1 A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS: UMA RELAÇÃO POLÍTICA EM ANÁLISE∗ JOSÉ ANTÔNIO SOUZA DE DEUS. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS / INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS – UFMG/IGC. [email protected] RAHYAN DE CARVALHO ALVES. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS / INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS – UFMG/IGC. [email protected] RESUMO A produção do espaço urbano, na lógica do sistema capitalista, mediada pelo Estado, promove a segregação socioespacial e limita o acesso a serviços básicos para determinados segmentos sociais. Em contrapartida, surgem articulações dos cidadãos, com componentes político-sociais e socioculturais diversos, e que, emergindo como contra-projetos urbanos, reivindicam os seus direitos; a exemplo das associações comunitárias que propõem reformulações críticas para o espaço urbano. Desta forma, este artigo objetivou abordar a produção do espaço urbano e as ações do Estado sob a égide do Capital como uma forma de segregação social, proporcionando reflexões sobre ações de comunidades. O procedimento metodológico básico utilizado no trabalho foi o levantamento bibliográfico. Vale ressaltar que as aspirações coletivas se materializam sob a forma de discursos e ações, assumindo o papel de luta desenvolvidas em espaços de resistência. PALAVRAS-CHAVE: Produção; Segregação; Urbano; Exercício Coletivo de Cidadania. INTRODUÇÃO Esse trabalho objetivou abordar a produção do espaço urbano e as ações do Estado sob a égide do Capital como uma forma de segregação social, proporcionando reflexões sobre ações de comunidades em contraposição a tal ação sociopolítica opressiva, em busca do aprofundamento da democracia e contra os processos de alienação, num exercício de cidadania. O trabalho está estruturado em dois momentos: primeiramente, aborda a produção do espaço urbano que, numa sociedade hegemonizada pelo Capital, marginaliza e inclui determinados segmentos de serviços sociais, promovendo, em paralelo, a gestação de ∗ Esse artigo é resultado de relatório de pesquisa desenvolvida no Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (01/2012). 2 novas organizações políticas populares que, nesse quadro adverso, apresentam politicamente suas reivindicações; e, a seguir, discute a importância da emergência de comunidades e associações urbanas enquanto processo de ação cidadã, promovendo algumas interfaces para atuações sociopolíticas. Para se alcançar o objetivo proposto, utilizou-se, na pesquisa, como metodologia básica, o levantamento bibliográfico. A ação política e a resistência à manipulação da oferta dos serviços sociais (de responsabilidade do Estado) assumem, aliás, novos significados a partir da mobilização dos grupos comunitários, podendo emergir aí diferentes visões do que seja produzir o espaço urbano pautado no redirecionamento das práticas envolvidas por propostas democráticas sugeridas, e pressionadas, pela população. O URBANO E O CAPITAL: UMA CONTÍNUA (DES) CONSTRUÇÃO SOCIAL A formação das Cidades se deu historicamente num contexto de permanentes atrelamento e subjugação das políticas “públicas” a interesses imediatos na produção e acumulação do Capital, um complexo voltado para a defesa da propriedade, da ampliação dos meios de produção e apropriação privada da riqueza, sendo socialmente e, logo, politicamente produzida. Todo esse processo que fomenta as bases econômicas da dinâmica urbana se fundamenta numa ideologia que percebe os modos e formas de organização social, através do Capital, como característica de uma fase da evolução da sociedade em que a produção social é o retrato do poder dominante do sistema capitalista, hegemonizado pelos capitais financeiros (SOJA, 2001) & (TOPALOV, 1997). Gottdiener (1993) destaca que a cidade faz e refaz os seus planos de governança e prosperidade financeira pela acumulação do Capital, o que é o seu processo funcional, vital, sendo o ambiente construído, como o lugar, um substrato para a sua apropriação em forma de mais-valia. E o Estado se revela como o coordenador do Capital nos investimentos da produção, do trabalho e, principalmente, das despesas com o processo de reprodução dessas forças motrizes do sistema, aliadas a políticas de interesses inerentes às dinâmicas e privilégios da classe dominante. Basta nos remetermos ao histórico da formação sociopolítica e econômica brasileira, desde os governos coloniais até os dias atuais, para percebermos tal envolvimento. 