Carolina Gubert Viola – PPG-EDU UFRGS
Rose Lumertz de Freitas
Auxilio financeiro: CNPq, via bolsa para mestrandos.
A escrita e a letra na educação e na psicanálise
RESUMO:
Neste trabalho buscamos refletir sobre a questão da aprendizagem da escrita e da
leitura tomando conceitos da psicanálise francesa, mais especificamente da releitura
lacaniana dos textos freudianos, como base teórica. A questão da escrita em
psicanálise tem sido tema de algumas publicações e mesmo de congressos, com
formação de grupos de pesquisas em diferentes regiões do país. A questão da
dificuldade de aprendizagem da escrita e da leitura sendo questão de grande relevância
no quadro atual da educação no Brasil. Uma das questões que percorre o texto é a da
pertinência para o campo da educação das formulações psicanalíticas concernentes a
letra e escrita. Sendo, então, discutidos os conceitos de letra e escrita na psicanálise e
na educação na tentativa de elaborar alguma formulação sobre as dificuldades de
aprendizagem da leitura e da escrita na escolarização infantil.
Palavras chave: Letra, escrita, aprendizagem, educação, psicanálise.
A escrita e a letra na educação e na psicanálise
Propomos uma discussão sobre uma questão relevante para o campo da
educação: a aprendizagem da leitura e da escrita, e uma articulação possível com um
dos conceitos fundamentais para a psicanálise a partir de Lacan: a letra.
Abordaremos, a questão da aprendizagem da leitura e da escrita a partir de
conceitos psicanalíticos formulados por Lacan em sua releitura de Freud. Sendo a
formulação lacaniana “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” base de
nossas questões e hipóteses.
Primeiramente faremos uma breve exposição de alguns conceitos psicanalíticos
pertinentes à discussão, tais como: significante, sujeito 1, letra, escrita e pulsão,
deixamos claro que não há nenhuma intenção de esgotar qualquer definição conceitual
e sim a tentativa de uma articulação possível de tais conceitos.
Em seguida, formularemos algumas questões pertinentes ao campo da
educação, mais especificamente questões relativas ao aprendizado da escrita e da
leitura na educação formal. Para então pensar as possibilidades de articulação entre
conceitos psicanalíticos e questões do campo da educação.
Começamos, então, pela articulação entre as noções de sujeito e letra na
psicanálise a partir de Lacan. Lacan não só elabora a noção de um sujeito que é efeito
do significante, ele vai além e formula a seguinte metáfora (para falar daquela que ele
diz ser sua única contribuição original para a psicanálise): que na garganta deste,
“indeglutível, resta atravessado” o objeto a2 e “é nesse ponto de falta que o sujeito tem
que se reconhecer” (LACAN, 1998a, p.255). O que ele deixa claro aqui é que a fala
nunca leva à boca esse a mas deixa cair dela letras que são a marca da impossibilidade.
1
“O que é o sujeito? Não é o saber inconsciente. Ele remete a um furo no saber inconsciente, a um
ponto de não-saber radical que está relacionado com o furo que Freud indica na cadeia inconsciente
como o umbigo do sonho. A questão exposta por esse furo do umbigo não é a questão da fronteira entre
consciente e inconsciente, mas sim a questão da fronteira entre inconsciente e não-saber” (DIDIERWEILL, 2006, p.18).
2
Sobre objeto a trago aqui uma das definições de Lacan: “No começo vocês encontram A, o Outro
originário como lugar do significante e S, o sujeito ainda inexistente, que tem que se situar como
determinado pelo significante. [...] Há, no sentido da divisão [subjetiva do advento do sujeito], um resto,
um resíduo [a operação significante é incompleta]. Esse resto, esse Outro derradeiro, esse irracional,
As operações possíveis da letra se evidenciam na escrita, seja na dimensão
clínica da escrita da escuta, que Lacan assim coloca em seu vigésimo seminário:
Se há alguma coisa que possa nos introduzir à dimensão da escrita como
tal, é nos apercebermos de que o significado não tem nada a ver com os
ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de
significante. O significado não é aquilo que se ouve. O que se ouve é
significante. O significado é efeito do significante (1985, p. 47).
