ASSENTAMENTOS RURAIS: TERRITÓRIOS DO TERRITÓRIO CANTUQUIRIGUAÇU,
ESTADO DO PARANÁ
Estevan Leopoldo de Freitas Coca - FCT-UNESP
[email protected]
Bernardo Mançano Fernandes - FCT-UNESP
[email protected]
Resumo
Contribuindo com as discussões sobre o conceito de território, neste artigo apresentamos um estudo sobre os assentamentos rurais do Território Cantuquiriguaçu, localizado nas mesorregiões Centro-Sul Paranaense e Oeste Paranaense.
Destacamos os assentamentos rurais como territórios dentro do território, pelo fato de as relações sociais neles estabelecidas possibilitarem a reprodução do modo de vida e produção camponês. São oferecidas contribuições para o entendimento do território em uma perspectiva para além dos espaços de governança, considerando que também as propriedades privadas, sejam elas capitalistas ou não, expressam relações de poder que caracterizam territórios. O Território Cantuquiriguaçu possui como um de suas principais características o protagonismo do campesinato nas referências às políticas de desenvolvimento adotadas, já que este território possui um expressivo número de assentados e agricultores de
base familiar. É dada ênfase aos assentamentos Ireno Alves e Marcos Freire, localizados no município de Rio Bonito do
Iguaçu, nos quais foram realizados trabalhos de campo, com o objetivo de entender como os territórios são construídos
e destruídos através das práticas dos atores sociais.
Palavras-chave: Território; Território Cantuquiriguaçu; Assentamentos Rurais; Campesinato.
Abstract
Contributing with the discussions on the territory concept, in this article presented a study on Territory
Cantuquiriguaçu's rural settlements, located in the meso-regions south center- west of the State of Paraná. We detached
the rural settlements inside as territories of the territory, for the fact of the social relationships in them established they
make possible the reproduction in the life way and production peasant. Contributions are offered for the understanding
of the territory in a perspective for besides the government spaces, considering that also the private properties, be them
capitalists or no, they express relationships of power that characterize territories. The Cantuquiriguaçu’s Territory
possesses as one of their main characteristics the peasant’s protagonist in the references to the adopted development
policies, since this territory possesses an expressive number of having seated and farmers of family base. Emphasis is
given to the establishments Ireno Alves and Marcos Freire, located in the district of Rio Bonito do Iguaçu, where which
field works were accomplished with the objective of understanding as the territories are built and destroyed through the
socioterritorial movements' practices.
Key –words: territory; rural settlements; peasants,;Cantuquiriguaçu's territory.
Introdução
O conceito de território tem sido utilizado em grande parte dos trabalhos geográficos nos últimos
anos, sendo caracterizado por muitos como “o conceito da moda”, o mais utilizado atualmente na
Geografia. Também em outras áreas do conhecimento o território tem sido estudado, exemplos são
a Antropologia e a Biologia, todavia, grande parte dos trabalhos apresenta uma leitura deste conceito que não leva em consideração a conflitualidade e a diversidade. Esta tendência também é observada nas políticas públicas, os territórios tem sido alvo de vultosos investimentos por parte do Estado, porém, em muitos casos eles são confundidos com as microrregiões geográficas o que impede
que se leve em consideração os territórios que existem no território. Um exemplo destas políticas
públicas voltadas para os territórios é o programa do Governo Federal “Territórios da Cidadania”1,
que tem por objetivo diminuir as desigualdades sociais no meio rural por meio de políticas territoriais.
Para contribuir com o debate, neste artigo são feitas considerações sobre o conceito de território
tomando por referência o Território Cantuquiriguaçu, localizado nas mesorregiões Centro-Sul Paranaense e Oeste Paranaense, enfatizando que no interior deste território são formados outros territórios. O Cantuquiriguaçu engloba 20 municípios e possui como uma de suas principais características o protagonismo dos movimentos socioterriais nas tomadas de decisões sobre as políticas de desenvolvimento adotadas no território. O território possui uma diversidade de atores sociais, entre os
quais camponeses com terra e sem-terra, indígenas, atingidos por barragens e outros. As relações
sociais estabelecidas em seu interior acabam configurando uma série de territórios dentro do Território definido pelo programa federal. Buscando contribuir com o debate sobre as diversidades territoriais, este texto traz uma análise dos territórios dos assentamentos rurais do Território Cantuquiriguaçu. Objetiva-se discutir como o conceito de território pode ser entendido com base nas relações
sociais estabelecidas nestes assentamentos, através da proposição de um modelo de desenvolvimento que valorize o campesinato, enquanto classe social.
