A DEGRADAÇÃO DOS VALORES E A CRISE MORAL NAS POLÍCIAS MILITARES Cel. PM ref. Wilson Odirley Valla 1. INTRODUÇÃO Em toda vida prática do homem há a presença dos valores que são julgados, preferidos e preteridos. Valores, num sentido genérico, também são traduzidos por normas, princípios ou padrões sociais aceitos ou mantidos por indivíduos, classe, sociedade, cultura ou organização. No caso específico das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares a disciplina, a hierarquia e o sentimento do dever, afora outros atributos, são valores que constituem a essência da estabilidade e da funcionalidade de tais corporações e que devem ser, além de preservados, vividos e estimulados por todos os seus integrantes, independente de postos ou de graduações. Esses valores influenciam, de forma consciente ou inconsciente, o comportamento e, em particular, a conduta pessoal de cada integrante das referidas instituições. Onde há ação humana, há a presença de valores, maiores ou menores, valorizando ou desvalorizando o caráter do homem. Assim, princípios ou valores morais como a honestidade, a bondade, o respeito, a virtude, a justiça, etc., determinam o sentido moral de cada indivíduo. São valores universais que regem a conduta humana e as relações saudáveis e harmoniosas. Entretanto, há consenso de que os valores estão se degradando, cuja inquietação resultante é a perda de referencial das pessoas e, como resultado, vive-se numa “crise de moral”, não de ética. Como a moral decai, como a moral não consegue manter as suas normas, porque ela já não corresponde à realidade da vida atual, então quem sofre as consequências é a ética, parecendo aos olhos daqueles menos precavidos que a ética também se desmorona, como se está desmoronando a moral. Isso e não é verdade. A ética, além de invariável, é universal. Decorrente dessa crise de moral o que se observa é a descrença e, consequentemente, o abandono dos valores da humanidade considerados até então como os mais nobres do ponto de vista social. A degradação dos valores é tão sensível e de consequências tão graves que até o bem mais nobre do ser humano - a “vida” -, está sendo vulgarizado. Infelizmente a razão humana não consegue mais definir o que é bom, o que é mau, o que é verdade e o que é falsidade e até qual a identidade do homem. Tais definições ficam submetidas à decisão do subjetivismo absoluto e do relativismo moral de cada pessoa ou grupo. Esta herança introduziu o cinismo na sociedade e ajudou a enfraquecer a moralidade, preparando o terreno para os inescrupulosos, além de uma ampla rede de proteção para os velhacos. 2. DESENVOLVIMENTO Quando o único fator determinante para que alguma atitude humana possa ser considerada boa for o julgamento individual ou de grupo, a moral por si só deixa de existir. Nessa situação aqueles que têm mais poder impõem suas posições aos outros mais vulneráveis. Também, quando se extingue a consciência moral, se obscurece o senso de responsabilidade, como também torna obscuro o reconhecimento do mal, sobretudo nos fatos concretos. Assim, a chamada “liberdade de consciência” poderia justificar inclusive atitudes criminosas. É uma visão de mundo que preocupa muito, orientada por intelectuais e ideologias de índole marxista e até militantemente anticristãs, que alega não existir uma verdade objetiva, nem aquela decorrente dos resultados dos A DEGRADAÇÃO DOS VALORES E A CRISE MORAL NAS POLÍCIAS MILITARES 2 avanços da ciência. Segundo Gustavo IOSCHPE1, economista ligado à área de educação: “[...]. O resultado dessa investigação científica seria apenas uma verdade, a versão inventada pelo homem branco ocidental para ajudá-lo a subjugar os povos subdesenvolvidos e as minorias dos países ricos.” Na continuidade, prossegue o ilustre articulista: “Existem para os pós-modernistas, ‘verdades’, no plural, ditadas pelas características históricas, culturais, econômicas de cada pessoa ou grupo.” Com base na realidade histórica, não é verdade que o Golpe de 1964 pretendeu estabelecer uma ditadura. Foi exatamente o contrário: ele ocorreu para garantir a democracia em nossa nação, impedindo a implantação de uma ditadura comunista em nosso país. O movimento de 1964 foi um contragolpe ao processo de “cubanização” do Brasil, que já estava em andamento. No plano subjetivo pessoal, a concepção de que desviar dinheiro público é corrupção desde que essa pessoa não esteja envolvida no ato lesivo, passa a ter o mesmo grau de verdade de um ato honesto. Além disso, vive-se num tipo de sociedade no apogeu da liberdade com licenciosidade; esquecendo-se das responsabilidades, ou seja, sem limites morais. Como agravante, as empresas