A MILITÂNCIA DE ONTEM E HOJE
DAVID1, Hadassa Ester – Universidade de Brasília (UnB)
Resumo: Este trabalho foi desenvolvido no decorrer da disciplina “Processos Interpretativos da Comunicação:
crítica da narrativa jornalística na formação do imaginário político.” Trata-se especificamente, de um trabalho
proposto pelo professor Sérgio Porto, da Faculdade de Comunicação, do Programa de Pós-Graduação da
Universidade de Brasília (Fac/UnB). Decidiu-se, com esta análise, debater pontos referentes à Mobilização
Social, utilizando como análise de discurso, o método dos caminhos das seis leituras em massa folhada2. No
corpo do texto, não estão explicitadas e separadas as análises por camadas, pois a escolha foi a de apontá-las
apenas nesta parte introdutória e deixá-las implícitas na escrita. Como resultado, aparece a questão do
consumismo, como parte significativa e responsável pela redução e repressão das lutas e engajamentos sociais.
Esta configuração se estende até aos dias atuais, por isto pode ser enquadrada tanto na camada arqueológica,
quanto na de acontecimento. Sendo que, a leitura de acontecimento ainda se estenderia para a estrutura, os
formatos e tipos de manifestações de hoje, o que inclui novos padrões que se impuseram por meio da internet e
as novas preocupações daí surgidas. No entanto, pensar o consumo como sendo um discurso dominante - o que
nos remete à leitura parafrástica - da nossa sociedade, se torna preocupante, pois assim, não seria uma leitura
polissêmica, já que haveria uma única voz. Defende-se que, esta seria a leitura argumentativa deste trabalho, a
partir das construções feitas durante a pesquisa e na escolha de autores que estudam o assunto. Contudo, não se
deixou de abordar também estas mobilizações, que não poderiam ser ignoradas.
Palavras-chave: Movimentos Sociais; militância; consumo; cidadania.
1. Manifestações políticas
O fim da 2ª Guerra, a redemocratização do Brasil e a expansão econômica foram
fatores determinantes para instaurar um clima de otimismo e esperança. São conhecidos como
os “anos dourados”, de acordo com Moreira3 (2002). As expectativas também se estendiam
para as classes populares; com o progressivo esgotamento do modelo populista e os
trabalhadores reivindicando maior participação nos resultados do esforço econômico,
procurando meios de efetivar sua presença na vida política.
1
Graduada em jornalismo pelo Instituto de Ensino Superior de Rio Verde. Mestranda em Comunicação e
Sociedade pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]
2
As seis leituras interpretativas são também denominadas por seu autor (Sérgio Porto) de as seis leituras do
modelo da cebola. Trata-se de uma construção inventiva de como se interpretar textos midiáticos, principalmente
os que utilizam a metodologia da AD- Análise de discurso francesa.
3
In: O jornal: da forma ao sentido/Sérgio Dayrell Porto (org.) – 2. Ed. – Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2002.
Antes, apenas parte do discurso ideológico do populismo, agora se configurava em
uma ameaça da prática política das classes subordinadas. Por meio de associações, sindicatos,
movimento estudantil - a sociedade civil - em conjunto com a esfera política, através dos
partidos, lograria uma razoável mobilização em favor das causas populares.
A movimentação popular que dera suporte ao nacional-desenvolvimentismo estava
levando a um fortalecimento das campanhas reivindicatórias por parte de amplos segmentos
da sociedade, forçando o estado a tomar medidas de reformas em algumas áreas, como
estrutura agrária, controle do capital estrangeiro, sistema financeiro, setores produtivos
estratégicos como petróleo, minérios e energia, política salarial, controle de preços e
distribuição de bens básicos, sistema educacional, política tributária e política externa.
No entanto, os fatos irão tomar outro rumo com o golpe militar de 64 e com a
intensificação da Guerra Fria e a imposição do capitalismo monopolista no cenário mundial.
