O passado da globalização: Salvador - espaço urbano e relações sociais Martina Löw Tradução: Raul Oliveira Prezadas Senhoras, prezados Senhores, “Salvador da Bahia: A cidade dos negros” é o sobretítulo do meu guia de viagens (Taubald 2007); a “jóia afrobrasileira do país”, é como o outro guia (St. Louis et al 2008) classifica a cidade. A despeito desta preparação, eu estava certa de que, durante o meu período de pesquisas em Salvador da Bahia, eu desenvolveria um trabalho sobre colonização portuguesa, talvez também holandesa; mas, de qualquer modo, sobre colonização. As imagens do Pelourinho, com as quais se promove a cidade na internet, haviam-se gravado em minha mente. Nesses locais, eu pensei que encontraria o ponto de partida para proferir uma palestra sobre Salvador e globalização inicial versus globalização tardia. Mas o resultado foi outro. O primeiro conjunto espacial marcante que eu enxerguei, ao vir do aeroporto, foram os orixás no Dique do Tororó. As deusas africanas saúdam os estrangeiros na cidade. O fotógrafo Nilton Souza parece ver exatamente da mesma forma. Também ele inaugura o seu vôo panorâmico sobre Salvador, logo de saída, com os orixás. Chegando à Avenida Sete de Setembro, ao Hotel Marina Vitória, um dos melhores da cidade, as minhas idéias para esta palestra foram dispersas ainda mais do que pelos orixás. Eu tinha esperado encontrar, nesta ilha do turismo, um típico hotel de quatro estrelas como a essência da moderna globalização, o qual bem se poderia confrontar com a globalização primitiva, porém, neste particular, a minha expectativa foi frustrada positivamente. O arranjo espacial total talvez transmita uma impressão sulamericana, mas ele não carrega em si a linguagem dos signos globalizados de espaço. A forma do edifício pode trazer em si algo de generalizante, mas a estética não o faz. Esta forma do teto sobre a varanda do café da manhã, por exemplo, lembra-me as passarelas para pedestres sobre as avenidas de tráfego intenso, encontráveis por toda a cidade. Ele possui algo de tangivelmente brasileiro, mas nenhuma referência à globalização. As duas moças, vestidas de baianas, que fritavam os ovos para o desjejum, não entendiam sequer as palavras em inglês para ovo estrelado ou ovos mexidos. Aos poucos, eu fui percebendo que era a única hóspede no café da manhã que não falava português. Mais tarde, li que, dos 2.616.730 turistas que anualmente vêm a Salvador, apenas 512.910 são provenientes do exterior. Todo o restante é formado exclusivamente por turistas brasileiros (Governo da Bahia 2007). Ainda que, na cidade, esses turistas brasileiros sejam igualmente percebidos como forasteiros, que perturbam de forma sensível o ritmo da cidade, como deixou claro, por exemplo, a palestra de Ana Fernandes no Simpósio SalvadorBerlim, a cidade prepara-se majoritariamente para os visitantes brasileiros, e menos para os 1 internacionais. Até mesmo nas lojas dos museus, é difícil informar-se, em inglês, sobre o tamanho (small, medium, large) ou o preço de uma camiseta. Quando finalmente cheguei ao Pelourinho, o qual eu, na minha estreita mentalidade européia, imaginava também como o centro espacial da cidade, como o local a partir do qual a cidade se abre para o interior, rapidamente percebi que as construções quase não contam a história colonial dos conquistadores. Elas dão a impressão de serem objetos, em parte, em mãos de empreendimentos turísticos, mas também, muitas vezes, em mãos negras. “Os antigos escravos (assumiram) as casas abandonadas por seus senhores”, diz um livro técnico alemão a respeito do Pelourinho (Augel/Parente-Augel 1984, 114). Esta cidade obrigou-me a encarar o transporte marítimo global dos escravos, não como triste subproduto da globalização, mas sim como o seu centro. São estes indícios dos negros e da ideia generalizante do negro que eu vou seguir agora. O foco, aqui, não é a história do Pelourinho (vide, a este respeito, Vinken). O foco é o “código urbano” (Hassenpflug 2009), ou seja, a gramática de uma cidade e a forma de empregá-la. Se se parte do princípio – como faz o urbanista alemão Dieter Hassenpflug – de que toda cidade apresenta uma gramática própria, então isto significa pressupor “que o espaço produzido fala não apenas de modas passageiras e ideologias transitórias, mas também, e sempre, de práticas culturais profundamente enraizadas” (Hassenpflug 2009, 13). Em suma: trata-se das mensagens que a cidade envia