1 O Regime Automotivo Brasileiro de 1995 e a descentralização industrial: o caso da Região Metropolitana de Curitiba Brazilian Automotive Regime of 1995 and Industrial Decentralization: The Curitiba Metropolitan Region Case Dr. Geraldo Augusto Pinto Universidade Estadual do Oeste do Paraná [email protected] Resumo Partindo de uma revisão bibliográfica, a presente comunicação lança luz a um conjunto de políticas econômicas empreendidas pelo Estado brasileiro na década de 1990 com o objetivo de incentivar a indústria automotiva instalada no país a ampliar sua capacidade produtiva. Por meio do Regime Automotivo decretado em 1995, um significativo aporte de recursos públicos foi utilizado para atrair investimentos externos diretos, visando, inclusive, romper com uma histórica desigualdade regional no desenvolvimento industrial brasileiro. Contudo, segundo apontam os estudos consultados, o desenrolar desse processo não apenas consolidou uma desnacionalização em curso do setor de autopeças brasileiro, como desembocou em uma “guerra fiscal” entre os estados da Federação. Perfazendo uma disputa desorganizada, pautada por ofertas crescentes de benefícios visando atrair os novos empreendimentos, estados e municípios contribuíram para reduzir os custos totais de investimentos dos oligopólios transnacionais da indústria automotiva, uma vez que a ampliação de instalações no país já havia sido decidida anteriormente e no exterior pelas próprias matrizes. Como parte desse cenário, a Região Metropolitana de Curitiba recebeu novas plantas de montadoras, adensando o seu parque industrial e constituindo-se em um dos pólos automotivos mais importantes do Brasil. Palavras-chave: Indústria automotiva – Brasil; Políticas públicas – guerra fiscal; Desenvolvimento regional – Região Metropolitana de Curitiba; Estados nacionais e oligopólios transnacionais; Inovação tecnológica e mudança organizacional – gestão flexível da força de trabalho. Abstract Departing from a bibliographic review, this work sheds light on a set of economic policies employed by the Brazilian State in the 90s intending to encourage automotive industry in the country to expand its productive capacity. By means of the Automotive Regime ruled in 1995, a significant contribution of public resources was used to attract direct external investments, as well as aimed to break with the historical regional inequality in Brazilian industrial development. However, according to the studies researched, the development of this process not only consolidated an en route denationalization of the Brazilian auto-parts sector, but it has also resulted in a “fiscal war” between the federation’s states. Through an unorganized dispute, ruled by increasing offers of benefits aimed at drawing new business, states and municipalities contributed to decreasing total costs of investments of automotive industry transnational oligopolies, since expansion of installations had been previously decided in the country, and by the companies’ own headquarters abroad. As part of this scenario, the 2 metropolitan region of Curitiba has received new automaker plants, densifying its industrial park and consolidating itself as one of the most important automotive poles in Brazil. Keywords: Automotive industry – Brazil; Public policies – fiscal war; Regional development – Curitiba metropolitan region; National States and transnational oligopolies; Technological innovation and organizational change – flexible management of labour power. Três acordos, um decreto – e vence o capital transnacional Visando recuperar-se da crise na década de 1980, a indústria automotiva instalada no Brasil, dada a posição crucial que ocupa na acumulação de base industrial do país, foi palco de controversas políticas públicas. A começar pelo governo Collor (19901992) que, a par de medidas contracionistas, desencadeou uma rápida abertura comercial, provocando elevação nos preços dos veículos, queda nas vendas e redução no emprego em toda a cadeia, levando o governo a se reunir com empresas e trabalhadores na Câmara Setorial Automotiva. Dois acordos resultaram desse encontro, em 1992 