Assim, o golpe se apresenta como um movimento “restaurador da ordem política e
econômica” (Moreira, 2002, p. 418). Estabelece-se no país um bloco de poder que se
apoderou do aparelho estatal, transformando a economia e a política, estimulando e
aperfeiçoando a tecnologia do sistema produtivo, implantando novos padrões de consumo,
adequando a economia brasileira em relação ao estágio mundial de desenvolvimento do
capitalismo monopolista.
Em razão da mobilização política que a classe média brasileira viveu nesta época, em
especial nos segmentos ligados à cultura universitária, pela profunda oposição ao estado
autoritário que se esboçava, a vida cultural brasileira produziu um conjunto de manifestações
investigadoras e denunciadoras da vida política e social (Faro, 1994 apud Moreira, 1997). Por
isto, tornava-se necessário reprimir a participação política que veiculava as demandas das
classes populares, a fim de estabelecer o moderno modelo de crescimento econômico, ainda
que excludente da maioria da população.
Em várias partes do mundo, a ativação popular, que teve início no final dos anos 1960,
marcada por rebelião estudantil e operária, ofensiva feminista, mobilização contra a Guerra do
Vietnã, crescimento e radicalização do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados
Unidos – demonstrou a “ingovernabilidade” das democracias, de acordo com Huntington
(1975 apud Miguel4, 2010, p. 225). A quantidade e amplitude dos grupos mobilizados
excediam as demandas sobre os Estados, que os governos democráticos, reféns do voto
4
In: Mídia, representação e democracia/ Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli (org.) – São Paulo: Editora
Hucitec, 2010.
popular, tentavam atender, mesmo sem recursos para tal fim, resultando em ineficiência,
desgaste da autoridade e frustração.
No Brasil, com a crise da esquerda e o fim da ditadura, apagou-se de certa forma, o
fator unificador da abertura de espaços para participação política. As décadas intermediárias
dos anos 70 e 80 visavam uma série de modificações, entre as quais se destacam o
rejuvenescimento (e monetarização) do mercado de trabalho, o aumento das oportunidades de
estudo, a constante presença dos meios de comunicação de massa, e a difusão do sistema
crediário, facilitando o acesso ao consumo das classes populares (Madeira, 1986 apud Mische,
1997).
Consumismo e competitividade são as causas de um emagrecimento moral e
intelectual, redutores da personalidade e da visão de mundo, que resultam em um
esquecimento da oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão
(Santos, 2005). Mesmo que, na visão do autor, nunca houve a figura do cidadão no Brasil.
Ser cidadão hoje é ser um sujeito absolutamente passivo. “O consumidor é o novo
sujeito social que gasta seu dinheiro e tempo na agradável tarefa de inflar o próprio ego”, de
acordo com Sodré5 (2011). O consumidor é contrário ao bem comum e ao desejo de mudança
social. Tal e qual a publicidade nos fala da revolução, mas uma revolução dos preços baixos,
o cidadão do século XXI não passaria de um consumidor de bens materiais, cujo voo rasante
não vai nada além da perenidade da mercadoria.
Mische destaca que os jovens da geração passada testemunharam as crises e
escândalos recorrentes do retorno ao governo civil, junto com as contradições de observarem
os discursos e formalismos democráticos (incluindo uma nova constituição) ao lado dos
vestígios de autoritarismo. Isto foi especialmente visível para os estudantes na resistência de
muitas direções escolares aos grêmios estudantis e na repressão às greves dos professores no
final dos anos 80. Ao mesmo tempo, estes viviam a ansiedade da inflação crônica, junto com
uma recessão econômica que sufocou as aspirações de muitos jovens, de diversas classes
sociais. Esses fatores foram determinantes para sustentar uma ambivalência forte sobre a
política, um ceticismo sobre a possibilidade de mudanças institucionais e uma tendência à
paralisia política.
