COMENTÁRIOS SOBRE A POSSIBILIDADE DA ACEITAÇÃO DE ANIMAIS NÃO-HUMANOS COMO SUJEITOS DE DIREITO Francisco Josifran Magalhães Alves Germana Parente Neiva Belchior * RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo investigar a possibilidade da aceitação de animais não-humanos como sujeitos de direito. Intenta-se traçar considerações sobre a evolução histórica do pensamento humano sobre os animais e delimitar conceitos do que seja um sujeito de direito e uma pessoa. A metodologia utilizada consiste na pesquisa bibliográfica, explicativa e qualitativa, com a utilização do método dialético para o confronto das proposições abordadas. Como resultado, constata-se que a discussão sobre o reconhecimento dos animais não-humanos como sujeitos moral e eticamente considerados vem obtendo avanços significativos, notadamente com a adoção de novas técnicas hermenêuticas no tratamento da questão. PALAVRAS-CHAVE: Direito Animal. Sujeito de Direito. Conceito de Pessoa. Teoria do Direito. ABSTRACT: This study aims to investigate the possibility of accepting non-human animals as subjects of law. It seeks to make some considerations about the historical evolution of human thinking about animals and define concepts of what a subject of law and a person. The methodology consists in the literature, explanatory and qualitative, with the use of dialectical method for the comparison of propositions addressed. As a result, it appears that the discussion on the recognition of nonhuman animals as subjects morally and ethically considered has achieved significant progress, notably with the adoption of new hermeneutical techniques in the treatment of the question. KEY WORDS: Animal Rights. Subject of Law. Concept of Person. Theory of Law. INTRODUÇÃO A problemática do reconhecimento dos animais não-humanos como sujeitos de direito, apesar do que parece, não é um fenômeno recente. Desde os primórdios da formação do pensamento filosófico ocidental, grandes teóricos manifestam em suas Aluno do 5º Semestre do Curso de Direito da Faculdade Christus. Monitor da disciplina de Introdução ao Direito e Pesquis ador do Projeto Casadinho (UFC/ UFSC/ CNP q). [email protected]. * Mestra em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professora do Curso de Direito da Faculdade Christus. [email protected]. ideias argumentos contrários e favoráveis à questão, utilizando-se das mais variadas teses para justificar a inclusão ou não dos animais na esfera de consideração moral. No presente trabalho, são apresentadas algumas dessas teses, expostas em uma breve incursão histórica acerca do pensamento humano sobre os animais, com o intuito de fundamentar a discussão que se apresenta e enriquecer o embasamento teórico necessário ao desenvolvimento dos temas abordados. No desenrolar da pesquisa, tem-se também uma análise do conceito de sujeito de direito, abordando algumas definições importantes e contextualizando a evolução histórica do termo. Faz-se também uma delimitação do conceito utilizado hodiernamente pelo ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo um ponto de partida para as considerações sobre a possibilidade de animais como titulares de direito. Como conseqüência da discussão, são estabelecidos alguns conceitos sobre a pessoa como sinônimo de sujeito jurídico. Ao abordar pensamentos como o de Immanuel Kant e Hans Kelsen, levantam-se ainda alguns posicionamentos a respeito da identidade entre sujeito de direito e pessoa, assim como a diferença existente entre pessoa, no sentido jurídico do termo, e ser humano. Na abordagem do tema, mostra-se essencial a análise das implicações práticas que o reconhecimento desses novos entes jurídicos acarretaria no direito brasileiro, bem como o impacto que geraria na própria epistemologia jurídica, visto que para a concessão de direitos aos animais, é necessário primeiro retirar-lhes o status de propriedade, o que causaria uma reforma drástica no ordenamento jurídico. A relevância do tema se mostra na constatação de significativas mudanças na hermenêutica jurídica, o que vêm proporcionando um alargamento do conceito do antropocentrismo radical como fundamento do Direito. É possível ver hoje no Judiciário brasileiro uma tendente abertura para a discussão de questões cada vez mais polêmicas, o que demonstra que a sociedade deve rediscutir seus conceitos e se abrir a novas perspectivas. 