Os jovens e a tradição- inovação Andrade, Suad Haddad de Os adolescentes e os jovens adultos são os que vivem mais intensamente a luta entre a tradição e a inovação. É impossível não desejar inovar assim como é impossível desconsiderar ou não cuidar do conhecido e do vivido. Na clínica temos que examinar com cuidado estas questões porque pode não ser apenas uma problemática do clienteadolescente. Temos que estar atentos às questões sociais ou às mudanças rápidas do mundo em que vivemos. Um atendimento recente me chamou especialmente a atenção: “Não gosto desta cidade, não gosto da faculdade, não gosto dos colegas.” Quem me diz isto é uma bonita jovem, bem cuidada, sorridente. Ela me foi encaminhada pela mãe que, por telefone, disse estar muito preocupada com esta filha que repete todos os dias esta mesma fala para os familiares. São de outra cidade e a filha veio, há um ano, para estudar em uma excelente faculdade, das melhores do país, onde entrou com facilidade. Na mesma ocasião foi aprovada em todas as faculdades em que prestou vestibular; e sempre na mesma carreira ou na mesma profissão de ambos os pais. Na entrevista, pergunto à jovem por que não desiste e volta para casa; ela me responde prontamente: ” Porque isto é tudo o que meus pais querem; eles não vão aguentar.” Continuamos nossa conversa e ela concorda em fazer análise. Combinamos horários. No dia seguinte a mãe me telefona e diz que ela não quer fazer análise e que disse à mãe que deveriam dar a ela o dinheiro que me pagariam já que ela saberia gastar de maneira muito melhor compraria roupas e jóias lindas! Na luta para construir sua autonomia os jovens frequentemente questionam os valores vigentes. São observadores perspicazes e críticos severos. O adolescente aponta o que não quer, justifica suas críticas e arrisca enfrentar. Nossa jovem, intelectualmente brilhante, não faz isto exatamente quando diz que não gosta, quando diz que o que faz é pelos pais, e quando valoriza o que ela sabe que não tem um verdadeiro valor (as joias não são realmente importantes para quem sabe que é necessário muito esforço, capacidade, competência e perseverança para chegar onde ela está). Ela esta fazendo um enfrentamento diferente. Ela se diferencia quando diz não gosto para quilo que todos valorizam: a faculdade, para onde vêm jovens de todo o mundo e a cidade que encanta quem a conhece. Para a paciente o gostar e o não gostar tem a ver com o ser e o não ser; se não gosta ela se mantém diferenciada, única. Se gosta, como os outros, ela se dissolve. Ela está buscando uma definição pessoal que acredita poder conquistar desta maneira. Com os adolescentes vivemos sempre muitas contradições: os pais querem que os filhos os repitam e ao mesmo tempo querem os filhos mais livres, mais criativos e mais felizes. O filho quer preservar suas raízes e ao mesmo tempo quer superá-las; quer expandir seus horizontes e ao mesmo tempo teme se perder. Esta é a angustia sempre presente: querem ser autônomos e ao mesmo tempo têm medo de trair sua própria essência. Quando a jovem diz que gosta de não gostar ou, que não gosta ou não quer gostar, temos uma questão séria e nova nos desafiando. Este é um problema diretamente relacionado às pulsões? Sabemos que as pulsões representam um impacto constante, que busca expressão ou satisfação. Cabe ao aparato psíquico dar conta desta tarefa “O aparelho psíquico não é só formado a partir da pulsão, mas se forma para dar conta do caos advindo da vida pulsional (Freud-1915) Eu diria que este caos está comparecendo aqui no nosso caso como indiscriminação entre o que tem que permanecer e o que tem que mudar. Ou dito de outra maneira, ela não está discriminando o que realmente a assusta, o que é realmente importante. Meltzer (1994) fala que os border, os psicóticos e os psicopatas têm um defeito fundamental na não diferenciação entre o bom e o mau, sendo ” incapazes de fazer a diferenciação ou fazendo-a de maneira rígida, ligada a critérios descritivos que escarnecem do próprio propósito da operação” ou, diz ele ainda “ os mantém em uma relação completamente invertida, um em relação ao outro.” Fica repetindo para os pais que ela está insatisfeita e obriga a mãe a permanecer com ela durante semanas; a mãe teve que deixar seu trabalho e todas suas responsabilidades para acompanhar a filha neste início de ano, e que não é uma situação nova (é o segundo ano de faculdade da jovem). Quando ela afirma que não gosta do que está tendo na verdade está mostrando que não quer entrar em contato com o novo: “O conflito a respeito do objeto presente é mais significativo do que toda a série de ansiedades a respeito do objeto ausente.” (Meltzer). Então não é a presença ou ausência do familiar ali com ela o mais importante, mas as situações novas e as mobilizações internas que o novo traz. Meltzer diz ainda que é “a intimidade apaixonada com outro ser humano” o aspecto mais assustador e subjacente em todas as situações psico-patológicas. Para não se envolver com o diferente, pessoas ou situações, ela se comporta como a criancinha barulhenta que grita e obriga os pais a estarem sempre por