Transtornos Invasivos do Desenvolvimento: conceituação e critérios diagnósticos
José Salomão Schwartzman
Professor do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento do Centro
de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo,
SP, Brasil. [email protected]
Fernanda Tebexreni Orsati
Doutoranda em Educação pela Syracuse University, NY, Estados Unidos.
[email protected]
Elizeu Coutinho de Macedo
Professor do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento do Centro
de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo,
SP, Brasil. [email protected]
Os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID) constituem uma categoria
dos distúrbios do desenvolvimento que se caracterizam pela presença de prejuízos
significativos na área da comunicação, interação social e comportamento (APA, 1999).
Atualmente, o diagnóstico dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento é realizado
de acordo com uma avaliação comportamental do paciente, sem que exista um marcador
biológico único que possa caracterizá-lo (Baird e colaboradores, 2003). A estimativa
atual de prevalência dos TID aponta para 6.6/1000 casos na população (Centers for Disease
of Controla and Prevention, 2007). Frente a um quadro de heterogeneidade sintomática e
grande incidência na população, cada vez mais as pesquisas apontam para recursos
diagnósticos que diferenciem as características das crianças dentro dos TID. Uma
compreensão completa do quadro autístico envolve quatro níveis do conhecimento:
etiologia;
estruturas
e
processos
cerebrais;
neuropsicologia;
e
sintomas
e
comportamento (Gadia, Tuchuman e Rotta, 2004).
Definição
O autismo foi descrito pela primeira vez por Leo Kanner (1943). Foi
denominado como Distúrbio Autístico Inato do Contato Afetivo e descreveu que as
crianças apresentavam um grau variado de emergência ao isolamento, ele demonstra
que essas crianças apresentam diferentes graus de inabilidade precoce para desenvolver
contato afetivo.
Desde a primeira descrição de sintomas autísticos, muito tem sido feito na
tentativa de identificar e classificar os sintomas comuns que caracterizem esse distúrbio.
Neste sentido, Wing e Gould (1979) descreveram pela primeira vez os sintomas dessas
crianças como uma tríade de comprometimentos característica do distúrbio autístico,
incluindo: severo prejuízo social; severas dificuldades nas comunicações, tanto verbais
quanto
não-verbais;
ausência
de
atividades
imaginativas,
substituídas
por
comportamentos repetitivos.
Wing, em 1988, introduziu uma descrição de espectro sintomatológico autístico
dependente do comprometimento cognitivo. A partir da descrição de um continuum de
sintomas em sua relação com o nível intelectual. O continuum de sintomas, tais como;
interação social, comunicação social e padrões repetitivos de respostas a estímulos
sensoriais, seriam determinados pela severidade ao longo da distribuição de um
continuum de comprometimento intelectual (Schwartzman e Assumpção Júnior, 1995).
Em 1980, observa-se uma abordagem descritiva para entendimento do quadro
autístico. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 3ª Edição, DSM
III, categoriza os sinais e sintomas comportamentais do autismo infantil, estabelecendo
critérios diagnósticos com início antes dos 30 meses. Em sua versão revisada o DSM
III-R, publicado em 1987 inclui e define o autismo como pertencente à categoria dos
Transtornos Globais de Desenvolvimento das habilidades de comunicação verbal e nãoverbal e da atividade imaginativa. Nessa edição estabelece critérios baseados na tríade
de comprometimentos: 1) prejuízo qualitativo da interação social recíproca; 2) prejuízo
qualitativo na comunicação verbal e da atividade imaginativa; 3) repertório de
atividades e interesses extremamente restritos, e com início a partir do 36 meses de
idade (AGUIAR, 2005).
A última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais,
DSM IV, (APA, 1999) descreve o Transtorno Autista inserido nos Transtornos Globais
do Desenvolvimento (TGD) e define critérios bem específicos para o seu diagnóstico.
Entre os transtornos inseridos nessa classificação estão: Transtorno Autista, Transtorno
de Rett, Transtorno Desintegrativo da Infância, Transtorno de Asperger e Transtorno
Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação (incluindo Autismo Atípico).