Seja na literária que, em seu texto Lituraterra, Lacan diz ser “uma
acomodação de restos” (2003,p.16) seja nos matemas que possibilitariam enfim que
algo da psicanálise fosse transmitido (não entraremos nessa questão ainda que seja
uma interessante interface entre educação e psicanálise). Porém, o que lhe dá mais
preciosidade é, justamente, que ela caia, que sobre, e nisso surpreenda o sujeito que
desde então não pode não se movimentar. A letra é algo que irrompe cortando a
repetição.
O conceito de letra, como tantos conceitos trabalhados por Lacan, é de difícil
apreensão. Inclusive por, ao longo de seu ensino, Lacan ir mudando tanto sua
concepção quanto o modo de trabalhá-lo. Inicialmente o conceito aparece muito
articulado com a questão do significante, mesmo se confundindo com ela, é assim que
o encontramos no artigo que abre os Escritos: A carta roubada. Mais tarde a letra vai
aparecer enquanto um suporte do significante, para finalmente, no seminário das
identificações, aparecer enquanto aquilo que “escorre”, que “atrapalha” o significante
em sua busca por significar.
Essa noção já está em Freud, quando ele fala dos tropeços da fala, os atos
falhos e os chistes. Ele trabalha a condensação e o deslocamento de letras, que acabam
por dizer o que não se queria dizer. São elas que nos fazem rir ao serem trocadas,
esquecidas ou adicionadas nos chistes e nos deixam perplexos quando aparecem nos
atos falhos. A tarefa do psicanalista sendo, justamente, a de sublinhar outros sentidos
possíveis da fala quando ela aí tropeça.
Na Interpretação dos sonhos Freud escreve que estes são como uma escrita
hieroglífica a ser decifrada, abrindo um novo campo de possibilidades para o trabalho
psicanalítico, ou mesmo, criando um. A relação entre letra, escrita e psicanálise
aparece, então, e como a maioria das questões, já em Freud. Sendo, então, a riqueza de
Lacan nos reenviar aos textos freudianos e propor leituras ancoradas também em
outras áreas de conhecimento que possibilitam um entendimento melhor trabalhado
essa prova e garantia única, afinal, da alteridade do Outro é o a” (2005, p.36).
das “sacadas” freudianas.
Há uma passagem em O Mal-estar na civilização em que Freud, ao discorrer
sobre os avanços tecnológicos da civilização, escreve o seguinte: “A escrita foi, em
sua origem, a voz de uma pessoa ausente” (1996, p. 97). Segundo Fleig (2006), na
medida em que não é significante, a voz jamais adentraria o campo da linguagem e
sim se amarraria a ele através da letra, esta que, enquanto ponto de amarração no
tempo em um espaço vazio evidenciaria a impossibilidade de um gozo total. A letra
para Lacan é o que pode cair na articulação da cadeia significante, ela está aí à prova
enquanto algo do Real, enquanto o que pode por si se identificar.
Se o significante é enquanto pura diferença, essa questão será mais bem
trabalhada adiante, nisso só podendo vir a ser enquanto referenciado a outros, ou seja,
vinculado ao simbólico, a letra é o que resta ainda que a mensagem não seja
compreendida. Ela é mesmo o que faz a borda no furo do saber, ou seja, é o que
permite uma articulação entre a escrita enigmática do inconsciente e a leitura
fragmentaria que a fala e a escuta podem dela fazer.
Aqui aparece a questão da impossibilidade de transposição: a letra de que fala
Lacan é a letra enquanto instância do inconsciente e não a letra enquanto grafia. Uma
hipótese é que o que opera para que ambas sejam possíveis seja da mesma ordem, ou
seja, que tanto para que a letra enquanto instância caia quanto pra que a letra enquanto
grafia se escreva é necessário um corte significante, corte esse que incide no corpo.
Corpo esse que só é enquanto bordeado por significantes, ou seja, quando tem
uma delimitação pela incidência da linguagem, que o tiram do sem-sentido da autosatisfação. São os significantes que inscrevem esse corpo na ordem social, corpo que
tal a libra de carne não pode ser a paga da divida simbólica. E não é apenas porque ele
sangra, mas porque se não impedido ao gozo total não se constitui enquanto corpo e se
ficasse entregue à dívida simbólica não passaria de imagem petrificada.
