Revista Interdisciplinar de Humanidades Ngunga: Lições de um jovem flâneur GONÇALVES, Luciana Sacramento Moreno. estrema: revista interdisciplinar de humanidades, número 2, Primavera 2013 Um projecto do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Para informação adicional http://www.estrema-cec.com Ngunga: lições de um jovem flâneur1 Luciana Sacramento Moreno Gonçalves2 Resumo Este artigo realiza uma interpretação do romance de Pepetela: „As aventuras de Ngunga‟, a partir de sua intenção pedagógica, inserindo-o no tipo de narrativa, conhecida como Bildungsroman. Neste, identificamos como flâneur o personagem central. Para tecer considerações sobre o tom pedagógico que envolve o texto, observamos a compreensão de como se estrutura o romance de formação (Bakhtin, 1992), depois reconhecemos a intenção do autor em fazer da escrita uma prática revolucionária (Lajolo 2001). Por fim, ao compreendermos em Ngunga, características como a do ser errante que se integra ao local como forma de resistência, o indicamos como um jovem flâneur, orientados pelas provocações de Baudelaire (1996) e Benjamin (2009). Palavras-chave: Bildungsroman, flâneur, literatura Abstract This paper presents an interpretation of Pepetela‟s novel Ngunga's Adventures: A Story Of Angola from its pedagogical intention and comprehending it in the kind of narrative known as Bildungsroman. In this article, the central character is seen as a flaneur. In order to make considerations about the pedagogical tone surrounding the text, we observe the understanding of how the novel of formation (Bakhtin 1992) is structured. Then we recognize the author‟s intention of writing as a revolutionary practice (Lajolo 2001). Lastly, we understand Ngunga as a wandering being that correlates to the place as a resistance form, we see him as a young flaneur, guided by Baudelaire (1996) and Benjamin (2009) provocations. Key words: Bildungsroman, flâneur, literature 1 GONÇALVES, Luciana Sacramento Moreno. 2013. Ngunga: lições de um jovem flâneur. estrema: Revista Interdisciplinar de Humanidades 2, www.estrema-cec.com 2 Professora da Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação – Campus XIII. Doutoranda em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 1 Introdução Este ensaio realiza uma interpretação da obra As aventura de Ngunga. A perspectiva escolhida para trilhar os caminhos que envolvem a compreensão deste texto literário gira em torno do tom pedagógico que permeia a obra, incluindo-a no rol dos romances de formação e também da caracterização do personagem central como um flâneur. A narrativa estudada foi escrita por Pepetela, um descendente de portugueses, nascido e criado em Angola, que se integrou à luta anticolonial, tornando-se membro do Movimento pela Libertação de Angola – MPLA, tendo participado ativamente do processo de independência deste país. Pepetela é um autor que se interessa pelas diversidades constituintes de seu país, sem ressalvas nem rodeios, pois, apesar da sua declarada intenção político pedagógica de orientação marxista, aponta os problemas que envolvem a dominação portuguesa, as culturas tradicionais angolanas e a estrutura e organização do próprio movimento. Por isso, na sua literatura, questões históricas, antropológicas, sociológicas e culturais angolanas serão o cerne da narrativa. Além disso, sua obra se caracteriza pela vasta produção de romances de formação. Desta forma, “sua experiência na luta contra o colonizador (...) fazem com que suas narrativas conduzam o leitor ao descobrimento de uma Angola inteiramente diferente da focalizada pelos discursos oficiais” (Dutra 2011, p.270) As aventuras de Ngunga, primeiro romance de Pepetela, foi produzido e publicado nos anos de pleno acirramento da guerra colonial. Segundo o próprio autor, foi escrito em dez dias no ano de 1972, como tentativa de tornar o material didático usado para a alfabetização mais comprometido social e politicamente com a causa e, consequentemente, mais atrativo e eficaz na aprendizagem da leitura e escrita. Só ao término do processo de produção, Pepetela compreendeu que havia uma história