1 HISTÓRICO DE EXCLUSÃO Ao se tratar da possibilidade da aceitação de animais não humanos como sujeitos de direito, faz-se necessária uma breve incursão histórica, na busca de tentar compreender os motivos que negam tal status a esses seres e os pressupostos que, teoricamente, fundamentam sua exclusão da esfera de consideração ético-moral e jurídica. Desde a época dos primeiros filósofos, os animais não-humanos foram relegados a uma posição marginal em relação ao homem. Nesse período da história, essa exclusão se fundamentava basicamente na premissa de que apenas o homem seria capaz de praticar os atos da vida social e política, por ser o único dotado de uma alma imortal e racional, o que o tornava apto para as questões jurídicas. 1 Tal posicionamento, apesar de majoritário, não era unânime, posto que diversos pensadores da época defendiam a inclusão dos animais não-humanos na esfera de consideração moral, a exemplo de Pitágoras de Samos 2, Plutarco 3 e Porfírio. 4 A filosofia cristã, predominante durante toda a Idade Média, igualmente relegou aos animais não-humanos a condição de meros instrumentos para a satisfação humana. Esse pensamento é alicerçado no próprio texto da Bíblia, que demonstra claramente a posição superior em que o homem se encontra. Pelo fato de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, cabia a ele dominar os demais animais da terra, conforme contado na história da criação do mundo, encontrada no livro Gênesis. 5 Esse posicionamento é bastante claro na obra dos dois maiores expoentes da filosofia da época, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. 6 Com o fim da Idade Média e a chegada do chamado Século das Luzes, as velhas concepções sobre a condição moral dos animais não-humanos voltaram à pauta de discussão, reacendendo antigos posicionamentos e procurando sua afirmação dentro de uma roupagem mais racional e consistente. Deve-se destacar, nesse período, o pensamento de René Descartes que, com sua teoria mecanicista, pretendia perpetuar a ideia de que os animais não-humanos seriam desprovidos de alma, agindo como simples autômatos, devendo ser, 1 Cf. LOURE NÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Fabris, 2008. 2 Cf. REALE, Giovanni. Hi stória da filosofia: antiguidade e idade média. 10. ed. S ão Paulo: Paulus, 2007, v. 1, p. 45. 3 Cf. P LUTA RCO. Do consumo da carne. Trad. Igor Lúcio Dant as Araújo Caldas. Abolicioni smo Animal. Disponível em: < www.abolicionismoanimal.org.br/ artig os/REV_NIPE DA_PLUTARCO. pdf>. Acesso em: 13 abr. 2010. 4 Cf. PORFÍRIO. Da abstinência. Vegetarianismo. Disponível em: <http://www. vegetarianismo.com.br/sitio/index.php?option=com_content&task=view&id=739&It emid=5 5>. Acesso em: 13 abr. 2010. 5 BIBLIA SAGRADA. Gênesi s 1, 4. 6 Cf. GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionism o animal. Salvador: E volução, 2008. portanto, excluídos da esfera de consideração moral, da qual apenas o homem, por ser racional, poderia fazer parte. 7 Em contraposição ao racionalismo exacerbado de Descartes, destaca-se o posicionamento de Rousseau. O contratualista francês acreditava que, por estarem submetidos à mesma lei natural que os homens, aos animais não-humanos deveriam ser atribuídos alguns direitos, entre eles o de não serem maltratados desnecessariamente. 8 Outro pensador que merece destaque no contexto evolutivo do tema é o alemão Immanuel Kant, considerado, ao lado de Platão e Aristóteles, como um dos mais importantes filósofos da cultura ocidental. 9 Suas teses defendiam que todo o conhecimento adquirido advém de experiências sensíveis, mas somente a razão seria capaz de organizar essas informações dos sentidos, proporcionando o entendimento necessário para “elaborar a matéria da intuição e levá-la à suprema unidade do pensamento”. 10 A contribuição de Kant merece destacada posição no estudo da matéria, pois foi da pena do alemão que emergiu o moderno conceito de pessoa que hoje é adotado. Para Kant, a condição de sujeito de direito estava intimamente ligada à capacidade de produzir e transmitir conhecimento, o que só seria possível por meio da razão. Partindo desse pressuposto, a filosofia kantiana reconhece que a moralidade e os princípios éticos seriam atributos exclusivos do homem. Nesse sentido, as regras éticas e morais estariam relacionadas à racionalidade humana, podendo ser aplicadas a todos os indivíduos, desde que racionais, em quaisquer circunstâncias. 