perto, cuidando dela. O seu aspecto consumista é coerente com este padrão infantil de indiscriminação. Ela criou seu esquema próprio de independência e ao mesmo tempo de domínio e não quer correr riscos. Enquanto mantém os pais inseguros, angustiados, perdidos, ela os está controlando eficientemente. Quando ela não aceita ajuda ela está negando que possa haver algo mais importante do que ela mesma. Ela não quer conhecer os significados de seu desconforto, por isto rejeita a análise. Ela não acredita que ganha na valorização e ressignificação de seus vínculos. Ela não acredita que vai se enriquecer ao ampliar seu universo de conhecimento e de relacionamento. Quando ela não pode se vincular a tudo que hoje faz parte de sua vida está se impedindo de usufruir daquilo que é seu; prefere ficar reclamando do que não tem e não usufrui do que tem. O que perde fica sendo falsamente valorizado como quando ficamos lamentando a perda da condição infantil quando esta condição já não tem mais sentido. O ganho em crescimento, em experiência, em ampliação de recursos é negado. Por outro lado, quando ela mostra extraordinária competência intelectual ela está expondo que tem recursos para pensar, que não é ingênua, tola. Sabe o que quer e como conseguir. Estaríamos então diante de um splitting violento? A dependência seria então real e necessária para que ela mantenha sua integração psíquica? Os pais estão sendo os depositários das suas condições internas de contensão e tolerância? Ela se nega a fazer novos vínculos - esta é a questão central. Por que ela foge de se vincular? Ou, porque transforma os vínculos positivos de amor, ódio e desejo de saber ( L,H,K) em vínculos negativos? Onde deveria existir um vínculo de amor e interesse aparece o ódio e o desprezo. O desejo de saber está sendo substituído pela hipocrisia ou pela indiferença ou pelo fingimento. A necessidade de inovação é absolutamente natural e necessária sempre; mas nunca vamos inovar sem enfrentar as incertezas, as dificuldades, as angustias do imprevisível. É impossível eliminarmos as contradições do mundo em que vivemos. Temos que conhecê-las e quanto melhor conhecemos melhor lidamos com as dificuldades que elas provocam. Nossa jovem tem que tolerar a cesura, ou, a ruptura de um padrão de relacionamento para dar continuidade a sua vida. Ter que lidar com as contradições é tarefa permanente já que cada passo à frente implica em um rompimento. Quando ela foge dos novos vínculos, com a cidade, com a faculdade, com os novos colegas, ela foge de assumir novas responsabilidades. Qualquer vínculo implica na necessidade de cuidar, de preservar. Vincular-se inclui preocupação, possibilidade de perda e de sofrimento. Ela não acredita que consegue fazer este esforço ou ela narcisicamente ataca os vínculos? Um aspecto fundamental a ser considerado é o ataque invejoso ao núcleo familiar. Sendo a filha incapaz, que dá trabalho, que causa muitas angustias, ela está afirmando a incompetência dos pais, que não conseguiram criar uma filha forte, valente. Se ela se coloca saudável, com muito sucesso na vida, ela acredita que são os pais que comparecem como bons pais– o sucesso é deles, a competência é deles. Então a inveja tem que ser levada em conta em muitas situações de impasse onde a inovação não pode ocorrer. A consequência mais importante é a impossibilidade de usufruir do que está a sua disposição, do que é seu. Quem não é capaz de usufruir não tem condição de construir – ela deixa de construir seu futuro; de fazer projetos que a estimulem a viver bem. Sua postura expressa desprezo e resistência em fazer e cuidar de novos vínculos, resistência em assumir responsabilidades e ainda indefinição dos valores. Ela mostra bem a violência, principalmente a violência nas relações; o total desinteresse pelas angustias dos pais é uma expressão clara de violência. Mas eu gostaria de examinar este caso também por um outro vértice que, se considerado, amplia nossa possibilidade de nos apropriarmos dos fenômenos sociais atuais. Esta jovem realmente não acredita que dá conta ou ela está lançando um protesto muito mais sério? Quando ela, aparentemente, quer se acomodar ao padrão infantil ela não estaria lançando um desafio importante? Ela não estaria dizendo que tudo o que valorizamos é questionável? Ou dizendo que ela é contraditória tanto quanto tudo que construímos é contraditório, ou pior, é sem sentido? Ela não está questionando ou enfrentando diretamente aos pais ao usar dos valores deles? Esta não seria uma maneira nova de protestar ou de apontar falhas? Vejamos então: será que hoje o jovem se interessa por joias? Será que os jovens saudáveis se sentem responsáveis pelo bem estar dos pais? Não é estranho uma jovem expor suas fragilidades tão explicitamente, sem qualquer receio de ser vista como uma menina doente ou muito incompetente? Ela não estaria fazendo um percurso oposto ao que se espera do adolescente que está sempre precisando provar sua independência e sua capacidade de se virar sozinho? E poderíamos chamar isto de infantilidade ou irresponsabilidade? Esta jovem está trazendo uma questão que não é incomum