Hoje, apesar de não estarmos saindo de uma guerra ou revolução, o tempo é sombrio
porque há uma ausência de marca e espírito de luta. Vivemos em um mundo fragmentado,
5
SODRÉ, Muniz. Comunicação, desenvolvimento e cidadania. Palestra proferida na Faculdade de
Comunicação da Universidade de Brasília – UnB, em 2011.
onde os estímulos unificadores se perdem, analisa Coelho (2012). Segundo ela, essa
indisposição é um efeito dos muitos anos de luta por qual o povo passou para estabelecer o
sistema democrático. Haveria alienação, se não houvesse frustração com a política
institucional de hoje. Em Brasília, os índices de abstenção nas votações entre jovens de 16 a
18 anos são considerados os maiores do país.
Muitos veem nisso um indício de falta de consciência política, mas a omissão também
pode sinalizar uma profunda descrença no sistema. A socióloga cita a cultura do “não
aprofundamento”, que faz com que as pessoas não se sintam incentivadas a se manifestar. No
Brasil, há uma disposição menor em relação à memória, ao conhecimento do passado recente,
em comparação com o Chile e a Argentina. O país prefere versões em detrimento da verdade
dos fatos.
Para Milton Santos, a democracia está reduzida a uma democracia de mercado e
amesquinhada como eleitoralismo ou consumo de eleições, em que as pesquisas aparecem
como um aferidor quantitativo de opinião, além de formá-la. O que levaria ao
empobrecimento do debate de ideias e à própria morte da política.
Vários fatos relacionados ao modo de vida da sociedade interferem na
“desorganização” da democracia e na crise do sistema de representação política, diz Nogueira
(2012). Um deles diz respeito à individualização, na qual o indivíduo tem maior facilidade
para proclamar sua autonomia diante dos grupos no século XXI. Para manter organizações
funcionando, necessita-se dispensar uma grande quantidade de energia, sendo difícil chegar a
consensos, já que as pessoas estão sempre insatisfeitas e em constante “estado de sofrimento”.
Uma constatação disso seria a menor visibilidade das classes sociais na arena política e o
esvaziamento das assembleias estudantis. Mas por outro lado, há uma multiplicação de lutas
de afirmação particular como, por exemplo, aquelas relacionadas às questões de gênero, etnia
e sexualidade.
Nogueira descreve a atuação da militância política em uma época de descrença
generalizada no sistema democrático. O militante dos anos 70, 80 e 90 tinha uma ideologia,
era disciplinado e disposto a se sacrificar pela causa vivia em atividade 24 horas por dia e
manifestava-se com meios sérios. Já o militante de hoje não tem uma ideologia claramente
definida, atua de forma ruidosa, opera pelo escracho e de forma esporádica. Essas ocorrências
indicam uma reorganização da democracia e quem sabe, a chave para a reinvenção da
política.
Uma pesquisa realizada pela agência de publicidade McCann Erickson6, em 1991,
revelou que, ao contrário dos pais, que queriam mudar o mundo, a próxima geração já estava
mais interessada em melhorar a própria vida. Os jovens não se interessavam mais por
qualquer tipo de manifestação social, estando mais preocupados em cuidar de seus projetos
pessoais. Agora passam seus anos formativos em redes mais dispersas, nos lugares de
trabalho, nos “shopping centers”, nos clubes noturnos, nos bairros e ruas, e em outros espaços
de lazer, cultura e sociabilidade. E aplicando esta pesquisa ao atual cenário do século XXI, na
“era da internet”, pode-se acrescentar ainda o tempo gasto no sistema online, navegando nas
redes sociais.
2. Redes de movimentos sociais
Atualmente, graças ao meio digital, observa-se uma intensificação nas organizações
de movimentos sociais, das mais diversas posturas e vozes. Frequentemente, grupos diversos
marcam encontros, organizam marchas, paradas, fóruns de debates etc. Houve uma ampliação
das mobilizações. No entanto, são na maior parte, movimentos “relâmpago” e os protestos,
esporádicos.
No entanto, de acordo com Muniz Sodré, as crescentes mobilizações marcadas via
redes sociais ainda não foram capazes de mudar o papel da internet na construção da
cidadania. Segundo ele, a rede só contribuiu para aumentar o poder de circulação de palavras,
sem se traduzir em uma ação política concreta, já que a internet e as redes sociais seriam
espaços onde “o saber e a informação estão estocadas”.