É ao entrar no jogo de troca exigido desde que contraiu essa dívida simbólica da qual nada sabe - a partir da qual ele se inseriu na civilização, que esse corpo vai
deixar de ser uma coisa, alguns quilos de carne, que anda.
Freud, em seu Projeto para uma psicologia cientifica (1985), retoma o
conceito de das Ding, formulado por Kant (Critica da razão pura), ao falar do neurônio
para sempre perdido, no qual haveria dela (das Ding - a Coisa) uma representação da
qual resta um representante: Vorstellungsrepräsentanz. A esse representante
representativo Lacan, calcado na lingüística de Saussure, dará o nome de significante:
“Trata-se daquilo que, no inconsciente, representa como signo a representação como
função da apreensão – da maneira pela qual toda representação se representa uma vez
que ela evoca o bem que das Ding traz consigo” (1997, p. 92).
É também pensando a partir do conceito de das Ding que Lacan, em seu
seminário sobre a ética (O Seminário, Livro VII: A ética da psicanálise), apontará o
incesto enquanto lei fundamental. Segundo ele a mãe ocuparia o lugar de das Ding se
aniquilasse a possibilidade de seu filho de desejar. Ao não apostar que ele venha a ter
pensamentos diferentes dos seus, ou seja, de que há ali, naquele corpo que saiu dela e
que ela pode ver, algo que ela não apreende, algo de que não dá conta e ao qual,
portanto, tem que dirigir, além de seu saber, perguntas. Se ela não „cessar de ver‟ esse
corpo, não „lamentará sua perda‟ mantendo-o preso em seu gozo.
É então da proibição da e à mãe enquanto e do objeto de gozo que o desejo do
sujeito se engendra. É só aí que aparece e pode se deslindar, seja em fala, em ato, em
leitura ou em escrita. É só porque alguém nos pergunta que respondemos, por não
termos como falar tudo que nos pomos a falar. Enfim, é por não possuirmos das Ding
que discorremos e buscamos nos relacionar, entrar nas trocas que a cultura
proporciona e exige (LACAN,1997).
A inserção do infans na linguagem acarreta a perda tanto de das Ding quanto
do lugar daquele que satisfaria todos os desejos da mãe, ou seja, esse lugar
representado pelo significante falo. Essa inserção se dá mesmo antes da criança nascer,
quando os pais sonham com esse filho ou mesmo inconscientemente o desejam
(LACAN,1997), e vai se efetivando desde os primeiros cuidados que a mãe tem com o
bebê.
Enquanto mexe em seu corpo e o estimula, a mãe também fala, canta,
conversa, pergunta se ele esta gostando, se sente cócegas, ou diz para ele parar de se
mexer, todas essas coisas que vemos e achamos muito bonitas. É assim que ela vai
dando nome a esse corpo e algumas das sensações que perpassam esse corpo, e mais, é
assim que ela vai chamando o bebê para além daquelas sensações.
Bergès e Balbo frisam a importância desses momentos para a inscrição
significante da criança na linguagem:
É aí que as coisas podem mudar, nos cuidados que ela fornece e o que
ela vai lhe dizer deslocará a erogeneidade, cortará algo. A mãe, quando
articula algo, enquanto cuida de sua criança, pelo que ela lhe diz, pelo
discurso que ela sustenta, introduz o simbólico no tocar (2001, p.65).
A erogeneidade que ela corta é a da auto-satisfação, e o discurso que ela
sustenta é o que permitirá o jogo metafórico da linguagem. É esse discurso que
permitirá a entrada na linguagem, pois se trata não somente de uma nomeação daquilo
que está acontecendo, e, portanto, de situar o infans emprestando um sentido ao que se
passa em seu corpo, mas também de um jogo de trocas. Nesse jogo o bebê vai também
se oferecer a mãe, oferecer seu corpo para que ela se delicie, para que ela o olhe, o
bebê também vai chamar a mãe, vai convocá-la para que ela lhe traga satisfação.