e decidiu pela publicação da obra no ano seguinte. Ainda assim, segundo Lajolo, o texto foi “divulgado pela primeira vez em 1973, a partir de 300 exemplares mimeografados pelo MPLA, que circularam de forma sorrateira entre os combatentes (...)” (2001, p. 86). O interesse inicial por este estudo dá-se pelo fato de ser uma obra pensada para ter como público alvo os leitores jovens. O fato de trazer à cena dilemas bastante pertinentes aos sujeitos que passam pelo momento de transição entre o universo infantil e o universo adulto, sendo ora tratados como crianças e, até mesmo, agindo como elas e ora cobrados a assumirem comportamentos de adulto ou vivenciando experiências de amadurecimento e aprendizagem, foi a questão que definiu a escolha. Vemos em Ngunga uma criança que apesar de ter consciência crítica do universo adulto, vivencia o lúdico, a plenitude, o desejo de proteção e a 2 curiosidade infantis. Entretanto, corajoso, apesar de discreto e modesto, tem um desejo intenso por aprender sobre si e sobre o mundo – que insinua estar este personagem ingressando na etapa da vida, conhecida como juventude. Ngunga tem muito a dialogar e, como intencionava Pepetela, a ensinar, a outros jovens, especialmente, porque na contemporaneidade os mais novos geralmente são incentivados a competir em busca de seus sucessos individuais e a duvidarem das causas coletivas. Ngunga vai contra esta turbulenta maré e ensina a todos, independentemente da faixa etária, que é possível mudar o mundo, sim, basta empreender com ousadia uma longa e exaustiva viagem, partindo de si mesmo até a amplidão extrema. Todavia, sem ingenuidades descabidas, ecoa a pergunta do compositor Frejat (2011): “Mas quem tem coragem de ouvir/ Amanhecer o pensamento/ Quem vai mudar o mundo/ Com seus moinhos de ventos?”. E Ngunga parece ter tal capacidade de inaugurar novas ideias e comportamentos. O jovem menino torna-se órfão quando seus pais são mortos nas lavras e os horrores da guerra colonial passam, desde muito cedo, a fazer parte de seu cotidiano. Nem por isso, torna-se um amargurado; é uma criança alegre e altiva. Sai de casa para transitar por seu território, como um errante que vagueia por todo e qualquer lugar que o acolher. A itinerância é sua vida e serve como o melhor espaço de aprendizagem e crescimento. Assim, Ngunga, através da vivência, acaba por aprender sobre a geografia, fauna, flora e os costumes de uma Angola que sofre a dominação colonial portuguesa, lutando pela sua libertação e independência. Ngunga, mais do que isso, envolve-se nos lugares por onde passeia, transformando, ao seu modo, espaços e pessoas. 1. Ngunga: um romance “revolucionário” de formação Magda Soares (2006) afirma que a literatura escolarizada é aquela voltada para a escola e destinada a crianças e jovens desde sua produção. Em As Aventuras de Ngunga sabemos, pela voz de seu autor3, que esta história, desde sua gênese, intencionava ser usada como material didático de apoio à alfabetização escolar. Além disso, a narrativa volta-se para jovens e retrata a história de formação e aprendizagem de um menino até atingir a maturidade. Por tudo isto, afirmamos que este livro encaixa-se no rol do texto literário escolar e nas narrativas designadas de romance de formação. Todavia, tais segmentos literários são tidos, geralmente, como redutores ou direcionadores. A literatura na escola é vista por muitos educadores como 3 “(...) os miúdos só tinham os livros da escola para ler o português, concluí que era preciso fazer textos de apoio, é ai que começa o Ngunga”. Entrevista concedida por Pepetela à Universidade Nova de Lisboa, disponível em: http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/pepetela/ngunga.html, acesso em: setembro, 2011. 