Este artigo traz resultados da pesquisa de mestrado “Um estudo da diversidade e atualidade da reforma agrária: análise dos tipos de assentamentos das mesorregiões Oeste Paranaense e Centro-Sul
Paranaense” que tem sido financiado pelo CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Parte das reflexões aqui trazidas foram realizadas na disciplina “Teorias do Território e da Questão Agrária”, ministrada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente pelo Prof. Dr. Bernardo
Mançano Fernandes. Nesta disciplina foi realizado um trabalho de campo no Território Cantuquiriguaçu, o qual possibilitou que a teoria discutida em sala de aula fosse visualizada na prática dos
1
Ver www.territoriosdacidadania.gov.br
atores sociais, que através de atividades políticas constroem e destroem territórios. Nesta oportunidade, conhecemos os assentamentos Ireno Alves e Marcos Freire, localizados no município de Rio
Bonito do Iguaçu - PR. Estes assentamentos são geridos pelo MST - Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-terra. Caracterizando esses assentamentos como espaços onde são tomadas medidas que
visam à reprodução do modo de vida e produção camponesa, destacamos como estes se constituem
territórios.
Os tipos de territórios
Depois de passada uma fase em que estudos apontavam para o fim dos territórios, devido à intensificação da globalização neoliberal, vive-se agora um período em que cada vez mais o território é
utilizado como um importante instrumento de análise e compreensão da realidade (Haesbaert,
2004). Isso é comprovado quando nos atentamos para uma série de estudos que tem utilizado o território como principal conceito de análise, tanto na Geografia, quanto em outras ciências, respeitadas as particularidades. Essa tendência também é percebida na elaboração de políticas públicas que
trazem os territórios como importantes focos de investimentos governamentais. Neste capítulo, apresentamos uma abordagem do território para além do espaço de governança, o que possibilita o
entendimento dos assentamentos rurais enquanto territórios do Território Cantuquiriguaçu.
O conceito de território é utilizado na Geografia desde quando esta ciência foi institucionalizada no
fim do século XIX. Um dos primeiros autores a o utilizarem em seus trabalhos foi o alemão Friedrich Ratzel. Os trabalhos deste geógrafo são tidos como os primeiros a conterem uma abordagem
geográfica do território, mesmo que para ele o território fosse sinônimo de solo (Souza, 2009). O
trabalho de Ratzel exerceu grande influência nos estudos elaborados na década de 1950, que tinham
como principal foco a geopolítica.
Com o movimento de renovação da geografia, na década de 1970, novas abordagens começam a ser
elaboradas, o território passa a ter uma definição mais ampla, deixando de ser entendido simplesmente como o solo. Nesta época contribuíram com o debate autores como: Lacoste (1988); Gotmann (1973) e Raffestin (1993). Este último tem sido a maior influência dos estudos elaborados no
Brasil. Para Raffestin, o território deve ser diferenciado do espaço, sendo formado pelas relações
sociais que se dão no espaço, como está expresso na citação abaixo:
É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se
forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator
sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de
um espaço, concreta ou abstratamente, o ator “territorializa” o espaço. (...) O
território, nessa perspectiva, é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia
e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. O
espaço é a “prisão original”, o território é a prisão que os homens constroem para si
(RAFFESTIN, 1993, p. 143-144; grifo nosso).
Portanto, a definição de território dada por Raffestin, caracteriza-o como um espaço onde se dão
relações de poder. Essas relações de poder são estabelecidas pelo conflito entre as classes sociais
que tentam se apropriar de porções do espaço. O espaço é entendido como uma espécie de “matériaprima”, a qual é transformada em território pela ação dos atores sociais.
Esta concepção que entende os territórios a partir das relações de poder tem embasado grande parte
dos trabalhos desenvolvidos na Geografia brasileira, destacando-se os de Andrade (1995); Haesbaert (2004); Souza (1995); Oliveira (1991); Fernandes (2008, 2009); Saquet (2009) entre outros. Todavia, neste artigo não temos a intenção de fazer um levantamento do que foi produzido nestes trabalhos e sim discutir como os assentamentos rurais podem ser entendidos enquanto territórios, numa acepção deste conceito para além do espaço de governança.