Por sua vez, nesse jogo, a mãe “invoca”3 o filho não só para que se dê a ela,
mas para algo que está além de sua erogeneidade auto-satisfatória ou de seu lugar de
satisfação à mãe, e é assim que ela inscreve em seu corpo as marcas da cultura. Na
medida em que diz sim, me chame e não apenas isso a mãe instaura no corpo a lei e os
significantes com os quais ele vai poder lidar com ela.
Ao apresentar a linguagem, e emprestar sentidos a mãe força que sua criança
abdique da auto-satisfação e transforme o percurso da energia que antes ficava aí
implicada, ela lhe apresenta uma heterogeneidade. É assim que a criança vai começar a
fazer substituições na tentativa de encontrar satisfações diferentes daquelas que agora
lhe são proibidas.
No campo da linguagem o que permite que se faça metáfora é a substituição
desse lugar vazio instaurado pelo irrepresentável (a perda de das Ding) – inicialmente
contornado pelo desejo da mãe – pelo significante Nomes-do-pai. Este significante que
barra ao Outro, até então encarnado pela mãe, a concessão desse sujeito enquanto
objeto de seu gozo, enquanto o que, como sua extensão, a livraria da questão a qual
estamos todos destinados e com a qual tanto nos debatemos: a morte (LACAN,1997)..
É esse significante em sua polifonia e polissemia que vai instaurar o que Lacan
chama metáfora paterna. Em francês escrito: Les non-dupes errent, na fala/escuta: os
nomes-do-pai, os nãos do pai, os não-patos erram, Lacan coloca já no titulo de seu
seminário a importância da escrita para a escuta e da escuta para a escrita.
O refreamento das pulsões, ou melhor dito, seus diferentes destinos hão de ser
inscritos pela linguagem e seus usos, e o sujeito aparecerá aí em seu movimento de
3
“a pulsão invocante, cujo circuito se organiza no ato de se fazer ouvir, vai em direção ao outro, e seu
retorno se dá como pulsão de escuta. Este é o privilégio e a especificidade desta pulsão: instaura um
circuito que não pode se fechar. Ora, toda pulsão, em seu circuito, circunscreve e recorta um objeto, o
objeto pulsional. Antes da virada da pulsão invocante em pulsão de escuta, temos a voz como seu
objeto primitivo” (FLEIG, 2006, p.5-6).
subversão. É do distanciamento forçado pela linguagem que o sujeito poderá advir e
marcar-se nela.
A letra enquanto grafia, segundo Bergès, só pode aparecer na medida em que o
sujeito está descolado do gozo que as trocas corporais com o Outro primordial lhe
proporcionavam. Se ele insiste nisso, se não consegue desvencilhar-se, a escrita
enquanto tinta no papel não pode se fazer presente, já que sua presença bidimensional
acarretaria a ausência dos jogos corporais, ou seja, do tridimensional que proporciona
um gozo. Freud, exímio escritor, em seu Inibição, sintoma e angustia escreve isso de
maneira crua:
Quando a escrita, que consiste em fazer com que um líquido escorra de
uma pena sobre uma folha de papel branco, adquire a significação
simbólica do coito, ou quando a marcha se tornou o substituto do pisotear
o corpo da mãe, tanto o escrever com o andar são abandonados, porque
significariam executar o ato sexual proibido (2001, p.12).
Pois bem, para escrever é preciso abdicar do corpo, abdicar do percurso autoerotico da pulsão, mudar a dimensão de inscrição, sublimar. Entramos no terreno árido
da necessidade de socialização, nas restrições impostas a satisfação pulsional que o
convívio com outros seres humanos exige. Desde muito tal função é dividida entre
pais e instituições e se chama de educação.
A educação exige a entrada do sujeito no campo simbólico. É uma forçagem
em que ele tem que se valer de sua aut(r)onomia para não ser apagado. O que seria
essa aut(r)onomia? Quem nos explica isso é Lebrun (2008), se trata de um
neologismo, uma condensação em que o r do autre (outro) e do trou (furo) se insere na
pretensa autonomia humana. Na medida em que é ser de linguagem, em que é mesmo
habitante dela, o ser humano não é sem o outro que lhe apresenta uma linguagem e o
força a adequar-se a ela e nela. E, portanto, a autonomia seria algo impossível, algo da
ordem de um imaginário de auto-engendramento.