11 Apesar dessa imensa rejeição à ideia dos direitos dos animais observada na época, foi no início do século XIX que surgiram os primeiros mecanismos de proteção e as primeiras sociedades protetoras dos animais. Destaca-se nesse período a promulgação da chamada Lei de Martin, de 1822, publicada na Inglaterra. A aprovação dessa lei se sucedeu a duas tentativas anteriores, que foram fadadas 7 Cf. DESCA RTES, René. Di scurso do método. Trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 1996. 8 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Di scurso sobre a origem e os fundamentos da de sigualdade entre os homens. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2009, p.29. 9 Cf. COLLINS ON, Diané. 50 grandes filósofos: da Grécia antiga ao século XX. Trad. Maurício Waldman e Bia Costa. São Paulo: Contexto, 2004, p. 153. 10 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. 3. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 9. 11 Cf. LOURE NÇO, op. cit., p. 233. ao insucesso, submetendo seus proponentes à ridicularização do Parlamento inglês. 12 A inovação trazida por Richard Martin foi usar, como pretexto para a criação da referida lei, o argumento da proteção à propriedade privada, que deveria ser resguardada mesmo contra a vontade de seu titular. Esse mecanismo é considerado um marco histórico na luta pela proteção animal por proibir todo tipo de crueldade e maus tratos a animais domésticos, inclusive touradas e rinhas de galo. Em meados do século XX, alavancado pelo surgimento de movimentos a favor dos direitos humanos como os anti-racistas, pacifistas, feministas e ecologistas, o movimento pelos direitos dos animais passou a adotar uma nova postura. Nesse novo momento, pretendia-se não apenas a proteção dos não-humanos contra os maus-tratos e agressões desnecessárias, mas a própria aceitação destes como entes dotados de direitos. Essa nova postura assumida pelo movimento acabou por dividi-lo, dando origem a duas correntes: a utilitarista e a abolicionista, que hoje personificam a luta pelos direitos dos animais. Depois dessa breve incursão histórica, faz-se mister analisar as teorias e argumentos que fundamentam a exclusão dos animais não-humanos do grupo dos chamados sujeitos de direito. No entanto, para que se possa iniciar tal tarefa, urge tentar compreender o que vem a ser um sujeito de direito, quais seus pressupostos e que requisitos devem ser atendidos para atribuir a um ente tal qualidade. 2 O CONCEITO DE SUJEITO DE DIREITO Como visto anteriormente, os animais não-humanos têm um vasto histórico de exclusão da esfera de consideração moral, que se estende desde o início da formação do pensamento ocidental até os dias atuais. Isso, de certa forma, facilita a identificação dos argumentos que hoje fundamentam o seu status de propriedade e as bases que alicerçam o comportamento opressor do homem para com os nãohumanos. No entanto, para se tentar compreender os motivos que, teoricamente, justificam a negação de direitos aos animais não-humanos, é necessário que se faça 12 Cf. GORDILHO, op. cit., p. 62. uma análise da própria essência do conceito de sujeito de direito, que nem sempre encontra definições convergentes na doutrina. Já no século XIX, Savigny defendia a equivalência entre sujeito de direito e pessoa, notadamente a pessoa humana. Esse pensamento era uma conseqüência lógica da sua própria noção de direito, que o jurista alemão definia como uma “decorrência da liberdade moral inerente ao homem”. 13 Com base nesse postulado, Savigny sentencia que “a ideia primitiva de pessoa, ou seja, de sujeito de direito deve coincidir com a ideia de homem”. 14 Com o passar do tempo e a evolução do Direito, essa concepção de sujeito de direito, e até mesmo a definição de pessoa, passou por significativas transformações. Com o advento da Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo, tornou-se indispensável a conjugação de esforços e capitais destinados ao desenvolvimento de atividades econômicas. A criação dessas organizações ensejou o reconhecimento de uma nova esfera jurídica, distinta da de seus constituidores. Essas novas entidades, genericamente denominadas de pessoas jurídicas, passaram a ser titulares de uma capacidade jurídica diversa das pessoas que se uniram para criá-las. Essa nova realidade no plano das relações jurídicas fez com que o conceito de sujeito de direito se expandisse, englobando outros entes que não os seres humanos, desprendendo a ideia de sujeito jurídico da ideia de homem. Nesse sentido, convém recorrer ao pensamento de Kelsen, que em sua Teoria Pura do Direito, aconselha a limitar o conceito de sujeito jurídico ao de sujeito de um dever jurídico ou de uma pretensão ou titularidade jurídica. Esta deve ser entendida não apenas como o simples direito reflexo, mas como o poder jurídico de fazer valer, por meio de uma ação, o não cumprimento do dever jurídico, em outras palavras, o poder de intervir na produção da decisão judicial. 