Neste sentido, nos utilizamos da proposição elaborada por Fernandes (2008), que trata da tipologia
dos territórios. O autor destaca que a multidimensionalidade e a multiescalaridade são componentes
que devem ser levados em consideração na análise dos territórios. A multidimensionalidade destaca
o princípio da totalidade nos territórios, já que as dimensões social, cultural, econômica e ambiental
relacionam-se dialeticamente no território. O princípio da multiescalaridade nos possibilita entender
o território para além do espaço de governança, considerando os territórios do território, como aduz
o autor:
O princípio da multidimensionalidade pode ser considerado como uma propriedade
do significado do conceito de território. Este é um grande desafio, porque por mais
que se defenda a multidimensionalidade na acepção do conceito de território, as teorias métodos e práticas a fragmentam. Mas esta fragmentação não ocorre somente na
multidimensionalidade dos territórios, acontece também na sua multiescalaridade.
Nas “abordagens territoriais” predominam análises da dimensão econômica e social
numa acepção ao território como unidade geográfica determinada, quase sempre
como espaço de governança. A definição de “território” por órgãos governamentais
e agências multilaterais não consideram as conflitualidades dos diferentes tipos de
territórios contidos no “território” de um determinado projeto de desenvolvimento
territorial (FERNANDES, 2008. p. 278).
Tomando estes princípios por referência na abordagem territorial, o autor propõe a existência de
três tipos de territórios: o primeiro, caracterizado como os espaços de governança, sejam eles a nível nacional, estadual ou federal; o segundo, definido como os diferentes tipos de propriedade privadas, sejam elas capitalistas ou não e o terceiro onde são considerados os territórios fluxos, “cujas
fronteiras se movimentam de acordo com as ações institucionais e as conflitualidades” (FERNANDES, 2008. p. 283).
Essa interpretação sobre o conceito de território é importante para efeito deste artigo, pois trata as
propriedades privadas como territórios dentro do território do espaço de governança. Isso nos permite entender os assentamentos rurais enquanto territórios, sendo necessário compreendermos como
se dão essas relações de poder em seu interior para que assim o seja definido. Nem toda propriedade
particular é capitalista, as propriedades camponesas apesar de estarem inseridas na economia capitalista, não desenvolvem relações capitalistas de produção como mostra Oliveira (1991). O autor considera que as relações camponesas no interior da economia capitalista são necessárias para que a
renda da terra seja transformada em renda capitalizada:
A utilização dessas relações de trabalho não capitalistas poupa ao capitalista investimentos em mão-de-obra. Ao mesmo tempo, ele recebe parte do fruto do trabalho
desses parceiros e camponeses, que converte em dinheiro. Assim, realizam a metamorfose da renda da terra em capital.
Este processo nada mais é do que de produção do capital, feito através de relações
não capitalistas. Uma vez acumulado, este capital, numa próxima etapa do processo
de produção, poderá ser destinado à contratação de bóias-frias, por exemplo, e então
se estará implantando o trabalho assalariado na agricultura (OLIVEIRA, 1991. p.
19).
Desta forma, as relações de trabalho camponesas são utilizadas para que o capital se reproduza. Por
isso, ao falarmos do 2º território, trabalhamos tanto com as propriedades capitalistas como com aquelas que não produzem relações capitalistas, sejam elas comunitárias ou não. Para Fernandes
(2008) ao nos referirmos às propriedades particulares enquanto territórios, devemos levar em consideração o sentido político da soberania nas tomadas de decisões que os envolvem, já que são os
proprietários que definem as propostas de desenvolvimento destes territórios. No caso dos assentamentos rurais, busca-se uma proposta de desenvolvimento que leva em consideração a valorização a
agricultura em pequena escala, policultora e com mão-de-obra familiar, em oposição modelo que
desenvolvimento do agronegócio, no qual é privilegiada a produção em larga escala, monocultora e
com mão-de-obra assalariada. Tanto o agronegócio, como a agricultura camponesa constroem e
destroem territórios. Através dessas conflitualidades, entre classes sociais antagônicas, são gerados
territórios.
Caracterização do Território Cantuquiriguaçu
O Território Cantuquiriguaçu é formado por 20 municípios2, localizados nas mesorregiões CentroSul Paranaense e Oeste Paranaense (figura 01). O nome do Território é uma referência aos rios que
o delimitam: o rio Piquiri, ao Norte; o rio Iguaçu, ao sul e o rio Cantu, no oeste. Devido à existência
destes rios o território possui sete usinas hidrelétricas, entre as quais Salto Santiago, Salto Osório e
Governador Ney Braga.
