Giant Steps: análise de um improviso Como funciona a improvisação que Coltrane cria em Giant Steps? Qual o critério, o pensamento que ele percorre para sua criação extemporânea? Análise de um improviso Na edição passada analisamos a composição Giant Steps, do saxofonista John Coltrane, observando suas características harmônicas e compositivas. Dissemos que a composição está baseada em três pontos tonais equidistantes: Eb, G e B. Ao analisarmos a harmonia em volta desses três pontos, observamos a presença de seus acordes de dominante (V7) e de seus segundos cadenciais (II-V7). Vejamos a tabela a seguir e a partitura da música: A música é composta apenas pelos acordes da tabela acima. A novidade compositiva reside, como dissemos anteriormente, no emprego de três pontos tonais equidistantes, buscando eludir a centralidade de uma tônica como ponto de convergência harmônico-melódica. Essa foi a “novidade” proposta, já o emprego de dominantes e de II-V é algo comum na linguagem tonal. A improvisação sobre Giant Steps Como funciona a improvisação que Coltrane cria nessa música? Qual o critério, o pensamento que ele percorre para sua criação extemporânea? Antes de procedermos à análise do improviso, podemos assistir a esse vídeo do youtube, criado por algum estudioso ou admirador dessa música: O efeito sonoro da improvisação coltraneana nessa música é incrível, não é? Vamos, então, observar sua melodia “ao microscópio”, para descobrir seus “segredos”. Para isso, preparei uma transcrição, ao longo da qual indiquei os graus da melodia em sua relação com seus acordes. Os números em vermelho indicam as notas da melodia que pertencem aos acordes, isto é, as notas dos arpejos (1-3-5-7). Logo observamos a grande quantidade de notas de acorde, que chamo, também, de “notas alvo” (tenha acesso a esse conceito nesse estudo): Indiquei com a cor verde as notas de passagem, como o 2º grau ou o 6º. As áreas indicadas com os quadrados cor-de-rosa, indicam notas – ou grupos de notas – de aproximação à nota sucessiva (ou à última nota do grupo) - para aprofundar esse conceito, refira-se ao documento em pdf citado acima. Mais uma observação, antes de começarmos a análise: na partitura, mantive a indicação “Maj7”, que significa sétima maior, ao invés de escrever “7M”, indicação usada no Brasil. Isso porque não descobri, de jeito nenhum, como escrever “7M” no Sibelius! Analisaremos apenas o primeiro chorus do improviso, que oferece vários elementos interessantes para a análise. - O solo começa no compasso 17, em que se encontra o II-V7 de BMaj7, primeiro acorde do chorus da música. Neste compasso, temos o arpejo de C#m7 (1-3-5-7), cuja última nota (o si natural), cria uma nota de aproximação cromática superior à nota lá#, 3º grau de F#7. A última nota do compasso 17, sol#, é, também, uma nota de aproximação à primeira nota do compasso 18, em que temos um arpejo sobre BMaj7. - Sobre o acorde D7 do compasso 18, encontramos a sequência de notas 1-2-3-5. Essa é uma sequência bastante recorrente ao longo do solo. No trecho que analisamos, observamos, por exemplo, sua presença nos compassos 23, 28, 30, 32. De fato, a adição do 2º grau a uma tríade – maior ou menor – enriquece muito sua sonoridade, possibilitando, a criação de grupos de quatro notas, muito úteis aos improvisos. - Compassos 18-19: a frase sobre D7 resolve no acorde GMaj7, assim como a frase sobre o Bb7 resolve no EbMaj7 do compasso 20. - Notamos a linda frase em arpejos do compasso 21, que resolve sobre a nota si do compasso 22. Este último contém dois arpejos ascendentes. - Compasso 23: sequência 1-2-3-5 sobre cada acorde. - No compasso 26 há uma escala be-bop de Bb7 (*) (*) Para as escalas bebop com função de dominante, veja o estudo: - O compasso 26 é bem interessante: a segunda nota (lá b) constitui uma aproximação à nota sol, terceiro grau de EbMaj7. Seguindo, as notas ré e fá constituem uma dupla aproximação à nota mib; logo depois, temos mais duas notas de aproximação (novamente ré e fá) que preparam a nota mi, do início do compasso 27. A prática de grupos de notas de aproximação que preparam a chegada da nota de resolução, é uma característica marcante do jazz, especialmente a partir da metade da década de 1940, quando se afirma o assim chamado estilo be-bop. - Compasso 28: trecho da escala de sol maior – descendente e, logo depois, ascendente. Observe que o compasso 29 apresenta um desenho parecido com o do compasso