Tíltulo: O processo de exclusão social frente às grandes transformações
societárias: rumos e perspectivas.
Autora: Egli Muniz – Docente e diretora da Faculdade de Serviço Social de Bauru,
“Instituição Toledo de Ensino”, mestranda em Serviço Social na
“Universidade Estadual Paulista” – UNESP.
Eixo temático: Intervenção Profissional.
Sub-eixo: As necessidades e demandas sociais a partir do enfoque da
globalização: realidade ou invenção?
Tipo de trabalho: Monografia
Palavras chaves: Globalização, neoliberalismo, mundo do trabalho, retração das
políticas sociais, municipalização.
RESUMO
A partir do momento em que a sociedade civil assuma seu papel de
protagonista, o município pode vir a ser o espaço possível para efetivação da
assistência social como política pública. Mas, para isso, é preciso que ela assuma
seu papel de sujeito histórico. Aí se situa a importância da ação do assistente social
nos municípios, como gestor social e elemento capacitador da sociedade civil.
Este trabalho resulta de uma primeira aproximação à investigação que
estamos desenvolvendo a respeito da municipalização da assistência social com
vistas à elaboração da dissertação de mestrado.
A tarefa a que nos propomos é refletir sobre até que ponto o Estado pode
eximir-se de suas funções de regulação social frente às novas formas de miséria e
exclusão social. Este fenômeno tem se desenhado num contexto de mudanças
profundos, devido a à intensificação do processo de globalização, às metamorfoses
do mundo do trabalho e, no plano ideológico, ao projeto neoliberal assumido pela
maioria dos países capitalistas do mundo ocidental.
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Existe alguma perspectiva de solução para a severa crise social que
se nos apresenta? Quais são os caminhos possíveis para o enfrentamento
desta questão?
A fim de cumprirmos com esta tarefa, percorremos o pensamento de alguns
autores tais como Singer, Martins, Antunes, Borón e outros, no que tange às
discussões a respeito ao processo de globalização, às mudanças no mundo do
trabalho e seus efeitos em relação ao papel do Estado na sociedade. Para refletir a
respeito da questão da pobreza e exclusão social, nos serviremos principalmente
das idéias de Elimar Nascimento e do pensamento de Montaño e Pastorini para a
análise das políticas sociais no panorama atual.
Ao fim, assinalamos uma perspectiva citada por Sposati, Pontes e Bava e
Daniel como uma das possíveis respostas à grave crise que se apresenta.
1. As grandes transformações contemporâneas e seu rebatimento nas
políticas sociais
A década de 1970 deparou-se com a falência do Estado de Bem Estar
Social, caracterizado pela articulação entre Estado, Capital e Trabalho, visando
garantir o pleno emprego e um nível mínimo de bem estar social para a população,
numa perspectiva de reforma do capitalismo.
Após trinta anos de intenso desenvolvimento econômico e social configurouse o quadro necessário para que triunfassem as idéias de Friederich Hayeck 1,
produzidas ainda nos anos 40, trazendo à tona as idéias liberais mais radicais,
travestidas agora como “neoliberais”.
Para Hayeck, conforme analisa Anderson (1996, p. 10), “as raízes da crise
estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e do movimento
operário de maneira geral, com suas pressões reivindicativas sobre os salários e
1
Friederich Hayeck escreveu o texto que deu origem às idéias neoliberais - O Caminho da Servidão em 1944, que se constituiu em um ataque direto ao Partido Trabalhista Inglês, condenado
veementemente qualquer intervenção do Estado no mercado, pois isso se constitui em ameaça letal
à liberdade econômica e política. (Anderson, 1996, p. 9)
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sua pressão parasitárias para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos
sociais.
O Estado não deve intervir no mercado e em nenhuma de suas forças e
fatores. Por isso, “a provisão de renda, bens e serviços pelo Estado constituem uma
séria ameaça aos interesses e liberdades individuais, inibem a atividade e a
concorrência privadas e geram indesejáveis extensões dos controles da
burocracia”. (Draibe, 1996, p. 14)
Citando Friedman, de quem os neoliberais repetem algumas das principais
idéias, Draibe (id., pp. 14-15) discorre sobre algumas proposições dessa ideologia.
