SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS NO TRATAMENTO, RECAÍDA E CICLO DE RECUPERAÇÃO ENTRE OS GÊNEROS Publicado: Eval Rev 2008; 32; 113 Autor: Christine E. Grella, Christy K. Scott, Mark A. Foss e Michael L. Dennis O conceito de que a Dependência Química seja uma doença crônica que requer tempo longo de tratamento como qualquer outra doença crônica tem sido largamente disseminado e geralmente aceito no campo de tratamento do uso de substâncias. Este conceito de Dependência Química ainda tem algumas falhas. O entendimento a respeito de como os indivíduos freqüentemente mudam de um estágio para outro durante o ciclo de recuperação e o acompanhamento dessas mudanças ainda é limitado. Estudar a adicção como uma doença crônica, é importante para traçar uma perspectiva de vida. Em cada história de uso, tratamento, recaída e recuperação não são observados eventos discretos, mas sim experiências correlatas entre passado, presente e futuro do uso e tratamento das drogas. Diferenças entre os gêneros no uso de drogas e participação no tratamento Este artigo está focado em como os moderadores de gênero ao longo do ciclo da recuperação podem influenciar na participação no tratamento. Focamos nas diferenças entre os gêneros porque as pesquisas têm mostrado que existem caminhos importantes em relação ao uso de drogas e à participação no tratamento que são diferentes entres homens e mulheres. Primeiramente, existem algumas diferenças no processo não só de iniciação do uso de drogas como também de se tornar dependente da substância utilizada. As mulheres tendem a iniciar o uso de álcool e drogas mais tarde que os homens, porém progridem rapidamente para um quadro de dependência química. Além disso, homens e mulheres são submetidos a influências sociais diferentes no início do uso da substância; as mulheres associam o início do uso ao contexto das relações interpessoais e sexuais, enquanto que os homens associam esse início à influência de amigos e ao fato de terem experimentado a droga. Em segundo lugar, as diferenças entre os gêneros são evidentes no processo relacionado ao início do tratamento, incluindo influências sociais que podem favorecer ou prejudicar não só a entrada como encaminhamento para o tratamento. As mulheres possuem maior probabilidade de ingressar no tratamento através da saúde mental, enquanto que o uso de substância e a participação no tratamento são diferentes entre os sexos. Por isso, entendemos que o curso longitudinal da recuperação dos homens e mulheres podem ser influenciados por diferentes contextos sociais, incluindo família e relações no trabalho; interação com instituições sociais, como área criminal e justiça, bemestar social, e serviços de saúde; e tratamento e participação de grupos de auto-ajuda. Estudo Este estudo construiu uma pesquisa longitudinal que tem sido conduzido com uma amostra relativamente grande de participantes que foram inicialmente encaminhados a uma comunidade baseada em tratamento para uso de substância através de uma parte dos estudo do Chicago Target Cities. Começando pelo segundo ano de acompanhamento Scott et al. conduziram acompanhamentos anuais da amostra até o sexto ano da pesquisa. Dentro de 36 meses de acompanhamento (considerando mudanças de estágio no segundo e no terceiro ano) após início do estudo, quase todos os pacientes (83%) mudaram de estágio (por exemplo, saíram do estado de recaída do uso da substância, começaram a se tratar, foram presos, ou retornaram para o estado de recuperação do uso) pelo menos uma vez, e por múltiplas vezes transitaram em vários estágios do ciclo de recuperação. Além disso, os preditores específicos desta transição variavam em função do tipo e da direção do caminho seguido. (por exemplo: o tipo de começo e final do estágio em cada período anual analisado). No primeiro acompanhamento feito com esta amostra, homens e mulheres não se diferenciaram no que diz respeito à prevalência do uso de substância química relatado nos 24 meses que antecederam a intervenção, porém houve maior prevalência do uso de álcool e maconha entre homens e cocaína entre as mulheres. Além disso, as mulheres apresentaram maior índice de retorno ao tratamento, enquanto que os homens maior índice de prisão. Problemas psicológicos foram associados à grande probabilidade de continuação do uso em ambos os sexos. Contudo, para as mulheres que conviviam com usuários de drogas foi encontrada uma maior probabilidade de