástica17, patamar mantido em 2014: 335 denunciantes. O fato é que no período de três (03) anos, o número de denunciantes girou em torno de dois mil (2.000), quantidade baixa se a cotejarmos com o número populacional do país e a produção massiva da publicidade no período. Os números de julgamentos a respeito do tema igualmente foram ínfimos: doze em 2012, dezesseis em 2013 e dezessete em 2014, totalizando quarenta e cinco no período, dos quais apenas quatorze, ou seja, 31% foram julgados procedentes, isto é, foram sustados ou sofreram alteração na sua mensagem. Lembrando que o CONAR atua em todas as mídias: TV, rádio, internet, jornal, revistas, outdoors entre outros. 17 Não é possível maiores digressões sobre esta redução significativa de um ano para outro. Para maiores conclusões caberia uma análise evolutiva a ser feita sob um período mais longo, verificando tendências, médias de outros anos, e considerando sempre os contextos envolvidos, como a quantidade e qualidade da produção midiática em cada época, eventuais campanhas educativas realizadas, papel dos movimentos sociais, etc. 631 O resultado em geral – de poucos denunciantes e reduzidos julgamentos, dos quais a maior parte foi improcedente – merece reflexão quanto às suas causas, pois destoa da realidade aqui demonstrada, de uma sociedade (e sua publicidade produzida) marcada pela dominação masculina e objetificação da mulher. As pesquisas de opinião aqui trazidas dão conta de que uma boa parte da população percebe esta realidade e não concorda com ela, o que, todavia, não está espelhado nos números objetivamente levantados junto ao CONAR. Destarte, foi possível identificar com clareza uma baixa mobilização social para formular denúncias, e também, uma postura dos julgadores do CONAR alinhada ao ideal liberal do mercado e das práticas de livre expressão e criação, mostrando uma permissividade, no mínimo, merecedora de discussão, perceptível, sobretudo, quando a peça apresenta caráter humorístico, o que nos leva ao debate sobre os limites do humor como instrumento de comunicação e crítica social. Estamos, pois, diante de um nicho onde a luta pela igualdade de gênero precisa intensificar suas ações e pensar estratégias. Ainda, urge que os responsáveis pela publicidade no país, reflitam sobre sua atuação de reprodução de estereótipos e mensagens simbólicas de uma cultura machista; e essa mudança deve envolver todos os atores que habitam esse campo: publicitários, empresários, clientes e os próprios julgadores do CONAR. Outra medida, simples e objetiva, seria a maior divulgação sobre a atuação deste órgão, por certo, desconhecido do grande público, o que poderia alavancar o número de denúncias. REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 4ª ed. Difusão Europeia do Livro. São Paulo, 1970. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina (1998). 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Ed. 2012. Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. ______. Regimento Interno do Conselho de Ética – RICE. CRUZ, Sabrina Uzêda da. A representação da mulher na mídia: um olhar feminista sobre as propagandas de cerveja. Revista Travessias. Vol. 2, nº 2 (2008). Publicação do Grupo de 632 Pesquisas em Educação, Cultura, Linguagem e Arte e do Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). DIP, Andrea. Machismo é a regra da casa. Reportagem publicada no site da Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. http://apublica.org/2015/03/machismo-ea-regra-da-casa/. Acessado em 17/03/2015. MUJERES BRASILEÑAS: Del icono mediático a la realid. Tradução livre: “Mulheres brasileiras: de ícone midiático à realidade”. Direção: Laura Toledo Daudén, Andrea Gago Menor e Alba Onrubia García. Produção: Pueblos-Revista de Información y Debate y Paz con Dignidad. Duração: 14 minutos. Espanha, março de 2014. Disponível: http://www.youtube.com/watch?v=MyDfr4N7dWk. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica, 1986. VALEK, Aline. A mulher brasileira existe, mas não para satisfazê-los: como a imagem propagada para o mundo contribui para a ideia equivocada de que somos apenas corpos disponíveis. Crônica publicada no blog Escritório Feminista, no site de Carta Capital em 18/06/2014. http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/nos-existimos-masnao-para-satisfaze-lo-6118.html. Acessado em 14/07/2014. 633