Nas sociedades globalizadas, multiculturais e complexas, as identidades tendem a ser
cada vez mais plurais e as lutas pela cidadania incluem, frequentemente, múltiplas dimensões
de gênero, étnica, de classe, regional, mas também dimensões de afinidades ou de opções
políticas e de valores: pela igualdade, pela liberdade, pela paz, pelo ecologicamente correto,
pela sustentabilidade social e ambiental, pelo respeito à diversidade e às diferenças culturais,
etc (Scherer-Warren, 2006).
6
MISCHE, Ann. De estudantes a cidadãos: redes de jovens e participação política. Artigo apresentado como
parte de tese de doutorado defendida na New School for Social Research, 1997.
A multiformidade das redes aproxima atores sociais de múltiplos níveis, dos locais aos
mais globais e possibilitam o diálogo da divergência de interesses e valores. Mesmo que esta
troca ocasione conflitos, o encontro e o confronto das reivindicações e lutas referentes aos
distintos aspectos da cidadania vêm permitindo aos movimentos sociais passarem da defesa
de um sujeito identitário único à defesa de um sujeito plural. Estas identidades plurais
defendem as mais diversas causas. Entre elas estão, as lutas por direitos, como as comissões
de Direitos Humanos, as pastorais sociais, ONGs, entidades indígenas, de negros (as), de
mulheres, ambientalistas e outras.
Há uma afirmação de que o ativismo e a militância vêm perdendo fôlego nas últimas
décadas. Os cidadãos se mobilizam relativamente pouco porque acreditam que não serão
ouvidos pelo sistema político (Miguel, 2010). Mas foi a militância que se autodefinia como
“revolucionária” que perdeu a força. Para Sodré, a perda da vitalidade da representação
parlamentar e da classe média daria espaço para a busca das minorias, sendo que, o que move
as minorias é o impulso de transformação política.
Deste modo, verifica-se um outro tipo de ativismo, que se alicerça nos valores da
democracia, da solidariedade e da cooperação, e que vem crescendo significativamente nos
últimos anos.
O ativismo de hoje tende a protagonizar um conjunto de ações orientadas aos mais
excluídos, mais discriminados, mais carentes e mais dominados. A nova militância
passa por essa nova forma de ser sujeito/ator. Portanto, a divisão clássica de ONGs
“think tanks” (ou produtoras de conhecimento), ativistas (ou cidadãs) e prestadoras
de serviço (ou de caridade) tende a dar lugar a organizações que mesclam, cada vez
mais, essas três formas de atuação, tendo em vista seus compromissos com o próativismo no campo da democracia (Scherer-Warren, 2006, p. 120).
A autora define a “rede de movimento social” como a identificação de sujeitos
coletivos em torno de valores, objetivos ou projetos em comum, os quais decidem os atores
ou situações sistêmicas antagônicas que devem ser combatidas e transformadas. Ampliando o
sentido, o Movimento Social se constitui em torno de uma identidade ou identificação, da
definição de adversários ou opositores e de um projeto ou utopia, num contínuo processo em
construção e resulta das múltiplas articulações. A ideia de rede de movimento social é,
portanto, um conceito de referência que busca apreender o porvir ou o rumo das ações de
movimento, transcendendo as experiências empíricas, concretas, datadas, localizadas dos
sujeitos/atores coletivos.
Na sociedade de redes, termo de Manuel Castells, o associativismo localizado (ONGs
comunitárias e associações locais) ou setorizado (ONGs feministas, ecologistas, étnicas, e
outras) ou, ainda, os movimentos sociais de base locais (de moradores, sem teto, sem terra,
etc.) percebem cada vez mais a necessidade de se articularem com outros grupos com a
mesma identidade social ou política. O objetivo é gerar visibilidade, produzir impacto na
esfera pública e obter conquistas para a cidadania. Nesse processo articulatório, atribuem,
portanto, legitimidade às esferas de mediação (fóruns e redes) entre os movimentos
localizados e o Estado, por um lado, e buscam construir redes de movimento com relativa
autonomia, por outro. “Origina-se, a partir desse fato, uma tensão permanente no seio do
movimento social entre participar com e através do Estado para a formulação e a
implementação de políticas públicas ou em ser um agente de pressão autônoma da sociedade
civil.” (Scherer-Warren, 2006, p. 114).