A parte formal da educação cabe a instituições como a escola. Um dos
processos indispensáveis para que ela cumpra sua função é o ensino da leitura e da
escrita. Temos que sair da escola dominando a linguagem escrita, praticando as ações
por ela permitidas e exigidas, ou seja, lendo e escrevendo.
Lacan já nos alertou para a questão de que não aprendemos a falar, e sim, a
responder. Ele diz que o aparelho já esta aí, já nascemos com ele e não é uma questão
de apenas aprender a usá-lo, mas de que para usá-lo o falante precisa de um
endereçamento.
O que quer dizer isso? De maneira simplificada, de que para usar do universal
que é a língua sem perder-se nele é preciso que ao sujeito sejam endereçadas questões
que digam respeito a si, que ele tenha que responder por elas. Só assim, é que cada
sujeito pode se apropriar da linguagem, não sendo uma questão de aprender como o
sistema funciona, mas, de adentrar nesse sistema, fazer parte dele sem ser ele.
Bergès nos alertou que desde bebê sabemos ler nos lábios e no corpo da mãe
as letras de seu desejo. Ou seja, que aprendemos a ler e escrever antes de adentrar a
função da fala. É uma questão de olhar, não de visão, mas, de olhar, ou seja, de
identificar no corpo do Outro as insígnias do desejo que o engendrou.
Seja pelo tato, pelo olfato, pela audição ou pela visão essa leitura é anterior a
tomada de posição na linguagem, ou seja, a função da fala e é mesmo o que vai
permitir que esta se dê. Lemos antes de falarmos. Partindo disso podemos fazer uma
pergunta que delimitará o estudo proposto: alguém não aprende a ler e escrever?
Em seu texto Em suma, o que aprendemos com as crianças que não aprendem?
Bergès traça alguns dos “problemas”, que acarretariam o não aprendizado, levantados
na história da educação na França. Dentre eles dá destaque aos casos de crianças
“disfásicas” (que não falam apesar de não terem problemas auditivos ou vocais e são
capazes de entender o discurso) e de crianças que não aprendem a desenhar. Segundo
ele, essas crianças aprendem sim a escrever e o que isso nos ensina é que a escrita não
é uma conseqüência direta da fala ou do desenho e sim, diz ele:
a escrita não é, efetivamente, a justaposição de letras desenhadas; ela é
tomada num impulso motor do desejo de exprimir não na superfície do
imaginário, mas na ordem simbólica da “linguagem escrita” (2008,p. 281)
A escrita, então, é algo da ordem do simbólico, ou seja, de um sistema que
possibilita e exige trocas, substituições e que acarreta perdas. A perda do corpo
imaginário, da auto-satisfação, do lugar privilegiado.
Adentrar a civilização, pertencer a ela não são tarefas fáceis. Há muitas
mazelas pelo caminho, muitas pedras diria Drummond, muitos códigos a decifrar,
etiquetas a aprender e a usar, se houvesse escolha muitos talvez recusariam, mas
recusar é um dos luxos da civilização. Se é possível mudar alguma coisa nisso?
Revoltar-se? Ao que parece sim, mas há certas imposições ferozes como as da
linguagem de que não podemos escapar. Ainda que as configurações mudem o acesso
ao objeto permanece interdito.
A educação é um dos veículos civilizatórios, um dos meios, hoje obrigatório, a
se percorrer para partilhar certos códigos. Aprender a ler e a escrever é fundamento
das demais aprendizagens formais não aceder a tal sendo complicador relevante.
Reclamação recorrente entre pais e professores as crianças que não aprendem
formalmente essas funções, o que elas nos apresentam? Essa é uma das questões que
fazem esse texto e que não pretendemos, pois não temos como, responder aqui. Mas a
partir dela podemos pensar algumas coisas.
Não é pequeno o índice de analfabetismo no país, mesmo entre crianças e
adolescentes regularmente inscritos no sistema de ensino, tanto fundamental quanto
médio. É claro que a obrigatoriedade do ensino foi de grande relevância para diminuir
esse índice, mas ele ainda se apresenta com alguns desafios.
Ao que perguntamos então das possíveis contribuições da psicanálise para o
campo da educação no que toca essa questão. As noções que já trouxemos e a
articulação que buscamos fazer nos parecem apontar para um campo possível de
debates.