3 uma prática indicadora de uma diminuição do valor da obra literária, por privilegiar apenas os clássicos literários, ser de cunho moralizante, fragmentar a obra e se voltar para questões gramaticais ou meramente avaliativas. Apesar disso, Magda Soares e, certamente, o próprio Pepetela defendem o texto literário pedagógico por que: (...) não há como evitar que a literatura (...) ao se tornar „saber escolar‟, se escolarize, e não se pode atribuir (...) conotação pejorativa a essa escolarização inevitável e necessária; não se pode criticá-la ou negá-la, porque isso significaria negar a própria escola. (Soares 2006, p. 21). Pode-se, sim, é claro, criticar a apropriação limitante e errônea que a escola tem feito do texto literário, mas isso não significa sugerir que o texto literário não transite pela escola ou até que sua leitura não seja realizada como prática de trabalho das diversas áreas de conhecimento. Pelo contrário, defender a presença da literatura na escola pode ser mais uma maneira de torná-la um espaço democrático de diálogo e construção de saberes diversos. Pepetela, ao pensar nas aventuras do menino angolano, coloca a literatura escolarizada com uma das formas de conhecer a realidade e intervir nela. O fato de este ser um romance pensado para ser usado na escola ratifica que a luta pela libertação de Angola não se restringe apenas à independência política, mas se relaciona à libertação das mentalidades coloniais e arcaicas. E a educação configura-se, neste contexto, como o espaço em que este acontecimento pode vigorar, pelo seu potencial transformador singular e decisivo, ainda que tardio. Além disso, elencamos este como um Romance de Formação, pois o termo alemão Bildungsroman foi cunhado pela primeira vez para indicar que tal justaposição indica tanto o estabelecimento do romance, quanto “o processo de aperfeiçoamento do indivíduo burguês nas circunstâncias peculiares do processo histórico e político da Alemanha dos últimos trinta anos do século dezoito” (MAAS 2011, p. 1). Desta forma, um romance poderá ser assim nominado pelo “seu conteúdo porque ele representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade” (Ibidem). Assim, o que caracteriza uma narrativa como romance de formação são os fatos, os outros homens, a sociedade, a cultura, que agem sobre o protagonista, levando-o paulatinamente a uma formação interior. Para Bakhtin, no quinto tipo de romances de formação: A formação do homem efetua-se no tempo real, necessário, com seu futuro, com seu caráter profundamente cronotópico. O homem se forma, ao mesmo tempo, que o mundo, reflete em si mesmo a formação histórica do mundo. Ele é obrigado a transformar-se em um novo tipo de homem, ainda inédito. A imagem do homem e devir perdem seu caráter privado e desembocam na esfera espaçosa da existência histórica. (Bakhtin 1992, p. 239-240 apud MAAS 2001, p. 3). 4 Apesar de os livros terem nascido na cultura ocidental e dos romances de formação terem se popularizado nos meios burgueses, eles “(...) costumam ser concebidos como eficientíssimos agentes de contracultura, de resistência cultural, e até mesmo como arma revolucionária” (Lajolo 2001, p. 87). Assim, apesar deste ser um romance de formação, sua intenção pedagógica é revolucionária; não serve para conformar os sujeitos ou orientá-los a viver na sociedade da forma que ela é, mas, pelo contrário, orienta-os a provocar/agir para a mudança radical, para a mudança ampla, irrestrita, de dentro para fora. Portanto, representa uma desestabilização da aceitação do colonialismo e, ao trazer possibilidades oponentes ao status quo, propõe a perspectiva da resistência e da reafirmação das identidades (Caetano 2006, p. 44). Em Ngunga, a narrativa direciona-se ao momento histórico em que o povo angolano se libertará da dependência política, cultural e econômica de Portugal e sua transformação individual é importante porque ela servirá como uma das micro-estruturas a impulsionar a reação em cadeia geradora da grande mudança. Em narrativas, como As aventuras de Ngunga, evidencia-se o processo de crescimento global de um indivíduo. A história começa com um menino ferido que se comporta como criança, pelo medo do socorrista, pelo choro espontâneo e vai, ao longo do texto, posicionando-se ora como um ser infantil, ora como um indivíduo adulto, até chegar ao final em que o narrador anuncia sua derradeira transformação: “um homem tinha nascido dentro do pequeno Ngunga” (p. 57). E isso não se dá obviamente apenas pela transformação