e 1993, nos quais basicamente se propuseram redução de preços em certos veículos, manutenção do emprego com correção salarial e planos de investimentos pelas empresas, em troca da redução de impostos e da adoção de incentivos ao crédito interno e às exportações por parte do governo. Fora da Câmara Automotiva, o presidente Itamar Franco (1992-1994) ainda negociou incentivos à fabricação de veículos “populares”, oferecendo isenções de impostos.1 Tais medidas, contudo, geraram graves distorções. Diferenças nas proteções tarifárias dadas às montadoras e às autopeças deixaram as últimas expostas à concorrência das importações, enquanto imprecisões nas cláusulas dos acordos permitiram às primeiras não apenas valer-se da importação de veículos médios e de luxo, com maior tecnologia embarcada, como incluir na definição de “populares” diversos tipos de automóveis, recebendo, com isso, incentivos governamentais nem sempre vinculados a investimentos geradores de novos empregos (BEDÊ, 1996; ROSANDISKI, 1996). Não por acaso, a indústria automotiva vivenciou um boom de crescimento no país, puxado pelas vendas internas e, sobretudo, pelos “populares” (CONCEIÇÃO, 2001). No que diz respeito ao emprego, contudo, o estudo de Rosandiski (1996) nas autopeças 1 Cf. Anderson (1998), Bedê (1996), Conceição (2001) e Satomi e Rodrigues (1997). 3 e montadoras do Estado de São Paulo (onde está a maior concentração dessa indústria), sugere ter havido uma substituição de quadros, tendo as empresas aproveitado a crise de 1989-1992 para demitir operários antigos, substituindo-os por jovens mais escolarizados e sem experiência entre 1993-1994, quando a economia já dava sinais de recuperação. As importações, por sua vez, dada a sobrevalorização e congelamento do câmbio, continuaram em alta, prejudicando severamente o setor de autopeças nacional, tornando-se assim ponto de pauta num terceiro acordo automotivo, no início de 1995 (CONCEIÇÃO, 2001). O governo, entretanto, descontente com as intervenções da Câmara Automotiva, provocou dissensões internas e a desativou em 1995 (ANDERSON, 1998), decretando, sem seguida, um Regime Automotivo Brasileiro. Consolida-se, então, um processo que tornou explícito o apoio do Estado brasileiro ao projeto de concentração de capital e expansão global dos oligopólios transnacionais da indústria automotiva. De fato, tal Regime instituiu novas reduções tarifárias de importação sobre veículos, autopeças, equipamentos e insumos industriais, em um grau de abertura ainda não conhecido no país: por exemplo, às chamadas newcomers2, permitiu-se a aplicação de (zero) 00% à importação de autopeças e insumos de países oriundos do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e cujos valores fossem compensados com exportações (PINHEIRO; MOTTA, s. d.). O resultado foi uma avalanche de importações de autopeças, que somente entre 1989-1996, atingiram 383,5% (SATOMI; RODRIGUES, 1997). O movimento tomou corpo: Costa e Queiroz (1998) apontaram que a participação das importações no consumo aparente de autopeças no Brasil passou de 5,0% para 32,5% entre 1989-1999, produzindo um déficit na balança comercial brasileira do setor no triênio 1997-1999, contrariamente aos saldos superavitários médios de US$ 1,3 bilhões obtidos entre 19891993. Se a abertura comercial já prejudicava as empresas de autopeças instaladas no país, àquelas de capital nacional a adversidade era ainda maior, haja vista a dificuldade que enfrentaram em obter créditos para financiar ampliações e inovações, pois, salvo o biênio 1990-1991 e o ano de 1999, as taxas de juros reais foram superiores à margem de rentabilidade operacional desse ramo industrial durante a década de 1990. Sem saída, muitas endividaram-se junto à rede bancária, indo à falência ou acordando contratos de aquisição por grupos transnacionais (ALVES, 2000; COSTA; QUEIROZ, 1998). 2 Plantas de montadoras e de autopeças que venham a se instalar no país e novas plantas ou linhas completas de produção das empresas já presentes, com introdução de famílias novas de modelos. 