O ENSINO DE SISTEMA DE NUMERAÇÃO DECIMAL NAS SÉRIES
INICIAIS: o que sabem e o que podem fazer os professores para a aprendizagem dos
alunos
Ivonildes dos Santos Milan1
GD1 – Educação Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental
É comum encontrarmos, num grupo de formação de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental,
muitas questões relacionadas ao que é o Sistema de Numeração Decimal e o que as crianças devem ou não
fazer para aprender. A resposta pode estar centrada no modelo empirista de aprendizagem: um ensino
baseado em memorização de técnicas e repetições. A educação com essa concepção é uma tradição muito
antiga que entende o ensino como um modelo de “estímulo e resposta”. Muito antiga sim, porém muito usada
e referenciada por uma porcentagem significativa de docentes que atuam nas escolas brasileiras. A partir das
contribuições do psicólogo francês Guy Brousseau e sua teoria das Situações Didáticas, pretendo realizar o
meu trabalho de pesquisa com professores do Ensino Fundamental I e sua relação com o Sistema de
Numeração Decimal a partir de uma sequência didática que será proposta para executarem-na com alunos do
2º ano do Ensino Fundamental. Esse texto pretende retomar, de forma simplificada, um pouco da trajetória
dos professores dos anos iniciais observando sua atuação e tentando fazer um comparativo entre dois
modelos de aprendizagem: o modelo empirista e o modelo construtivista.
Palavras-chave: Sistema de Numeração Decimal; Ensino; professores
A aprendizagem dos professores ao longo de décadas – o modelo empirista de ensino e
aprendizagem
Recentemente, numa reunião de formação de professores dos anos iniciais da área de
Matemática (todos com menos de 30 anos de idade, portanto da década de 80) do Ensino
Fundamental uma questão foi lançada: “Como vocês aprenderam as operações?”. A
resposta veio de forma uníssona, já que todas as lembranças de aprendizagem, para esse
conteúdo, foram muito similares: primeiro aprenderam as técnicas operatórias da adição e
subtração sem reservas e sem empréstimos; assim que dominaram essas técnicas foram
apresentados às mesmas operações só que com reservas e com empréstimos e, mais tarde, a
técnica operatória da multiplicação (por um algarismo), seguida da divisão (também por
um algarismo). A estratégia usada pelos diversos professores desse grupo, também foi a
mesma: ensinavam a técnica (mostrando passo a passo na lousa) e, imediatamente, davam
uma lista de exercícios (operações) para que os alunos utilizassem a técnica aprendida.
1
Pontífica Universidade Católica de São Paulo, email: [email protected], orientador: Saddo Ag
Almouloud.
Essa forma de tratar o ensino é defendida por um modelo de concepção chamado
empirismo.
Segundo essa concepção, como afirma Weisz (2003:55), “(...) o aluno precisa memorizar
e fixar informações – as mais simples e parciais possíveis e que devem ir se acumulando
com o tempo.”.
Weisz (2003) diz ainda, que tais representações, definem, por intermédio da prática
pedagógica: como o professor entende o objeto de conhecimento; como concebe o
processo de aprendizagem e, consequentemente, como deve ser o ensino.
Nesse mesmo grupo de formação de professores de Matemática, citado anteriormente,
questionou-se sobre quais outras situações de aprendizagem recordavam e que ilustravam
esse modelo de ensino e aprendizagem. Vários exemplos foram ilustrativos e ajudaram o
grupo a localizar a concepção de aprendizagem que regia a todos. Algumas lembranças
elucidaram uma aprendizagem voltada unicamente para o ensino empírico: cópia dos
algarismos de forma intensa; situações-problemas para serem resolvidos com a técnica
operatória ensinada antecipadamente; uma extensa lista de exercícios para fixar o que
aprenderam em classe; a cópia exaustiva das tabuadas para a memorização.
O ensino do Sistema de Numeração Decimal esteve (ao longo de décadas) centrado numa
aprendizagem silenciosa regida pela memorização e exercitação. A conclusão, que esse
grupo de professores chegou, foi simples, porém enfática: não sabiam o que fazer e,
principalmente, como ajudar seus alunos a compreenderem e a utilizarem o sistema de
numeração decimal.
