XXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Intercom 2000 Grupo de Trabalho de Políticas de Comunicação Uma comparação entre duas propostas para a legislação da comunicação de massa no Brasil1 Guilherme Canela de Souza Godoi2 “Ah, se as pessoas soubessem como são feitas as leis e as salsichas” Otto von Bismarck Resumo Uma das tendências do mundo contemporâneo é a concentração cada vez maior da propriedade nos mais diversos segmentos de mercado. Com o setor de mídia isso não apresenta-se de forma diferente, ao contrário, é aqui que ocorreram as maiores fusões da história do capitalismo. Dada a importância da mídia nos processos de construção da realidade pelos seus espectadores, e aqui fala-se especialmente da comunicação eletrônica de massa, é fundamental que os mais diversos Estados estejam preocupados com a produção de uma legislação à altura para o setor. Esse trabalho, portanto, procurou comparar duas propostas para a legislação destinada ao segmento da comunicação eletrônica de massa. Palavras-chave: Comunicação de Massa, Legislação e Regulação I. INTRODUÇÃO Considerada o quarto poder, ou não, é inegável que a mídia é um ator central no mundo contemporâneo, aliás como o tem sido há bastante tempo. Tal qual o mundo em que ela está inserida, a mídia também vai se transformando ao longo dos anos, acompanhando, geralmente, algumas das tendências da civilização em questão. Duas tendências centrais do atual panorama mundial são também intrínsecas àquilo que vem ocorrendo no campo da mídia: mudança e complexidade. Por essas e outras, nos é, a nós pesquisadores da mídia, um desafio e uma necessidade o acompanhamento incansável deste ator mutante e complexo. Exatamente para não se perder na rapidez incomensurável das mudanças no campo por hora em discussão e, igualmente, para se compreender um pouco melhor sua complexidade, é que estamos desenvolvendo uma abrangente pesquisa – da qual este trabalho é apenas um recorte – acerca do panorama da mídia, especialmente, do caso brasileiro. Uma das mudanças pela qual passa o setor de comunicações atualmente, talvez a mais significativa, constitui-se no processo de fusões, aquisições, joint ventures, associações e outras variantes para designar o fenômeno de namoro e às vezes casamento dos grandes conglomerados de mídia. Assim, fusões de empresas como Aol e Time Warner, no âmbito global, e a associação de Globo e Folha (e desta com a Abril e O Estado de São Paulo), no âmbito nacional, trazem uma dose elevada de preocupação para os rumos da democracia, visto que a mídia, especialmente a comunicação eletrônica de massa, tem um papel central na formação cultural e no modo como as pessoas (cidadãos e eleitores) tecem suas elaborações acerca da realidade. Pois bem. O capitalismo tem se caracterizado ao longo das últimas décadas por uma retirada cada vez maior do Estado dos mais diversos setores da economia, não foi ou é diferente com o setor de mídia. No entanto, para que os seus cidadãos não fiquem, exclusivamente, sob os cuidados do mercado, muitos Estados têm adotado políticas regulatórias para todos os setores que mereçam tal atitude, isto é, legislações específicas que procuram traduzir como as empresas, no nosso caso as empresas3 de comunicação eletrônica de massa, devem se comportar são produzidas pelos parlamentos nacionais. Assim sendo, é fundamental que uma importância especial seja dada à legislação concernente aos meios de comunicação eletrônica de massa, dada a centralidade da mídia nas sociedades contemporâneas. No caso Brasileiro, que é o que nos interessa aqui, a legislação para o setor é de 19624, legislação essa que, portanto, não reflete mais as incalculáveis mudanças que ocorreram nesse setor desde então. Há uma percepção por parte do governo federal de que essa legislação precisa ser atualizada, ou até mesmo radicalmente alterada. Como esse é um setor que envolve interesses poderosíssimos, muitas são as áreas de discordância, sendo que duas propostas de legislação, bastante diferentes, já circularam pela rede mundial de computadores. A seguir traçar-se-á uma comparação entre os principais pontos dessas propostas. II. AS PROPOSTAS Circulou na web, a partir de um documento publicado no site AcessoCom <www.acessocom.com.br >, a quinta e última versão da Lei de Comunicação Eletrônica de Massa produzida ainda na gestão do falecido ministro Sérgio Motta5. O que