4 Assim, no intervalo entre 1994-1999, 21,3% do faturamento total do setor de autopeças do Brasil saiu das mãos do capital nacional e foi para o estrangeiro, que passou a dominar cerca de 70,0% desse faturamento setorial ao final do período (CONCEIÇÃO, 2001). Por outro lado, com o fechamento de plantas, adveio um desemprego estrutural, sobretudo porque as fabricantes de autopeças empregam, proporcionalmente, mais trabalhadores que as montadoras (BEDÊ, 1996). Dados de Conceição (2001, p. 143) mostram que 309,7 mil trabalhadores estavam empregados no setor de autopeças no Brasil em 1989, gerando um faturamento de US$ 15,5 bilhões. Do início da abertura comercial em 1990 até 1994, eliminaram-se 17,04% desses empregos e, nos cinco anos seguintes (1995-1999), mais 22,03%, chegando-se a 167,0 mil empregados em 1999. Cinco anos depois, em 2005, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA, 2006, p. 73) comemorava ter o setor atingido o faturamento recorde de US$ 24,2 bilhões “[...] com um quadro de 197 mil colaboradores, 10 mil a mais do que no ano anterior”. Uma comemoração muito contestável para a classe trabalhadora, pois, retrospectivamente, embora o setor tenha fechado 1989 com um faturamento 35,95% menor que o de 2005, contava à época com 57,2% a mais de postos de trabalho – o que demonstra, aliás, que o faturamento por trabalhador empregado nessa indústria se elevou em 139,96% no país entre 1989-20053, muito provavelmente em decorrência dos processos de “enxugamento” pela via da automação e da introdução dos métodos da gestão flexível do trabalho, como os do Sistema Toytota de Produção. Enquanto as empresas de autopeças nacionais amargavam a crise, as montadoras aqui instaladas, todas transnacionais, aproveitaram para ajustar, num curto espaço de tempo e com um mínimo de esforço, suas classes de produtos à demanda dos diversos segmentos de mercado, pois, com a abertura comercial e o câmbio sobrevalorizado, adquiriram facilmente componentes mais sofisticados para renovar seus veículos sem arcar inicialmente com riscos e custos de uma produção totalmente local. Aproveitaram, ademais, para investir em novas unidades, mesmo porque o Regime Automotivo também incentivou a vinda de concorrentes. De fato, após 1997, treze novas marcas de montadoras inauguraram, pelo menos, onze plantas no país. Todavia, com exceção da Land Rover, que em 1998 se instalou em 3 Considerando-se os valores de US$ 50,191 mil em 1989, apontado por Conceição (2001, p. 143), e US$ 122,842 mil por empregado/ano em 2005, por nós calculado a partir das informações fornecidas pelo estudo da ANFAVEA (2005, p. 73 et seq.). 5 São Bernardo do Campo – região do ABC paulista, a velha “Detroit brasileira” –, todas as demais investiram fora do Estado de São Paulo, evitando enfrentar a forte militância sindical metalúrgica, ao passo que se angariavam valiosos benefícios fiscais concedidos pelas administrações públicas locais (CONCEIÇÃO, 2001). Eis outra conseqüência do Regime Automotivo: desorganizado e inconsistente em sua coordenação federal, o Regime acabou permitindo que governos estaduais e municipais entrassem diretamente em disputa pela recepção dos novos investimentos, originando-se uma “guerra fiscal” cuja conseqüência imediata foi uma redução de custos às próprias montadoras, pois a ampliação de suas instalações no país já havia sido acertada no exterior pelas próprias matrizes (ARBIX, 2002). Renault: o Complexo Ayrton Senna e a largada para a disputa fiscal O Paraná inaugurou esse movimento, quando, em 1996, o governo estadual, na gestão de Jaime Lerner (PFL), o município de São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba, e o Fundo de Desenvolvimento Econômico, assinaram um protocolo com a Renault. O Brasil e, de modo mais amplo, o Mercosul, já eram prioridades da matriz desde 1995: sendo pólos importantes de crescimento nas vendas de automóveis, são especialmente valiosos para uma empresa cujo faturamento de US$ 37 milhões, em 1998, dependeu da própria França, seu país de origem e maior mercado (GUEDES; FARIA, 2002). Ao todo, a construção do que veio a ser o “Complexo Ayrton Senna” deveria consumir US$ 670 milhões numa primeira fase, mais US$ 330 