Nogueira explica que o questionamento do sistema político passou nas últimas três
décadas, de um centro unitário para milhares de pessoas e que estas não estão conseguindo se
organizar para promover mudanças. Essas acontecem em razão da pressão exercida por elas,
mas não existe uma força que direcione as transformações. Nogueira critica que, em
contraposição aos vários setores da vida, a política não seja globalizada, isto é, permaneça
sendo feita no âmbito dos Estados Nacionais. Observa-se nas pesquisas um déficit de
legitimação dos governos e isso acontece porque eles estão descolados da sociedade.
O século XXI é caracterizado pela alta mobilidade ou disposição participativa, em que
as pessoas não aceitam mais ordens puramente emanadas de autoridades, elas querem
dialogar, discutir. Essa atitude é uma compensação ao baixo interesse pela política
institucional. Além da atuação em ONGs, o indivíduo também participa da esfera estatal por
meio de ferramentas como o orçamento participativo e o programa de voluntariado.
Os novos movimentos, segundo Chomsky7, podem ter papel histórico decisivo. A esta
altura, só a mobilização social parece capaz de levar a humanidade a optar, na encruzilhada,
por um caminho que preserve a amplie conquistas civilizatórias cruciais. E para isto, é preciso
um enorme esforço para compreender o mundo contemporâneo e transformá-lo oferecendo
não apenas denúncias – mas novas formas de sociabilidade.
Já dizia Marx, que “a tarefa não é compreender o mundo, mas transformá-lo”. Para
mudar o mundo numa direção qualquer, é preciso tentar compreendê-lo antes. Compreendêlo, na perspectiva Chomskyana, não significa ouvir uma fala ou ler um livro, embora isso seja
7
Chomsky,
Noam.
Debate
sobre
o
Occupy
Boston,
em
2011.
http://www.outraspalavras.net/2011/11/14/chomsky-debate-futuro-dos-novos-movimentos/
19/05/2012.
Disponível
Acesso
em
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útil. A compreensão vem do aprendizado, este por sua vez, vem da participação. Aprende-se
com os outros e com as pessoas que estamos tentando organizar. Experiência e compreensão
são conquistas necessárias para tornar possível programar ideias e táticas. Há um longo
caminho a percorrer, que não acontece num estalar de dedos. É conquistado através de um
trabalho longo e dedicado.
3. Porta-vozes do movimento
A mobilização contra o trabalho escravo movimentou o Congresso ultimamente. O
grupo manifestante composto por entidades, parlamentares e personalidades, entre atores,
intelectuais e músicos; engajaram-se na causa, pressionando a Câmara pela votação da PEC
do Trabalho Escravo, engavetada desde 2004.
Em uma matéria divulgada pela Agência Brasil, revelou-se inclusive, que para
pressionar os deputados, os organizadores do movimento fizeram uso da força da internet e
lançaram um manifesto virtual com a intenção de atingir 100 mil assinaturas, além de
convidarem os internautas para um “twittaço”, no qual os defensores da PEC previam incluir
na lista dos assuntos mais comentados do twitter, as tags #PEC438 e #TrabalhoEscravo.
Cerca de 60 artistas e intelectuais já haviam apoiado a petição. Entre as personalidades
apareceram artistas populares e músicos como Chico Buarque, Roberto Frejat e Francis Hime;
as atrizes e atores Camila Pitanga, Alessandra Negrini, Dira Paes, Fernanda Montenegro,
Letícia Sabatella, Wagner Moura e Marcos Palmeira; o teólogo Leonardo Boff, e o cineasta
Silvio Tendler, além da própria ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário.