continuarem usando nos 24 meses após início do estudo, o que não foi encontrado entre os homens. Nas análises subseqüentes, não houve diferenças entre os sexos em relação à proporção do uso de álcool e drogas relatada em 36 meses, porém houve diferença em algumas áreas, tais como, funcionamento psicossocial, incluindo questões psicológicas entre as mulheres e questões envolvendo justiça entre os homens. As mulheres continuaram tendo baixas taxas de emprego e revelaram ter mais problemas interpessoais que os homens, no entanto apresentaram grande participação nos grupos de auto-ajuda. Este artigo ampliou seus estudos através da análise das diferenças e semelhanças no número, tipo, e preditores de transição entre os diferentes estágios de recuperação entre o segundo e o sexto ano de acompanhamento após início do estudo. Baseado na literatura e na co0ndução dos acompanhamentos feitos durante o estudo desta amostra, nós deduzimos que tanto os homens quanto as mulheres possuem diferenças no ciclo de recuperação. O fato de existir uma forte associação entre problemas de transtornos mentais e o uso de substância química entre as mulheres, nos fez deduzir que os problemas de saúde mental poderiam estar fortemente associados às transições da recuperação para recaída entre as mulheres. Por outro lado, em função da alta associação entre comportamento criminal e uso de drogas entre os homens, deduzimos que o envolvimento com a justiça criminal às transições do ciclo de recuperação no sexo masculino. Além disso, o fato de pesquisas anteriores terem demonstrado que as mulheres tendem a aderir ao tratamento e a participar de sessões de auto-ajuda mais que os homens nos fez perceber que o tratamento e as sessões de autoajuda poderiam estar associadas, mais em mulheres do que em homens, à transições entre os estágios do ciclo de recuperação, no sentido de manter a abstinência. Método Estudo A amostra de 1.326 participantes foi recrutada em 10 agências situadas no oeste de Chicago em centros de tratamento entre os anos 1996 e 1998. Mais de 90% da amostra recebeu encaminhamento para tratamento de 6meses. A amostra de mulheres foi maior uma vez que algumas modalidades de tratamento envolviam apenas o sexo feminino. O primeiro objetivo do estudo foi observar com que freqüência os pacientes transitavam de um estágio para outro dentro do ciclo de recuperação ao longo dos 4 anos de acompanhamento. Os participantes foram classificados nos estágios baseados no relato do próprio paciente a respeito de seu comportamento nos 30 dias que antecediam a entrevista de acompanhamento anual. Foram considerados quatro estágios: “em uso”, “em tratamento”, preso, “em recuperação”. O segundo objetivo foi examinar se homens e mulheres eram diferentes em relação aos fatores individuais que proporcionavam a transição de um estágio para outro, e se permaneciam no mesmo estágio no acompanhamento anual. O foco do estudo estava nas passagens pelos diferentes estágios do ciclo de recuperação feita pelos participantes da comunidade que estavam “em uso” ou “em recuperação”. Quatro tipos de caminhos de transição foram examinados: a. “em uso” para “em recuperação”; b. “em recuperação” para “em uso” (ou seja, participantes que estavam em recuperação, mas recaíram e voltaram a usar); c. “em uso” para “em tratamento”; d. “em recuperação” para “em tratamento” A movimentação de entrada e saída da carceragem pode ser influenciada por fatores externos (por exemplo: tipo de crime; as sentenças policiais que podem mudar ao longo do processo; as condições do local para andamento do processo), e por isso decidimos excluir os estágios que envolviam os participantes que estivessem presos (tanto no início quanto no final da avaliação) da avaliação dos preditores de transição. Instrumentos e Medidas Primeiramente, o instrumento utilizado foi a Addiction Severity Índex, com complemento de algumas questões e escalas em cada sessão. Estágio da recuperação Os participantes foram classificados em um dos quatro estágios de recuperação. Esta classificação foi baseada no acompanhamento anual do comportamento dos participantes nos 30 dias que antecederam a aplicação da pesquisa. Variáveis A combinação das variáveis relacionadas a recuperação, recaída e participação no tratamento foi identificada na literatura e guiou a análise. (exemplo: sexo; idade; números de vezes que o participante foi preso pela polícia; quantidade de tratamentos para dependência