3 Nesse contexto, as despesas com o processo de reprodução do trabalho se relacionam com o que Lojkine (1981) retrata como sendo despesas não produtivas do Capital ou, simplesmente, como capital de despesas. Vale ressaltar que o Estado, como organizador dos investimentos públicos, tem a função de aplicar recursos com o propósito de formar e/ou adquirir bens de Capital de modo a contribuir para o incremento da capacidade produtiva, sendo estes, bens duradouros, tais como escolas, hospitais, fomento de projetos científicos, dentre inúmeras outras ações que contribuem para a formação de aforro. Porém, o que percebemos é que a forma de controle e organização da capacidade produtiva pelo Estado está diretamente relacionada com a lógica da acumulação do Capital e pela busca de um progresso tecnológico/produtivo, produzindo fragmentação de saberes e dificuldade de acesso aos serviços coletivos básicos. O Estado acaba tendo, assim como sua finalidade, a expansão espacial dos segmentos do Capital pelo monopólio do conhecimento e dos serviços-agências, promovendo uma diversidade social da estrutura política urbana (CASTELLS, 1980), onde a Cidade aparece como um movimento voraz da produção que determina diversos eventos, os quais não se compatibilizam, em sua totalidade, com as necessidades de todas as classes sociais, que tecem o tecido urbano, por motivos bem definidos: lucratividade e poder centralizado. E, neste descortinar de se estar fazendo política, “[...] necessariamente, o Estado se origina na contradição entre os interesses particulares e os da comunidade” (HARVEY, 2001, p.80). É nítida a fragilidade de acesso e a precariedade, em termos de qualidade de oferta, dos serviços sociais para a população, explicitando uma crise do sistema urbano, numa lógica de centralização do Capital, privilegiando os seus atores dirigentes. Estando os meios de produção e, também, de consumo, vinculados ao acúmulo do Capital, surgindo contudo, reivindicações materializadas nas múltiplas expressões das associações comunitárias, as quais transformam as suas formas de apresentação numa política social, que tenta reativar a rede da produção da vida. Nesse contexto, os movimentos sociais urbanos (como, por exemplo, a Central Única das Favelas e as Unas, dentre outras, assumem papel de destaque em todo o território 4 nacional, apoiados por organizações “não governamentais” de quem recebem assessoria política para ações/práxis) adquirem, a cada dia, visibilidade política maior, uma vez que se caracterizam pela capacidade de articulação (e resiliência) dos sujeitos motivadas pela regressão dos serviços públicos (CASTELLS, 1980), disparidades socioculturais históricas e a busca por melhoria da qualidade de vida. É relevante assinalar, a propósito, que a formação destes movimentos e associações, proporciona, ao longo da trajetória percorrida pelos atores aí envolvidos, uma experiência afetiva e promovendo, em paralelo, um jogo de incidências sociopolíticas (BASSET & SHORT, 1980) que podem constituir uma “[...] franja contestadora a fim de adaptar e melhorar as suas realidades” (EVERS, 1984, p.17). Podemos perceber inclusive que, pela adoção de uma postura de resistência e de ações políticas, ocorrem mudanças significativas nas vidas dos integrantes de cada comunidade. E, delas, novas formas sociais e valores vão surgindo, pois, mesmo que a burocratização racionalista das atividades urbanas – leis e planejamento urbanístico tendencioso, por exemplo – incida e influencie no plano de vida do homem, não o determina (CASTELLS, 2000), pois, socialmente, ele é capaz de se completar por um grupo que compartilhe com ele as mesmas aspirações, transformando a sua realidade, e tornando-o capaz de construir uma totalidade. Essas comunidades e organizações, no Brasil e na América Latina, buscam uma mudança social justa que contemple as suas necessidades, pois as reivindicações levantadas por elas, na maioria das vezes, são aportadas em melhorias