Um modelo de aprendizagem centrada na interação
Uma aprendizagem oposta ao modelo anteriormente apresentado (empirista), é o modelo
construtivista. Segundo Weisz (2003: 58) “(...) pressupõe uma atividade, por parte de
quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes”.
Esse modelo construtivista de conceber o conhecimento, parte do princípio de que o aluno
esteja diante de uma situação ativa, que se inicia na interação do sujeito com o objeto de
conhecimento. Não precisamos de muito mais para observar que a diferença entre essas
duas concepções de aprendizagem são muito distintas e suas práticas pedagógicas bastante
diferentes.
Weisz (2003: 61) diz que ensinar, nesse segundo modelo, exige de o professor propor
situações que o educando possa aprender, agindo “(...) sobre o objeto de conhecimento,
pensar sobre ele, recebendo ajuda, sendo desafiado a refletir, interagindo com outras
pessoas”.
Parece impossível falar do modelo construtivista de conceber o conhecimento sem falar em
Vygotsky e o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. Para Vygotsky, a
aprendizagem só ocorre se considerarmos aquele que aprende (aluno), aquele que ensina (o
professor), o objeto de conhecimento (conteúdo) e a relação que se estabelece entre a
interação dos três. Ele mesmo define como:
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma
determinar através da solução independente de problemas, e o nível de
desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes
(2003:112).
O professor, nesse modelo, precisa conhecer os saberes de seus alunos sobre o conteúdo
que irá trabalhar (conhecimentos prévios) para planejar uma atividade que eles não sejam
capazes de realizar sozinhos, mas possam seguir a procura de uma solução interagindo com
os colegas, com o objeto de ensino e com o professor.
A figura do professor, nesse modelo, é imprescindível e se faz necessária em todo o
processo. É ele que planejará a atividade (segundo os saberes do seu grupo de alunos),
organizará os grupos produtivos (alunos com saberes próximos), dará a instrução da
mesma, fornecerá dicas e estará auxiliando em todo o processo através de mediações que
poderão ocorrer individualmente, nos grupos ou coletivamente. É ele, portanto, o
responsável, pelo avanço dos saberes de seus alunos.
Retomando Vygotsky e a Zona de Desenvolvimento Proximal:
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma
determinar através da solução independente de problemas, e o nível de
desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes
(2003:112).
O SND e o processo de aprendizagem dos professores das séries iniciais
No grupo de formação de professores que estamos tomando como referência, uma das
propostas foi a leitura do capítulo V “Sistema de Numeração” do livro Didática da
Matemática. A leitura de textos teóricos é proposta para que os professores conheçam
pesquisadores e estudiosos do modelo de concepção que concerne a aprendizagem como
uma construção do conhecimento. A partir dessa leitura os professores passaram a discutir
questões do SND que nunca antes haviam pensado.
A partir de uma dessas reflexões que foi proposto um cassino de jogos matemáticos para
que conhecessem, analisassem os conteúdos matemáticos presentes e pudessem levar para
suas classes e observarem a reação de seus alunos e registrassem a sua atuação como
mediadora de conflitos e de questões que pudessem surgir. As professoras do primeiro ano
decidiram trabalhar com a trilha e levaram algumas situações para observarem durante o
jogo:
- Como seus alunos participam;
- Que questões ou dificuldades apareceram;
- Como faziam a contagem com os dois dados;
- Como “caminhavam” na trilha.
Além dessas questões precisavam registrar as mediações feitas e as dúvidas que tiveram
durante sua atuação.
Algum tempo depois, a professora Thais (1º ano) trouxe para a formação uma questão que
só surgiu, quando se discutia a importância da socialização após cada período do jogo.
Segundo a reflexão realizada pelo grupo, nesse momento de socialização, o professor pode
ouvir os alunos e ter subsídios para planejar um novo momento do jogo. Além disso,
analisar com os alunos os registros que fizeram durante o jogo, é um momento singular
para que todos possam conhecer o registro e a forma como ele foi feito por diferentes
colegas, podendo concluir que não há uma única forma fazê-lo e que algumas formas
podem ser mais eficientes, mais econômicas que outras. Esse momento de socialização
amplia os conhecimentos e pode levar a tomada de decisões pelo grupo e professora.