de caracteres biológicos. Dá-se sobretudo pela maturidade, autonomia, segurança que o personagem vai adquirindo no desenrolar das ações. Para o protagonista do texto, viver é deslocar-se. E se deslocar é aprender, tanto que ao final da narrativa o protagonista constata: “Mudei muito agora, sinto que já não sou o mesmo. Por isso mudarei também de nome” (p. 56). Nesse trânsito geográfico e intelectual, ele aprende sobre muitas coisas. A descoberta e a própria aprendizagem dão-se assim pela experiência vivida. O romance acaba por alertar que “somente a partir da vivência de certas situações o sujeito sente a necessidade e percebe a importância de algo” (Bayer 2008, p. 274). Muitos aspectos do romance de formação aparecem na narrativa angolana estudada, como o aparecimento de um mentor intelectual que orienta a trajetória do protagonista e o guia, indicando caminhos, de certa forma, moldando seu percurso. Em Ngunga, todos os adultos envolvidos na luta pela independência de alguma forma ensinam a Ngunga o que deve ser feito. Destacam-se como guias intelectuais do menino o professor União e o camarada Nossa 5 Luta. Entretanto, Ngunga também considera como mentores aqueles que o oferecem um antimodelo, pois escolherá realizar suas ações contrariamente as daqueles. Em tais romances, ocorre a presença do herói extraordinário, com destino singular e cuja descrição física e psicológica não é costumeira entre os demais. Ngunga impacta o leitor por ser diferente. Ao contrário dos que estão na frente das batalhas, é uma criança, com braços frágeis e corpo franzino, todavia sua coragem, inteligência, altruísmo e ousadia surpreendem por estarem em desencontro com sua estrutura física raquítica. Outro fator comum em romances de formação é a presença frequente de etapas que o preparam para a transformação e integração na coletividade adulta, designados de rituais de iniciação. Através da iniciação, o jovem é “formado, no verdadeiro sentido da palavra; não só se torna fisiologicamente adulto, mas também é tornado apto para assumir a condição de homem” (Eliade 1989, p. 165 apud MAAS 2001, p. 6) Durante a iniciação, enfrenta o pavor, o sofrimento e a tortura; geralmente deve matar um homem, repetindo “o mistério instituído pelos deuses”4; separa-se de sua família5; passa por um processo de confinamento e solidão no mato6 onde geralmente pode refletir sobre suas ações, tomar novas decisões e iniciar sua nova trajetória7; a sexualidade8 é revelada; além da presença da morte, necessária para o desaparecimento do antigo ser (uma criança imatura) e a emergência do novo ser (um homem especial). Ngunga, segundo Lajolo, se aproxima de outros romances de formação por questões como o fato do protagonista ser criança, portanto, frágil e inseguro. Além disso, é órfão de pais e pátria, sofrendo dupla carência e “tendo o colonialismo como agente de sua orfandade, sua busca de sobrevivência solitária e auto-suficiente coincide com a busca do povo angolano do estatuto novo de nação independente”. (Lajolo 2001, p. 89). Neste contexto, o romance de formação, que em outro momento serviu a conformação e aceitação de ideais colonialistas, é produzido neste caso para a inauguração do contrário: a libertação/independência. É a velha história do veneno que é seu próprio antídoto. 4 “Matei um! – gritou Ngunga. – Matei um!” (p. 31). “O pai, que era já velho, foi morto imediatamente. A mãe tentou fugir, mas uma bala atravessou-lhe o peito. Só ficou Massango que foi apanhada e levada para o Posto” (p. 06). 6 “Caminhava de novo sozinho. Livre, mas só (...) Os pensamentos fizeram-lhe companhia. (...) Andou três dias perdido na mata” (p. 40-41). 7 “Tinha de encontrar um kimbo ou uma seção. (...) Decidiu marchar para leste” (p. 40). 8 “Nessa noite, Ngunga sonhou que tinha sede e uma menina vinha dar-lhe água, segurando-lhe a cabeça para poder beber. Essa menina tinha a cara de Uassamba e seus olhos assustados de Gazela” (p. 43). 