e as pessoas estão disseminando a ideia de que tudo se vende e tudo se compra, que tudo tem um preço. Logo, o dinheiro pode comprar tudo, do amor até a compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional. Negocia-se o público em proveito do privado. Tal pensamento, além de comprometer a retidão dos seres humanos, como valor fundamental da humanidade, degrada e corrompe outros valores nobres como a honra, o caráter, a cidadania, o civismo, a justiça, a vida em família e até a função parlamentar, cujos valores citados repudiam qualquer precificação. Na verdade, o que está em jogo são os freios morais. Neste contexto, as atividades públicas no Brasil e, em particular, as de segurança pública foram contaminadas por tal crise, inclusive as forças militares estaduais. A título de registrar a decadência moral nos dias atuais, um dos principais operadores do escândalo do mensalão, (financiamento de apoio político com desvio de recursos públicos), envolvendo deputados federais, funcionários, bancos e empresários, réu na ação criminal nº 470, na época, ainda em processo de julgamento no STF, foi patrono de uma turma de formandos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas no interior de Goiás e, ainda, como disparate, proferiu palestra sobre “ética na política”. Conforme comentários de Márcio Guedes Nogueira2, de Fortaleza CE, ”além de triste, demonstram os formandos, com a leniência dos professores, que não assimilaram o sentido daquilo que cursaram.” Dá a impressão de que as pessoas que vivem à margem dos valores da cidadania e da justiça são possuidoras de mais direitos que aquele que cumpre com os requisitos éticos e morais. O gen. Div. ref. Francisco B. Torres de MELO3, ao tratar da degradação dos valores nos diferentes poderes, assim desabafou: “Tal é a degradação existente no Estado Brasileiro que a busca do conhecimento da VERDADE passa por ser considerada um ato de hipocrisia por quem deseja conhecê-la. Vive-se a inversão de valores e tudo passa a ser permissível.” Infelizmente, o maior dos dilemas está reservado ao homem íntegro, ao homem cumpridor de leis, compromissos e deveres, sentindo-se abandonado na busca e na prática da honestidade, dificultando-lhe até as relações e o convívio social. A virtude é considerada como doença contagiosa nos dias atuais. Além disso, o homem de bem necessita possuir força moral incomum para não relativizar os princípios éticos e para resistir as crises de consciência que frequentemente o acusam de ser “o único” íntegro a não aceitar propina, “o único” bobo a ainda honrar a palavra dada ou o compromisso assumido. Essa conexão óbvia com o objetivo de debilitar a consciência moral dos indivíduos a pretexto de reformar ou modernizar a sociedade, animada por uma velocidade crescente, também atinge em cheio as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares, pelas atitudes de afrouxamento do rigor moral de significativa parcela de seus integrantes, cujo reflexo expõe a perigo os valores institucionais mais significativos. Tal situação, além propiciar a instabilidade interna por atos de indisciplina, de baixa moralidade e de reduzido comprometimento, já é sintomática a perda do referencial não somente em relação à missão, mas também aos compromissos assumidos, propiciando espaços para que a violência e a corrupção prosperem. Na prática essa situação é estimulada, de um lado, por um processo que pode ser chamado de ceticismo ou de apatia, cujo resultado é o enfraquecimento dos valores e dos preceitos morais, cujo resultado é que o julgamento sobre a conduta moral se torna uma questão de sentimentos e preferências 1 2 3 IOSCHPE, Gustavo. Afinal, a verdade existe? Veja, edição 2.326, nº 25. Curitiba: 19 jun. 2013. p. 96. o 2158. Curitiba: 31 mar. 2010. p. 41. NOGUEIRA, Márcio Guedes. Mensalão. Veja. Seção: Leitor. Edição n MELO, Francisco B. Torres, gen. Div. ref., coordenador geral do Grupo Guararapes. Carta aberta aos responsáveis pela República Federativa do Brasil, 16 abril 2007. Fortaleza, CE. A DEGRADAÇÃO DOS VALORES E A CRISE MORAL NAS POLÍCIAS MILITARES 3 pessoais. De outro, oficiais, na tentativa de serem vistos como modernos, isto é, íntimos ou do agrado dos subordinados, tornam-se complacentes e permissivos e acabam perdendo o respeito e a autoridade. Assim, o pouco-caso com a disciplina e a moralidade, infelizmente, sempre cobra um preço alto. Não se trata de uma cobrança que vai ser diferida para o futuro, como frequentemente se imagina, ou que a situação poderá ser retomada a qualquer momento. O preço já está sendo pago há muito tempo, e tende a ficar cada vez mais alto. Basta observar tudo o que está