Por exemplo, no plano da liberdade individual, a provisão da seguridade social pelo
Estado
“implica em coerção à liberdade de escolha e por isso tende a ser
menos eficiente que a provisão privada. No plano moral, mina a
responsabilidade dos jovens para com os velhos, levando-os a não
mais se responsabilizarem pelos cuidados com os idosos... é o próprio
Estado de Bem Estar Social e seu sistema de políticas sociais o
responsável por muitos ou quase todos os males que nos afligem e que
têm que ver com a crise econômica e o papel do Estado”.
Para Laurell (1995, P. 162), os neoliberais sustentam que
“o intervencionismo estatal é antieconômico e antiprodutivo, não só por
provocar uma crise fiscal do Estado e uma revolta dos contribuintes,
mas sobretudo porque desestimula o capital a investir e os
trabalhadores a trabalhar. Além disso, é ineficaz e ineficiente ... por não
conseguir minorar a pobreza e inclusive piorá-la, com a derrocada das
formas tradicionais de proteção social, baseadas na família e na
comunidade. E, para completar, imobilizou os pobres, tornando-os
dependentes do paternalismo estatal”.
Para vencer a crise, recomendam a reconstituição do mercado, a
competição e o individualismo. Para isso é necessário retirar a intervenção do
Estado na Economia, através da privatização e desregulamentação das atividades
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econômicas e, por outro lado, do bem estar social, desregulamentando e
flexibilizando as relações trabalhistas e eliminando os direitos adquiridos.
Em outras palavras, o Estado deve ser forte para romper o poder dos
sindicatos, mas parco em gastos sociais e intervenções econômicas, pois o
Mercado constitui-se o melhor e mais eficiente mecanismo de alocação de
recursos. Como ironiza Anderson (ibid, p. 11), “uma nova e saudável desigualdade
deve voltar a dinamizar as economias avançadas”.
Essa ideologia levou praticamente toda a década de 1970 para instalar-se,
mas acabou tornando-se mundialmente hegemônica, o que foi facilitado pela queda
do muro do Berlim e a crise do socialismo, adquirindo expressiva intensidade na
América Latina.
Resultou efetivamente no enfraquecimento do Estado.
“Além da crise estrutural que se abate sobre ele, pela regressividade
tributária, pela hipertrofia burocrática, pela irracionalidade dos gastos e
pela sangria da dívida externa, cresce um discurso ideológico
incriminatório que iguala tudo o que é estatal com a ineficiência, a
corrupção e o desperdício o que [somado ao fenomenal retrocesso do
movimento operário] diminui sua responsabilidade de formular e
executar políticas. (Borón, 1966, p. 78)
Enquanto no plano ideológico temos o avanço neoliberal e no plano político a
minimização do Estado, no plano econômico, principalmente, assistimos ao
recrudescimento do processo de globalização, que faz parte da própria lógica do
capitalismo, entendido como a crescente intensificação e ampliação, em escala
mundial, das relações econômicas, sociais, políticas e culturais, impulsionado pelo
acirramento da concorrência e necessidade de ampliação dos mercados para as
grandes corporações transnacionais.
Para isso, os países devem ampliar a competitividade industrial,
flexibilizando as relações de produção e de trabalho e introduzindo novas
tecnologias, visando melhores padrões de qualidade.
A globalização pode ser entendida em outras palavras como o resultado da
multiplicação e intensificação das relações que se estabelecem entre agentes
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econômicos situados nos mais diferentes pontos do espaço mundial, de forma que
suas atividades, realizadas em um determinado âmbito de ação, funcionam como
unidade”. (Martins, 1988, p. 20). O termo refere-se ainda à forças supranacionais
que, sem ter compromissos maiores com suas bases territoriais de origem,
condicionam por toda parte, o funcionamento das sociedades nacionais”. (Castells,
1998, p. 2)
Esses agentes, ou forças supranacionais, que se relacionam e se
interconectam, rompendo fronteiras dos Estados Nação, podem se constituir no
mercado financeiro, movimentando uma massa de dinheiro incrível, deslocadas
eletronicamente numa velocidade incalculável, nas redes de empresas de produção
de bens e serviços, nas empresas de comunicação, e mesmo no crime organizado,
como lembra Castells (1998, pp. 2 a 6)
Na verdade, é um processo de aceleração capitalista num ritmo jamais visto,
em que o produtor, por exemplo, compra matéria prima em qualquer lugar do
mundo, instala a fábrica onde a mão-de-obra é mais barata e vende a mercadoria
para o mundo inteiro, o que contribui para o enfraquecimento dos movimentos
sindicais.