15 No entanto, para que se possa focar o estudo no objetivo a que se propõe este trabalho, faz-se mister a busca de um conceito mais prático e positivo do termo 13 SAVIGNY apud. LE ONA RDO, Rodrigo Xavier. Suj eito de direito e capacidade: cont ribuição para uma revisão da teoria geral do direito civil à luz do pensamento de Marc os Bernardes de Mello. Losso, Toma setti & Leonardo Sociedade de Advogados. Disponível em: <www.losso.com.br/portal/biblioteca/43.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2010. p. 4. 14 Ibid. 15 KELSE N, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7. Ed. S ão Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 188. sujeito de direito, fim que se deve perseguir na análise do atual ordenamento jurídico brasileiro. Na ordem civil anterior, vigente no Brasil até 2002, prescrevia o art. 2º do Código Civil de 1916: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”. Essa redação retrata claramente o posicionamento jurídico da época, caracterizado pelo antropocentrismo radical, remanescente do pensamento iluminista e arraigado na máxima de que “o ser humano é a destinação de todas as coisas no campo do Direito”.16 No projeto do novo código, a relatoria entendeu pela substituição do termo “homem”, devido a sua conotação machista e restritiva, pelo termo “ser humano”. Essa mudança, na prática, não representava grande diferença, visto que já se aplicava a redação anterior como englobando o gênero humano como um todo. Posteriormente, na análise do projeto pela Câmara dos Deputados, optou-se pelo termo pessoa, entendendo-se que este designaria melhor a totalidade dos sujeitos de direito, abarcando as pessoas naturais e as chamadas pessoas jurídicas. 17 Desse modo, a atual redação do Código Civil brasileiro dispõe, em seu artigo 1º, que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Pela inteligência literal do dispositivo, é possível aferir-se que existe um requisito essencial para a atribuição de direitos a um determinado sujeito: este deve ser uma pessoa. Como visto, persiste ainda hoje a teoria tradicional de identificação entre o conceito de sujeito de direito e o de pessoa. No entanto, apenas dizer que toda pessoa é sujeito de direito não esgota o estudo do tema. Ao contrário, a tarefa tornase muito mais complexa, tendo em vista a infinidade de conceitos e entendimentos divergentes que cercam a definição do que seja pessoa, o que ora se passa a analisar. 3 O CONCEITO DE PESSOA O conceito atual e mais aceito de pessoa encontra sua base filosófica no pensamento do alemão Immanuel Kant. Na definição kantiana, pessoas seriam aqueles entes autônomos, limitados apenas por sua própria racionalidade e que são 16 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, v. 1, p. 139. Cf. GONÇA LVES, Carlos Roberto. Direito civil bra sileiro: part e geral. 5. ed. S ão P aulo: Saraiva, 2007, v. 1, p. 75. 17 fins em si mesmo. 18 Em outras palavras, apenas o homem poderia alcançar tal status. Como visto anteriormente, há muito está superada a ideia de que apenas o homem pode ser considerado pessoa, prova disso é a existência das chamadas pessoas jurídicas. Ademais, a própria origem do vocábulo pessoa deixa clara a sua autonomia existencial. O vocábulo pessoa tem sua origem no latim persona e designava, na linguagem teatral, as máscaras utilizadas pelos atores nas apresentações. Isso se deve ao fato de persona advir do verbo personare, que significava ecoar, fazer ressoar, de forma que a máscara era uma persona que aumentava a intensidade da voz do ator por ela ocultado. 