anterior, agora adaptado aos novos acordes, criando uma espécie de “cromatização”, em relação à frase anterior. - Compasso 30: novamente uma sequência 1-2-3-5, seguida por um belo cromatismo que se move em direção à nota fá do compasso 31. Na segunda parte deste compasso encontramos um grupo de quatro notas que se movem em direção à sua resolução na nota mib, primeira nota do compasso 32. Aqui temos um arpejo de mib que fecha o primeiro chorus de improviso. Podemos catalogar a abordagem à improvisação de Coltrane na música Giant Steps como “vertical”, isto é, baseada, de forma geral, na condução dos arpejos e na sua preparação/ligação através de cromatismos ou notas de aproximação. Nenhuma novidade, nesse sentido, na improvisação. Todavia, devido à velocidade da música e aos encadeamentos inusitados dos acordes, é preciso estudar de forma peculiar para obtermos um bom resultado estético. Hoje em dia, estamos acostumados à essa música e à suas sequência de acordes. Os estudantes de jazz a têm como um modelo e desafio a ser enfrentado. Mas quando a música apareceu pela primeira vez, em ocasião de sua gravação, improvisar sobre seus acordes causou sérias dores de cabeça aos outros músicos. As sessões de gravação do disco “Giant Steps” tiveram a participação de grandes músicos: além de Coltrane ao saxofone, havia Paul Chambers ao contrabaixo, Art Taylor na bateria, Tommy Flanagan ao piano (Wynton Kelly substituiu Flanagan na música “Naima”). Flanagan era um grande pianista; mas... observem o solo dele na gravação do disco: ele está perdido, esboça umas ideias ao piano, logo depois desiste, deixando um vazio até Coltrane entrar para “pegar de volta” o solo. Antes de Flanagan, outro grande pianista, Cedar Walton, tinha sido chamado para gravar... mas recusou-se a solar. “Aquela música era muito difícil para mim”, afirmou certa vez Walton, em uma entrevista, lamentando ter declinado o solo. “ Eu era muito jovem, deveria ter feito o que Tommy Flanagan fez”. Referia-se à possibilidade de solar “assim como daria”, mas o solo de Flanagan não foi bom, deixando uma “ferida aberta” no coração do próprio pianista. Anos depois Anos depois, quando a música se tornou um cult entre os jazzístas, vários músicos, entre os quais Rahsaan Roland Kirk, Pat Metheny, Buddy Rich, Jaco Pastorius, Mike Stern, Greg Howe, McCoy Tyner, Kenny Werner, Kenny Garrett, Woody Herman, New York Voices, Taylor Eigsti, Gary Bartz gravaram suas versões de Giant Steps. O próprio Tommy Flanagan, em 1982, gravou um disco em homenagem ao defunto Coltrane. O titulo do disco? “Giant Steps – In memory of John Coltrane”. A versão da música no disco de Flanagan é mais lenta, e não me parece deixar nenhuma marca relevante, não obstante os evidentes esforços do pianista para “fazer bonito”. Em 1991, o pianista McCoy Tyner – que foi o “pianista oficial” de Coltrane de 1961 até 1965, além de amigo e parceiro musical – gravou sua versão de “Giant Steps” no disco “Remembering John”. Versão incrível, a de McCoy, nesse disco! Entrevistado a respeito dessa gravação, Flanagan respondeu, bem-humorado: “Bom, ele teve trinta anos para estudar essa música!”. Esse artigo foi publicado na Revista Digital Teclas e Afins nº5 Acesse: www.teclaseafins.com.br Sobre o autor Turi Collura é pianista, compositor, atua como educador musical e palestrante em instituições e festivais de música pelo Brasil. Autor dos métodos “Rítmica e Levadas Brasileiras Para o Piano” e “Piano Bossa Nova”, tem se dedicado ao estudo do piano brasileiro. É autor, também, do método “Improvisação: práticas criativas para a composição melódica”, publicado pela Irmãos Vitale. Em 2012, seu CD autoral “Interferências” foi publicado no Japão. Seu segundo CD faz uma releitura moderna de algumas composições do sambista Noel Rosa. Entre outras atividades, em 2014 Turi está ministrando cursos online em grupo, entre os quais os de “Piano Blues & Boogie”, o de “Improvisação e Composição Melódica” e o de “Bossa Nova”. Lecionou de 2003 a 2012 na Faculdade de Música do Espírito Santo (FAMES), onde coordenou o Departamento de Música Popular, por ele fundado. Ministrou as disciplinas Harmonia, Improvisação, Piano Popular, Prática de Conjunto e História e Estética do Jazz. É Mestre pela UFES, Universidade Federal do Espírito Santo (2011) e pós-graduado pela mesma instituição (2007). Ministra oficinas e workshops em várias instituições brasileiras e internacionais. www.turicollura.com