O fato é, o envolvimento de artistas e celebridades em movimentos de defesa de uma
causa social de direitos humanos desta natureza é capaz de despertar o interesse da sociedade
pelo tema e pressionar os parlamentares? Qual é o discurso que prevalece em nossa
sociedade? Neste caso específico, temos de um lado a crescente eficácia e a visibilidade do
mundo online, com as redes sociais com o suporte de artistas consagrados, de grande prestígio
no campo do entretenimento e de outro a bancada ruralista que resistia em aprovar o texto, já
que este previa a expropriação das propriedades, rurais ou urbanas, em que fosse constatado o
trabalho escravo.
O Vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, o deputado Padre
Ton (PT-RO) havia dito que, com a pressão da sociedade, não haveria como os parlamentares
protelarem a votação da PEC do Trabalho Escravo.
Estava certo, a PEC foi votada e
aprovada na Câmara no dia 22 de maio de 2012.
Mas afinal, quem detém o poder de voz? Motta (2012) cita Bordieu ao dizer que a
disputa pela configuração das narrativas públicas é uma luta política pelo direito de dar a
conhecer e de fazer reconhecer, de impor uma definição ‘legítima’ dos conflitos e
personagens reportados, de consolidar posições e pontos de vista, de fazer ver e fazer crer: um
poder de revelação.
Um poder simbólico e político que se consolida no ato de enunciação pela simples
autoridade conferida a quem fala e a respeito do que se fala que legitima uma verdade,
sanciona certa versão como verdadeira, tornando-a a realidade real e natural. Os inúmeros
atores sociais envolvidos na enunciação pública procuram assim expressar suas vozes e seus
pontos de vista de acordo com os seus interesses através de um enfrentamento permanente,
reproduzindo até certo ponto suas posições no campo social.
De acordo com Miguel, as novas formas de militância política estão mais voltadas
para o desejo de auto-expressão do que de ação política propriamente dita, o que exigiria uma
transcendência dos anseios individuais. Em referência ao movimento social composto por
celebridades, verifica-se que, cada vez mais famosos se dispõem a prestar solidariedade e
caridade pelos demais. Sem contar que o envolvimento em programas sociais pode render
mais visibilidade e publicidade, além de um maior destaque na imprensa, o que contribui para
melhorar a imagem pessoal. Seria neste caso, a militância também uma forma de
autopromoção?
Observa-se na nossa sociedade, a importância da indústria do entretenimento. Há um
interesse muito forte por informações sobre a vida das celebridades. Há diversos veículos
especializados neste tipo de divulgação, que buscam satisfazer a curiosidade do público sobre
a vida e trabalho de cada personalidade e contribuem para aguçar ainda mais o interesse dos
fãs. Estes se inspiram em seus estilos, os imitam nos cortes de cabelo, modo de vestir etc.
Estão cada vez mais interessadas em saber o que fizeram, o que fazem e o que farão.
E ainda, recorrendo a Lazarsfeld e Merton8, a simples presença de um representante do
movimento em uma cadeia nacional de emissoras ou até a menção de seu nome na imprensa
do país simboliza a legitimidade e a significação do movimento.
Não se trata de um empreendimento inconsequente e de pouco alcance (...) os meios
de comunicação atribuem status e o prestígio do movimento nacional reflete-se por
sua vez sobre o das células locais, consolidando, desta forma, as decisões provisórias
de seus membros (p. 252).
Então, não se pode negar que o engajamento de celebridades é imprescindível na
denúncia de problemas, para chamar a atenção e estimular a participação da população para
entidades e projetos sociais, inspirando novas adesões, ajudando na arrecadação de dinheiro e
na formação de parcerias, na melhora da reputação da entidade, entre outros.
Mas isto é suficiente para resolver o problema? E quando interesses econômicos e
políticos estão acima de qualquer causa social? A competitividade acaba por tomar o lugar da
solidariedade. São novos patamares impostos que eliminam toda forma de compaixão. Novas
concepções são criadas sobre o valor atribuído a cada objeto, indivíduo, relação, lugar
(Santos, 2003).