Enquanto no século XVIII o motor da aceleração capitalista foi a máquina à
vapor, no século XX é o avanço tecnológico, o aperfeiçoamento dos transportes e
das comunicações. Surge o fenômeno da chamada Terceira Revolução Industrial,
que, no dizer de Paul Singer (1996, p. 5) “altera profundamente os processos de
trabalho e, com toda certeza, expulsa do emprego milhões de pessoas que
cumprem tarefas rotineiras, as quais exigem um repertório limitado de
conhecimentos e, sobretudo, nenhuma necessidade de improvisar em face de
situações imprevistas”.
Segundo Harvey (1989, p. 164) temos a presença cada vez mais reduzida de
trabalhadores altamente qualificados e bem pagos, em emprego permanente,
tempo integral e com certa segurança. “De outro lado amplia-se o trabalho parcial, o
trabalho temporário, o trabalho em domicílio ou independente, a subcontração,
acompanhados de redução nos salários, sem garantias ou benefícios e em
condições inferiores quanto à segurança e instalações, crescendo o setor terciário
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da economia. Ocorre portanto não só o fenômeno da flexibilização da produção,
mas também a flexibilização ou precarização das relações de trabalho”.
No entender de Paul Singer (id., p. 7) a globalização não reduz o nível de
ocupação, mas ocasiona o “desemprego estrutural”, pois os trabalhadores vítimas
da chamada “desindustrialização” não têm pronto acesso aos novos postos de
trabalho criados. Aliado ao “desemprego tecnológico” provocado pelos avanços da
informática e da tecnologia em geral, contribui para deteriorar o mercado de
trabalho. Enquanto uma parte dos trabalhadores trabalha mais, por uma
remuneração cada vez menor, outra parte crescente deixa de poder trabalhar.
Aumenta a quantidade de pessoas há muito tempo sem trabalho, que
acabam sendo definitivamente atingidas pela “exclusão social”, palavra pela qual,
nos anos 90, se denominava a “iniquidade social”, que nos anos 70 era entendida
como “desigualdade” e nos anos 80, como “pobreza”.
Nem o termo, nem o fenômeno, são novos, mas hoje ele toma novas
dimensões. “São contingentes populacionais crescentes, que não encontrando
espaço no mercado de trabalho, vagueiam pela cidade sem emprego e muitos sem
teto” (Nascimento, 1995, p. 24). Cristovam Buarque (1994, p. 34) cunhou o termo
“apartação social”2 já que, como o gado, essas pessoas acabam não mais sendo
consideradas humanas. Surge, portanto, uma nova representação social a respeito
do antigo pobre. Hoje ele é considerado “não semelhante” e, portanto,
desnecessário. Enquanto na primeira metade do século XX o pobre era visto como
“preguiçoso, indolente, sem ambições”, e na segunda metade, como indolente mas
“esperto”, isto é, pobre porque não quer trabalhar, hoje, conforme Nascimento
(1994, p. 42-43), a sociedade tem elaborado uma representação extremamente
perversa: pobre é perigoso, é bandido em potencial. A população economicamente
desnecessária passa a ser socialmente perigosa, passível de eliminação, vista
como “despida do direito de ter direitos”. (Arendt, apud Nascimento, 1994, p. 43)
O discurso dos “direitos humanos” cai no vazio. A sociedade não se
sensibiliza nem se mobiliza em torno dessa luta, embora, paradoxalmente, em 1988
tenham se consagrado os direitos civis e sociais a toda a população brasileira.
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O excluído de hoje ingressou formalmente nos espaços dos direitos políticos,
mas está sendo expulso do mercado e dos espaços dos direitos sociais de
educação, saúde, moradia, seguridade social, por exemplo.
Na perspectiva de Castel (1991, p. 39) está sendo expulso até da rede de
inserção relacional, particularmente da familiar, fenômeno vivenciado especialmente
na Europa, na medida em que a degradação das condições de trabalho se faz
acompanhar de uma degradação das relações sociais intra familiares. A pobreza
qualifica-se como uma experiência de ruptura com a rede das relações sociais.