acontecendo em boa parte das Polícias Militares em termos de desvios de conduta de seus integrantes, como resultado da tolerância e da leniência com a indisciplina e o afrouxamento da maior força moral, a integridade. A comprovação dessa lamentável realidade está no resultado de recente pesquisa do Ministério de Justiça ao revelar que 61% dos policiais militares dizem que há vista grossa a desvios de conduta dentro das corporações, isso sem mencionar os crimes graves citados diariamente pela mídia. O mais vergonhoso é o fato de que, em Curitiba4, esse índice chega a 67%. E o pior, isso somente é possível pela cumplicidade e leniência de expressiva parcela de profissionais de círculos hierárquicos mais elevados e que deveriam coibir rigorosamente tais atos criminosos. Nesse contexto, o futuro é sombrio, pois a quebra de valores pelo afrouxamento do rigor moral a eles relacionados e a falta de punição aos que legitimam a falha de caráter não só corroem as estruturas dessas corporações, como, também, minam e paralisam a capacidade de reação de seus integrantes, especialmente de seus comandantes. Se essa miséria moral não for cuidada o edifício poderá ruir. O filósofo Olavo de CARVALHO5 ressalta que é preciso ser um cego, um idiota ou completo alienado da realidade para não notar que, na história dos últimos séculos, e sobretudo das últimas décadas, a expansão dos ideais sociais e da revolta contra a “sociedade injusta” vem junto com o rebaixamento do padrão moral dos indivíduos e com a consequente multiplicação do número de seus crimes. É preciso ter uma mentalidade monstruosamente preconceituosa para recusarse a ver o nexo causal que liga a demissão moral dos indivíduos a uma ética que os convida a aliviar-se de suas culpas lançando-as sobre as costas de um universal abstrato, “a sociedade”. Em relação às forças estaduais, todas as palavras que expressam as aspirações mais altas em relação à hierarquia e a disciplina estão sendo prostituídas, rebaixadas, moídas na máquina do oportunismo e do interesse ideológico de uma esquerda tóxica. A destruição da linguagem precede o embotamento das consciências. Para elevar a moralidade das Polícias Militares é preciso aguçar o seu senso dos valores, não embotá-lo. Para agravar, está sendo sutilmente infiltrada, inclusive por órgãos oficiais, a chamada hierarquia horizontal, cujo objetivo é desvirtuar o ordenamento da hierarquia militar na estrutura das corporações militares estaduais. Infelizmente, em algumas já em processo avançado. Este tipo inédito de hierarquia atinge em cheio a manutenção da disciplina, outro esteio básico de qualquer organização militar. São exemplos patentes da quebra da hierarquia e da disciplina decorrentes desses absurdos propósitos: apreciação das decisões do escalão superior pelos subordinados; interferências de praças em decisões sobre movimentações de oficiais; promoções obedecendo apenas às vinculações de natureza políticopartidária; iniciativas para a desativação dos órgãos imprescindíveis à formação de oficiais ou de praças exclusivos à guisa de integração com os demais órgãos policiais civis; fiscalização ostensiva ou velada de atitudes de superiores hierárquicos por subalternos, apoiada por associações com ligações políticas avessas ao primado da ordem; matrícula e frequência em cursos por oficiais e praças sem a preservação dos respectivos círculos hierárquicos; praças graduadas como integrantes dos Conselhos de Disciplina; extensão às praças de prerrogativas exclusivas de oficiais, a exemplo da supressão de áreas ou locais de uso privativo do militar de círculo hierárquico superior e atribuição de função como instrutor ao invés de monitor. Em uma das coirmãs do nordeste brasileiro, segundo relato de um oficial intermediário, tem sido normal a designação de praça como instrutor em curso de oficial. Agora, o mais insultante em relação ao princípio da hierarquia, no Estado do Paraná, é permitir que oficiais prestem informações a graduados por ocasião da investigação de transgressões disciplinares de praças, emitindo juízo de valor inclusive sobre a veracidade ou não do que foi comunicado pelo oficial. Os maiores culpados são os oficiais que se submetem a tamanho constrangimento, pois além da iniciativa ser absolutamente ilegal, subverte a hierarquia. Parafraseando o filósofo Olavo de CARVALHO6, aquele oficial ou comandante que por cumplicidade, leniência, incompetência ou ambição política concorre para destruir as bases da moral institucional, em especial a hierarquia e a disciplina, ou é um idiota irrecuperável ou tem uma agenda secreta. A diferença é que a idiotice sente 4 5 6 Jornal Gazeta do Povo. PMs