19 Dessa forma, percebe-se que em sua origem, a persona era um ente autônomo e independente do ator, não se confundindo com o mesmo. Porém, com o passar do tempo, a palavra passou a designar o papel que era representado pelo ator e, posteriormente, o próprio indivíduo que o representava, completando, assim, o ciclo evolutivo do vocábulo que hoje se utiliza para designar um sujeito de direito. De volta ao estudo do conceito de pessoa em seu sentido jurídico, não se pode afastar-se da doutrina kelseniana, que dispensou ampla reflexão sobre o tema, estabelecendo parâmetros e limites que devem ser observados ao se fazer tal análise. Para o jurista de Viena, o conceito de pessoa nada mais significa que a personificação de um conjunto de normas jurídicas, um complexo de direitos e deveres atribuídos a um determinado ente jurídico. Assim, a pessoa não é uma realidade natural, mas uma elaboração do pensamento jurídico. 20 Dessa forma, percebe-se que Kelsen dissocia totalmente o conceito de pessoa do conceito de ser humano. Ao configurar a pessoa como um conjunto de direitos e deveres, o jurista austríaco põe em cheque até mesmo a ideia de pessoa natural, defendendo que até mesmo elas seriam pessoas jurídicas, visto que são apenas uma criação do pensamento jurídico, conforme se observa no trecho abaixo extraído de sua obra: 18 Cf. LOURE NÇO, op. cit., p. 234. MONTE IRO apud DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil bra sileiro: teoria geral do direito civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1, p. 115. 20 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luís Carlos B orges. 4. ed. São Paulo: Martins Font es, 2005. p. 138-139. 1919 [...] Definir a pessoa física (natural) como um ser humano é incorreto, porque homem e pessoa não são apenas dois conceitos diversos, mas também os resultados de dois tipos inteiramente diversos de consideração. Homem é conceit o da biologia e da fisiologia, em suma, das ciências naturais. Pessoa é um conceito da juris prudência, da análise de normas 21 jurídicas. Como visto, ao se analisar o pensamento kelseniano, o conceito de pessoa não se restringe ao ser humano, o que de fato se observa atualmente, visto que inegavelmente é reconhecido tal natureza a outras entidades como associações, fundações e empresas. No entanto, cabe fazer uma reflexão sobre até onde pode se estender esse conceito de pessoa. Seria possível seu alcance abarcar os animais não-humanos? Em Habeas Corpus impetrado em favor da chimpanzé Suiça na 9ª Vara Criminal de Salvador, o promotor Heron José de Santana, ao estudar o pensamento de Kelsen, argumenta que não caracteriza nenhum absurdo que os animais nãohumanos sejam considerados sujeitos de direito, visto que para teoria kelseniana a relação jurídica não se dá entre os sujeitos, mas entre o próprio dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde. Sendo assim, o direito subjetivo nada mais é do que o reflexo do dever jurídico, uma vez que a relação jurídica é uma relação entre uma norma que obriga o devedor e outra que faculta ao sujeito exigi-lo. 22 4 DA NECESSIDADE DE SE QUEBRAR PARADIGMAS Para muitas pessoas, a ideia da aceitação de animais não-humanos como sujeitos de direito é uma total impossibilidade jurídica. Porém, é olhando para o passado que se percebe que isso já foi uma realidade muito comum. Durante a Idade Média, e até mesmo no final do século XIX e início do século XX, eram comuns os julgamentos de animais por crimes cometidos contra seres humanos, chegando inclusive a suscitar conflitos de competência entre tribunais eclesiásticos e seculares. 23 21 Ibid. p. 137. SANTA NA, Heron José de. Habeas corpus impetrado em favor da chimpanz é suíça na 9ª vara criminal de salvador (BA ). Revi sta brasileira de direito animal, Salvador, BA, v. 1, n.1, p. 261-280, jan. 2006. 23 “Observe-se, no ent anto, que, via de regra, a comp etência era fixada em favor das cortes eclesiásticas quando os animais causassem danos patrimoniais (distúrbios públicos e danos à 22 Embora a maioria dos casos de julgamento de animais tenha acontecido na Europa, no Brasil também houve contenda do gênero. Em 1713, um mosteiro franciscano localizado em Piedade, no Maranhão, foi infestado por cupins, o que levou os frades a requisitarem do bispo um ato de interdição e excomunhão contra os insetos, que foram devidamente notificados a comparecer ao tribunal eclesiástico onde foram efetivamente defendidos. Ao final do litígio, foi concedido, pela ordem religiosa, um pedaço de terra aos “réus” para que pudessem viver livremente sem causar mais transtornos. 