A população total do Território é de 232.729 habitantes, destes 112.332 moram em áreas urbanas e
120.397 em áreas rurais, como mostra o CENSO 2000. Portanto, o Cantuquiriguaçu é um território
de características rurais, sendo que de todos os municípios que o compõem o que possui maior população é Laranjeiras do Sul, com pouco mais de 30 mil habitantes e o que possui menor população
é Diamante do Sul, com 3.659. Os traços rurais do Cantuquiriguaçu são comprovados quando se
analisa a geração de riqueza do território, já que a produção primária é responsável por 33% do total, enquanto no Paraná ela responde por 14%. Além disso, 50,8% da PEA - População Economicamente Ativa do território refere-se a agricultores de base familiar (EMATER, 2004).
O Diagnóstico Sócio-Econômico do território, tomando por referência o CENSO 2000, mostra que
o Cantuquiriguaçu se destaca negativamente no estado do Paraná pelos altos índices de pobreza,
com 26.159 famílias consideradas pobres; além de déficit habitacional e de infra-estrutura em parte
das residências; o mais alto índice de mortalidade infantil do estado do Paraná (20,3 crianças para
cada mil); taxa de analfabetismo de 14,4% da população, quando no Paraná ela é de 9,0%; dentre
outros (EMATER, 2004). No Território Cantuquiriguaçu está à maior reserva indígena do estado do
Paraná, na qual estão às tribos Kaingang e Guarani. Além disso, o Cantuquiriguaçu possui o assentamento Ireno Alves, o maior da América Latina, sobre o qual falaremos adiante e três comunidades
quilombolas, localizadas no município de Candói.
2
Compõem o Território Cantuquiriguaçu os seguintes municípios: Campo Bonito, Candói, Cantagalo, Catanduvas,
Diamante do Sul, Espigão Alto do Iguaçu, Foz do Jordão, Goioxim, Guaraniaçu, Ibema, Laranjeiras do Sul, Marquinho,
Nova Laranjeiras, Pinhão, Porto Barreiro, Quedas do Iguaçu, Reserva do Iguaçu, Rio Bonito do Iguaçu, Três Barras do
Paraná e Virmond.
A primeira tentativa de organização dos municípios que compõem o Território Cantuquiriguaçu é
datada do ano de 1984 quando foi criada a Associação dos Municípios, que existe ainda hoje e é
mantida pelas prefeituras que a compõem. A sede da Associação está localizada no município de
Laranjeiras do Sul. No ano de 2001, lideranças dos municípios que compõem o Cantuquiriguaçu
começam a se reunir na tentativa de proporem políticas visando à diminuição das desigualdades do
território. Durante dois anos foram realizadas atividades visando o levantamento de informações
detalhadas sobre o território, a capacitação de atores sociais e agentes de desenvolvimento e a habilitação dos gestores públicos municipais, objetivos sistematizados no documento intitulado “Plano
Diretor para o Desenvolvimento dos municípios da Cantuquiriguaçu”. Estas demandas foram apresentadas ao Ministério de Desenvolvimento Agrário no ano de 2003, buscando a inserção do território nos programas federais.
No ano de 2004 foi criado o CONDETEC - Conselho de Desenvolvimento do Território Cantuquiriguaçu, com o objetivo de agregar maior participação social, em um órgão de caráter consultivo,
normativo e deliberativo (CONDETEC, 2009). Enquanto na associação o poder de decisão é conferido aos poderes públicos municipais, no conselho são abertos espaços para outros setores da sociedade civil. Dentre os participantes do conselho estão órgãos como as secretarias municipais, o INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, universidades públicas, o EMATER Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural, O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, movimentos sindicais, movimentos socioterritoriais como o MST - Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-terra e o MPA - Movimento dos Pequenos Agricultores, organizações
indígenas, igrejas etc., totalizando 44 entidades dos segmentos público, privado e não governamentais do território. No CONDETEC funcionam câmaras setoriais, dentre as quais as de educação,
saúde, promoção social, infra-estrutura, agricultura e turismo; além de uma assessoria de planejamento e dos conselheiros. O CONDETEC é formado por representante de variados setores da sociedade, com diferentes concepções de desenvolvimento para o território. Quando da criação do conselho tinha-se por meta estruturar estes segmentos da sociedade para a gerência dos recursos do
programa federal “Territórios Rurais”, que posteriormente foi substituído pelo programa “Territórios da Cidadania”.