toleram corrupção de colegas. Curitiba, 09 maio 2013. p. 4. CARVALHO, Olavo de. O mínimo que você precisa saber para não se tornar um idiota. Direto do inferno. Editora Record, Rio de Janeiro – São Paulo: 2014, p. 198. CARVALHO, Olavo de. Ibidem. A reciclagem da ética. p. 285. A DEGRADAÇÃO DOS VALORES E A CRISE MORAL NAS POLÍCIAS MILITARES 4 alguma vergonha de si mesma, a vaidade e a ambição política, não. Não há doença mais contagiosa e destrutiva que pode afetar uma organização militar do que a perda do sentido da disciplina e da hierarquia. Num primeiro momento pequenas transgressões parecem não ter importância, mas ao longo do tempo esgarçam a fibra moral das corporações e contribuem para a desagregação de seus integrantes. O que falta é punir. O transgressor, particularmente o corrupto, é um jogador. Sabendo que o risco é mínimo ele continua a transgredir. Ao contrário, quando as pessoas são estimuladas a respeitar as normas básicas de conduta, além de passarem a respeitar a si próprias, elas impõem-se ao respeito das outras. Isso somente é possível com maior fiscalização. Quanto maior a fiscalização, melhor a gestão. É o primeiro passo para mudar uma organização na direção de atitudes valiosas, isto é, dotadas de boa qualidade moral. O segundo passo é não tolerar desvios, sobretudo aqueles de ordem moral, punindo-se exemplarmente as falhas de caráter, pois os desvios de conduta no seio da polícia estão diretamente relacionados aos índices de criminalidade. O crime organizado sempre tem policiais em sua folha de pagamento. Segundo o ex-secretário nacional de Segurança Pública cel. PMSP José Vicente da SILVA, ao tecer comentários sobre os resultados da aludida pesquisa, com o que se está em total concordância, enfatizou: “é preciso criar uma rede, distribuindo o controle funcional ao longo de toda a hierarquia policial. Trocando em miúdos, deve-se estabelecer uma cultura sólida dentro das instituições em que policial vigia policial.” Para tanto, a supervisão tem de ser geral: do sargento ao soldado que estão na rua, ao coronel. Paralelamente a isso, a retomada dos valores como integridade, disciplina e dignidade junto aos subordinados, centrados nos exemplos vivos de qualidades e virtudes a serem seguidas, e de vícios a serem desprezados. O foco, neste caso, deverá estar centrado prioritariamente nas atitudes dos oficiais. 3. CONCLUSÃO Os valores morais de uma sociedade ou mesmo de um grupo profissional podem ser arranhados aqui ou ali pelo descumprimento de regras específicas, a exemplo da falta ao serviço. Mas se a percepção dos princípios gerais é embotada, a exemplo dos princípios da hierarquia, da disciplina e do dever militar nas organizações militares, não é uma ou outra virtude que cai: é a possibilidade de distinguir entre a virtude e o vício, isto é, da disciplina e da indisciplina. É nesse preciso instante que o discurso acusando de que os princípios da disciplina e da hierarquia são heranças da ditadura militar, portanto incompatíveis com os princípios democráticos, se transforma na caça oportunista, com base numa ideológica tóxica, aos bodes expiatórios, no caso mais enfático às Polícias Militares. Agora, o mais grave de tudo vem na sequência. De tão confundido e atordoado pelos “especialistas em segurança pública de ocasião” tem sido os próprios militares estaduais, considerados idiotas úteis por aqueles, já começam a aceitar como normais e louváveis não apenas as propostas de flexibilização dos regulamentos militares como também a desmilitarização dessas corporações centenárias. Crenças como essas destroem, na base, qualquer ordem possível e alimentam ad infinitum, além da instabilidade interna das corporações acima descritas, a criminalidade no país. É conveniente lembrar que os princípios não são regras: são critérios formais que embasam as regras. As regras variam conforme os tempos e os lugares, mas subentendendo sempre os mesmos princípios e que são estáveis ou permanentes. Não precisa ser muito letrado para compreender que o que é mais básico e geral – princípios como a hierarquia e a disciplina - devem ser preservados com mais carinho do que aquilo que é periférico e particular, no caso as regras. Logo, na vida castrense comportamentos que atentem contra a disciplina, a autoridade e ao dever militar são considerados crimes militares pelo Código Penal Militar pelo fato de comprometerem os princípios basilares das instituições militares, quer sejam federais ou quer sejam estaduais. E tem mais: tais princípios não mudaram com o passar do tempo, muito menos com a modernidade que aí está. **************************************** *********************** *******