24 Ainda sobre a temática do Direito Animal no Brasil, vale salientar a importante contribuição de Antônio Herman Benjamin, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao referir-se ao confronto existente entre antropocentrismo e não – antropocentrismo. O jurista paraibano esclarece que na perspectiva do direito positivo brasileiro, estamos diante mais de modelos (ou paradigmas) éticos do que propriamente de estágios em sequência temporal, conquanto observamos incurs ões não-antropocêntricas ainda na década de 30, do século XX, muito antes da era do 25 ambientalismo. No fragmento citado, o ministro refere-se ao texto do Decreto nº 24.645/34, que em seu art. 1º, § 3º, dispõe que “Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das Sociedades Protetoras de Animais”. Esse dispositivo legal, que ainda se encontra em vigor no ordenamento jurídico brasileiro 26, é taxativo ao incumbir ao Ministério Público a substituição em juízo dos animais não-humanos. Ao se falar de substituição processual, necessariamente se remete à ideia de legitimidade extraordinária, que, nas palavras de Didier Jr., ocorre quando alguém propriedade), enquant o que cabia às cortes seculares processar e julgar os casos em que houvesse atentado à integridade física ou à vida de seres humanos.”(LOURENÇO, op. Cit., p. 170). 24 LOURE NÇO, op. cit., p. 170. Outros exemplos podem ser encontrados na obra de Daniel Braga Lourenço, que cita vários casos de julgamentos de animais extraídos dos relatos de Edward E vans que, em 1906, escreveu um livro listando um total de 191 julgamentos de animais, entre os anos de 824 e 1906. 25 BENJAMIN, Antônio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso in Grandes temas de direito admini strativo: homenagem ao professor Paulo Henrique Blasi. Org. CARLIN, Volnei Ivo. Campinas: Millenium, 2009. 26 Esse decreto, assim como vários outros atos regulamentares promulgados pelos governos anteriores, foi revogado, via decreto, pelo Presidente Collor de Mello, porém, na é poca em que foi editado, esse dispositivo tinha força de lei, o que implica a necessidade de outra norma de igual ou superior hierarquia para revogá-lo. “defende em nome próprio interesse de outro sujeito de direito”. 27 Como visto, recorrendo-se a uma interpretação sistemática, não se pode negar que o Decreto nº 24.645/34, confere aos animais não-humanos o status de sujeitos de direito, posto que só faz sentido a substituição processual de quem seja detentor de tal qualidade. 28 Ao trazer a discussão para a atualidade, pode-se perceber uma paulatina mudança de pensamento em relação à questão, mormente quando se observam casos de Habeas Corpus tendo chimpanzés como pacientes sendo acolhidos por juízes singulares e até mesmo em trâmite no Superior Tribunal de Justiça (STJ) 29, o que prova uma evolução hermenêutica tendente à adoção de um antropocentrismo alargado. Tendo em vista tais mudanças, faz-se necessária uma análise de suas implicações na própria epistemologia jurídica, visto que a adoção de animais nãohumanos como sujeitos de direito acarretaria uma quebra de paradigmas sem precedentes, mesmo comparada à ocorrida quando da abolição da escravatura. De início, para a concessão de direitos aos animais, é necessária a sua descaracterização enquanto propriedade do homem, ou do Estado no caso dos animais silvestres. Essa mudança, por si só, traria conseqüências por demais relevantes, mormente do ponto de vista do impacto econômico que iria causar, notadamente nos setores que utilizam animais como matéria prima para seus produtos. Isto posto, verifica-se que a questão é polêmica. De um lado, posicionam-se os que entendem a concessão de persona lidade jurídica aos animais como uma necessidade que decorre da própria lógica jurídica, visto que existe uma simetria técnica muito grande entre a personalidade animal e a ficção da pessoa jurídica, pois ambas podem funcionar ora como objeto e ora como sujeito de direito. 30 E do outro, os que acreditam que Sem fazer mistério sobre a questão: os direitos dos animais significam nenhum leite para nossas crianç as, nenhuma insulina para os diabéticos e nenhum cão guia para os cegos. Nenhuma ratoeira pode significar o retorno 27 DIDIE R JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Salvador: Jus Podivm, 2010, v. 1, p. 205. Outras digressões seriam possíveis sobre esse assunto, como, por exemplo, a reflexão sobre um juízo de recepção ou não-recepç ão em face da Constituição Federal de 1988, o que não se pretende fazer no presente trabalho, ficando tal tarefa para momentos posteriores. 