seria outra versão (a sexta) da futura Lei foi disponibilizada pelo site <www.anatele.com.br>, tendo sido, o referido texto, obtido pela jornalista Dorian Vaz, da equipe do Telecom Online.6 Partindo, dessas duas propostas (uma reconhecida como produzida pela equipe do ex-ministro Sérgio Motta e a outra como, supostamente, produzida pela equipe do Ministro João Pimenta da Veiga) faremos algumas comparações entre os dois textos. É possível que estejamos vivendo paradoxo semelhante àquele vivenciado por Brás Cubas, no clássico machadiano. Lá, ele era um defunto autor e não um autor defunto; aqui falaremos de uma lei que pelo menos oficialmente não existe, mas é importante, e não de uma lei importante que exista, ou que pelo menos esteja em discussão na sociedade... Seja como for, foi de extrema utilidade pública que esta versão "secreta" tenha sido divulgada, ainda que tardiamente. A futura lei, como reconheceu o próprio ministro Pimenta da Veiga em audiência pública na Câmara dos Deputados, será uma das mais importantes que o parlamento votará nos próximos anos. Disse-o também o ex-ministro Mendonça de Barros, em entrevista a este pesquisador, comentando as pendências da agenda do ministro Sérgio Motta para as comunicações. A única questão que vai ficar pendente, e se alguma coisa aconteceu desde o Sérgio Motta vivo até hoje e ficou mais difícil [é isso], é a questão do soft [ que para o ministro Mendonça de Barros é exatamente a questão a ser regulada pela Lei de Comunicação Eletrônica de Massa]1. 1 A transcrição integral da entrevista pode ser encontrada em GODOI (1999). Veja-se, então, que para ser completado o processo revolucionário (bom ou ruim, não é o intuito aqui julgar) pelo qual vêm passando as comunicações brasileiras desde a promulgação da Lei do Cabo em janeiro de 1995 faltam dois setores: o dos Correios, cuja lei já foi enviada ao Congresso Nacional, e o da Radiodifusão, cuja lei ainda não foi posta em consulta pública pelo Ministério das Comunicações. O que aqui se pretende é analisar brevemente e questionar alguns pontos importantes das duas versões da lei que circulou pela Internet. O objetivo é estimular a discussão da sociedade sobre esta legislação de significativo impacto para os cidadãos brasileiros, visto que trata de uma de nossas instituições mais importantes e ao mesmo tempo mais problemáticas: a televisão. Feitos esses esclarecimentos introdutórios, passemos às comparações. III. A AGÊNCIA REGULADORA Um dos pontos centrais da versão 57 é a instituição de uma agência reguladora para a fiscalização do setor de radiodifusão. Diz a versão em seu Artigo II.1: "Compete à União, por intermédio da Agência Nacional de Telecomunicações, como órgão regulador, nos termos das políticas estabelecidas pelos poderes Executivo e Legislativo, organizar a prestação dos serviços de comunicação eletrônica de massa." Observe-se que, ainda que seja extremamente importante a existência de um órgão regulador para o setor, há sérias dúvidas quanto ao estabelecimento da Anatel para esta função. Seria a Anatel a agência ideal para exercer essa função? Não se deveria criar uma agência específica para fiscalizar esse setor? Como fica o já constitucionalmente criado Conselho de Comunicação Social (Constituição Federal, Art. 224), ao qual a presente lei não faz nenhuma menção? O problema aqui é saber se haverá eficácia em se atribuir esta função substancialmente política a uma agência como a Anatel, que até o momento tem se ocupado das regulações técnico-econômicas do setor de comunicações. A grande preocupação é que nem uma nem outra questão venham a ser devidamente reguladas. Parece estranho, além do mais, a possibilidade de haver dois fóruns para a fiscalização desse setor, a Anatel e o Conselho de Comunicação Social. Ou seja: é importante que haja regulação, mas é fundamental que funcione efetivamente. Em resumo, é preciso pensar com cuidado o modelo da agência reguladora do setor de radiodifusão. Para aquecer o debate, eis a opinião do ex-ministro Mendonça de Barros sobre o tema: "A minha posição é que a Anatel é a agência reguladora de hard . Aí você precisa ver se fica no ministério ou se se cria outra agência para o soft , são duas coisas completamente diferentes. O soft é político, o hard é técnico. O que eu quero dizer é que não dá para misturar as duas coisas. A função da Anatel é fiscalizar para que não deixe de haver concorrência no hard, para que ninguém tenha todas as freqüências. [...] E quando eu falei com o presidente, disse: presidente, essa é a questão central [a da regulação do soft ]... e eu não quero por isso na Anatel, porque aí você está misturando duas coisas distintas. E eu conversei com o Guerreiro e ele concordou comigo." 