Como sinaliza Carvalho, a crescente interdependência causada pela
globalização dos negócios fragiliza o Estado Nação. Globalização e revolução
tecnológica consolidam uma nova fase do capitalismo, que agora rompe todas as
fronteiras nacionais. (1997, p. 5). A liberdade liberal significa agora liberação e
desproteção. É preciso privatizar o que fora assumido como responsabilidade
estatal, desregulamentar o que estava sob o amparo das normas, flexibilizar as
relações capital trabalho abolindo as seguranças dos direitos conquistados3 .
A privatização da seguridade social, no entanto, acaba consolidando um
sistema dual de seguros produzidos pelos serviços privados e seguros produzidos
pelos serviços públicos. Na realidade “cria-se um sistema paralelo regido por
critérios de lucro e equivalência, através do qual se transferem vultosos fundos
públicos para mãos privadas ao invés de utilizá-las com um critério social de
solidariedade”. (Laurell, 1995, p. 175)
Face a todas essas transformações, as políticas sociais sofrem substanciais
alterações, em suas funções e orientação. Elas surgiram, em um contexto em que a
hegemonia burguesa amplia o Estado e em que se desenvolvem lutas em torno da
ampliação dos direitos civis, políticos e sociais, como instrumentos de legitimação e
consolidação da classe hegemônica, mas permeadas por conquistas da sociedade.
2
Apartação consiste na nomeação do outro como não semelhante, seria o fenômeno de separar o
outro não mais considerando como humano, já que apartar é um termo utilizado para separar o gado
(cf. Nascimento, 1994 a, p. 25)
3
Os sindicatos, enfraquecidos, foram obrigados a aceitar a flexibilização ou precarização das
relações de trabalho graças a nova mobilidade que o capital adquiriu na onda da globalização. O
grande capital internacional simplesmente se transfere para países em que a debilidade do
movimento operário lhe ofereça plena liberdade de reformular as relações de produção de acordo com
os seus interesses. (cf. Singer, 1996, p. 10)
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Dialéticamente, são um espaço de concessão e conquista de “demandaoutorgamento”, como propõe Pastorini (1997, pp. 98-99).
Elas contêm, portanto, uma função política de legitimação, uma função social
de prestação de serviços sociais e assistenciais e uma função econômica de
permitir a redução do salário do trabalhador, uma vez que se constituem em outras
fontes de satisfação das suas necessidades.
Na verdade, existem diferentes perspectivas de entendimento das políticas
sociais. Numa perspectiva tradicional, elas são vistas como um conjunto de ações
que tendem a diminuir as desigualdades sociais, ou seja, correção dos efeitos
negativos da acumulação capitalista e nesse sentido, como concessões do Estado,
assumindo um caráter compensatório, paliativo e corretivo das desigualdades. A
perspectiva marxista contrapõe-se a essa visão, afirmando que além de se
constituírem em um instrumento redistributivo (função social), cumprem função
política e também econômica.
A função política refere-se a legitimação que o Estado obtém pela concessão
das políticas sociais à população e a econômica, pela redução dos custos de
manutenção e reprodução da força de trabalho, favorecendo a acumulação do
capital. A perspectiva de Pastorini incorpora ao cenário os setores trabalhadores e
as classes subalternas, como sujeitos protagônicos e não mais como meros
beneficiários passivos da caridade pública. Ocorre portanto um “processo conflitivo,
atravessado pelas lutas de classes, onde os diferentes grupos têm lucros e perdas,
conquistam e concedem alguma coisa aos sujeitos envolvidos”. (Pastorini, 1997, p.
80-101) e, se possível, privatiza a produção, distribuição ou provisão dos serviços
sociais, submetendo-os a lógica do mercado.
As quatro estratégias concretas de implantação da política social neoliberal,
como aponta Laurell (1995, p. 197) “são o corte nos gastos públicos, a privatização,
a centralização dos gastos sociais em programas seletivos contra a pobreza
(focalização) e a descentralização”. A privatização é o elemento articulador dessas
estratégias, que atende ao objetivo econômico de abrir todas as atividades
econômicas rentáveis aos investimentos privados, com o intuito de ampliar os
âmbitos de acumulação e ao objetivo político ideológico de remercantilizar o bem
estar social, segundo a autora.