5 6 Todavia, a narrativa apresenta rupturas em relação a outros romances de formação. Possui uma linguagem simplíssima, cujas marcas da oralidade das narrativas populares são intensas, “sugerindo uma recepção de texto que se afasta da recepção livresca, escolar, ocidental” (Lajolo 2001, p. 90). Além disso, em Ngunga não se ratificam valores ortodoxos de uma estrutura social inquestionável. “Ao contrário, a nuance, o meio-tom e ambiguidade estão presentes o tempo todo, fecundando o texto” (Lajolo 2001, p. 91). Desta forma, apesar do autor ansiar por mudanças conjunturais, seu teor pedagógico não o torna um direcionador de caminhos nem um apontador de possibilidades certas ou erradas, melhores ou piores. Há uma situação de conflito, um desejo de transformações e muito a se fazer. No entanto, sabe-se que o caminho se constrói no próprio percurso e todos devem agir, tentando a assertividade, mas cientes da necessidade de enfrentar incertezas (Morin 2005). A narrativa também destoa dos romances de formação em geral por não se encaixar naqueles casos em que o ser criança em nome do advento da maturidade é sufocado e reprimido. Ngunga, em sua múltipla jornada de menino-adulto, resiste à fácil dominação infringida à criança pela manipulação adulta, pois: “Em seu longo itinerário de conquista da maturidade – que nas circunstâncias específicas angolanas equivale a tornar-se militante na luta pela libertação do país, Ngunga preserva a noção de liberdade individual e lhe dói sempre a injustiça de um mundo organizado e gerido por adultos autoritários, mesmo quando esses adultos são pioneiros e/ou guerrilheiros”. (Lajolo 2001, p. 91) O protagonista nunca se deixa seduzir pelos benefícios e poder do universo adulto; até porque acha que todos os adultos são egoístas. Em contrapartida, defende que as crianças possuem algo de melhor e mais genuíno. Sua juventude representa “sua adaptabilidade e potencialidades para mudanças” (Bayer 2008, p. 280). Desta forma, torna-se útil sua condição de criança em transição, pois tal escolha remete-nos à aposta que muitas sociedades têm feito na educação dos jovens para que eles a médio e longo prazo sejam atores da mudança ensinada na vida, na luta e também na escola. Assim, permanece na narrativa a concepção de que “há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor e fruto” (Nascimento 2011). No centro da narrativa, o jovem em formação aparece para que outros jovens – os angolanos leitores da obra – insurjam contra o contexto histórico em que vivem e tornem livre o país e a si mesmos. Assim, “a libertação de Angola centra-se na figura do homem-menino que, curioso, rebelde, sedento em conhecer o mundo e as leis regentes, está em desacordo com esse universo, por isso, quer transformá-lo” (Bayer 2008, p. 279). 7 Desta forma, esse texto literário escolar “ultrapassa a intenção didática que o originou” (Caetano 2006, p. 44), pois propõe uma concepção de escola que liberta, não que aprisiona; que insubordina e não que conforma. Sugere que a ruptura com o colonialismo pode indicar um colapso, mas a instauração de aparente caos é gerador de uma nova ordem mais democrática, esta pós-colonial. Assim, na narrativa, percebe-se obviamente uma intenção didática, todavia sem se configurar como “uma lição a ser assimilada como a verdade última do indivíduo ou da coletividade” (Ibidem). Neste universo, Ngunga torna-se exemplo a ser seguido por outros jovens em formação porque ele alia duas contestações. Uma refere-se ao que é estrangeiro, ao que está fora e se insere no local como poder opressor, neste caso, o domínio colonial português. A outra, no entanto, relaciona-se a combates mais difíceis de empreender e compreender, porque eles nascem de conflitos internos e envolvem aqueles com os quais nos irmanamos e dos quais nos declaramos pertencentes. Vem de dentro e refere-se à tradição obsoleta angolana, bem como à estrutura do movimento pela libertação de Angola. A narrativa termina com um final em suspenso; não se restaura a harmonia ansiada nem se resolvem definitivamente os conflitos. Ngunga simplesmente desaparece e isto tem um efeito estupendo, pois cria além do mito, muitas inquietações. Primeiro pelo fato de Ngunga ter atitudes seguras, corajosas e íntegras. Depois, por este jovem herói não ser um ente sobrenatural nem divino; ele é humano; é um do grupo ou talvez seja cada um necessário para fortalecer uma tomada de posicionamento individual e coletiva dos sujeitos leitores e provocar a transformação desejada. Eis o engenho criativo do escritor que vincula esta escrita ao contexto social da militância: esta obra literária consegue emocionar e evocar imagens de ímpar beleza sem deixar de evidenciar sua intenção pedagógica e política. 