Assentamentos rurais: territórios do território
O assentamento é o território conquistado, é, portanto um novo recurso na luta pela
terra que significa parte das possíveis conquistas representa, sobretudo a possibilidade da territorialização (FERNANDES, 1996. p. 181).
A conquista do assentamento rural faz parte de um processo de disputa territorial que garante a reprodução do modo de vida camponês, permitindo o acesso à terra a trabalhadores que anseiam não
se sujeitar ao modo capitalista de produção. Por isso, o assentamento não é simplesmente a concessão de um pedaço de terra a camponeses com pouca ou sem terra, e sim um território onde se desenvolvem relações de vida e produção diferentes das do capital. A epígrafe desta seção destaca o
caráter de “território conquistado” dos assentamentos rurais, processo que nasce na luta pela terra e
que prossegue na luta na terra, quando se busca a efetivação de relações camponesas no assentamento.
Para elucidar como tem sido efetivado tal processo, no quadro 01, apresentamos a distribuição dos
assentamentos rurais nos municípios do Território Cantuquiriguaçu. Dos 20 municípios que com-
põem o território, 14 possuem assentamentos rurais, totalizando 49. Assim, 70% dos municípios do
território possuem assentamentos rurais, fato que colaborou para que ele fosse inserido no programa
federal “Territórios da Cidadania”, já que entre os objetivos do programa está auxiliar no desenvolvimento dos territórios que possuem grande número de população assentada e elevada pobreza rural. Dentre estes municípios que possuem assentamentos, o que possui o maior número é Goioxim,
com 11, seguido por Candói e Cantagalo, com 5 cada. Todavia, deve-se destacar o município de Rio
Bonito do Iguaçu, no que se refere ao número de famílias e a área dos assentamentos, com 1.574
famílias assentadas, ocupando uma área de 27.982 hectares, o que caracteriza a maior área reformada do país.
Quadro 01 - Número de Assentamentos Rurais do Território Cantuquiriguaçu - 1984-2008
Município
Nº de assentamentos
%
Nº de famílias
%
Área em há.
Campo Bonito
3
6
137
3
4.352
Candói
5
10
238
6
3.599
Cantagalo
5
10
152
4
6.259
Catanduvas
1
2
44
1
1.401
Espigão Alto do Iguaçu
1
2
23
1
403
Goioxim
11
22
284
7
7.288
Laranjeiras do Sul
3
6
118
3
2.267
Marquinho
1
2
7
0
176
Nova Laranjeiras
3
6
219
5
3.436
Pinhão
4
8
197
5
5.966
Porto Barreiro
0
0
0
0
0
Quedas do Iguaçu
3
6
1.042
25
25.575
Reserva do Iguaçu
3
6
95
2
4.329
Rio Bonito do Iguaçu
3
6
1.574
37
27.982
Três Barras do Paraná
3
6
74
2
2.189
Total
49
100
4.204
100
95.222
%
5
4
7
1
0
8
2
0
4
6
0
27
5
29
2
100
Fonte: DATALUTA - Banco de Dados da Luta pela Terra, 2009. Org: Estevan Leopoldo de Freitas Coca
Na prancha 01, trazemos os mapas com o número de assentamentos, famílias assentadas e a área
dos assentamentos para melhor visualizarmos a territorialização dos assentamentos rurais no Cantuquiriguaçu. Esta representação possibilita uma melhor visualização do processo mostrado no quadro
acima. Fica evidente o destaque do município de Rio Bonito do Iguaçu no número de famílias assentadas e na área dos assentamentos, mesmo não possuindo o maior número de assentamentos entre os municípios que compõem o território. Justamente por este destaque e por possuir uma forte
organização por parte da população camponesa assentada, escolhemos este município para a realização do trabalho de campo, onde foi possível conhecermos as relações que fazem dos assentamentos rurais territórios do Território Cantuquiriguaçu.
Assentamentos Ireno Alves e Marcos Freire: territórios do campesinato
No município de Rio Bonito do Iguaçu está a maior área reformada do sul do Brasil, com 3 assentamentos rurais (PA 10 de Maio, PA Ireno Alves e PA Marcos Freire) que ocupam 27.982 hectares.