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Do ponto de vista liberal, o gozo dos benefícios deve corresponder a
contrapartida do trabalho ou ao seu pagamento. O Estado deve garantir um nível
mínimo de bem estar somente àquelas comprovadamente indigentes, reforçando a
condição de mercadoria da força de trabalho. Assim, são condenados a
desmercantilização (ou desmercadorização), o coletivismo e o universalismo,
defendidos pelo Estado de Bem Estar Social.
O Banco Mundial propõe a cobrança dos serviços públicos, obrigando-os a
competir em preço e qualidade com o serviço privado, diminuindo assim os gastos
públicos.4
As políticas sociais são, consequentemente reduzidas em quantidade,
qualidade e variabilidade, pois o Estado não poderá, nem deverá, na perspectiva
neoliberal, destinar importantes volumes de recursos para as políticas sociais.
Outrossim, devido a representação que se faz das populações excluídas
como desnecessárias ao processo produtivo e por isso mesmo “não-cidadãs”, as
políticas sociais, perdem sua função econômica. Agora, como afirma Montano, é “o
próprio trabalhador quem tem o encargo de reproduzir-se como força de trabalho”
(1997, p. 116).
O discurso da minimização do Estado implica, portanto, em privatizações e
desregulamentações, incluindo a interrupção de programas públicos e o
deslocamento do governo de algumas responsabilidades específicas, ou ainda a
redução dos serviços publicamente produzidos, conduzindo a demanda para o setor
privado. É este fenômeno que vem acontecendo em relação às políticas sociais,
particularmente da seguridade.
Mas,
além
da
privatização,
o
neoliberalismo
recomenda
ainda,
principalmente aos países latino-americanos em processo de ajustamentos
econômicos, a focalização dos programas sociais públicos nas populações ou
grupos carentes, (fundado na concepção de pobreza absoluta, como já foi discutido)
e a descentralização.
A descentralização, segundo Issuani (apud Draibe, 1995, p.28)
4
Laurell lembra que nos Estados latino americanos a crise fiscal originou-se da dívida pública,
provocada pela mudança nas relações econômicas nacionais e internacionais, exemplificando com o
caso do México cuja dívida externa, de 1980 a 1989, cresceu de 3,3% do PIB para 13,7%, enquanto
os gastos sociais caíram de 8,1% para 6,9% do PIB (1995, p. 168)
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“é concebida, no pensamento neoliberal, como um modo de aumentar a
eficiência e a eficácia do gasto, já que aproxima problemas e gestão,...
aumenta as possibilidades de interação, no nível local, dos recursos
públicos e dos não governamentais,... e amplia-se a utilização de
formas alternativas de produção e operação dos serviços, mais
facilmente organizados nas esferas municipais”.
No entanto, focalizar, privatizar e descentralizar não constituem, afirma Draibe
(ibrid, p.33), monopólio da estratégia neoliberal ou conservadora e, por isso, não
podem ser descartadas sem maior reflexão.
Vanguardas progressistas associam a descentralização com uma nova
relação entre Estado - Sociedade Civil, Governo - Povo, em que a autonomia das
organizações
governamentais
locais
venham
efetivar
a
possibilidade
de
desenvolvimento partilhado com as representações locais.
2. A Descentralização e Municipalização da Assistência Social
Ao analisar as transformações no conceito de espaço em virtude das
macrotendências da globalização, Dowbor (1996, p. 56) coloca que no bojo do
reordenamento mundial, ao lado da fragilização do Estado-Nação, transformação
do papel das metrópoles e outras, configura-se um novo papel das cidades e uma
gradual reconstituição dos espaços comunitários. E estes diversos espaços, “em
plena transformação e rearticulação, abrem novas dimensões para a inserção do
indivíduo no processo de reprodução social”...
Considera ainda que:
“A sociedade moderna é constituída por um tecido complexo e
extremamente diferenciado de atores sociais. Desta forma, políticas
globais tornam-se desajustadas, reduzindo a competência das
decisões centralizadas. Como a intensidade das mudanças exige
também ajustes freqüentes das políticas, é o próprio conceito da grande
estrutura central de poder que se vê posta em xeque. Situações
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complexas e diferenciadas, e que se modificam rapidamente, exigem
muito mais participação dos atores sociais afetados pelas políticas”.
(idem, p.62)
Assim, infere-se que problemas mais específicos devem ser transferidos
para espaços mais próximos do cidadão, enquanto o nível de decisão central do
país ocupa-se com as macro deliberações.