milhões num segundo momento, visando uma produção de 120 mil veículos ao ano (ainda no primeiro estágio). A Renault concordou em iniciar as obras da planta, de 105 mil metros quadrados construídos, para ser inaugurada até 1999, arcando com 60% do capital e gerando pelo menos 1500 empregos diretos – além de arcar, caso fosse desativada em menos de vinte anos, com uma multa de R$ 50,5 milhões. Mais do que concordar, a Renault comemorou o empreendimento ao saber que receberia dos “parceiros” públicos acima referidos: 40% do capital (num teto de US$ 300 milhões); empréstimos (que, embora vinculados aos seus níveis de produção, começariam a ser pagos somente dez anos após o início de suas operações e sem qualquer correção inflacionária); um terreno de 2,5 milhões de metros quadrados, para a construção de um “condomínio industrial” no qual abrigasse fornecedores, com acessos rodoviários e ferroviários construídos; uma 6 área exclusiva no Porto de Paranaguá (a 60 km de distância); energia a uma taxa 25% inferior ao preço de mercado; e, ainda, uma isenção de impostos locais por dez anos (assim como aos fornecedores que viessem a se instalar no seu condomínio) (ARBIX, 2002; GUEDES; FARIA, 2002). Tratou-se de um acordo tão desproporcionalmente vantajoso ao capital estrangeiro que, provavelmente por isso, foi mantido em sigilo pelo governo do Paraná. Aliás, até mesmo a inviabilidade posterior dos empréstimos inicialmente prometidos à Renault (devido aos entraves gerados pela Lei de Responsabilidade Fiscal criada pelo governo federal em 2000) foi contornada pelo governo paranaense, concedendo este à montadora – como também à Volkswagen/Audi (VW/Audi), instalada na região logo depois – mais cinco anos para que começasse a pagar o Imposto sobre o Comércio de Mercadorias e Serviços (ICMS), para além dos quatro anos de carência já acertados no acordo inicial (ARBIX, 2002). É possível, contudo, que o sigilo de documentos do acordo com a Renault também esteja relacionado com os questionamentos à construção do Complexo Ayrton Senna, pois o terreno cedido em São José dos Pinhais era uma Área de Preservação Ambiental, abrigando mananciais de abastecimento de água da Região Metropolitana de Curitiba. Levantamentos feitos à época pela Universidade Livre do Meio Ambiente (Unilivre) apontaram, contudo, que a área se encontrava degradada, o que auxiliou líderes do governo local a rebater as críticas e afiançar, inclusive, que a própria Renault iria revitalizar o lugar (GUEDES; FARIA, 2002). A Renault, por seu turno, enfrentou dificuldades na contratação de força de trabalho qualificada na região, o que lhe exigiu uma adaptação de elementos do sistema de gestão flexível utilizado pela matriz francesa de Flins, como as Unidades Elementares de Trabalho (UET). Trata-se de uma organização na qual os trabalhadores são agrupados, no caso da França, em equipes com 25 membros em média, sendo um deles eleito líder pelos demais. De todos é exigido o nível médio e um diploma profissionalizante. São submetidos a uma rotatividade contínua entre diferentes funções, com o fim de se consolidar a polivalência, assumindo não apenas a operação de máquinas, mas sua manutenção preventiva, bem como o controle de qualidade dos produtos, a limpeza e o descarte – ou retrabalho – de refugos. Implantadas paralelamente às células de produção (em substituição às antigas linhas de série dedicadas), as UETs geraram em Flins um salto de produtividade de 25%, permitindo à planta demitir, em 1997, 30% dos gerentes de chão de fábrica e cerca de trezentos 7 operários, revoltando o Comitê de Fábrica e o sindicato, com os quais negociara um ano antes a implantação de tal sistema (ROLDAN; SEGRE, 2002). Diferentemente da planta francesa, contudo, em São José dos Pinhais as UETs são menores, agregam entre seis e quinze trabalhadores, sendo o líder (operador sênior) escolhido pelas gerências, desde que possua, no mínimo, o ensino médio e saiba executar todas as operações atribuídas à equipe. Os trabalhadores também não assumem tarefas de limpeza e manutenção, embora sejam responsáveis por controles de qualidade e segurança no