Com a formação destes assentamentos ocorreram profundos impactos no município, a população foi
de pouco mais de 6.000 para cerca de 20.000 habitantes, movimentando a política e a economia
regional (HAMELL; SILVA e ANDREEATTA, 2007). A origem dos PA´s Ireno Alves e Marcos e
Marcos Freire foi uma ocupação de terra, realizada no dia 17 de Abril de 1996, com a participação
de mais de 3 mil trabalhadores sem-terra, a maior dentre as registradas no Brasil. Após esta ocupação os camponeses ficaram acampados por 2 anos, até que acontecesse a desapropriação dos mais
de 26 hectares que compõem os dois assentamentos. O latifúndio cedia lugar à agricultura camponesa e nova formas de vida e produção começavam a ser efetivadas neste território. O processo de
conquista destes assentamentos elucida o caráter territorial da reforma agrária, já que com a criação
dos assentamentos rurais o latifúndio e o agronegócio são desterritorializados e novas relações sociais passam a ser desenvolvidas neste espaço.
O processo de conquista do território do assentamento tem origem na luta pela terra, quando através
das ocupações e dos acampamentos os camponeses reivindicam a desapropriação de áreas que não
tem obedecido a sua função social para que neles sejam assentadas famílias que estabelecerão novas
formas de produção. Após a obtenção da terra os camponeses assentados iniciam uma nova luta
agora para manter a soberania de seus territórios e permanecer na terra. Assim, no trabalho de campo, ao visitarmos os assentamentos Ireno Alves e Marcos Freire podemos conhecer como esta luta
pela soberania tem se dado através da busca pela garantia do modo de vida camponês.
Tanto o assentamento Ireno Alves, quanto o Marcos Freire são geridos pelo MST - Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-terra. A agenda de luta deste movimento tem ganhado uma amplitude
maior do que a conquista da terra, ou seja, a implantação de programas de reforma agrária não é
entendida como suficiente para que as desigualdades no campo sejam superadas. O MST tem evidenciado a necessidade de se criar um sistema econômico-social contrário ao capitalismo, com novos valores e novas práticas. Dentre as linhas políticas reafirmadas no V Congresso Nacional do
MST, realizado em Junho de 2007, em Brasília consta este objetivo de: “Articular com todos os
setores sociais e suas formas de organização para construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, o imperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro (MST,
2007).
Como parte desta luta do MST pela implantação de um novo modelo de sociedade está à defesa de
um processo educacional que leve em consideração a vivência camponesa, já que o atual é voltado
para os valores urbanos, desqualificando os valores rurais e colaborando para que os jovens camponeses não se sintam interessados em permanecer no meio rural (MST, 2009). Por isso uma das primeiras atitudes a serem tomadas quando é estabelecido um acampamento do movimento é instalar
uma escola. Isto também ocorreu quando da ocupação da fazenda Giacomet Marodin, uma das principais preocupações era para com a educação, onde seria instalada a escola. Passados dez anos da
ocupação que originou os assentamentos Ireno Alves e Marcos Freire, existem neste território seis
escolas municipais de 1ª a 4ª séries, quatro de Ensino Fundamental, duas de Ensino Médio, sendo
que em uma delas funciona a Escola Base das Escolas Itinerantes (ENGELMANN, 2006).
Na visita a campo tivemos a oportunidade de conhecer dois empreendimentos educacionais geridos
pelo MST: a Escola Estadual Iraci Salete Strozak e o CEAGRO - Centro de Desenvolvimento Sustentável e Educação em Agroecologia. O Iraci Salete Strozak é a escola-base de todas as escolas
itinerantes3 do Paraná, sendo responsável pelos educandos de todos os acampamentos do MST no
estado. O Projeto Político-Pedagógico do colégio demonstra a intenção de propor uma educação
que fortaleça os vínculos dos educandos com o campo, dentre os objetivos propostos neste documento, estão fazer com que a educação seja utilizada para: a transformação social; para as várias
dimensões do ser - humano; para a promoção dos valores humanistas e socialistas e como um processo permanente de transformação do ser - humano (GUINE, PIRES; 2008).