Foi nesse momento que Thais (mostrando certa decepção) contou ao grupo que propôs aos
alunos que, após o jogo de trilha, utilizassem só os dois dados para um novo jogo: o jogo
dos dois dados. Os alunos, cada um na sua vez, jogariam os dois dados, somariam os
pontos e anotariam numa folha para, ao final de três jogadas, somarem os pontos obticos,
compararem o resultado e conhecerem o ganhador (aquele que fizesse mais pontos). Até
aqui tudo estava muito bem. Foi então, que Thais contou ao grupo que ao receber os
registros gráficos dos alunos sobre os pontos que fizeram, achou tudo desorganizado,
confuso e não sabia o que fazer com eles e, após recolhê-los guardou-os com uma intenção
clara de não usá-los para absolutamente, nada.
A conclusão que o grupo e que a própria professora chegaram é que a socialização desses
registros seria um momento imprescindível para que a professora e os alunos pudessem ver
e ouvir explicações uns dos outros sobre as diversas formas utilizadas. Além do que, a
professora poderia utilizar esse momento, após as socializações dos registros, para discutir
e encontrar, coletivamente, uma ou mais forma de registro que tenha possibilitado ao grupo
uma compreensão dos pontos feitos pelo jogador: uma ou mais formas de registro, depois
de selecionadas pelo grupo, poderiam servir para que os alunos pudessem experimentá-las
num novo registro. Nesse momento de formação, a professora e outras colegas puderam
agir sobre uma ação “empirista” de aprendizagem: o que vale é o que o professor ensina e
não o que o aluno apresenta. Thaís retomará os registros, fará uma leitura antecipada de
todos, procurando conhecer cada uma das estratégias utilizadas e planejará uma aula onde
os alunos serão convidados a mostrar e explicar o registro feito. Essas situações de
socialização, em especial essa socialização que a professora fará, incluirão momentos de
explicitações, confrontações e justificativas. Momentos ricos para que cada aluno revisite a
sua estratégia de registro, e explicite-a a seus colegas. Nesse momento ele poderá (sozinho)
já fazer uma leitura sobre a adequação ou não da estratégia que utilizou; conhecer
estratégias diferentes realizadas pelos colegas aceitando-as ou não; confrontar a sua
estratégia com outras e buscar junto aos colegas e professor uma ou mais propostas que
promovam a compreensão do próprio aluno e dos colegas. Essa situação de discussão
coletiva (socialização) é, segundo Saiz, 2005, extremamente positiva, pois facilita a coelaboração no processo de buscar, juntos, soluções mediante a coordenação dos
procedimentos para alcançar um objetivo determinado.
Vejamos o que diz Irma Saiz sobre esses momentos de discussão em sala de aula:
“O desenvolvimento deste momento (de confrontação) obriga os alunos, por um
lado, a retornar sobre os seus passos, sobre suas próprias ações, a descobri-las e a
defendê-las e a tomar consciência dos recursos de que dispõem, de sua
pertinência e de sua validez; mas também compreender os processos dos outros,
de seus argumentos e, se for possível, a se apropriar dos procedimentos de seus
companheiros, ampliando o campo de suas possibilidades.”
O professor diante de uma insegurança: o que ensinar e como ensinar
Não é possível falar em como e o que ensinar sem citar a teoria das situações didáticas de
Guy Brousseau. E também não é possível falar em discussões planejadas em sala de aula
sem falar da situação de validação presente na teoria desse notável pesquisador francês.
Vejamos:
A chamada “Escola francesa de didática da matemática” nasceu nos anos 70 – formada por
um grupo de pesquisadores – a maioria matemáticos – preocupados em descobrir e
interpretar os fenômenos e os processos ligados à aquisição e transmissão de conhecimento
matemático. Guy Brousseau desenvolveu a “Teoria das Situações Didáticas” que se trata
de uma teoria que busca as condições para uma gênese artificial dos conhecimentos
matemáticos na hipótese de que estes não são construídos espontaneamente.
A situação didática é uma situação construída com a intenção de levar os alunos a
adquirirem um saber determinado. É aquela que contém intrinsecamente o desejo de que
alguém aprenda alguma coisa. Em uma entrevista dada à Revista Nova escola, Brousseau
diz em que consiste a Teoria das Situações Didáticas:
“A base dela é a garantia de condições para a construção do conhecimento matemático
organizadas em função dos saberes próprios da disciplina. A esse respeito, existem três
tipos de situação que me interessam: aquelas que convocam à tomada de decisões, ou seja,
que colocam os alunos em ação, as que permitem formular ideias e colocá-las à prova e,
por último, os debates, momento em que o grupo discute estratégias de resolução,
avaliando quais opções são mais adequadas”.