na infra-estrutura em educação, segurança, transporte; e elementos sociais básicos, tais como habitação, rede de saneamento, saúde, além da busca pela promoção de hábitos culturais e articulação em eventos de atos para alocações de trabalho e renda (OLIVEIRA FILHO, 2012). São pertinentes, nesse sentido, as seguintes sinalizações sobre os movimentos sociais: 5 [...] formação de identidade coletiva que se volta para a dimensão do cotidiano e do local de moradia, não tendo os movimentos expressão política em torno da identidade imediata de classe. Em outras palavras, a classe social não aparece explicitamente como o fator de aglutinação dos movimentos em termos de sua expressão política revolucionária [...] Por fim, a base valorativa dos movimentos, embora envolvendo alguma noção de transformação social, não se volta predominantemente para a mudança radical do sistema políticosocial, centrando-se, antes, na defesa de direitos mínimos de cidadania (BARREIRO, 1983, p.73-74). A emergência e consolidação desses movimentos sociais são essenciais, principalmente, no contexto territorial dos países latino-americanos, pois o modelo de desenvolvimento econômico predominante aí e suas formulações e distribuições aplicadas “[...] são incompatíveis com a forma atual de desenvolvimento capitalista do continente, e tais reivindicações sociais têm sentido” (EVERS, 1982, p.133). O URBANO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS: GRITOS DE ALERTA! A exclusão ou restrição de acesso a serviços e estrutura sociais que venham promover uma equidade social são norteadores que influenciam os grupos citadinos a perceberem que a “[...] distribuição espacial da população na cidade acompanha assim, a condição social dos habitantes” (CAMARGO, 1976, p.23) que, na lógica do pensamento político amplo e não monopolizado, representaria uma coerência de serviços para todas as classes sociais, através das localidades e áreas setoriais. Todavia, não é o retrato do quadro da política urbana brasileira, principalmente pelo fato de que “[...] o crescimento urbano implica necessariamente em uma reestruturação do uso das áreas já ocupadas” (SINGER, 1979, p.29), e percebe-se que, de forma ampla, no contexto territorial nacional, a estrutura de planejamento urbano não foi repensada num formato de equilíbrio social que venha a promover acessibilidade socioeconômica e cultural a todos. As estruturas e discussões das várias comunidades que emergiram nos últimos anos no país, “[...] estão se desenvolvendo em todas as sociedades capitalistas” (CASTELLS, 1980, p.15) e tentam reconstruir as relações sociais em uma escala microssocial, ou seja, a sua realidade, que se repensada em uma cadeia de planejamento maior, diante da rede de comunidades e diálogos no lugar, estaria conjugada em uma relação macrossocial urbana de forte impulsionamento político, o que significa que não se devem perceber as comunidades e suas ações como meramente desejos e pronunciamentos sem realizações, 6 pois cada grupo social, condicionado pela sua cultura (lugar e experiência) e localidade, tem dificuldades e desejos específicos. Assim, não existe uma formulação universal que reconstrua as necessidades de forma única, mas conhecer as características de cada área é uma função não ideológica, mas humanamente compreensível, realizável e necessária para a reestruturação política, urbana e social que necessitamos urgentemente. Pensar no todo implica em também se refletir no específico, admitindo que há um mosaico histórico-social influenciando a forma de o sujeito se estabelecer no local e sua dinâmica de tratamento espacial: [...] pois, a sociedade urbana não se trata unicamente de uma simples constatação da forma espacial. A “sociedade urbana”, no sentido antropológico do termo, quer dizer um certo sistema de valores, normas e relações sociais possuindo uma especificidade histórica e uma lógica própria de organização e de transformação, sendo peculiar e com características especificas [...] (CASTELLS, 1980, p.127). Os diversos movimentos sociais tentam, em sua forma de luta, incluírem-se no urbano, na tentativa de excluir a concepção de que “[...] o ambiente urbano é um dado ao qual os citadinos deveriam se adaptar individualmente” (TOPALOV, 