29 HC 96344/SP, Segunda Turma, rel. min. Castro Meira. 30 Cf. GORDILHO, op. cit., p. 77. 28 da peste bubônica. Nenhum controle pode signific ar a difusão da malária. Nenhum modelo animal significa que as pesquisas biomédicas ficarão 31 perdidas tentando controlar tais epidemias. É preciso, no entanto, ter a clareza de que o que se pretende com o debate não é a extensão de todos os direitos aos animais não-humanos, mas somente aqueles direitos que realmente lhes fossem úteis, como o direito à liberdade e à vida. Não se concebe, por exemplo, a concessão de direitos políticos a um gorila, mas se vislumbra que sejam garantidos a esses primatas condições mínimas para que possam viver. 5 METODOLOGIA DA PESQUISA A metodologia utilizada na consecução deste trabalho consiste basicamente na pesquisa explicativa, qualitativa e bibliográfica, apesar da parca literatura a respeito do tema. Utilizou-se também, como fonte de pesquisa, informativos eletrônicos e artigos científicos disponíveis em sítios especializados. Foi utilizado também o método dialético para confrontar as várias proposições levantadas na pesquisa, na tentativa de buscar compreender os motivos que servem de justificativa para a negação da atribuição de direitos aos animais não-humanos, procurando diagnosticar também as causas da sua exclusão da esfera de consideração moral. 6 ANÁLISE DOS RESULTADOS Como resultado da pesquisa, constata -se que a discussão sobre a condição moral dos animais não-humanos não é um tema recente. Pode-se perceber sua presença nas fases mais importantes do desenvolvimento do pensamento humano, sempre levantando questões polêmicas e suscitando acirrados embates intelectuais. Outra constatação que merece destaque é a de que o conceito de sujeito de direito, visto pela ótica de Kelsen, não exclui taxativamente a possibilidade de animais serem reconhecidos como tal. Ao contrário, após a análise dos conceitos, percebe-se que, vista com alguma boa vontade, essa possibilidade é extremamente real. 31 Ibid. p. 76. Pode ser destacado também como um importante avanço a constatação de que a definição de pessoa, enquanto ente jurídico, não se confunde com a definição de ser humano, sendo perfeitamente possível o enquadramento de novas estruturas em seu conceito, como de fato vem ocorrendo no decorrer dos tempos. Outro resultado relevante é a percepção de acentuadas mudanças no que concerne à questão animal, principalmente com a adoção de novas técnicas hermenêuticas que alargam os horizontes antes tolhidos pelo antropocentrismo radicalizado. Prova dessa evolução é a análise, pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, de Habeas Corpus tendo chimpanzés como pacientes, um marco na história do direito brasileiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS Depois de tantas digressões e análises sobre o tema, percebe-se que a questão dos animais não-humanos como sujeitos de direito ainda está longe de um consenso. Pode-se perceber que muito já se conquistou, porém, as implicações práticas dessa mudança ainda impedem que os movimentos abolicionistas alcancem seu objetivo. É importante ressaltar, no entanto, que mudanças significativas estão acontecendo, prova disso é a análise, ainda em andamento, de Habeas Corpus, pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, tendo chimpanzés como pacientes. Esse fato, por si só, demonstra que o tema deixou de ser um tabu e que o Direito precisa se abrir para a discussão. É necessária uma análise mais criteriosa, livre de preconceitos, que possibilite a tomada de uma decisão fundamentada e que venha trazer um pouco mais de clareza a respeito do tema. Contudo, é preciso ter em mente que a aceitação dos animais não-humanos como sujeitos de direito representaria uma verdadeira revolução jurídica. Uma quebra de paradigmas de tal proporção ensejaria não só mudanças hermenêuticas, mas uma verdadeira reestruturação da Ciência do Direito. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Antônio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso in Grandes temas de direito administrativo: homenagem ao professor Paulo Henrique Blasi. Org. CARLIN, Volnei Ivo. Campinas: Millenium, 2009. COLLINSON, Diané. 50 grandes filósofos: da Grécia antiga ao século XX. Trad. Maurício Waldman e Bia Costa. São Paulo: Contexto, 2004. DESCARTES, René. Discurso do método. 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