O CEAGRO funciona próximo aos assentamentos Ireno Alves e Marcos Freire, instalado na estrutura que sobrou de uma vila montada para servir de abrigo aos trabalhadores que se dedicaram a
construção da Usina Hidrelétrica de Salto Santiago, no rio Iguaçu. Neste centro de educação é dada
formação técnica em agroecologia a jovens assentados, já que dentre as alternativas apontadas pelo
MST para a produção agrícola brasileira está o desenvolvimento de práticas agroecológicas. A agroecologia é entendida como uma alternativa ao modelo do agronegócio, sendo que o campesinato
paranaense tem se destacado na promoção de escolas que formem os integrantes do movimento para
a execução de tais práticas, como consta em entrevista cedida por Tardin, disponível no sítio do
MST na Internet:
O Paraná no cenário brasileiro é um estado vanguardista na produção orgânica e agroecológica. Mas tudo isso é iniciativa de organizações da sociedade civil e dos
movimentos sociais. O Estado tem sido extremamente alheio, não tem política esta3
São denominadas de “escolas itinerantes” as escolas que funcionam em caráter nômade nos acampamentos do MST.
belecida para incrementar a agroecologia. Entendendo como política todo um conjunto de iniciativas, que envolveria a formação de técnicos, a formação de camponeses, camponesas, da juventude; a pesquisa em agroecologia, o desenvolvimento de
máquinas e equipamentos adequados para esse tipo de produção; sistemas agroindustriais de pequeno porte e mudanças na legislação, porque um dos grandes empecilhos é que a legislação brasileira é totalmente voltada para favorecer os grandes
complexos agroindustriais. Quando se monta uma pequena unidade agroindustrial,
ela tem que cumprir a legislação que uma grande multinacional é obrigada a cumprir. Há uma deslealdade em relação à produção em pequena escala (PONCE e ENGELMANN, 2006).
Essas práticas educativas que tivemos a oportunidade de conhecer no trabalho de campo evidenciam estratégias que os camponeses assentados têm utilizado para permanecerem no território, não se
rendendo ao processo de expansão do capital e ditando as políticas de desenvolvimento para os assentamentos. A área que até então era um grande latifúndio, ultrapassando inclusive, os limites municipais, passa a sediar um novo tipo de relação social.
Outra conseqüência da desterritorialização do latifúndio e da territorialização do campesinato é a
mudança na base produtiva. O levantamento feito por Engelmann (2006) mostra também a diversidade de produtos gerados pelos assentados dos PA´s Ireno Alves e Marcos Freire:
“A cada ano os dois assentamentos produzem em média 500 mil sacas de milho, 50
mil sacas de soja, 50 mil sacas de feijão, 10 mil sacas de arroz, 24 mil litros de leite
por dia, chegando a 880 mil litros por ano. Os trabalhadores criam em média 20 mil
animais entre: suínos, bovinos e aves, para comercialização e consumo próprio”
(ENGELMANN, 2006).
Essa diversidade produtiva caracteriza as relações camponesas no território. O território do latifúndio, marcado pela baixa produtividade, razão de não cumprir com sua função social, dá lugar ao
território da policultura, da produção familiar e da diversidade. Assim, as relações camponesas fazem do assentamento um território tanto pelo modo de viver quanto pelo modo de produzir.
Outro aspecto que contribui para que estes assentamentos sejam territórios do campesinato é a influência política que as lideranças camponesas exercem no Território Cantuquiriguaçu. No CONDETEC o MST é um dos movimentos socioterritoriais que tem direito de representação, podendo
participar das decisões sobre o desenvolvimento adotado no Território. Durante o trabalho de campo, tivemos a oportunidade de assistir a uma das reuniões do Conselho, onde foi possível ver como
neste espaço de discussão é dado ênfase aos critérios que os camponeses assentados julgam ser pertinentes às políticas de desenvolvimento adotadas no Cantuquiriguaçu.
Estes exemplos evidenciam políticas de desenvolvimento adotadas para os assentamentos rurais que
partem dos próprios camponeses, com a intenção de manter seu modo de vida e produção. Essa soberania na tomada de decisões sobre o território justifica a qualificação dos assentamentos rurais
como territórios do Território Cantuquiriguaçu.
Considerações finais
As relações sociais estabelecidas nos assentamentos rurais Ireno Alves e Marcos Freire demonstram
como existem territórios no interior do Território Cantuquiriguaçu. No texto destacamos as iniciativas tomadas pelos camponeses do assentamento referentes à educação, produção e a representatividade política, fatos que demonstram a preocupação com a manutenção da terra e a não desintegração do modo de vida camponês.
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ASSENTAMENTOS RURAIS - Universidade Federal Fluminense