química a que o indivíduo já se submeteu; quantidade de amigos que estão limpos ou sóbrios; número de semanas em tratamento nos doze meses que antecederam o período de acompanhamento; e o número de reuniões baseadas nos “12 passos” freqüentadas pelos participantes da pesquisa no semestre anterior. Características dos participantes A amostra era constituída de 476 homens e 726 mulheres. Com exceção da raça/etnia (aproximadamente 90% eram americanos de descendência africana), foram observadas diferenças entre os sexos nas outras características. A amostra masculina tinha as seguintes características: Os homens eram, em média, mais velhos; a maioria casada; maior parte havia completado o 2º grau; pequena parte morava com os filhos ou como companheiro; maioria morava sozinho; pequena parte relatou sintomas de Depressão Maior e Transtorno de Ansiedade Generalizada; maior parte já havia sido presa pela polícia Em relação ao uso de substância química, uma parcela maior dos homens, em relação às mulheres, relatou uso semanal de álcool, enquanto as mulheres relataram uso semanal de cocaína e heroína. Não foram observadas diferenças entre os sexos relacionadas ao uso de maconha. Resultados O primeiro objetivo do estudo foi examinar a freqüência e o tipo de transição dentro do ciclo de recuperação ao longo dos acompanhamentos anuais realizados durante 4 anos. A análise dessas transições revelou que o percentual de participantes que estava usando drogas diminuiu de 80% no início da pesquisa para 39,6% no terceiro ano de acompanhamento, ainda neste período foi observada um aumento de 8,3% para 41,2% dos participantes “em recuperação” do início ao terceiro ano de acompanhamento. O percentual de participantes “em uso” de drogas diminuiu entre o terceiro e o sexto ano de acompanhamento (de 40,9% para 37,4% entre os homens e de 43% para 37,6% entre as mulheres); da mesma forma o percentual de participantes “em recuperação” aumentou (de 33,7% para 36,1% entre homens e de 40,7% para 43,2% entre o sexo feminino) O estágio do participante no início de cada acompanhamento anual foi comparado ao seu estágio no início do acompanhamento anual anterior. Em relação aos dois grandes grupos (“em uso” – 38,9% e “em recuperação” – 40,5% da amostra, ambos no início do estudo), mais de 60% permaneceram no mesmo estágio o acompanhamento. Entre os participantes que estavam no estágio “em uso”, 60,3% dos homens e 60,5% das mulheres permaneceram neste mesmo estágio durante 1 ano.Entre os participantes classificados “em recuperação”, 60,2% dos homens e 66,2% das mulheres permaneceram neste mesmo estágio durante um 1 ano. Entre os participantes que estavam presos, uma proporção maior de homens em relação às mulheres permaneceu presa ao longo de 1 ano de acompanhamento 948,7% e 34,9%, respectivamente). Cerca de um terço de ambos os sexos saíram do estágio “em tratamento” e migraram para o estágio “em recuperação”. Outro resultado observado foi que aproximadamente a mesma proporção de homens e mulheres migrou do estágio “em tratamento” para “em uso” (cerca de 27%) ou permaneceram “em tratamento” no início e no final do acompanhamento (cerca de 35%). Transição de estágios: de “em uso” para “em recuperação”, e de “em recuperação” para “em uso” Seis fatores foram relacionados à transição dos participantes do estágio “em uso” para “em recuperação”. Em relação aos participantes que continuaram usando, os que passaram para o estágio “em recuperação” tinham uma proporção maior de amigos limpos ou sóbrios, haviam experimentados poucos sintomas de saúde mental e tinham sido presos mais vezes ao longo da vida. Outros fatores interferiram nesta transição. Para as mulheres a intensidade de tratamento recebida foi mais associada à transição para o estágio “em recuperação” do que à permanência do estágio “em uso”. Enquanto que no sexo masculino o tratamento recebido não foi associado nem à mudança de estágio dentro do ciclo de recuperação nem à permanência no mesmo estágio. A quantidade de dias de uso de substâncias nos 30 dias que antecederam o período de avaliação pode ser um preditor para migração de estágio para o outro, ou seja, os participantes que relataram maior número de dias de uso de drogas migraram menos para o estágio “em recuperação”. A relação interpessoal teve importância significativa em ambos os sexos; entretanto o efeito foi maior entre os homens de forma que quanto maior o número de dias usando substâncias menor a