Agressividade e ética, segundo Freud Este trabalho atém-se a apenas um dos recortes possíveis, da forma como a agressividade é explicada na obra de Freud, e como esse afeto pode ser pensado em suas relações com a ética. Em grande parte da obra freudiana, a agressão é entendida como resultado de um processo defensivo. Especificamente, segundo a primeira teoria pulsional (“O instinto e suas vicissitudes” [Freud, 1915/1980]), a agressividade seria, em última instância, uma formação reativa: o ódio seria manifestação secundária da libido. Sobre isso, vale ainda notar que a polaridade entre amor e ódio é entendida como uma organização da libido, na fase anal sádica. Ou seja, segundo esse raciocínio, odiar é apenas uma forma, necessária, de amar. O paradigma da atitude agressiva aparece na situação da horda primitiva, descrita em “Totem e tabu” (Freud, 1912/1980). Nesse caso, trata-se de uma agressividade que tem como base o amor à mãe (objeto de reivindicação), ao pai (amor que causa o remorso) e aos irmãos (que leva à identificação e organização social). O amor subjacente ao ódio justificaria a culpa. E a agressividade, transposta em culpa, já é organizada (e, ao mesmo tempo, organizadora) pelas relações afetivas. É no peso dessa situação primeva, repetida e herdada filogeneticamente, que Freud encontra o lugar de uma ética inquestionável, se assim pode ser dito. Inquestionável porque filogenética, e sem ela não haveria grupo e sobrevivência da espécie. Nesse ponto cumpre considerar a ótica evolucionista, que Freud adota: o amor e suas manifestações (entre elas a agressão) são fundados nos interesses de sobrevivência (o objeto de amor surge sempre da dependência biológica [Freud, 1925/1980]). A relevância do interesse de sobrevivência leva Freud, inclusive, a não conceber o masoquismo, exceto como resultado de uma identificação com o objeto, alvo de uma libido sádica (somente após 1920, é que o autor reorganiza a hipótese sobre o masoquismo, a qual é particularmente descrita em “O problema econômico do masoquismo” [Freud, 1924,1980]). A agressividade, explicada dessa maneira, é submetida ao ego desde o início. Ou seja, é sempre uma agressividade regulada pelo que, até a segunda teoria pulsional, Freud designa pelos dois princípios de funcionamento mental (princípio do prazer e princípio da realidade). Interessa salientar que o ego é fundado em identificações, as quais implicam numa condição libidinal. Enfatiza-se assim a tese de uma agressividade ética, porque baseada no amor ao outro (notando os processos de correspondência entre o outro e o narcisismo) e no controle egóico. Com a formulação do conceito de pulsão de morte, em “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920/1980), a gênese da agressão está aquém dos representantes psíquicos, portanto, aquém da formação do outro, numa localização anterior à estrutura egóica (daí não tardar para que Freud designe o id, como lugar desse início pulsional, em “O ego e o id” [Freud, 1923/1980]). E mesmo a agressão sendo organizada na ação recíproca das pulsões de vida e de morte, é nessa última que está sua gênese. O masoquismo primário é fundado na força da pulsão de morte. Sem dúvida, essa afirmação considera que tal genealogia é explicada em termos metapsicológicos: trata-se de uma perspectiva lógica, e não cronológica. Esse impulso primordial à destruição está isento de controle psíquico (visto a ação da pulsão de morte, que desliga as representações psíquicas). De acordo com essa perspectiva de Freud, a formação do outro e das relações de afeto que lhe são inerentes já são defesas, limitadas (D’Avila Lourenço & Simanke, 2007), contra tal impulso destrutivo. Assim este trabalho entende que, a partir das teses de “Além do princípio do prazer”(Freud, 1920/1980), a ética deve ser pensada levando-se em conta que a agressão ao outro já é uma defesa (limitada) contra uma auto-agressão (masoquismo primário) sem possibilidade de representação e, portanto, de regras. Nesse ponto, importa advertir que a auto-agressão só ganha contornos psíquicos nas formas secundárias de masoquismo, nas quais a presença do outro e dos processos de identificação já estão estabelecidos. Entretanto, tais formações secundárias do masoquismo, e todas as manifestações sádicas, não sobrepujam o masoquismo primário. Este trabalho entende que esse masoquismo permanece como algo inexorável. Logo, a ética pensada sob esses princípios também deve levar em conta o mal-estar insuperável e irrepresentável. Sem dúvida, essa condição de sofrimento é descrita em “O mal-estar na civilização” (Freud 1929, 1980). Nesse texto, o autor potencializa a força ética do sentimento de culpa, justamente porque tal sentimento seria fundado na ação pulsional mais primitiva, qual seja, a da pulsão de morte. Nesse texto, a ética do castigo não mais funcionaria por uma questão de convivência e organização social (como acreditava “Totem e tabu” [Freud, 1912/1980]), mas pela própria economia das pulsões. Assim, o sentimento de culpa não é mais totalmente justificado por algum desejo ou ato proibido, mas é uma configuração inerente ao jogo pulsional. Esse quadro explicaria a necessidade da figura do líder nas organizações humanas (ver “Psicologia dos grupos, e análise do ego” [Freud, 1921/1980]). Contudo, “O mal-estar na civilização” (Freud, 1929/1980) não comenta os destinos da auto-agressão primordial e irrepresentável, característica do masoquismo primário, nas relações com os outros. Sobre isso, é interessante notar que “Análise terminável e interminável” (Freud, 1937/1980) permite pensar a relação entre tal masoquismo primordial e o complexo de castração. Identificando tal complexo a uma posição de passividade e, ao mesmo tempo, a um repúdio indestrutível a ela, nesse texto, o autor levanta a hipótese de que esse complexo teria um fundo biológico, resistente à capacidade psíquica. Ou seja, a posição masoquista, identificada a esse complexo, seria irremediável pelas relações sociais. Aliás, essa posição seria justamente responsável pelo fato de tais relações serem caracterizadas pela reivindicação fálica (conforme D’Avila Lourenço, 2005). Este trabalho não desconsidera a interpretação que Lacan elabora sobre esse assunto, especialmente em “A ética da psicanálise” (Lacan, 1991). Nesse seminário, o autor enfatiza a anterioridade do gozo (e a prevalência da pulsão de morte e do masoquismo), frente ao desejo. E afirma que a ética da psicanálise, distinta da ética de Kant e da ética de Sade, consistiria exatamente na sustentação e produção do desejo, mesmo em face à anterioridade do gozo; com efeito, dessa maneira o desejo não remediaria o gozo, mas o conteria (esvaziando-o, para dizer conforme o autor). Essa seria uma possibilidade de superação da lógica da culpa e do castigo, descrita na obra de Freud. Porém, mesmo não desconsiderando a importância dessa elaboração lacaniana, este trabalho enfoca a teoria de Freud; bem como entende que, tais interpretações de Lacan só são possíveis porque esse autor fundamenta-se em fontes teóricas diversas daquelas adotadas por Freud. Referências bibliográficas D’AVILA LOURENÇO, L.C. 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Rio de Janeiro: Imago, 1980. (1924) ______. O problema econômico do masoquismo. In: Obras Completas, vol. XIX. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (1925) ______. Inibições, sintomas e ansiedade. In: Obras Completas, vol. XX. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (1929) ______. O mal-estar na civilização. In: Obras Completas, vol. XXI. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (1937) ______. Análise terminável e interminável. In: Obras Completas, vol. XXIII. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980. LACAN, J. A ética da psicanálise. In: Seminário, livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.