e que, numa perspectiva de longo prazo, podem conduzir à decifração da lógica intrínseca desta cidade. A “migração transatlântica de escravos” (Osterhammel/Petersson 2007, 40), como é hoje denominada, constituiu um fenômeno de globalização de uma nova ordem de grandeza. Entre 1450 e 1870, cerca de 10,2 milhões de africanos chegaram vivos às terras de destino nas ilhas caribenhas, no Brasil e na América do Norte (Curtin 1990). Destes, foram trazidos para o Brasil entre nove e doze vezes mais escravos do que para os Estados Unidos (Andrews 1998). Em nenhum outro país, a escravidão se manteve, como aqui, por quase 350 anos. O Brasil possui, em números absolutos, a segunda maior população negra do mundo (depois da Nigéria). Eu apresentarei, aqui, a minha visão da cidade como socióloga, como teórica do espaço e como norte-européia que leu pilhas de livros, em inglês e alemão, sobre o Brasil e sobre Salvador. Isto quer dizer que existem margens na leitura que não fazem parte do cânone e que, por isto, não serão lidas aqui; bem como, de modo inverso, há textos que, aqui, constituem um conhecimento natural, mas que não são traduzidos. Nessas margens, eu espero que surja algo de novo quanto à perspectiva. Não o correto, apenas o simultaneamente diferente. A heterogeneidade dos centros O sonho português dirige o olhar sempre para cima. Primeiro, os portugueses se estabelecem na Cidade Alta, o que faz do centro histórico, até hoje, um elemento espacial que, em termos de planejamento, está ligado apenas de forma insuficiente ao resto da 2 cidade. Eles, então, introduzem mais uma modalidade de separação social e espacial, que seria impensável, por exemplo, em muitas colônias africanas (Eckert 1996). Os portugueses não dividem as áreas entre zonas de brancos e zonas de negros, mas providenciam uma separação vertical no interior dos prédios. Os escravos domésticos vivem nos pavimentos térreos das casas senhoriais, enquanto que as famílias de nobres dão vida aos amplos cômodos nos andares superiores (Rothfuß 2007, 44). Até hoje se mantêm o impulso para o alto e o ganho valorativo que é visto numa altura (que, há muito, já ultrapassou a Cidade Alta). Não se trata apenas da persistente mistura de alguns bairros, nos quais os habitantes dos edifícios debruçam-se sobre invasões, mas também de uma ordem que, de modo furtivo, introduziu-se em muitos shopping centers. Basta imaginar o aperto da multidão que se comprime no pavimento térreo do Shopping Iguatemi e, em seguida, dirigir-se em pensamento para o terceiro piso. Ali, encontra-se a tranqüilidade para comprar, alcançada simplesmente devido ao fato de que tudo no terceiro piso é mais caro. Naturalmente, também em Salvador existem, tanto em termos de moradia quanto de consumo, zonas claramente separadas para pobres e ricos, que, com muita frequência, representam também uma separação entre negros e brancos (Carvalho/Corso Pereira 2008). Mas, ao mesmo tempo, existem nesta cidade muitos lugares de encontro que, então, diferenciam-se horizontalmente. Na Europa, por exemplo, ao se planejar um shopping center, vigora a norma de que, a partir do quarto piso, só podem ser vendidos aparelhos eletrônicos, ou então lá podem ser instalados cinemas e academias de ginástica. Somente uma vontade forte leva um europeu até o quarto piso. Já em Salvador, é somente lá no alto que o ambiente se torna realmente acolhedor. O quadro vai-se modificando lentamente. As separações entre pobres e ricos vão se tornando maiores. O novo Salvador Shopping é – diferentemente do Iguatemi – muito mais difícil de ser alcançado com meios públicos de transporte. Tudo somado, isto significa, para muitas pessoas, não apenas a segregação das moradias, mas também a separação dos mundos quotidianos. Exceto para uma elite cultural que – não apenas no Brasil – necessita do centro histórico como palco para as suas atividades; a classe média tem uma tendência a retirar-se dos centros ainda existentes. Este processo, no entanto, não é, de forma alguma, contínuo, como ainda se demonstrará a seguir. Eu perguntei aos alunos e doutorandos das minhas turmas na UFBA o que eles percebem como sendo o centro ou os centros da cidade. Eles mencionaram, sobretudo, a Barra e o Iguatemi. O Iguatemi é mais o centro econômico, um ponto de encontro para a classe média. A Barra é, mais intensamente, o lugar de uma atitude urbana diante da vida. O bairro é mais povoado e mais heterogêneo. As