Nesta classificação o autismo é definido por atrasos ou funcionamento anormal: dois
itens em interação social, um item na linguagem para fins de comunicação social, e um
item em jogos imaginativos ou simbólicos, com aparecimento de pelo menos um destes
itens, antes dos três anos de idade.
A categoria TGD Sem Outra Especificação (TGD SOE) define-se pela
existência de um comprometimento grave e global do desenvolvimento da interação
social recíproca ou de habilidades de comunicação verbal ou não-verbal, ou na presença
de estereotipias de comportamento, interesses e atividades, sem que sejam satisfeitos os
critérios para um Transtorno Global do Desenvolvimento específico.
Ainda valendo-se de uma abordagem descritiva, o CID-10 (2000), Classificação
Internacional de Doenças, enquadra o autismo nos Transtornos Invasivos do
Desenvolvimento (TID). Definem TID como um grupo de transtornos caracterizados
por alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e modalidades de
comunicação e por um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e
repetitivo. Estas anomalias qualitativas constituem uma característica global do
funcionamento do sujeito, em todas as ocasiões (OMS, 1993). Estão incluídos no grupo
dos TID, além dos Autismo a Síndrome de Asperger e o Transtorno Invasivo do
Desenvolvimento Sem Outra Especificação.
Rutter (2005) demonstrou que nos últimos quarenta anos houve a ampliação do
diagnóstico de autismo. Esta mudança no diagnóstico ocorreu não pela determinação de
características sintomatológicas de um único distúrbio, mas pela introdução da idéia de
um espectro, conhecido como Autism Spectrum Disorder (ASD), em português
Desordens do Espectro Autístico (DEA).
Diagnóstico e Avaliação
O diagnóstico psiquiátrico busca delimitar um transtorno através das descrições
de sintomas e comportamentos, porém a utilização de diferentes sistemas de
classificação diagnóstica e a maneira como a informação é obtida podem causar
variação nos diagnósticos. A avaliação de indivíduos autistas requer uma equipe
multidisciplinar e o uso de escalas objetivas. Técnicas estruturadas existem e devem ser
utilizadas para a avaliação tanto do comportamento social das crianças, quanto da sua
capacidade de imitação (Gadia, Tuchuman e Rotta, 2004).
Os TID são considerados, atualmente, como sendo de causa neurobiológica e
podendo se apresentar de forma isolada ou acompanhada por uma série bastante variada
de condições médicas como, por exemplo: infecção pré-natal (rubéola, citomegalovirus,
entre outras), síndrome fetal alcoólica, síndrome de Down, síndrome de Williams,
síndrome de Angelman, síndrome do X-frágil e várias outras. O consenso entre os
estudiosos é de que os TID não são causados por problemas psicológicos notadamente
os dinâmicos, hipótese que prevaleceu nas primeiras décadas após sua descrição inicial
em 1943 por Kanner.
O diagnóstico dos TID é fundamentalmente clínico e baseado na presença dos
prejuízos já referidos e consideram-se como “padrão ouro” os critérios definidos pelo
DSM-IV (Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Americana de
Psiquiatria). Atualmente o diagnóstico do autismo infantil e dos TID é feito somente de
acordo com uma avaliação comportamental do paciente, sem que exista um marcador
biológico único que possa caracterizá-lo (Baird e colaboradores, 2003). Discute-se que
este diagnóstico de autismo requer uma apreciação clínica cuidadosa com avaliações de
linguagem e neuropsicológica, bem como exames complementares. Entre os exames
complementares destacam-se os estudos de cromossomos e de neuroimagem. Tais
exames podem ser necessários em casos específicos, para permitir identificar subgrupos
mais homogêneos, de acordo com a manifestação comportamental e a etiologia.
Somente assim conseguiremos obter uma compreensão da patofisiologia desses
distúrbios e estabelecer intervenções e prognósticos mais específicos (Gadia, Tuchuman
e Rotta, 2004).