trabalho. Também diversamente da matriz não podem decidir mudanças de posto e nem mesmo parar a linha de montagem por detecção de feitos, sem uma autorização prévia do líder da UET. Chama a atenção, por fim, que no primeiro processo seletivo de operadores da planta brasileira, o ensino médio era uma exigência mínima – preferencialmente em formação técnica, como a ofertada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) ou pelos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET); a partir de 2000, porém, tal exigência foi reduzida ao ensino fundamental completo (ROLDAN; SEGRE, 2002). A Chrysler: uma curta e custosa trajetória Outra montadora atraída para a Região Metropolitana de Curitiba foi a Chrysler, cuja planta, instalada em 1998 em Campo Largo, foi projetada para fabricar quinze mil automóveis ao ano, entre os quais o comercial leve Dakota, gerando 400 empregos diretos. Um projeto que, também contestado por ambientalistas, custou cerca de US$ 315 milhões de investimentos e para o qual o governo concedeu dez anos de isenção de impostos, além de infra-estrutura e acesso aos recursos do Fundo de Desenvolvimento Econômico. Aponta-se que o aporte do governo, novamente mantido em sigilo, foi de tal envergadura que atingiu o dobro da soma despendida pela empresa, mesmo sob o alerta de setores da sociedade a respeito da obsolescência tecnológica do projeto e seus riscos de desativação futura. De fato, perto de dois anos de funcionamento e após uma última injeção de US$ 20 milhões da Chrysler em 2000, a planta foi fechada em 2001 por decisões internas estratégicas da matriz, encerrando contratos com 190 assalariados e saldando débitos fiscais com o estado da ordem de US$ 55 milhões (GUEDES; FARIA, 2002). Esse caso atesta não só a compulsão causada nas empresas pelos irrecusáveis benefícios públicos concedidos em uma região estratégica no âmbito do Mercosul, 8 como, e principalmente, o despreparo técnico das autoridades governamentais. Foi um desastre, certamente, pois embora a empresa tenha honrado os custos de encerramento, não há estudos oficiais a respeito das perdas que o Paraná assumiu com os recursos públicos investidos. Sem contar os impactos sobre a cadeia produtiva da região, a começar pelas empresas de autopeças como a Dana, principal fornecedora da Chrysler e para a qual havia desenvolvido um sistema especial de montagem das caminhonetes (ARBIX, 2002). A VW/Audi e a maior greve da sua história A VW/Audi, também atraída pelo governo paranaense à mesma época, não sofreu questionamentos de ambientalistas, pois sua fábrica de automóveis foi instalada em uma área já utilizada para fins agropecuários em São José dos Pinhais. Tratou-se de um investimento inicial de US$ 375 milhões, visando uma produção de 140 mil veículos ao ano. Entretanto, já em plena inauguração em 1999, um ato público organizado por sindicatos denunciou a ausência de medidas de segurança na construção da planta e o descumprimento de direitos trabalhistas pelas empreiteiras contratadas. Dois anos depois, em 2001, oscilações nas vendas causaram um encerramento de um turno e a VW/Audi logo lançou um plano, muito contestado, de demissão voluntária (GUEDES; SEGRE, 2002). Todavia, a maior manifestação nessa planta ainda estava por vir e atingiria um ponto nevrálgico: a isonomia de condições entre, de um lado, os trabalhadores do novo pólo automotivo paranaense, cujas empresas foram regadas de benefícios estatais, e, de outro, os trabalhadores empregados em plantas de regiões tradicionais como o ABC paulista. No primeiro semestre de 2011, os 3,1 mil metalúrgicos da VW/Audi iniciaram uma greve cujo estopim foi a reivindicação da PLR igual à paga pela Renault. Diante da recusa da montadora, a luta desencadeou a elaboração de um dossiê pelo Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba (SMC), que, além de denunciar o alto índice de doenças ocupacionais nessa fábrica, recuperou a sua história, com dados sobre a sua produção, sobre os incentivos fiscais recebidos, sobre sua produtividade e as diferenças entre os salários e benefícios nela pagos em relação às plantas em São Paulo (SMC, 2011a). O dossiê foi entregue a deputados estaduais do Paraná, ao governador Beto Richa e ao Secretário Estadual do Trabalho, solicitando providências no sentido de garantir 9 aos trabalhadores paranaenses condições, no mínimo, iguais às dos trabalhadores paulistas. Entre as informações consta que a montadora já recebeu R$ 2 bilhões em incentivos fiscais dos cofres públicos estaduais, praticando, contudo, salários 50% menores em comparação aos pagos em São Paulo. Nas palavras do presidente do SMC, Sérgio Butka: Considerando o volume de recursos recebidos pela Volks desde 1999, ano de sua instalação, nós, trabalhadores, entendemos que esta não é uma questão restrita ao universo metalúrgico: mais que isso, essa é também uma questão de interesse público, pois uma empresa que recebe incentivos de tal ordem tem sim uma dívida a saldar com todo o povo do Paraná (SMC, 2011a). O presidente da VW no Brasil, Thomas Schamll, veio à imprensa declarar que preferia a greve a ter de negociar. Tal inflexibilidade custou caro, pois a greve se prolongou por 39 dias, a maior de toda a história da VW no mundo, provocando, segundo informações da própria montadora, um prejuízo superior a R$ 1,1 bilhão sem contar o impacto no faturamento das concessionárias do país pela falta de reposição dos produtos (o grupo Corujão teve prejuízo de 12%). Mais de 20 mil trabalhadores sentiram os tremores da mobilização, quando firmas terceirizadas, fornecedoras e distribuidoras da VW decretaram férias coletivas. Mas, os metalúrgicos da VW/Audi de São José dos Pinhais receberam grande apoio de várias partes do país e do mundo, e a paralisação se encerrou com um saldo relativamente positivo (a nosso ver, mais pela questão simbólica dos apontamentos que pelos benefícios materiais): equiparou-se a PLR ao valor pago nas plantas paulistas; houve, também, um reajuste salarial de 15% a 20% e um adiantamento da 1ª parcela do 13º salário de 2012; por fim, a empresa negociou as reposições dos dias paralisados comprometendo-se a não demitir por causa da greve (SMC, 2011b). Considerações finais – ou um balanço crítico Desde o início do Regime Automotivo até a ofensiva dos lances paranaenses inaugurada em 1996, as ofertas públicas de benefícios para a atração de investimentos nos estados brasileiros moviam-se dentro de padrões mais estáveis, época, por exemplo, em que a VW instalou sua fábrica de caminhões e ônibus em Resende, RJ, bem como sua nova planta de motores em São Carlos, SP, assim como a planta que a MercedesBenz montou em Juiz de Fora, MG, para produzir o modelo Classe A. 10 Quebrando esse padrão e ampliando substancialmente, em quantidade e qualidade, as ofertas ao capital, o Paraná, ao atrair, entre os anos de 1996 e 2000, a Chrysler, a Renault, a VW/Audi, a Tritec (inicialmente Chrysler/BMW, mas, após 2008, Fiat) e o consórcio Renault/Nissan, criou o que atualmente é o terceiro pólo automotivo do Brasil, na Região Metropolitana de Curitiba. Ao custo, no entanto, de recursos valiosos que advieram de processos internos de privatização no estado. Além, evidentemente – como demonstrou o prosseguimento da “guerra fiscal – de fixar os demais lances dos estados da Federação em um patamar subserviente diante do capital externo (ARBIX, 2002). Afinal, segundo Roldan e Segre (2002, p. 07), “o Mercosul representa um volume anual de vendas de 2,3 milhões de automóveis novos, disputados pelos maiores construtores mundiais do setor: Volkswagen, Fiat, GM e Ford”. Foi com base nisso que, certamente, que entre 1995 e 2000 as montadoras investiram cerca de US$ 17 bilhões no Brasil, ampliando em 25% a capacidade industrial instalada (ARBIX, 2002, p. 112). Todavia: Ao entrar na disputa sem definir a contraparte das empresas e tampouco os custos e o retorno para o setor público; ao participar das negociações com as empresas sem estabelecer relações de reciprocidade; sem indicar os meios de controle sobre os planos apresentados; sem se preocupar com a prestação de contas à população; e sem se perguntar pelos direitos do Estado e das cidades, os governadores, de titeriteiros, transformam-se em marionetes (Id. Ibid., p. 