Vejamos o que Brousseau diz sobre a tipologia das situações didáticas:
Situações de ação: o aluno deve atuar sobre um meio (material ou simbólico) a situação
exige somente que se coloque em prática conhecimentos implícitos. Vamos ilustrar com a
atividade que a professora Thais propôs a seus alunos: jogarem os dois dados, somarem os
pontos, anotarem e, após três jogadas somarem o total de pontos conseguidos.
Situações de formulação: um aluno (ou grupo de alunos) emissor deve formular
explicitamente uma mensagem destinada a outro aluno (ou grupo de alunos) receptor, o
qual deve compreender a mensagem e agir (sobre um meio material ou simbólico) de
acordo com o conhecimento contido na mensagem. Tomemos como exemplo, o registro do
jogo que a professora Thais solicitou aos alunos e que, de antemão, não sabia o que fazer
com eles (retomando essa atitude após discussões com o seu grupo de estudo e os textos
teóricos de referência).
Institucionalização: supõe preservar o sentido dos conhecimentos construídos pelos alunos
e estabelecer relações entre os trabalhos dos alunos e o saber cultural. Durante as situações
de institucionalização devem ser tiradas conclusões a partir do que foi produzido pelos
alunos. Como exemplo aqui, discorremos um pouco mais a partir de outra experiência
vivida na sala da professora Thais com a contagem dos dados e o cálculo das três jogadas
realizadas.
A professora confronta, nessa experiência, sua aprendizagem empirista, com um novo
modelo de aprendizagem construtivista que está tomando conhecimento. Traz para o grupo
a seguinte questão:
“Enquanto meus alunos somavam os pontos feitos nas três jogadas, fiquei me segurando
para não ensiná-los a usar a sobrecontagem (uma contagem onde um dos termos é
memorizado e o outro é acrescentado um a um). Naquele momento fiquei me perguntando:
mostro esse outro jeito ou não? Na dúvida e, como teríamos formação, resolvi não falar
nada, mas também não fiz nada a não ser observar.”
O grupo, convidado a refletir sobre essa questão a partir do que fariam no lugar da
professora segundo os teóricos que estávamos estudando (e, nesse caso, a teoria das
situações didáticas de Brousseau). Como se trata de um grupo jovem de professoras,
rapidamente uma delas retomou a situação de validação e propôs que ela, numa
socialização coletiva, propusesse aos alunos algo como: “Estava observando vocês
somando os pontos feitos em cada jogada e gostaria que contassem uns aos outros como
fizeram para somar as três quantidades de pontos ao final de cada jogada. Quem quer
começar?”
Após ouvir as socializações dos alunos, Thaís ficaria atenta para ver se algum deles usou a
sobrecontagem como estratégia de cálculo e solicitaria que explicasse mais detalhadamente
como fez e, em seguida mostraria aos alunos como foi que ele fez e solicitaria que
tentassem somar 23 + 14 (por exemplo) utilizando a estratégia do colega. Nesse momento,
Thais poderia abrir aos alunos que cada um deles tentasse fazer a soma dos pontos
utilizando essa estratégia e, em seguida, numa nova socialização, pudessem mostrar como
fizeram.
Veja como um dos alunos explicou como fez para somar dois dos resultados de suas
jogadas: “ Eu coloquei 7 na minha cabeça e contei nos dedos do 8 até chegar no 15.”
Essa forma de fazer a contagem é chamada de sobrecontagem e, após ser explicitada pelo
aluno, Thaís poderia chamar a atenção de todos os demais alunos sobre como ele fez a
contagem e o que fez de diferente, além de discutir a economia de tempo para encontrar o
resultado.
REFERÊNCIAS
PANIZZA, M. Ensinar Matemática na Educação Infantil e nas Séries Iniciais: Análise e
propostas. Porto Alegre: Artmed, 2006.
WEISZ, T. O diálogo entre o Ensino e a Aprendizagem. São Paulo:Ática, 2011.
BROUSSEAU, G. Iniciación al Estudio de La Teoría de Las Situaçciones Didáticas; Buenos
Aires:Libros del Zorzal, 2007.
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