Devido a essas características diagnósticas, a literatura demonstra variações na
estimativa da prevalência do autismo. Em 2003, Fombonne averiguou a média de
prevalência de crianças com autismo e do espectro autistas nos últimos 37 anos, e
percebeu um aumento de 4,4/10.000 (entre 1966 e 1991) para 12,7/10.000 (entre 1992 e
2001). A estimativa atual está entre 30 e 60 casos por 10000 para os Transtornos
Invasivos do Desenvolvimento, sendo a proporção entre meninos e meninas de 4:1
(Yeargin-Allsopp e colaboradores, 2003; Fombonne, 2003; Rutter, 2005). Curiosamente
as meninas, quando afetadas, em geral apresentam grau mais severo de
comprometimento. Diante de tais dados Fombonne (2003) discute que há evidências de
mudança na definição e maior conhecimento do distúrbio. Atualmente um estudo
epidemiológico realizado recentemente na Califórnia apontou para 6.6/1000 casos na
população (Centers for Disease of Controla and Prevention, 2007).
No Transtorno Autista há associação com graus variados de deficiência mental
em 50 a 75% dos casos e neste quadro chamam a atenção a extrema dificuldade dos
indivíduos em interagir com outras pessoas, a ausência ou grande comprometimento no
uso da fala ou de modos alternativos de comunicação e interesses restritos, repetitivos e,
em geral peculiares. Estes indivíduos demonstram excelente memória visual e grande
habilidade em tarefas que exigem habilidades visuo-construtivas.
A síndrome de Asperger apresenta as manifestações que referimos no Autismo
porém com as diferenças de que a inteligência é, em geral preservada ou apenas
levemente afetada e não há atraso significativo no desenvolvimento da linguagem. A
interação social é pobre, em geral estão presentes dificuldades psicomotoras importantes
e a linguagem se faz às custas de frases “emprestadas” ouvidas de outras pessoas, de
filmes, DVD etc. A linguagem oral é, freqüentemente pedante e com alterações bastante
obvias da prosódia. A compreensão da linguagem também está comprometida havendo
uma compreensão literal do que lhe é dito e muita dificuldade para entender metáforas,
duplo sentido e piadas.
Algumas crianças com síndrome de Asperger são confundidas com crianças
super-dotadas por apreenderem, muito cedo, tarefas como ler, jogar xadrez, mexer em
computadores e decorar livros inteiros, calendário perpétuo etc. A síndrome de
Asperger é rara em meninas sendo a proporção de 9 meninos para cada menina afetada.
Uma vez que o diagnóstico, como já foi dito, é eminentemente clínico, exames
laboratoriais ou de imagem não auxiliam na identificação deste quadros, mas devem ser
realizados, em geral, para se determinar a presença de uma das possíveis comorbidades: pesquisa molecular para a síndrome do X-frágil, cariótipo, entre outros.
O Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outra Especificação representa
o quadro menos severo dentro dessas desordens do espectro autista. O termo deve ser
utilizado quando frente a crianças com dificuldades nas três áreas descritas mas com
comprometimento funcional limitado. São os TID em que há menos comprometimento
intelectual e onde as dificuldades na interação social e comportamento são bastante
discretos.
Por razões bastante obvias, quando menos severo for o comprometimento das
crianças mais difícil será sua identificação como portadora de um dos TID. Nos diversos
quadros descritos há algumas características que habitualmente são bastante marcadas.
Como exemplo, podemos citar o grande apego às rotinas razão pela qual costumam
exigir que as coisas aconteçam sempre da mesma forma, no mesmo horário e
obedecendo a certos rituais. Podem ser extremamente seletivos no que se refere à
alimentação chegando a aceitar apenas um tipo de alimento durante vários meses.
Apresentam ainda comportamentos e atitudes aparentemente contraditórias
como tolerar sem demonstrar sofrimento frente a uma queda para no momento seguinte
chorar e gritar em desespero frente a um estímulo táctil de pouca intensidade. Parecem
ser surdos por não responde aos chamados e em seguida, demonstrar que percebem sons
extremamente baixos.