8 No entanto, o presidente da Anatel9, Renato Navarro Guerreiro, em recente entrevista ao autor, afirmou que a agência deveria ficar responsável pela fiscalização também da radiodifusão, como previsto no projeto de Sérgio Motta. Disse, adicionalmente, que a Agência já conta com a estrutura para tanto, sendo que seria necessária a contratação de mais 40 pessoas para a incorporação dessa nova função. Guerreiro, contudo, lembrou que agência não tem a função de elaborar políticas, logo, ela poderia fiscalizar a porcentagem, por exemplo, de programação regional ou jornalística das redes, mas não teria (ou não deveria ter) a função de estabelecer qual é essa porcentagem. Para o Senador José Fogaça10 (PMDB/RS) – que foi o relator da Lei Geral de Comunicações, pela qual se criou a Anatel – o Conselho de Comunicação Social deve ser esquecido e uma agência – Anacom – separada da Anatel deveria ser criada para regulação da Comunicação Eletrônica de Massa, tal qual pensa o ex-Ministro Mendonça de Barros. Como já foi mencionado, para o Ministro Sérgio Motta (e sua equipe) a Anatel deveria ser transformada numa super agência – também denominada Anacom – que englobaria, além das atuais atribuições, os setores de radiodifusão e correios11. No que diz respeito ao órgão regulador houve algumas mudanças significativas quando se olha para a versão 6. Ainda que se estabeleça a Anatel como o órgão regulador, o que já foi discutido no artigo acima, a lei diz, em seu artigo 191: "O Poder Executivo constituirá comissão especial para discutir e propor o calendário e a forma de transição das funções reguladoras dos serviços de radiodifusão e de retransmissão de televisão para a Agência Nacional de Telecomunicações - Anatel. Parágrafo único. Até que sejam aprovadas as propostas da comissão especial, o Ministério das Comunicações permanecerá exercendo as funções reguladoras dos serviços de radiodifusão e de retransmissão de televisão.” Observe-se que não são estabelecidos prazos máximos para a transferência das competências para o órgão regulador. Não teríamos outro fracasso como Conselho de Comunicação Social? O artigo 5 da versão ora em discussão imprime mais uma derrota a todo conceito de regulação que este governo vinha implementando. Isso ocorreu pela adição do inciso III (não havia na versão anterior), o qual concede ao Poder Executivo (e não à Agência Reguladora como determinavam os incisos II, II e IV do artigo III.2 da versão anterior) o poder de "outorgar e renovar concessão para os serviços de radiodifusão comercial”. Ou seja, a grande mudança, propalada pelo então ministro Sérgio Motta, no que se refere à transparência no processo de outorgas poderá ficar prejudicada diante da continuação da condução dessa atividade pelo Ministério das Comunicações. Como esta sexta versão não concede o caráter de Poder Concedente ao órgão regulador, no seu artigo 61, inciso IX, ela (a versão) institui que o foro competente para a solução judicial das divergências contratuais será a Justiça Federal do Distrito Federal ao contrário do que faz a versão antiga em seu artigo V.18, inciso IX, 2 , que estabelece o Poder Concedente como o foro. Por fim , órgão regulador parece ter perdido seu "poder de polícia", já que a expressão foi retirada do artigo 143, 2 , da nova versão. IV. A FALÁCIA DA AUTO-REGULAMENTAÇÃO No Título II12 – Dos Deveres do Poder Público e dos Direitos dos Usuários – artigo II.2, o qual versa sobre os deveres do poder público, há pontos que devem ser amplamente debatidos. A lei fala, nos incisos I, II e VI do artigo mencionado, em "diversidade das fontes de informação", "diversidade da propriedade", "garantir ao público o direito de escolha do que ver e ouvir". Será que o órgão regulador está realmente dotado dos dispositivos necessários à execução desses deveres? Ou serão essas mais algumas das inúmeras proposições que não passarão de anseios do legislador? Ainda no que diz respeito aos deveres do Poder Público, há algumas contradições. Uma, central, é a que encontramos no inciso XI ( "estimular a auto-regulamentação