De certa forma, a cidade está recuperando um espaço de decisão direta
sobre a pólis (esfera pública), resgatando assim a possibilidade da liberdade, da
vida política, da democracia.
Não se pode ter a pretensão que os municípios vão solucionar problemas
estruturais ou realizar transformações que só em âmbito nacional ou mundial podem
ser viabilizadas mas, citando ainda Dowbor (idem, p.70), comunidades fortemente
estruturadas podem constituir um lastro de sociedade organizada capaz de
viabilizar as transformações necessárias nos níveis mais amplos.
Portanto, vemos o princípio da descentralização contido na LOAS (Lei
Orgânica da Assistência Social) e a conseqüente municipalização, como espaço
possível para consolidação das políticas sociais, e particularmente da Assistência
Social, pois é no município que a população se aproxima das instâncias de decisão,
em que estas estão mais próximas do seu cotidiano e onde se reconhecem mais
facilmente suas necessidades e aspirações.
Existem porém alguns equívocos em relação à descentralização que é
preciso desmistificar, discutidos por vários autores, entre os quais Sposati e Stein.
A descentralização pode ser entendida como distribuição de espaços de
poder, dos recursos para exercitá-lo e distribuição do próprio poder, isto é, da
autoridade necessária para tomar e executar decisões. Alguns a confundem com
desconcentração, que refere-se apenas à delegação de responsabilidade, sem a
necessária autoridade, nem os indispensáveis recursos.
A descentralização tem sido tomada ainda como sinônimo de democracia.
Para Touraine, “a democracia é antes de tudo o regime político que permite
aos atores sociais formar-se e agir livremente” (apud Stein, 1997, p.83), mas só
podemos nos considerar atores sociais, se possuímos a consciência interiorizada
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de direitos pessoais e coletivos e se tivermos claro que a sociedade não é um todo
harmônico, mas existem permanentes conflitos de interesses e idéias.
A descentralização que leva à democracia exige fortalecimento do poder
local através da articulação das forças do município, isto é, da Prefeitura e
organizações da sociedade civil.
Para isso, segundo Stein (ibid, p.85), é necessário:
♦ garantia de acesso universal às informações necessárias para a gestão por toda
a sociedade;
♦ garantia de assento de todos os segmentos locais na composição dos conselhos
de direção, inclusive os menos poderosos;
♦ transparência dos processos de gestão e tomada de decisões.
Falcão (1990, p. 26) complementa apontando ainda as seguintes condições
básicas:
♦ dotação de recursos financeiros;
♦ clara divisão de competência entre os diferentes níveis de governo;
♦ existência de pessoal profissional qualificado no nível local;
♦ capacidade de gestão;
♦ planejamento participativo em nível local;
♦ participação popular através das organizações representativas, daí a importância
dos fóruns de debates permanentes.
Finalmente,
descentralização
não
é
também
privatização,
isto
é,
transferência dos deveres e responsabilidades do Estado (municipal) para a
sociedade civil. Esta concepção é inaceitável.
A Lei Orgânica da Assistência Social corporificou as disposições
constitucionais ao estabelecer as bases de um sistema descentralizado e
participativo da Assistência Social, em que o município é o espaço do
planejamento, organização e execução dos serviços locais.
A operacionalização do sistema, definido em lei, dependerá em grande
medida da criação, implantação e consolidação dos mecanismos descentralizados
e participativos, que são os Conselhos Estaduais e Municipais e respectivos
Fundos.
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No âmbito do município, o Conselho é o espaço em que a Prefeitura e as
organizações da sociedade civil se assentam para discutir as demandas e as
soluções para o enfrentamento da pobreza e a universalização dos direitos sociais.
Existe uma série de dificuldades nessa convivência as quais é preciso
desmistificar para efetivamente fortalecer o “poder local”, envolvendo a participação
dos segmentos da sociedade civil organizada nas decisões, caminhando rumo à
verdadeira democracia.