opções de lazer mostram-se mais atrativas, e o local é descrito como mais carregado de identidade. O Pelourinho só é mencionado quando se pergunta sobre ele. Sim, trata-se do lugar de sua história, mas os mais velhos, em grande parte, riscaram-no do seu mapa mental. Ele seria, simplesmente, perigoso demais. Os mais jovens frequentam shows lá, à noite, enfrentando a oposição de seus pais. 3 Nesta cidade, existem as duas coisas: um êxodo das zonas centrais, uma realização dos desejos consumistas fora delas e, apesar disto, uma idéia de centralidade. Estes novos centros podem ser descritos como lugares da nova globalização, com projetos de prédios de apartamentos e de shopping centers que podem ser encontrados em qualquer lugar do mundo; mas os velhos centros, que estão ligados à história colonial mais antiga ou mais recente, não estão esquecidos. Aqui, a distinção entre globalização econômica e cultural passa a fazer sentido. A importância da cultura local, imaginada como tipicamente baiana, antes cresceu do que diminuiu. Ao mesmo tempo, porém, não é fácil associar a globalização econômica a essas tradições, que também têm como conteúdo o lado mais intenso de uma grande pobreza. Modernização, foco nos meios individuais de transporte, adensamento urbano, verticalização e uma tendência à segregação foram princípios básicos, segundo os quais a cidade, durante muito tempo, e até hoje, desenvolveu-se de forma ininterrupta. Como em muito outros lugares, com esta forma de modernização cresceu, também em Salvador, a busca pela memória. O Pelourinho é uma dessas ilhas de recuperação urbana, onde se tenta estabelecer algo que seja próprio da cidade. Na Europa, o centro de uma cidade é, em geral, o local de maior significado simbólico. Tudo é organizado para facilitar o acesso a ele. O conjunto que determina o espaço é, geralmente, praça do mercado, igreja e prefeitura. Ele simboliza, assim, a simultaneidade da fé cristã e da autodeterminação civil. Na América do Norte, desde o início, como projeto alternativo à tradição feudal e burguesa, o desenvolvimento urbano ocorreu próximo aos centros comerciais. Central business districts como concentrações de bancos, sedes de corporações empresariais, shopping centers, hotéis, instituições culturais e apartamentos de alto padrão formam o lugar da centralidade. Da mesma forma que entre negros e brancos, o Brasil parece, também nesse aspecto, querer ou dever assumir um papel de intermediação, talvez com uma tendência a distanciar-se da Europa e voltar-se mais intensamente para a América do Norte. Jorge Larraín (2008, 9. 17) acredita poder reconhecer aí um afastamento do Brasil do modelo social-democrata europeu do Estado do bem-estar social em direção ao modelo americano da liberdade individual. A heterogeneidade dos centros é frequentemente equiparada à fragmentação (por exemplo, em Morley 1997, p. 8; Hall 1999, p. 445; Lefebvre 1991, p. 342; Stehr 2000, p. 199 e muitos outros). Supõe-se que, com o processo de diferenciação, entendido como fragmentação, desaparece a coesão social. Salvador é, certamente, uma cidade que se pode vivenciar como fragmentada. Mas fragmentos referem-se sempre a algo que, antes, era íntegro. Será que Salvador, alguma vez, esteve íntegra? Constituiu uma unidade? Será que, nessas narrativas, não se está simplesmente repetindo a fábula da homogeneidade da modernidade ocidental, como idealização do “um”? (vide, a este respeito, a outra contribuição de Löw neste volume). E, inversamente: nós sabemos se todos os soteropolitanos não se relacionam de forma semelhante com a cidade? Talvez as classes sociais não partilhem os mesmos padrões de valores, mas elas não são, juntas, diferentes das pessoas do Rio de Janeiro? 4 Ritmo negro e baianas A tenacidade com que pessoas de diferentes classes sociais insistem em afirmar que, nesta cidade, o ritmo é dado por um coração negro, parece-me ser indicativa de que existe, no mínimo, uma grande tensão entre uma estrutura pragmática de redes de centros, por um lado, e a localização da herança cultural, por outro; o que sempre levanta a questão da identidade. Afinal de contas, a história colonial não foi esquecida, apenas o seu foco passou a ser a questão escravista, e isto com muita força desde os anos setenta: com os blocos afros, com a história da globalização da música afrobrasileira, com Michael Jackson, com dispositivos legais antidiscriminatórios e com campanhas publicitárias