Em relação à disputa nos espaços midiáticos, Maia (2010 apud Motta, 2012) compara
dois modelos de mobilização dos atores sociais que desejam obter visibilidade para os seus
pontos de vista na mídia: 1) as teorias de mobilização social e 2) as teorias de identidade. Na
primeira teoria, os atores cívicos se utilizam dos recursos disponíveis como, campanhas,
manifestações, performances, etc. Além disto, se beneficiam do poder para alcançar uma
audiência mais ampla e configurar a opinião pública.
Esse modelo realça a negociação entre jornalistas e atores sociais; idealiza o ambiente
social como campo de batalha; confere atenção ao ativismo social. Isto acabaria reduzindo a
luta à conjuntura e ao encontro de interesses, e medindo o sucesso apenas pela adoção de seus
enquadramentos na mídia.
Já a segunda teoria, segundo a autora, enfatiza a construção de um “nós” coletivo,
resultado de confrontos pelo reconhecimento e contra a exclusão simbólica, e enxerga “o
outro” como um interlocutor com disposição potencial para argumentar e contra- argumentar.
Neste caso, os meios são vistos como “arenas discursivas” ou fóruns cívicos onde se pode
avançar e ajuntar adeptos.
8
In: COHN, Gabriel (Org.). Comunicação e Indústria Cultural. São Paulo: Companhia e Editora Nacional,
1972.
4. Considerações Finais
Tem-se a plena consciência de que nada poderá ser feito enquanto os interesses
dominantes continuarem a renunciar os objetivos sociais, na medida em que estes forem
incompatíveis com os lucros econômicos. Já diziam Lazarsfeld e Merton, que são as pressões
econômicas que favorecem o conformismo ao omitirem deliberadamente as questões públicas
cruciais.
Até quando não serão ouvidas e atendidas as reinvindicações por mais justiça e
solidariedade, e menos desigualdade? E até que ponto persistirá a falta de interesse e a
indiferença pela mobilização? Uma questão depende da outra e por este motivo ninguém quer
agir. Ou seja, há uma tremenda falta de consideração pelos problemas que atingem grande
parte da população.
Boff (2011) já manifestava sua indignação pela falta de compaixão pelo outro.
Segundo ele, o sintoma mais doloroso, já constatado há décadas por sérios analistas e
pensadores contemporâneos, é um difuso mal-estar da civilização. “Aparece sob o fenômeno
do descuido, do descaso e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado (Boff, 2011, p.
18).”
De acordo com o autor, milhões de pessoas mobilizam-se em defesa da vida inocente,
contra o aborto, pela paz contra a guerra, por uma nova tecnologia mais benevolente para com
o meio ambiente. Ele diz que a moral é importante, mas se não nascer de uma nova
redefinição do ser humano e de sua missão no universo, ela pode simplesmente decair num
moralismo enfadonho e farisaico e transformar-se num pesadelo das consciências.
REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 17. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2011.
COELHO, Maria Francisca. Como é a militância do século XXI? Conferência promovida
pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (Ceppac), Brasília, 2012.
COHN, Gabriel (Org.). Comunicação e Indústria Cultural. São Paulo: Companhia e
Editora Nacional, 1972.
MIGUEL, L. F.; BIROLI, F (Orgs.). Mídia, representação e democracia. São Paulo:
Hucitec, 2010.
MISCHE, Ann. De estudantes a cidadãos: redes de jovens e participação política. Artigo
apresentado como parte de tese de doutorado defendida na New School for Social Research,
1997.
MOTTA, L. G. Análise crítica da narrativa, Editora UnB, Brasília, 2012.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Como é a militância do século XXI? Conferência promovida
pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (Ceppac), Brasília, 2012.
PORTO, Sérgio Dayrell. Análise de Discurso: O caminho das seis leituras interpretativas em
massa folhada. Artigo apresentado na Universidade de Brasília, 2009.
__________.Jornal: da forma ao sentido (org.) – 2. Ed. – Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2002.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Artigo
publicado na revista Sociedade e Estado, Brasília, 2006.
SODRÉ, Muniz. Comunicação, desenvolvimento e cidadania. Palestra proferida na
Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília – UnB, em 2011.
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3. A militância de ontem e hoje