1988, p.11), pois esta compreensão representa uma produção da característica do sistema do Capital que é extremamente seletivo. Os movimentos encontram, em suas dificuldades, um esforço de compreender que “[...] a cidade não é mais definida como um dado da natureza, um conjunto de mecanismos de mercado, um objeto de planejamento ou uma cultura: é o produto da estrutura social em sua totalidade [...]” (TOPALOV, 1988, p.12) que se remodela pela postura e conduta dos citadinos em que a interação é a forma de expressão que ganha representatividade no meio social. E, conforme nos esclarece Marini (2002, p.32), um dos objetivos comuns das comunidades e seus eventos é: [...] encontrar alternativas que superem as desigualdades, ampliando o espaço de inclusão na vida social, política e econômica na direção do desenvolvimento, a partir da internalização/fortalecimento dos conceitos de cidadania, equidade e transparência, além da temática própria da gestão contemporânea, que supõe maior eficiência e qualidade no tratamento do interesse público. As organizações das comunidades e associações são exemplos de (des)(+)envolvimento social em busca da essência do homem. Talvez, a nossa maior dificuldade em entender o processo urbano e suas mazelas seja a dificuldade de nos percebemos em um cenário 7 de competição em que o todo não existe. Assim, como Rattner (2001, p.12) aborda, que a forma de nos encontrarmos enquanto seres no processo de produção seja: [...] transformar uma estratégia de crescimento econômico em um modelo de sustentabilidade baseado no bem-estar humano no coletivo. É substituir a competição por empregos; mercados, riqueza e poder pela cooperação como principal pilar de sustentação da vida e da sociedade. Ser político, neste quadro social, é, antes de tudo, ser sensível. Então, devemos ter cuidado ao nos remetermos ao que seja ação política, pois promoção de produção do Capital sem esforço de manutenção da vida social em equilíbrio não é política, principalmente no cenário urbano, pois nenhuma frase expressa melhor a essência da cidade do que a de Shakespeare (apud TUAN, 1983, p.191), ao indagar: “o que é a cidade, senão o povo? E ao responder a esta questão adotando, junto com o autor, o seguinte postulado: “Sim, o Povo é a Cidade”. E não pensar nesta lógica é esquivar-se de entender o que seja a produção do espaço urbano em seus espaços de resistências e lutas para a vitória que buscamos na persistência da coletividade humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os movimentos sociais representam a possibilidade de uma nova composição cidadã em uma escala de desejos em sintonia com uma prática social traçada e objetivada em moldes de equidade, sendo esta a chave principal para a obtenção de uma forma diferente de se compreender a produção do espaço urbano e de se obter avanços e conquistas políticas feitas por todos e para todos, uma vez que as comunidades são exemplos de sujeitos políticos cuja mobilização traduz uma possibilidade de impacto na política no país, trazendo uma reflexão no sentido de se repensar a reorganização dos poderes e propiciando um envolvimento mais amplo da sociedade em sua forma de governabilidade. E esses movimentos são exemplos concretos de que o ambiente socialmente construído é parte da dimensão do espaço enquanto prática, ação e cosmo de um desenvolvimento pautado na esperança, em que os sujeitos tentam reconstruir o seu espaço através dos enredos de suas vidas, cartografadas nas lutas diárias em seu lugar, buscando uma sustentabilidade urbana nos planos político e sociocultural. 8 REFERÊNCIAS BARREIRO, Irlys Alencar. Problemas teóricos na análise de movimentos sociais: comunidade, ação coletiva e o papel do Estado. Espaço e debates. São Paulo: Cortez, n° 8, 1983, pp.64-77. BASSET, Keith & SHORT, John. Housing and residential structure: alternative approaches. Londres: Routledge e Kegan Paul, 1980. CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de, et al. A lógica da desordem. In.: CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. São Paulo 1975: Crescimento e pobreza. São Paulo: Loyola, 1976, pp.21-61. CASTELLS, Manuel. Cidade, democracia e socialismo. 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