que se vão modificando; o que, naturalmente, não exclui uma discriminação que continua a existir. O que surgiu foi um complexo empreendimento cultural negro, que associa educação a um trabalho de estabelecimento estratégico de redes e a uma atuação empresarial, sem descuidar do aspecto político (Schaeber 2006, 322). O elemento afrobrasileiro inscreveu-se no código da cidade. O cineasta afroamericano Thomas Allen Harris descreve a sua relação com Salvador como uma sensação de ter encontrado um lar. A Bahia é, para ele, o lugar no qual encontrou suas raízes, pelas quais sempre buscou. O seu espírito chegou em casa, diz ele (“felt like home, not because I was born there, but because my spirit was at home there” Harris cit. segundo Pinho 2008, 142). Patrícia Pinho (2008) analisou o turismo afroamericano em busca das próprias raízes. Ele conduz ao Brasil. Os afroamericanos vivem na expectativa de, aqui, encontrar as próprias raízes, mais originais do que na África. Eles se apegam firmemente à ideia de que constituiu um mero acaso histórico o fato de os escravos terem sido transportados para a América do Norte ou do Sul. Poder-se-ia perfeitamente ter nascido no outro local. Isto proporciona comunhão. Na própria cidade, a noção de ser uma cidade afrobrasileira e de distinguir se por isto encontra no Pelourinho, com o mercado de escravos, um lugar que só vagamente transporta esta ideia, também porque este é um lugar mais da pobreza do que do consumo. Veem-se os orixás, encontram-se as igrejas das congregações negras, aqui e ali, obras de arte sinalizam a cultura negra. Na paisagem urbana, as baianas, com suas indumentárias brancas, são as que representam mais intensamente a cultura afrobrasileira, pelo menos para os turistas e para a população não tão negra. A tentativa de um restaurante caro, de vestir os garçons com o uniforme dos portugueses (o que, de resto, é perfeitamente possível na África pós-colonial), fracassou. Em contraposição, é frequente que as garçonetes em restaurantes e hotéis se apresentem como baianas. Em seus crachás com fotos, vê-se que elas, no quotidiano, são mulheres que não usam torços na cabeça, jovens mulheres modernas. E muitas baianas vestem sua indumentária tradicional-religiosa negligentemente sobre os jeans, ou já interpretam, hoje, as disposições sobre vestuário desejadas pelo órgão oficial de turismo para a venda do acarajé, de uma forma muito livre, trajando shorts brancos, camisetas justas e bonés. 5 As baianas prestam-se tão bem como objetos que expressam o lado positivo da Salvador afrobrasileira porque os seus negros corpos femininos (pelo menos são, na maioria, mulheres) não expressam violência alguma, mas sim – pelo contrário – com a venda de comidas, são imagináveis positivamente como figuras nutrizes. O fato de que isto, além de valorização, constitui sempre também um processo de exotização, fica evidente não apenas nos milhares de imagens de Salvador com baianas, na internet, como também nos cartões postais. A mais clara expressão disto é, provavelmente, a Barbie-Baiana que, há pouco tempo, esteve em exposição no Salvador Shopping. Salvador como cidade moderna Na concepção da modernidade, com o seu foco na educação e na razão, as emoções sempre desempenharam um papel precário. Totalmente idealizadas como amor romântico ou pesquisadas na Psicanálise, elas permaneceram como um fenômeno marginal na autodescrição de uma classe média que se orienta pelo global. Porém, numa tal constelação, sempre existe um outro que emerge como refúgio das emoções. Este outro é, necessariamente, menos moderno na percepção do mundo ocidental. De acordo com o sociólogo brasileiro Jessé Souza (2007), o exotismo está entrelaçado na percepção que os brasileiros têm de si mesmos (a qual tem o seu reverso na imaginação europeia-norteamericana, segundo a qual os brasileiros seriam bem mais carnais do que os rígidos europeus). Através desta autodescrição – inteiramente estabilizada, também pelos teóricos – os brasileiros podem – segundo Souza – perceber-se “como ‘mais cordiais’, ‘mais humanos’, ‘mais hospitaleiros’ ou como ‘mais sensuais’ do que as pessoas das frias e insensíveis sociedades desenvolvidas” (Souza 2007, 37). Souza chama a isto de fantasia compensatória, que serve à coesão interna da sociedade brasileira. Com ela, os brasileiros aparecem como seres essencialmente semelhantes entre si, distinguidos apenas por diferenças de renda. Durante