entre as prestadoras de serviços ..."). Ora, se o governo, com esta lei, pretende instituir um órgão regulador com "poderes de polícia"13 sobre o setor, por que a introdução desta falácia da auto-regulamentação? Veja-se que outras experiências de auto-regulação, como no caso da propaganda, ou até mesmo no caso da Televisão14, não têm funcionado adequadamente para o caso brasileiro. V - AS LIMITAÇÕES DA PROPRIEDADE No artigo III.1 (versão 5) o governo faz uso do mesmo artifício inserido na Lei Geral de Telecomunicações no que diz respeito à porcentagem da participação estrangeira no setor. Isto é, observados os limites máximos constitucionais15, o Poder Executivo, por decreto, poderá estabelecer as cotas de participação estrangeira. No caso Telebrás, como permitia a LGT, o presidente liberou essa participação ao nível de 100% Os Artigos IV.16 a IV.20 (versão 5) tratam das limitações na propriedade no setor. Aqui, ainda que de forma não totalmente satisfatória, houve uma preocupação o que não ocorreu na Lei do Cabo, por exemplo de evitar a propriedade cruzada no setor. Veja-se a redação do Art. IV.20 inciso V: "Art. IV 20 - Nenhuma pessoa natural, jurídica ou sua coligada poderá, direta ou indiretamente, possuir, controlar ou operar: V - na mesma localidade, prestadora de serviço de TV a cabo e: a) de distribuição de sinais multicanal terrestre; ou, b) de radiodifusão de sons e imagens; ou, c) de serviço telefônico fixo comutado de âmbito local prestado no regime público, salvo nas condições desta lei. Parágrafo único. O disposto nas alíneas 'a' e 'b' do inciso V do 'caput' deste artigo vigorará após três anos da data da publicação da presente lei, mantidos, até seu termo final, os prazos das concessões ou permissões vigentes até aquela data." No entanto, há muitos pontos conectados a esta questão central do controle da propriedade que estão dispostos na lei da seguinte forma: "Dependerão de prévia aprovação da Agência". E aí, novamente, somos conduzidos à discussão de quão eficaz será essa agência nos moldes que estão sendo propostos, e naqueles que eventualmente vierem a ser propostos no futuro. Na versão 6 o citado e importante inciso foi suprimido, o que, novamente, reforça a percepção de que esta é uma proposta que em muito agrada os proprietários do setor.16 Uma mudança substancial em relação à propriedade no setor configurou-se na supressão da obrigatoriedade constante no artigo V.97 da versão 5 de que 51% das ações das empresas de TV à cabo fossem de capital nacional. VI - A QUESTÃO DO CONTEÚDO O Título IV (versão 5) traz algumas inovações (no caso brasileiro, em relação ao que havia até o momento) ao problema do conteúdo no setor.17 O Artigo IV.30 fala da fabricação de "receptores de televisão" com um "dispositivo eletrônico que permita o recebimento de informações referentes à classificação de programas e o bloqueio, pelo usuário, de recepção de programas distribuídos por prestadora de serviços de comunicação eletrônica de massa". Ou seja, a proposta sugere a implementação do V-Chip que permitiria uma espécie de controle por parte dos próprios espectadores (pais, notadamente, em relação aos filhos), o que, dada a baixa escolarização da sociedade brasileira e a falta de opções de programação no caso da TV aberta, não é suficiente. O artigo IV.33 tem a seguinte redação: "A Agência instituirá comissão consultiva, com representação de setores da sociedade, para propor o estabelecimento de, no mínimo, um sistema de classificação de programas que, após consulta pública, será colocado à disposição do usuário. Parágrafo único. A Agência estimulará as entidades e a sociedade em geral a propor outros sistemas de classificação de programas, que serão colocados à disposição do usuário, a fim de que este possa optar, entre os disponíveis, pelo sistema que utilizará." O grande problema com relação a este título está em seu último artigo. Diz o artigo IV.35: "A Agência estabelecerá condições para o cumprimento e cronograma para a vigência das obrigações previstas neste título". Não poderemos, novamente, ter aqui outro caso temporal desastroso como o do Conselho de Comunicação Social ou do Ouvidor Geral da Anatel? A questão é: quando? Insiste-se aqui na problemática de definir-se prazos para as propostas, do contrário, a sociedade pode receber uma lei que não venha a produzir os efeitos desejáveis. O Capítulo IV (versão 