A tríade de comprometimentos (comportamento, linguagem e interação) pode
ser
correlacionada
ao
desenvolvimento
cognitivo
e
neuropsicológico.
Os
comportamentos repetitivos, embora restritos, são característicos no autismo, e sua
etiologia e prevalência devem ser estudadas (Lopez e colaboradores, 2005). Os mesmos
autores descrevem uma relação direta entre déficits nas funções executivas e a rigidez
dos comportamentos estereotipados e rotineiros nos autistas. Outros sintomas como
comportamento rígido, perseveração, resposta não apropriada a situações sociais, falta
de habilidade em aprender com sua experiência, adaptação a modificações ambientais e
falta de iniciativa também podem ser explicadas por dificuldades executivas (Damásio e
Maurer, 1978; Rumsey, 1985). Frente a existência desta correlação as disfunções
executivas no autismo têm sido estudadas como tentativa de encontrar um fator comum
e preponderante para o diagnóstico. Pennington e Ozonoff, em 1996, descrevem 10 anos
de pesquisas realizadas sobre FE e autismo. Eles relatam que de 1945 a 1996 haviam
sido realizados 14 trabalhos e deste total, 13 encontraram diferenças significativas entre
autistas e controles em pelo menos uma medida de FE. Concluem que um dos testes
mais utilizados é o WCST e o que possui melhor efeito discriminativo entre sujeitos
autistas e não autistas é a Torre de Hanói.
Frente
às
características
comportamentais
e
neuropsicológicas
citadas
poderíamos dizer que um dos aspectos que mais chamam a atenção nestas crianças e
adultos é a inconsistência que demonstram no comportamento e na respostas aos
estímulos ambientais. De fato, vários estudos contemporâneos têm procurado estudar as
peculiaridades da forma como os indivíduos com TID exploram figuras com o olhar e
esta é uma área de pesquisa extremamente promissora e interessante. A análise dos
movimentos oculares como instrumento de avaliação neuropsicológica possibilita a
compreensão dos mecanismos de controle de respostas motoras, assim como o efeito
desse controle motor nos distúrbios do desenvolvimento (Goldberg e colaboradores,
2002). Estudos de anormalidades do movimento ocular expandem o conhecimento
sobre processos complexos de maturação cerebral, de regulação genética, do
desenvolvimento dos sistemas cerebrais complexos e processos cognitivos (Sweeney e
colaboradores, 2004). Pesquisas vêm sendo realizadas no Brasil demonstrando a
importância de se estudar os movimentos oculares em diferentes processos cognitivos
(Covre e colaboradores, 2005), como também em habilidades atencionais (Macedo e
colaboradores,
2007),
habilidades
de
leitura
e
diversos
distúrbios
do
neurodesenvolvimento como distúrbios psiquiátricos (Macedo e colaboradores, 2005) e
transtornos invasivos do desenvolvimento (Mercadante e colaboradores, 2006).
Dentre as pesquisas de anormalidades no movimento ocular nos TID um
trabalho de revisão (Sweeney e colaboradores, 2004) defende a importância do estudo
de movimentos oculares na determinação de endofenótipos e na investigação de
aspectos cognitivos e neurofisiológicos. Tal trabalho relata ainda a importância de se
estudar processo de engajamento atencional, assim como processos executivos dos
autistas.
Vivemos atualmente uma ênfase sobre a possibilidade de se levantar a suspeita
da presença de um TID nos primeiros meses de vida. Na verdade o diagnóstico de TID
pode ser aventado nos primeiros anos, mas somente definido, com os métodos de que
dispomos hoje por volta dos 5-6 anos de idade. Seria importante levantar a suspeita
deste tipo de patologia antes, pois admite-se que a identificação precoce possibilitaria
uma atenção especial à criança o que poderia levar a uma atenuação importante no
quadro clínico.
Dado que não deve deixar de ser mencionado é de que temos, atualmente, várias
evidências da importância de fatores familiares em boa parte dos quadros de TID.
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