o meu período de pesquisa, repetiram-me várias vezes que em Salvador está o berço da sociedade brasileira. Para muitos brasileiros, Salvador é tida como o lugar da “autêntica” e “tradicional” identidade brasileira (Rothfuß 2007, 41). A minha tese é que, para sentir isto, para estabelecer o Brasil como construção nacional social, foi necessário dar mais voltas à espiral do que supõe Souza. Para isto, precisou-se explicitamente da exotização do corpo negro brasileiro, positivamente pensado como enraizado na tradição. Naturalmente, isto vale também para as outras construções, também para as construções muito negativas do “ser negro”; mas estas não adquirem o status de fundamento identitário para toda a Salvador. Na cantina da Universidade, há comida brasileira de segunda a quinta-feira, e comida baiana às sextas-feiras. Tais ações quotidianas mostram que o Afrobrasil não é simplesmente o Brasil. Fosse isto algo mainstream, não necessitaria ser sinalizado. É ao especial que se concede o lugar. Não um lugar no sentido de um centro espacial que seja, de fato, o coração da cidade, e sim de muitos pequenos lugares e corpos, mais ou menos exóticos. 6 Oswald de Andrade sugeriu, em 1928, no Manifesto Antropófago, que o Brasil somente poderia superar a constelação de poder pós-colonial devorando e interiorizando o estrangeiro. Com o afro, conseguiu-se avançar nisto um bom pedaço. Isto se evidencia também de forma inversa. Da minha varanda, eu pude, por exemplo, observar operários de construção negros, que escreviam rapidamente o nome de Obama no reboco do prédio de caros apartamentos que estavam construindo. A cada dia, ao elaborar esta palestra, eu olhava e via como Obama, de forma lenta, mas firme, ia se movendo pelo revestimento do prédio. Pensada em escalas, a globalização é tanto a construção cultural de um black atlantic quanto de uma rede de world cities. A nacionalização, enquanto processo, necessita da construção de uma tradição comum, na qual se juntem, numa mistura, os diversos estrangeiros. Salvador é o lugar que dá garantia a esta construção, ao preço (que parece valer a pena para Salvador) de que a própria cidade termine ficando fortemente entrelaçada no imaginário das raízes afrobrasileiras – tão fortemente quanto essa história é contada por quem está de fora, em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas também na Afroamérica e nos guias turísticos alemães. Eu sustento que a cidade de Salvador deve fornecer aquilo em que o Estado Nacional Brasil deseja acreditar, e que se presta bem a transformar-se em visibilidade internacional, e também turística: ou seja, raízes. Já constitui um artifício bem sucedido o fato de que a Europa e, por conseguinte, os conquistadores sempre pareçam estar, fundamentalmente, em outro lugar, vendo-se também aqui as consequências de sua atuação, ao passo que a África parece estar aqui mesmo, e ainda mais autêntica do que lá, na África. Isto também deve ter relação com a fraca posição ocupada pela África. Caso se quisesse afirmar que a Europa pode ser encontrada aqui, mais idêntica ainda, ninguém acreditaria nisto. Porém, até mesmo a classe média afroamericana prefere encontrar aqui as suas raízes, num país cheio de riquezas como o Brasil, em vez de na pobre África. Isto significa que o Brasil também é algo porque existe um outro que é muito fraco para se defender da interiorização e da devoração. O problema que eu percebo é que o Olodum e muitos outros representantes da cultura negra em Salvador vão deixando de despertar interesse, e é incerto se, em duas gerações, ainda haverá mulheres que possam, com verossimilhança, apresentar-se em público como baianas. Por isto, Salvador realmente necessita de um lugar que sirva de garantia para esta história, se ela quiser permanecer viva. Muito obrigado pela sua atenção. Referências bibliográficas: Andrews, George Reid (1998): Negros e broncos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Ed. Universidade do Sagrado Coração. 7 Augel, J.; Parente-Augel, M. (1984): Salvador: Historische Größe – Schmerzliche Erneuerung. In: Ernst, Rainer W. (ed.): Stadt in Afrika, Asien und Lateinamerika. Berlim: Colloquim Verlag, p. 93-124. Carvalho, Inaià; Corso Pereira, Gilberto (2008): Como Anda Salvador e sua Região Metropolitana. 2ª edição. Salvador: Edufba. Curtin, Philip D. (1990): The Rise and Fall of the Plantation Complex. 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