hoje e que é diferente do que ocorria nas décadas anteriores: o que predominava antes era o desejo do jovem sair de casa; hoje nem sempre é assim - eles preferem ficar em casa durante a faculdade e até depois dela. Esticam a adolescência até os 30 ou 40 anos! Estaria faltando, hoje, um encantamento maior com a vida, com os projetos futuros? Só o encantamento dá sentido a nossas tarefas, nos dá força interior, mantém nossa energia. Como diz o Rouanet (1990), estamos perdendo ao mesmo tempo a memória, o vínculo com o passado e a capacidade de sonhar o futuro. Estamos dominados pelo aqui-agora da percepção imediata, do usufruir imediato.Curiosamente não vejo hoje um desejo de construir como via antes; hoje o que comparece é o desejo de usufruir. As gerações anteriores lutavam pela construção de seus sonhos; sabiam que é lenta, demorada, difícil, dolorosa e que implica sempre em muita dedicação. Parece que hoje esta noção de construir está abalada – queremos tudo rápido e fácil como com o toque do mouse: é só clicar e o mundo está ali, a sua disposição! Não tem que desenvolver a imaginação, criar o futuro, ir atrás dele. O novo está aí: todo dia é novo e chega até nós sem que tenhamos que fazer esforço. Estou então trazendo a necessidade de pensarmos o contexto social atual: há um severo comprometimento quando a jovem não se acredita capaz de construir seu futuro ou ela está apontando, mesmo sem perceber claramente, as falhas de nossa sociedade, tudo o que está recebendo e que não concorda em partilhar? Se resistimos aos vínculos fortes é porque não queremos nos comprometer, e isto só ocorre quando não valorizamos o que nos é oferecido. O desejo de usufruir , de partilhar, de colaborar só acontece quando vejo algo bom e significativo a ser feito. A diferenciação entre o bom e mau não estaria sendo, hoje, o nosso grande problema? A indiscriminação que estou apontando no caso da jovem não é nossa, quando submetidos aos valores atuais tão contraditórios? Ela tem uma tradição ou um acervo pessoal para ser levado em conta; mas isto não implica, necessariamente em não poder inovar; ao contrário só inovamos a partir do já conhecido ou do estabelecido. Ela não está inovando, ela está se apondo à inovação. Aparentemente sua postura é de imobilidade; ela não cria novos valores, ela não se responsabiliza pelo mundo no qual está inserida, não faz qualquer proposta nova. Quando ela diz que não pode decepcionar os pais ela já está definindo seu percurso, sua vida. Agradar aos pais é seu projeto de vida? É assim que ela define sua escolha, que ela dá sentido a sua vida? A questão mais importante é sabermos se realmente ela quer ser como eles. Ela está falsamente atribuindo interesse ao que era valorizado pela mãe e avó (joias e roupas), ou pelos pais (a profissão),ou ela está mostrando que os valores deles são inúteis ou ridículos? O que parece é que não há um confronto aberto de gerações, não há rebeldia, não há oposição. Portanto não há desejo de transformação, não há propostas de mudanças. Ou esta é uma maneira nova de protestar? No meu tempo o jovem participava da vida política, se interessava vivamente pelo futuro do país, haja vista as “Diretas já”. Hoje eles não questionam, não participam. Fora os brincos e as tatuagens, que são formas de se apropriarem de seus corpos e de se sentirem donos de si, eles não se importam com o social de maneira mais ampla, mais comprometida. É passividade ou uma inoperância provocativa, no sentido de dizer: o que vocês nos deixaram é isto – ausência de opção, de verdadeiros valores; não temos estímulo para lutar, para transformar – o que vocês nos deixaram é este desinteresse pelo outro, pelos valores humanos! Onde está o desejo de mudar, de dar a sua contribuição para mudar o mundo? O adolescente perdeu este sonho? Sem inovar, sem usar de sua força e de seus sonhos, sem usar de sua liberdade, sem usar dos seus próprios valores conquistados não se inova e, implicitamente, se ataca a tradição: manter falsamente as tradições é expressão de violência. Ao se paralisar e paralisar os pais está mostrando a inutilidade, o não valor de tudo que é seu e de sua família. Seu enquadre negativo ao social é um ataque e não uma adesão aos valores paternos. Ela está desprezando o que tem, o que recebe, e este é o seu protesto, aparentemente passivo. Resumo É natural o desejo de inovar dos adolescentes e jovens adultos. Na clínica muitas vezes temos dificuldade em diferenciar a problemática pessoal do jovem do envolvimento natural com as tensões sociais do seu grupo. Trago uma situação em que uma jovem comparece emocionalmente comprometida e criando dificuldades para a família. Ao lado de suas características pessoais penso estar ai subentendido um questionamento mais amplo e sério dos valores sociais vigentes. Palavras-chave : Jovem adulto; valores sociais; inovação-tradição. Bibliografia Freud. S.(1915) “O inconsciente”; V14 In: Ed.Standard Brasileira das obras de S. Freud; R.J. – Imago Ed. (1969) Meltzer,D (1994) “A apreensão do belo” ; Imago Ed., R. J. Brassil Rouanet, S.P (1990) “O Édipo e o anjo”; Ed. Tempo brasileiro; R.J. Brasil