5) trata de um tema polêmico do conteúdo da programação cuja discussão, do ponto de vista governamental, vem sendo postergada há muito tempo, excentuando-se as iniciativas do ex-secretário nacional de Direitos Humanos, José Gregori. Este capítulo permite à agência estabelecer percentuais mínimos de diversos segmentos da programação (língua portuguesa, programas jornalísticos, regionais etc.). Há alguns meses, a Anatel abriu licitação para a aquisição de um equipamento de rádiovideometria que permite, exatamente, controlar as porcentagens dos conteúdos mínimos da programação diária. São temerárias, entretanto, como bem lembram os comentários do Indecs18, as porcentagens estabelecidas pela lei: 4% para programação regional e 5% para serviços noticiosos. Além disso, os artigos V.50 e V.51, que estabelecem essas porcentagem, não estipulam a faixa de horário de veiculação. Isto é, poderemos ter programação regional às três da madrugada, como já acontece em locais onde a legislação cometeu o mesmo erro (caso do México). O artigo V.56 versa sobre os programas de cunho educativo que devem ser dirigidos às crianças e obrigatoriamente transmitidos pelas prestadoras numa carga horária, irrisória, de três horas semanais (ainda que, desta vez, tenha sido estipulada a faixa de horário). De qualquer forma, os dois artigos seguintes, V.57 e V.58, trazem algumas imposições interessantes quanto ao tipo de publicidade que pode ser veiculado nos programas infantis. Veremos que mudanças significativas também ocorreram. A versão atual reduz para apenas e mais irrisórios ainda 2% a quantidade de programas regionais que devem ser transmitidos pela concessionária. Enquanto a versão 5 acabava com a obrigatoriedade da Voz do Brasil (programa oficial de informações dos poderes da República), a versão Pimenta apenas flexibiliza o horário em que o mesmo deve ser obrigatoriamente transmitido. E mais: todo o artigo V.58 da antiga versão foi suprimido. Ei-lo: "Art. V 58 - Será vedada, nos programas dedicados à criança e nos respectivos intervalos, a veiculação de publicidade que: I - explore a confiança que a criança deposita especialmente nos pais e professores; II - contribua para a criação de situação perigosa para a criança; 111 - induza a criança a acreditar que poderá obter prestígio ou poder com a posse de bens de consumo; IV - estimule a prática de atos de violência." VII – AS CONSULTAS PÚBLICAS Um outro importante instrumento que tem, até certo ponto, permitido uma maior transparência nas ações dos órgãos reguladores até o momento foi, em grande medida, suprimido pela última versão: a consulta pública. Eis alguns exemplos: o inciso I, do artigo III.4, da versão 5, o qual submetia a consulta pública os contratos de afiliação, foi suprimido na versão 6; o artigo 59 dessa mesma versão abole a necessidade de se submeter a consulta pública a minuta do instrumento convocatório para a licitação dos serviços; a consulta pública quando da regulamentação dos procedimentos para a renovação da concessão também foi suprimida. VIII – AS SANÇÕES As sanções (aqui vale ter em mente as pressões que os empresários do setor de mass media estariam fazendo junto ao ministério) também foram versão 6. A multa diária desaparece do artigo 145 da nova lei; as multas caem de um máximo de 50 milhões para um máximo de 10 milhões; no caso das sanções restritivas de direito (artigo 150) foi retirado o inciso III "Acréscimo do percentual de tempo destinado à difusão de programas voltados à educação". Os incisos XIV e XV do artigo 154 (infrações graves) da atual versão, eram tratados como de infrações gravíssimas na versão anterior. São eles: "XIV - possibilitar que detentor de imunidade parlamentar ou de privilégio de foro exerça função de direção na prestadora de serviço; XV - deixar de recolher taxa de fiscalização e de funcionamento no prazo legal;" Uma das modificações mais gritantes que se pode encontrar na versão 6 está no seu artigo 158, o qual trata do procedimento administrativo. É simplesmente subtraído o prazo de 90 dias para autoridade competente julgar quanto ao cabimento da penalidade à prestadora de serviços, isto é, como está os processos poderiam enrolar ad infinitum . IX – OUTRAS DIFERENÇAS Abaixo estamos transcrevem-se alguns outros pontos da lei que sofreram modificações de uma versão para outra19. Veja-se que, dada as limitações de espaço, esses artigos