ESTACAOMETROPOLE.COM GLORIA DAWSON/THE DAILY GREEN artigo O lugar do espaço urbano na minha querida São Paulo Por Adriana Levisky* A análise da legislação urbanística paulistana e, através dela, brasileira revela que nosso conjunto de leis nada mais representa do que o reflexo e a radiografia de uma particular condição ou personalidade cultural. As deficiências que esse conjunto de leis apresenta, principalmente no que tange à qualificação de nossas cidades e à preservação do patrimônio coletivo, serão solucionadas não somente com a elaboração de um bom texto legal, mas a partir da efetiva qualificação da sociedade através de todos os seus agentes públicos e privados, empenhados na busca do bom desenho, e seu correspondente texto legal, que preservem e protejam as diferenças, mas que prioritariamente atinjam a esfera do coletivo. Vale resgatar o passado colonial brasileiro, responsável por um processo de urbanização, desenvolvimento e gestão urbana extremamente peculiares, para dar sequência a algumas reflexões. Do período colonial, que marca de maneira significativa a formação da cultura nacional e do imaginário do cidadão brasileiro, intervenções urbanas importantes geram registros na estrutura da cidade e determinam sua expansão, o que engloba a opção pelo crescimento de alguns setores da economia em detrimento de outros - social, cultural e público, e nesse contexto o espaço urbano. De uma experiência coronelista, responsável pela valorização do interesse privado, a experiência pública e do bem comum se faz frágil. Mais uma vez, com o advento da indústria, sobretudo a automobilística e a cimentícia, o crescimento segue seu curso muito focado no patrimônio privado, fragilizando francamente a experiência do coletivo. Tal movimento desenvolvimentista em nada desmerece o avanço dos seto106 projetodesign setembro 12 res industrial, de serviços e de comércio nacional. Pelo contrário, graças a eles o Brasil posiciona-se de maneira sólida e efetiva no mercado e na economia global. Plano Diretor de São Paulo São Paulo ganha em 2002 um Plano Diretor Estratégico (lei 13.430/2002) que visa fundamentalmente estabelecer a condição do uso misto na cidade. Tal premissa vai de encontro ao processo de expansão característico da cidade, que, apesar de irracional e sem planejamento, carrega pesadas marcas modernistas, deflagradas na setorização dos bairros residenciais segregados dos outros comerciais e de serviços, bem como apartados em segmentos sociais distintos que não se misturam. O Plano Diretor Estratégico visa diminuir as distâncias e estreitar as relações entre usos e segmentos sociais diversos. Surge então a lei 13.885/2004, a Lei de Zoneamento, acompanhada pelos planos regionais das 31 subprefeituras. Apesar do grande esforço, ela não atinge seu principal objetivo, o de transformar a cidade em um território de uso misto, que se propõe mais justo, cuja população se encontre instalada acolhendo a franca convivência em toda a sua diversidade. A lei é regulamentada. Cria enfim as zonas mistas, que ocupam mais de 70% do território da cidade. Estoques por distritos são fixados, buscando regrar o crescimento regional. Zonas de interesse social salpicadas no mapa traduzem a intenção de aproximação dos diferentes segmentos da sociedade. Regras edilícias são revistas para o lote. O sistema viário torna-se o principal regulamentador das condições de instalação possíveis. Ou seja, através de uma classificação hierárquica das vias existentes no município, surgem regras e condições de instalação de usos e potencial construtivo aplicadas especificamente ao lote. Algumas boas intenções são previstas através do estabelecimento de determinados instrumentos urbanísticos: parques lineares, áreas de intervenção urbana, planos de bairro, operações urbanas consorciadas, novas linhas e estações de O Plano Piloto de Brasília evidencia a setorização dos usos adotada na cidade O edifício Copan, projeto de Oscar Niemeyer em São Paulo, é bom exemplo de uso misto transporte coletivo de massa. Porém, para a implantação de tais instrumentos urbanísticos apresentados ao município através do seu Plano Diretor, há a necessidade de aprovação de leis específicas, o que evidentemente enquadra tais intenções em um horizonte longínquo e incerto, um cenário dependente de uma participação administrativa complexa. Enfim, na prática, a cidade conta com uma legislação que apresenta ferramentas operacionais claras e efetivas na escala do lote. Os instrumentos urbanísticos que poderiam abrir a oportunidade de entrosamento entre o lote e seu entorno e, por conseguinte, entre o proprietário do lote, como representante da instância privada, e a esfera pública não oferecem regulamentação necessária para efetivar suas aplicações. Inúmeros exemplos curiosos podem deflagrar tal escolha: recuos da edificação no lote que não consideram a acidentada topografia da cidade, tampouco seus vizinhos, resultando em soluções construtivas muitas vezes nocivas, que não preservam as edificações, nem o desenho urbano; restrições de uso que não consideram a relação do lote com seu entorno; fixação do número de vagas de estacionamento que não leva em conta a oferta de transporte coletivo na vizinhança e, pelo contrário, valoriza o uso do transporte individual; contrapartidas estabelecidas para os empreendimentos geradores de tráfego que, seguindo as determinações legais, se traduzem no estabelecimento de uma série de intervenções