Sposati e Falcão (ibid, 23-24) apontam certos complicadores dos quais
selecionamos alguns e completamos com outros:
♦ a fragilidade do poder local para a gestão autônoma, isto é, capacidade de se
autodeterminar fins e estabelecer os meios para alcançá-los. Esta fragilidade é
devida principalmente à tradição de um Estado centralizado que “infatilizou”
prefeitos e vereadores e especialmente, exclui a participação popular;
♦ a dificuldade dos prefeitos de aceitarem a participação dos Conselhos na
gestão local, acreditando que com isso perderão poder, o que é um engano,
pois quanto mais abertura para a participação popular, mais divide
responsabilidades e competências e mais se legitima no poder;
♦ o bloqueio da sociedade civil em participar ou mesmo a sua falta de
capacitação. A sociedade ainda não se deu conta dessa nova mentalidade de
gestão democrática e está muito atrelada à cultura tradicional que a faz ter uma
atitude de fragilidade e mesmo de subordinação e dependência diante das
autoridades. Não tomou consciência ainda da sua força e de que o espaço está
posto, é preciso ocupá-lo;
♦ a incapacidade de negociação da sociedade civil: ou se submete ou “vira a
mesa”, criando sérios bloqueios a um entendimento maduro com o governo
municipal, exacerbando os conflitos. É preciso tomar consciência que
negociação, como ensina Pedro Demo (1988, p. 77-78) significa o tratamento
de divergências de igual para igual, pelo menos em tese. A negociação não
acaba com as divergências, mas as acomoda em patamares que permitem a
convivência e a realização relativa dos interesses mútuos. Isso exige capacidade
de abertura de nossa parte, de admitir os outros como parceiros, de aprender a
ceder ou recuar, para não perder posição.
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Negociar, significa conhecer técnicas de persuação, praticar habilidade
política (Walzer, apud Demo, 1988).
Considerações Finais
A Constituição Brasileira de 1988, também chamada de Constituição
Cidadã, anunciou uma nova ordem democrática.
Contudo, isto se deu num momento extremamente contraditório, em que
profundas transformações sociais, econômicas e políticas pressionam para que
esta nova ordem democrática não se concretize.
Porém, este movimento não é unilateral. Dialéticamente, existem forças a
favor e forças contrárias. Por isso é que vemos, repetimos, o município como um
espaço de lutas em que setores da sociedade civil, amadurecendo sua visão sobre
política e democracia, buscam combater os privilégios e as desigualdades, pelo
fortalecimento do espaço público como campo privilegiado dos embates políticos.
É preciso, contudo, que a partir dos valores democráticos e cidadãos
inscritos na Constituição e na Lei Orgânica da Assistência Social, objetivamente
identificados, tornem-se aspirações de grandes massas de homens, transformemse em reivindicações de direitos, para que estes possam finalmente chegar a
concretizar-se enquanto tais, através da garantia de reconhecimento que lhes
conferem as instituições políticas de uma determinada sociedade.
Para isso, os diversos setores da sociedade civil, representando interesses
e aspirações de classes, camadas ou grupos sociais distintos precisam ter a
consciência de direitos, reivindicar esses direitos, dispondo de menor ou maior
força de pressão, em função do grau de participação e de organização que seus
membros forem capazes de conseguir, na articulação de seus interesses e
aspirações, enquanto demandas sociais a que o Estado deve responder.
Quanto mais as organizações democráticas, conscientes de direitos e
deveres se colocam com firmeza no jogo de forças e participam deliberadamente
das decisões, e isto é mais fácil no âmbito dos municípios, mais se caminha no
fortalecimento do poder local e na conquista da democracia.
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Aí vemos, apesar dos limites existentes, pela maneira ainda muito
conservadora como essas organizações se colocam nas suas relações com o
governo municipal e vice-versa, algumas possibilidades para o avanço das políticas
sociais no âmbito dos municípios, particularmente da política de assistência social.
Aí situamos a importância da intervenção dos assistentes sociais, e de outros
profissionais que atuam nos órgãos gestores da Assistência Social nos municípios,
efetivamente comprometidos com o projeto ético político profissional, no sentido de
trabalharem pela mudança na forma de pensar dos agentes da assistência social e
da sociedade civil como um todo.
Entendemos que isto é possível pela informação e pela denúncia. É preciso
informar a população, a sociedade civil e denunciar a realidade dos grandes
contingentes populacionais alijados do direito de ter direitos, colocando-se na
defesa férrea das políticas sociais e dos princípios democráticos, em conjunto com
outros setores da sociedade, desenvolvendo uma práxis crítico revolucionária,
possibilitando à população o desvelamento do real, num transformar da própria
consciência social, consciência política, consciência crítica.
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Bibliografia
ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo in Pós Neoliberalismo – As
Políticas Sociais e o estado democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1996.
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