não são acompanhados de comentários mais aprofundados, no entanto, faz-se importante perceber as diferenças, às vezes sutis, entre os mesmos, já que todos ou mostram os diferentes interesses ao redor da questão, ou remetem à mudanças cruciais (para pior), do ponto de vista da sociedade brasileira: § 1º A universalização consiste em possibilitar, a qualquer pessoa, o acesso a serviço de radiodifusão, independentemente de sua condição sócio-econônica e do local em que se encontrar. (artigo V.4) § 1º O processo de universalização consiste em possibilitar a existência de sinais de radiodifusão sujeitos à regulamentação brasileira em qualquer parte do território nacional. (artigo 47) Aqui há clássica dicotomia entre liberalismo e igualitarismo, na versão 5 assegurase acesso igual a todos, enquanto na 6 assegura-se que o sinal estará disponível nas diferentes regiões (e todos têm a liberdade, de algum modo, conseguí-los). Art. V 13 - As concessões não terão caráter de exclusividade. Parágrafo único. Ressalvadas as restrições de caráter técnico, o número de canais previsto para cada localidade será definido de modo a incentivar a competição. Art. 57 - Ressalvadas as restrições de caráter técnico, o número de canais previsto para cada localidade será definido de modo a otimizar a prestação de serviços à população. Aqui há, novamente, uma proteção aos interesses das empresas já estabelecidas e dominantes no mercado, visto que a exigência de assegurar a competição é suprimida. Art. V 43 - A Agência tem legitimidade para a propositura da ação visando a extinção judicial da permissão, a que alude o § 4º do art. 223 da Constituição Federal. Art. 67 - A União é parte legítima para a propositura da ação visando a extinção judicial da concessão a que alude o 4 do art. 223 da Constituição Federal. Mais uma vez a agência perde poderes na versão 6. Um dos instrumentos mais significativos de coerção para com as empresas é a possibilidade de cassação da licença, que, pela versão, 6 continua nas mãos da União, provavelmente seguindo o papel histórico de barganha política existente nesse setor. Art. V 63 - É vedada a inserção de dispositivos em contratos, ajustes, acordos ou entendimentos, estabelecidos entre cabeça-de-rede e afiliada, que: I - dificultem ou impeçam a afiliada de rejeitar programas oferecidos pela cabeça-de-rede, quando os considerar inconvenientes à comunidade atendida; II - dificultem ou impeçam a afiliada de rejeitar programas oferecidos ou já contratados com a cabeça-de-rede, quando os considerar contrários ao interesse público; III - obriguem a afiliada a substituir programa de relevante interesse local ou nacional; IV - obriguem a renovação do contrato de afiliação por mais de dois anos. V - dificultem, penalizem ou proíbam a afiliada de fixar ou alterar preços para comercialização de seu tempo destinado à inserção de publicidade local. Art. V 64 - É vedada a opção de uso de tempo, caracterizada pela inserção de dispositivos em contratos, ajustes, acordos ou entendimentos, estabelecidos entre cabeça-de-rede e afiliada, que dêem à primeira a possibilidade de uso de tempo da segunda, ou dos quais resulte efeito equivalente, mediante: I - proibição de estabelecimento, pela afiliada, de horário de programas, sem anuência da cabeça-de-rede; II - imposição de obrigação à afiliada de abrir espaço que utilizava, para programação que a cabeça-de-rede venha a exibir posteriormente. Art. V 65 - São vedadas a exclusividade de afiliação e a exclusividade territorial. 1 . Caracterizam exclusividade de afiliação os dispositivos dos contratos, ajustes, acordos ou entendimentos, estabelecidos entre cabeça-de-rede e afiliada, que dificultem penalizem ou impeçam esta última de transmitir programa. 2 Caracterizam exclusividade territorial os dispositivos dos contratos, ajustes, acordos ou entendimentos, estabelecidos entre cabeça-de-rede e afiliada, que impeçam ou dificultem: I - a transmissão, por outra prestadora, de programas da cabeça-de-rede não contratados pela Afiliada; II - a transmissão de qualquer programa da cabeça-de-rede, por prestadora que sirva área substancialmente diferente da servida pela afiliada. 