124). Ou seja, disputando, mediante a “sangria” de verbas públicas, investimentos já predestinados pelas próprias estratégias do capital oligopolista transnacional ao Brasil, “[...] contribuíram para aumentar a cota de transferência de recursos públicos para o setor privado” (ARBIX, 2002, p. 125). Um processo, enfim, do qual o governo federal não pode ser isentado, haja vista o vazio institucional sob o qual permitiu ter o Brasil se tornado “[...] uma ‘terra de oportunidades’ não somente para grupos internacionais mas também para membros de governos locais, particularmente de municípios” (GUEDES; FARIA, 2002, p. 60). Agradecimentos Parte dos dados aqui apresentados resultou de uma pesquisa de doutorado realizada no DS/IFCH/Unicamp sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Antunes e com o apoio da FAPESP, aos quais manifesto meus agradecimentos. 11 Referências ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo; FAPESP, 2000. ANDERSON, Patrícia. Câmaras setoriais: histórico e acordos firmados – 1991/95. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 1998. (Texto para Discussão, 667). ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores. Indústria automobilística brasileira: 50 anos. São Paulo, AUTODATA Editora, 2006. (Edição Comemorativa dos 50 anos da ANFAVEA). ARBIX, Glauco. Políticas do desperdício e assimetria entre público e privado na indústria automobilística. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 48, fev. 2002. p. 109-129. BEDÊ, Marco Aurélio. A indústria automobilística no Brasil nos anos 90: proteção efetiva, reestruturação e política industrial. 1996. Tese (Doutorado) – Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. CONCEIÇÃO, Jefferson José da. As fábricas do ABC no olho do furacão: a indústria de autopeças e a reestruturação da cadeia de produção automotiva nos anos 90. 2001. Dissertação (Mestrado em Administração) – Centro de Estudos de Aperfeiçoamento e Pós-graduação do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul, São Caetano do Sul, SP, 2001. COSTA, Ionara; QUEIROZ, Sérgio. Autopeças no Brasil: mudanças e competitividade na década de noventa. In: SIMPÓSIO DE GESTÃO DA INOVAÇÃO TECNOLÓGICA, 20, São Paulo, nov. 1998. Anais... [s. l.: s. n., s. d.]. p. 1070-1083. [Trabalho apresentado]. GUEDES, Ana Lucia; FARIA, Alexandre. Globalização e investimento direto estrangeiro: um estudo exploratório da indústria automotiva brasileira. Revista de Sociologia Política, Curitiba, n. 19, nov. 2002. p. 55-69. PINHEIRO, I. A.; MOTTA, P. C. D. O Regime Automotivo Brasileiro (RAB) como instrumento de modernização tecnológica do parque industrial nacional – uma análise crítica. Disponível em: <http://www.abepro.org.br/biblioteca/ENEGEP2001_TR81_0042.pdf>. Acesso em: 04 jul. 2011. ROLDAN, Oscar Fernando Marmolejo; SEGRE, Lidia Micaela. Internacionalização da indústria automobilística: estudo de caso da Renault França / Colômbia / Brasil em relação a adoção de trabalho em grupo. In: XXII Encontro Nacional de Engenharia de Produção, out. 2002, Curitiba. Disponível em: < www.abepro.org.br/biblioteca/ENEGEP2002_TR15_0289.pdf>. Acesso em: 04 jul. 2011. 12 ROSANDISKI, Eliane Navarro. Reestruturação organizacional: uma avaliação a partir da estrutura do emprego do setor automotivo paulista – 1989-1994. 1996. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 1996. SATOMI, Lilian; RODRIGUES, Vivianne. A indústria de autopeças. Panorama setorial da Gazeta Mercantil, São Paulo, Gazeta Mercantil Informações Eletrônicas, v. 2, abr. 1997. SMC – Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba. Metalúrgicos entregam hoje "Dossiê Volks" para governo e deputados e pedem apoio para equiparar direitos com SP. Notícias, 23 maio 2011. Disponível em: <http://www.simec.com.br/index.php?area=ler_noticia&id=1512>. Acesso em 04 jul. 2011a. SMC – Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba. Metalúrgicos da Volks encerram greve com pacotão de R$ 21.680,00 e até 20% de aumento salarial. Notícias, 16 jun. 2011. Disponível em: <http://www.simec.com.br/index.php?area=ler_noticia&id=1555>. Acesso em 04 jul. 2011b.