Ao apresentar a questão da leitura e da escrita como questões iniciais para o ser
humano, questões mesmo de inserção na cultura, seja ela letrada ou não, Bergès
aponta que para as crianças que não conseguem desvendar esses códigos não se trará
de uma questão de ignorância ou incapacidade, mas de um impedimento.
Para a psicanálise, a questão da escrita tem importância e sua discussão tem
crescido consideravelmente, assim como o número e importância de produções sobre o
tema. Há toda uma dificuldade de restringir o que seja do campo da escrita
inconsciente e da escrita enquanto grafia, enquanto tinta no papel. Tomemos um
escrito de Lacan e que a noção de corte significante aparece para pensar a questão da
interpretação em psicanálise:
Se o sintoma pode ser lido, é porque ele mesmo já está inscrito num
processo de escrita. Enquanto formação particular do inconsciente, não
é uma significação, mas sim sua relação com uma estrutura significante
que o determina (1998, p.445).
Pode tal noção ajudar a pensar a questão da escrita na escola?
Se nos apoiarmos nas formulações de Bergès e Balbo concernentes a leitura e
escrita e das dificuldades que as crianças encontram aí, parece que sim, que seria
possivel fazer uma articulação entre a escrita inconsciente e a escrita gráfica tomando
os devidos cuidados para que não se acabe em uma aplicação da teoria psicanalitica.
Teoria essa que só existe a partir e para a clínica, e não como um saber instituido, mas
como um saber-fazer a cada vez.
Então nos perguntamos: como usar os conceitos psicanaliticos sem apelar para
a aplicação? A questão então, e que nos parece uma importante contribuição da
psicanálise para abordagem universitária das questões de educação, é uma certa
imposição que sua teorização traz de universalizar o singular sem restringi-lo à
universalização que ele engendra. Ou seja, extrair dele um funcionamento que não
apague suas falhas específicas. E que a discussão de seus conceitos não leva a uma
universalização auto-evidente.
Uma das grandes dificuldades que a psicanálise enfrenta no campo das
ciências, e que a põe em maus-lençóis junto à academia, é que aprendê-la não é uma
questão de domínio conceitual. Ainda que maneje bem com seus conceitos, que os
saiba repetir, conjugar e mesmo criticar com alguma desenvoltura não quer dizer que
aprendi o que seja a psicanálise.
Freud dizia que a cada psicanálise o psicanalista tem que estar como se fosse
a primeira, pois a singularidade que aí aparece não se repete. Apreender algo da
psicanálise só se dá para cada sujeito em cada psicanálise pessoal que ele faça. Que se
possa falar aí é que se estabelece a questão, responder por aquilo que se diz e que se
faz sendo a ética que cabe ao analisaste.
Retomamos então a colocação de Lacan em seu seminário sobre o objeto da
psicanálise, nos diz ele: “não é a experiência que faz progredir o saber, mas os
impasses em que o sujeito é tomado por ser determinado pelo significante”. É esse,
nos parece, um dos pontos que podem levar a uma articulação pertinente entre o as
questões advindas do campo da educação e as questões trazidas pela psicanálise.
Deixamos claro aqui que uma possível contribuição para o campo da educação
não poderia deixar de passar pela psicanálise e, mesmo, de ter nela sua base o que
implica jamais aplicá-la enquanto verdade absoluta. E que nossa hipótese é de que há
um campo em que psicanálise e educação podem aprender e construir diferentes
modos de lidar com situações que dizem respeito a ambas.
REFERÊNCIAS
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Porto Alegre: CMC, 2001.
BERGÉS, J. (ORG.) O que aprendemos com as crianças que não aprendem. Porto
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DIDIER-WEILL, A. Os três tempos da lei. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997b.
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FREUD, S. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Rio
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_____. Projeto para uma psicologia cientifica. Obras psicológicas completas de
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FLEIG, M. A função da fala e o objeto voz na clínica psicanalítica. In: Céfiso Centro
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[1964]. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998b.
_____.O Seminário, Livro XX: Mais, ainda [1972 – 1973], Rio de Janeiro: J. Zahar,
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_____. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.
LEBRUN, J-P. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.
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