viárias que resultam na implantação de fibras óticas, semáforos e capeamento de vias, em vez de buscar soluções integradas de desenho, arborização, iluminação pública e mobilidade urbana para a requalificação do entorno impactado (lei 15.150/2010); benefícios ofertados pelas leis específicas de opera- Parque linear High Line, de Nova York, em que houve interlocução público-privada Oportunidades O ano de 2012 marca o término do Plano Diretor Estratégico 2002 e a necessidade de aprovação de um novo plano diretor, que deverá ser desenvolvido para a cidade. O ano é de eleições municipais, cenário em que o tema da construção e A Lei de Zoneamento não atinge o objetivo de transformar a cidade em um território de uso misto, que se propõe mais justo. ções urbanas vigentes, como na região da Água Espraiada (lei 13.260/2001), que determina a obrigatoriedade de alargamento de calçadas através da doação de faixa de terreno somente para os empreendimentos aderentes a essa operação, gerando um passeio público descontínuo e irregular. Apesar das boas intenções presentes na legislação, esta não apresenta ferramentas eficientes para promover a real integração com a esfera pública. Outra manifestação que deve despertar atenção em relação à legislação vigente trata da fixação de estoques com potencial construtivo adicional muitas vezes baseados em dados defasados e engessados, responsáveis pela determinação de área adicional em maior número para os usos já implantados e com cifras insignificantes para as atividades com menor representatividade distrital, contradizendo a espinha dorsal do plano que almeja o uso misto. reconstrução das cidades surge com força e é tratado como fundamental para a viabilização do crescimento sustentável, justo, ético, criativo e responsável. Na capital paulista, promessas de futuras intervenções urbanas (Lapa - Brás, Mooca-Vila Carioca, Rio Verde - Jacu e a revisão do perímetro Água Branca), o potencial construtivo adicional saturado em diversas regiões, a aprovação do Plano Municipal de Habitação, o sistema de aprovação de projetos e as revisões do Plano Diretor Estratégico do Município e da Lei de Uso e Ocupação do Solo são temas em pauta. A sociedade manifesta, através de sua convivência diária com a violência, a insegurança, o alto custo de vida e o trânsito, entre outras mazelas sociais e econômicas, a necessidade de estabelecer uma discussão qualificada em prol da cidade. Passa a pertencer ao universo leigo e popular mais sensibilidade e atenção projetodesign setembro 12 107 NELSON KON VISUALIZE.COM artigo O princípio da parceria público-privada aparece no projeto da praça Victor Civita, em São Paulo A foto aérea de Paraisópolis revela a presença das ocupações irregulares em São Paulo Museu Cratera da Colônia, em São Paulo, proposta com ênfase sociocultural-ambiental Passarela Einstein Morumbi, uma interlocução das escalas do edifício e urbana na capital paulista O planejamento bem-sucedido da Expo 98, em Lisboa, resultou em legado para a cidade Puerto Madero, em Buenos Aires, surgiu a partir de gestão de conselho misto para as questões urbanas. Na cidade de São Paulo e na região metropolitana, a opção pelos espaços fechados pautase e justifica-se pela “necessidade de segurança”. Constroem-se condomínios fechados, cercam-se praças e parques públicos, cresce a quantidade de automóveis individuais, os passeios e calçadas são abandonados, bem como os equipamentos públicos de saúde, educação e cultura. Pensando a situação em números, de uma população que já atinge cerca de 42 milhões de habitantes no estado de São Paulo, segundo censo do IBGE 2011, 51% está na região metropolitana e 95,9% em áreas urbanas. O número de veículos particulares na cidade de São Paulo, segundo o site da Companhia de Engenharia de Tráfego, ultrapassou os 2011, 30% da população vive em assentamentos irregulares nas áreas urbanas. Na busca por resultados imediatos, a falta de cultura de planejamento para o desenvolvimento das cidades é refletida ao longo do tempo na degradação do patrimônio ambiental e cultural. A produção e a deposição de lixo urbano, o desmatamento desordenado, a falta de velocidade para as ações emergenciais de saneamento, a falta de contato com nossos rios e ainda a ausência de políticas efetivas para articulações de interesses públicos e privados traduzem-se em oportunidades para soluções técnicas e modelos sustentáveis de gestão público-privada. Nesse cenário, é fundamental que a sociedade civil tenha condições de se qualificar para participar de forma res- complementam também oportunidades de discussão e intervenção nas questões afetas às cidades: o plano para resíduos sólidos, o programa Minha Casa, Minha Vida, o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) 2, a revisão do Código Florestal, a demanda por transparência e dignidade nos processos de interlocução públicoprivados. E ainda o ingresso de recursos financeiros e humanos estrangeiros no país. E a regulamentação da profissão de arquiteto com a criação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU). se levar em consideração o crescimento populacional, o crescimento econômico setorial, as estruturas obsoletas ou subutilizadas ou ainda abandonadas na cidade, além da opinião pública local e regional. Junto a isso, uma agência urbana de composição mista que congregue técnicos das áreas do planejamento urbano, arquitetura, paisagismo, direito urbano, imobiliário, social, economia, saúde