Prefácio Tal como O contexto da obra literária,1 que amplia e renova, este livro não é um manual voltado para resumir as realizações de uma disciplina estabelecida; o terreno que ele percorre se acha em constituição. No refluxo do estruturalismo dos anos 1960-1970, desenvolveram-se múltiplas problemáticas que, em alguns casos, apesar de si mesmas, questionaram a própria concepção de literatura vigente desde o final do século XVIII. De início marginais, essas problemáticas estão hoje em primeiro plano. As teorias da enunciação lingüística, as múltiplas correntes da pragmática e da análise do discurso, o desenvolvimento no campo literário de trabalhos que recorrem a Bakhtin, à retórica, à teoria da recepção, à intertextualidade, à sociocrítica etc., impuseram progressivamente uma nova apreensão do fato literário na qual o dito e o dizer, o texto e o contexto, são indissociáveis. Muitos pesquisadores levaram na devida conta essa transformação, mas a maioria continua a raciocinar nos termos dos esquemas tradicionais, sem se dar de conta de que a conjuntura que lhes conferia sentido desapareceu. Preservou-se, com efeito, até este momento a doxa que tornou possível a distinção entre história literária e estilística e, de modo mais amplo, entre as 1 Dominique Maingueneau, O contexto da obra literária, São Paulo, Martins Fontes, 1995. 7 Discurso literário abordagens “externa” e “interna” dos textos. Mais do que isso, muitas vezes ela foi reforçada nos anos 1960, tendo-se levado ao paroxismo a concepção “autotélica” da literatura que se impusera com o romantismo, alcançando seu ponto culminante no final do século XIX. O que se acha prestes a ruir não é apenas nosso “olhar” sobre a literatura, mas o próprio espaço a partir do qual a apreendemos. A metáfora ótica (nosso “olhar”, nossa “visão” da literatura) não é isenta de riscos, pois permite pensar que haveria um objeto estável – a literatura – cujas propriedades poderíamos melhor apreender se melhorássemos nossos instrumentos de percepção. Isso deixa de lado o fato de que esse “objeto” se transforma de acordo com os instrumentos. “Objeto” e “sujeito” se acham em permanente interação no âmbito de práticas e instituições que, a diversos títulos, se ocupam dos textos. A constituição de “objetos” e de procedimentos de análise varia de acordo com o estatuto dos agentes, bem como dos lugares que estes ocupam na produção e na circulação dos discursos. Esse aggiornamento [secularização], ao dar acesso a modalidades do discurso literário que não advêm da concepção romântica do “estilo”, permite em particular tornar legível uma multiplicidade de textos dos mais diversos gêneros. Não podemos continuar a agir como se categorias como as de “autor”, de “originalidade”, de “imitação” etc. fossem intemporais. Quando se diz que essa ou aquela obra literária não tem grande mérito porque contém “clichês demais”, porque é poesia “oficial” ou “literatura de salão”, porque lhes “falta originalidade” ou “sinceridade”, mostra-se apenas que a apreensão que delas se faz não usa os critérios adequados. Tanto neste livro como em O contexto da obra literária, interessam-me sobretudo as condições de emergência das obras e, portanto, o pólo da criação. Mas a análise do discurso está longe de reduzir-se a isso; conhece-se em particular tudo o que é feito em torno das práticas de leitura e dos quadros sociais e históricos da recepção, das condições materiais de inscrição e de circulação dos enunciados, de discursos produzidos pelas diversas instituições que contribuem para avaliar e dotar de sentido a produção e o consumo de obras literárias (de modo particular, os meios de comunicação e a escola). Mesmo que a isso limitássemos nossas ambições, a tarefa se mostra bastante delicada. Não só porque na maior parte do tempo não vamos além de abrir canteiros, mas também por haver certa contradição entre a 8 Prefácio linearidade da maneira de exposição que uma obra como esta impõe e a complexidade do sistema que se espera que ela apresente, sistema cujas diversas instâncias interagem, e dinamicamente: gênero de texto, intertextualidade, mídium, modo de vida dos escritores, posicionamento estético, cena de enunciação, temática etc. Vamos por isso ter de retomar certas questões de uma seção para outra sob ângulos distintos. A própria noção de “discurso literário” é problemática. Ela parece pressupor que, por proximidade de gênero e diferença específica, haveria uma categoria correspondente a um subconjunto bem definido da produção literária de uma dada sociedade, o discurso literário. Ora, somente no século XIX ocorreu uma real autonomização da literatura, que se tornou um “campo”, assunto de grupos de artistas independentes e especializados que pretendem só reconhecer as regras por eles mesmos estabelecidas. Na realidade, como o mostrou bem Bourdieu, esse campo é atravessado por um conflito permanente entre “a produção restrita” da vanguarda, que pretende não fazer nenhuma concessão, e uma produção submetida à lei econômica, dedicada a atender às expectativas de um público amplo. O uso de “discurso literário” mostra-se, pois, arriscado para abordar regimes da literatura que não o prevalecente há dois séculos, e cuja perenidade, por outro lado, não está garantida. Portanto, “discurso literário” soa ambíguo. De um lado, designa em nossa sociedade um verdadeiro tipo de discurso, vinculado a um estatuto pragmático relativamente bem caracterizado; de outro, é um rótulo que não designa uma unidade estável, mas permite agrupar um conjunto de fenômenos que são parte de épocas e sociedades muito diversas entre si. Seria talvez necessário introduzir aqui uma distinção entre o discurso literário, reservado ao regime da literatura moderna, e a discursividade literária, que acolhe as mais diversas configurações, admitindo assim uma irredutível dispersão de discursos literários. Não obstante, esses esforços de terapia terminológica podem não passar de letra morta, restringindo-se a deslocar o problema para o adjetivo “literário”. O mais simples é, sem dúvida, ter consciência desse duplo estatuto, que é, por outro lado, moeda corrente nas ciências humanas e sociais. Estaria em contradição com nosso projeto fazer uma proposta que se pretendesse aplicável sem alterações a obras de todas as épocas e de todos os países. Claro que existem restrições vinculadas ao fato literário enquanto tal, e que assumem diferentes ênfases a depender da configuração histórica. 9 Discurso literário Por uma questão de eficácia, contudo, pareceu-nos desejável concentrar nossos esforços num período que tem a dupla vantagem de definir um conveniente recorte histórico. Tomaremos a maioria de nossos exemplos da literatura ocidental, sobretudo francesa, entre os séculos XVI e XX, sem por isso deixar de fazer incursões fora desse corpus de referência. 10