probabilidade de migração do estágio “em uso” para “em recuperação, entre homens. Finalmente, o maior número de sessões de auto-ajuda durante o período da pesquisa foi associado ao aumento da probabilidade de transição para o estágio “em recuperação”, principalmente entre as mulheres. Em relação aos participantes que permaneceram “em recuperação”, os que recaíram tinham menos amigos limpos ou sóbrios, apresentaram maior número de problemas legais medidos pela ASI Legal Composite score, maior parte era do sexo masculino, foram tratados por um número maior de semanas, e freqüentaram menos sessões de autoajuda durante o período de avaliação. Transição de estágios: de “em uso” para “em tratamento”, e de “em recuperação” para “em tratamento” Em relação aos participantes que continuaram usando, os que entraram em tratamento freqüentaram maior número de sessões de auto-ajuda, tiveram maior quantidade de problemas legais medidos pela ASI Legal Composite score, mais semanas de tratamento. Considerando o mesmo número de semanas de tratamento, mais homens do que mulheres permaneceram em tratamento ao longo do período. Por outro lado, em relação aos que permaneceram “em recuperação”, os que entraram em tratamento eram mais jovens, tiveram maior número de problemas legais e foram submetidos a um número maior de semanas de tratamento ao longo do período. Entre as mulheres, um número maior de problemas legais reduziu a probabilidade de elas migrarem do estágio “em recuperação” para o tratamento; entretanto, entre os homens existe uma pequena relação entre a quantidade de problemas legais e esta transição entre os estágios. Outros fatores Outros fatores também foram considerados, tais como: raça/etnia, número de filhos, se mora ou não com eles, se recebe assistência pública, idade do primeiro uso de drogas ou da intoxicação, anos de uso de substância, substância usada no momento, atividades ilegais (ex: tráfico de drogas), envolvimento com a Justiça, atividade profissional e ambiente familiar e/ou social. Discussão Aproximadamente 80% dos participantes deste estudo transitaram entre os estágios do ciclo de recuperação pelo menos uma vez ao longo dos 4 anos de acompanhamento. A proporção de mulheres que estava “em recuperação” e permaneceu neste estágio durante o período de transição superou a dos participantes do sexo masculino (66% e 60%, respectivamente). A proporção de homens encarcerados foi maior que a de mulheres tanto no início quanto no final do período de transição (49% e 35%, respectivamente). A participação em sessões de auto-ajuda e o tratamento foram associados a vários tipos de transição de ambos os sexos. Entre as mulheres a participação em sessões de auto-ajuda foi fortemente associada à migração do estágio “em uso” para “em recuperação”. Em relação aos homens a freqüência do uso no início do período de transição teve forte efeito na diminuição das chances de transição do estágio “em uso” para “em recuperação”. Apesar de ter aumentado a entrada de mulheres na prisão por crimes relacionados ao uso de drogas nos últimos 20 anos, o sistema criminal continua exercendo maior influência sobre a participação do sexo masculino no tratamento. Apesar do comprometimento psicológico no início do período de transição reduzir a probabilidade de migração do estágio “em uso” para “em recuperação”, contrariando nossas expectativas não foram encontradas diferenças significativas entre os sexos. Limitações do estudo A transição entre os estágios foi avaliada segundo o comportamento do participante nos 30 dias que antecederam a avaliação. É possível que muitas mudanças ocorram nos 12 meses antes do acompanhamento, mesmo que o paciente afirme permanecer no mesmo estágio durante este período. Assim como acontece em todos os estudos em que a amostra é avaliada através de seu próprio relato, existe a possibilidade de haver erros nos dados coletados. Conclusão Os resultados deste estudo contribuíram para o enriquecimento da literatura que aborda o processo de recuperação do uso de substâncias e ainda aumentou nossos conhecimentos a respeito da influência deste processo nos homens e nas mulheres. Esses achados sugerem a necessidade de aumentar os efeitos da participação de sessões de auto-ajuda ao longo do tratamento entre os homens. Pesquisas futuras podem aumentar e melhorar nosso conhecimento a respeito da influência do gênero no dinâmico e complexo processo de recuperação que ocorre ao longo da vida.