pública, psicologia, cultura, engenharia de trânsito, saneamento e assistência social, entre outros responsáveis pela interpretação das dinâmicas informações constantemente atualizadas por esse imenso banco de dados, bem como a elaboração de instrumentos urbanos, de ferramentas de interlocução público-privadas e de propostas de intervenção, além da participação na tomada de decisão para implementação das ações escolhidas. É importante destacar, ainda dentro dessa reflexão, de um lado a emergente demanda por habitação social visando à reurbanização de assentamentos precários, bem como a oferta de novas unidades, e de outro a disponibilização de recursos aguardando projetos e planejamento para solucionar carências habitacionais e de infraestrutura. Segundo o Plano Nacional de Habitação (PlanHab), as necessidades de moradia nos próximos 15 anos atingem cerca de 35 milhões de unidades habitacionais, número que agrega o déficit acumulado e a demanda futura em função da criação de novas famílias. Soma-se, ainda, a premência em urbanizar milha- res de assentamentos precários, onde a carência de infraestrutura e a falta de inserção urbana tornam precárias as condições de vida experimentadas por mais de 15 milhões de pessoas atualmente. Nesse contexto, a arquitetura e o urbanismo, por meio da valiosa ferramenta do projeto, devem se apresentar como protagonistas para viabilizar a interlocução, o planejamento e a implementação em escala metropolitana das futuras leis, Porém, não se pode prever uma legislação para São Paulo enfatizando uma nova cidade que não tenha que lidar com o seu passivo, com suas edificações abandonadas, com sua infraestrutura subutilizada, com seus assentamentos irregulares que acolhem cerca de 30% da população não mais sendo objeto estranho, mas sim parte da cidade, com um mercado imobiliário visto pelo poder público e pela sociedade como “vilão”, e Há que se consolidar relações do projeto e do planejamento entre a cadeia da construção civil e a administração pública. 7 milhões em 2011, correspondendo a mais de 73% do total da frota paulistana. Ainda no estado de São Paulo, composto por grandes números e índices paradoxais, ao mesmo tempo em que há registro de que os lançamentos imobiliários na região metropolitana atingiram Valor Geral de Vendas de R$ 30,5 bilhões em 2011, o que representa 36% de todo o valor dos lançamentos do país, conforme o Anuário do mercado imobiliário brasileiro 108 projetodesign setembro 12 ponsável da discussão, cujo foco principal deve ser o bem coletivo. Ou seja, se a voz da sociedade se restringir exclusivamente aos seus interesses específicos e se o administrador público não dispuser de energia para acomodar conflitos e facilitar o entendimento em favor desse coletivo, as chances de aprimoramento da sociedade através de todos os seus agentes estará comprometida. No contexto nacional, alguns exemplos Desafios Há de se ampliar o espaço para consolidar relações do projeto e do planejamento entre a cadeia da construção civil e a administração pública, passando por investidor, indústria, planejador, empreendedor e sociedade. Tais relações poderão enormemente e com mais eficácia requalificar as infraestruturas urbanas através da implementação de tecnologias avançadas aplicadas às áreas de drenagem, trânsito, transporte, habitação, lazer, turismo, saúde e bem-estar social. Um diálogo franco e maduro, monitorado pela boa técnica e ética, entre as instâncias pública e privada certamente poderá e deverá estruturar uma rede de planejamento, comunicação e levantamento de informações para consolidar um banco de dados dinâmico, ágil, com condição de monitoramento e rápida atualização nas disciplinas de infraestruturas, saneamento, transporte, energia, equipamentos públicos, entre outros. Nesse diálogo deve- Em uma cidade que sofreu um significativo êxodo do setor industrial, faz-se fundamental o resgate de seus terrenos vazios. dentre elas as novas operações urbanas e planos diretores, bem como da expansão do transporte nas modalidades ferrometro-hidro-cicloviário e de pedestres, da elaboração de políticas públicas para o abastecimento, uso e reúso da água, do saneamento básico, do tratamento e convívio com rios e represas, da prevenção à violência e da promoção de cidadania. A sociedade precisa se preparar para uma postura colaborativa e aproximativa das instâncias pública e privada. Do ponto de vista ambiental, um embrião se faz presente nas exigências constantes no plano diretor para o tratamento das áreas contaminadas. Em uma cidade que sofreu um significativo êxodo do setor industrial, faz-se fundamental o reconhecimento e o resgate de seus escassos terrenos vazios. de um poder público visto pelo mercado como um ser distante. É fundamental que nesse novo plano diretor que deverá nascer sejam previstas ferramentas legais de desenho urbano para trabalhá-las como contrapartida ao crescimento da cidade e na elaboração de novos instrumentos e compromissos público-privados, incluindo a temática do retrofit, da sustentabilidade, da mobilidade urbana, da reurbanização, da justiça social, das PPPs urbanísticas. *Adriana Levisky é arquiteta urbanista, titular do escritório Levisky Arquitetos | Estratégia Urbana, vice-presidente da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (Asbea)/SãoPaulo e membro do conselho deliberativo do Conselho Brasileiro de Construção Sustentável (CBCS) projetodesign setembro 12 109