3 A cabeça-de-rede poderá conceder direito de preferência para transmissão de seus programas à afiliada. Art. V 66 - Os contratos, ajustes, acordos ou entendimentos estabelecidos entre cabeça-derede e afiliada não poderão se sobrepor à responsabilidade destas prestadoras, nem retirar-lhes os instrumentos necessários ao cumprimento das obrigações legais e regulamentares, em prejuízo da comunidade servida, conforme regulamentação da Agência. Os artigos (63, 64, 65, 66) acima foram suprimidos da versão Pimenta. Redes poderosas de televisão, como a Rede Globo, não têm interesse que suas afiliadas tenham, legalmente, uma postura mais autônoma. Vê-se que esses interesses foram atendidos plenamente na versão 6. X – CONCLUSÃO Ao contrário da caminhada dantesca saímos do purgatório para ir direto ao inferno. Felizmente, entretanto, a lei ainda vai ser submetida a consulta pública (?) e, de qualquer modo, passará pelo Congresso, momentos nos quais a sociedade, por intermédio de seus representantes, poderá realizar a tentativa de alterar alguns dos "horrores" cometidos. Mais do que isso a sociedade deve cobrar para que a lei seja posta em consulta pública o quanto antes, pois não é legítimo que uma modificação de tal envergadura não seja, devidamente, discutida com a sociedade. Vale lembrar que o Telecommunications Act contou com audiências públicas nos Estados Unidos durante sete anos, antes de ser aprovado. 1 O autor, gentilmente, agradece todos os entrevistados que colaboraram com parcela significativa de seu tempo para a elucidação de questões cruciais para esse trabalho. Agradeço também os comentários e a oportunidade, sempre enriquecedora, de discutir esse e outros temas com uma brilhante pesquisadora, Railssa Peluti Alencar. Lembro, no entanto, que todas as possíveis falhas são de minha inteira responsabilidade. 2 <[email protected]> Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política – NEMP, Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – CEAM, Universidade de Brasília – UnB 3 Incluindo aqui as empresas públicas, exemplo da TV Cultura/SP. 4 Lei número 4117, de 27 de agosto de 1962. 5 A versão disponibilizada no referido site é, realmente, a versão entregue ao então ministro interino do Ministério das Comunicações, Juarez Quadros, pelo coordenador da comissão interna do ministério que preparou o anteprojeto de lei, Sr. Ronaldo Albuquerque Sá. O próprio Sr. Sá confirmou, em entrevista, este dado ao pesquisador [Cf. GODOI, Guilherme Canela de Souza – As comunicações no processo de globalização e os rumos da democracia. Relatório final a ser apresentado ao PIBIC/UnB/CNPq. Brasília: julho de 2000]. 6 O Ministério das Comunicações nega veementemente que esse documento seja a sexta versão da futura Lei. Nesse sentido, o consideraremos aqui como sendo uma proposta adicional para as discussões acerca do assunto. No entanto, vale ressaltar que segundo a fonte que a disponibilizou, essa versão, à época, já teria sido enviada à Casa Civil da Presidência da República para análise. 7 Para efeitos didáticos chamar-se-á de versão 5 aquela que foi produzida ainda na gestão Sérgio Motta e de versão 6 aquela que, supostamente, foi produzida na gestão Pimenta da Veiga. 8 Ver GODOI, Guilherme Canela de Souza – As comunicações no processo de globalização e os rumos da democracia. Relatório final apresentado ao PIBIC/UnB/CNPq. Brasília: agosto de 1999. 9 Para conferir a entrevista na íntegra ver GODOI (2000), op. cit. 10 Ibidem. 11 Ver PRATA, José, Nirlando Beirão e Teiji Tomioka – Sérgio Motta: o trator em ação. São Paulo: Geração Editorial, 1999, p. 449. 12 Aqui as proposições são semelhantes para as duas versões. 13 Pelo menos na versão 5 era essa a idéia. 14 Ver as inúmeras tentativas do então secretário nacional de Direitos Humanos, hoje Ministro da Justiça, José Gregori em instituir um código de ética para as televisões. 15 Ver Constituição Federal art. 222, bem como a nova redação do artigo proposta pelo deputado Henrique Alves, e que está em discussão na Câmara dos Deputados. 16 Há muitas sugestões de que essa versão 6 teria tido a participação ativa da Abert em sua formulação.. [Cf. FERNANDES, Bob – “Direitos adquiridos”, in: Carta Capital, ano VI, nº 116, 16/02/2000, pp. 28-34 e RAMOS, Murilo – “Comunicação é Poder”, in: Carta Capital, ano VI, nº 116, 16/02/2000, p. 33] 17 O Indecs <www.indecs.org.br> produziu alguns comentários sobre esta versão da lei que, no geral, são muito pertinentes, e merecem ser conferidos especialmente os referentes a este título. 18 Ibidem. 19 Os textos em itálico são os da versão 5 e os demais os da versão 6.