2. Flâneur: Ngunga, inaugurando perspectivas Neste artigo, intencionamos, de maneira despretensiosa, associar a figura do Flâneur ao personagem Ngunga, a fim de observar se é possível transpor tal concepção para o aludido contexto. Inicialmente, abordamos uma reflexão do errante que vagueia a esmo pela cidade, através de Baudelaire. Depois, buscamos em Benjamin as articulações necessárias para pensar tal personagem. É bem verdade que a Angola de Ngunga não possui os arroubos modernistas nem industriais da França de Baudelaire, do século XIX, entretanto, em ambos os casos, encontramos um indivíduo que “reinventa a cidade a cada passeio, interpreta infra-estrutura 8 amealhada de qualquer significação para aqueles que não compreendem suas peculiaridades (...)” (Bastos 2013, p. 4). Por isto, compreendemos o Flâneur como aquele que deambula, divaga, porque para Baudelaire, passear como vagabundo constituía-se uma ação contemplativa que desembocava numa aprendizagem sobre as formas de ver, compreender e intervir no mundo. Assim, o flâneur assume em sua postura uma dimensão política, pois vadiar no meio da multidão se constitui em “resistência e desprezo contra a rotina que a máquina inaugurava”. (Saturnino 2013, p. 8). Em Ngunga, também observamos a errância, atrelada a uma atitude política, todavia, no contexto baudelaireano, tal atuação política não é partidária. Já quando nos referimos ao jovem angolano, esta atuação associa-se a uma militância específica e explícita: ao ideal socialista do MPLA. O flâneur se insere na multidão, dissolvendo-se nela e tornando-se parte do cenário. “está em todos os lugares e ao mesmo tempo em nenhum lugar. Entre todos, porém sozinho”. (Passos et al. 2003, p. 7). Para Baudelaire, ele consegue transitar pela cidade, desprendendose de seus limites superficiais. Assim, torna-se “(...) um observador apaixonado que elegeu domicílio na invisibilidade. Ele habitava o inconstante, o movimento, o fugitivo e o infinito, e nisto estava o seu imenso gozo”. (Baudelaire 1996, p. 18). No ato de observar a esmo, “a curiosidade pode ser considerada como ponto de partida de seu gênio” (Idem., p.15), que se interessa por tudo o que se enuncia em seu derredor. É assim, também Ngunga que em seu transitar contínuo pela Angola em plena guerra colonial, para a ouvir os mais velhos ou a brincar com seus pares crianças e jovens, como olhar desejoso de tudo ver, tudo saber, tudo compreender. Para o flâneur Ngunga, “é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e, contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo (...)” (Idem., p. 19). Neste contexto, Marcel Rèja (1907, p.131 apud Benjamin 2009, p. 461), poeta francês, adverte-nos: “eu viajo para conhecer minha geografia”. Essa aparente contradição mostra o quanto conhecer o mundo para enxergar suas diferenças e aproximações com o lugar de onde viemos nos ensina a saber quem de fato somos. Se pensarmos no protagonista da narrativa que ora analisamos, observaremos que, ao longo dos vinte e nove capítulos do livro, é isso que ele faz; percorre uma trajetória de mão única, em que só é possível seguir, não há retornos. Sua passagem por todos estes lugares, apenas tem um fim: conhecer-se a si mesmo para crescer e se tornar homem. Desta forma, a maturidade aprendida através da viagem 9 provém dos pontos por que passa, levando a chegar a sua identidade plural, fragmentada, em construção. O primeiro passo desta trilha acontece quando sai da casa dos pais, por força do destino, e vai morar, por um tempo, na casa da Velha Ntumba, onde é acolhido e alimentado. Apesar disso, lá também é apresentado a situações de trabalho, humilhação e exploração, que o ensinam a importante lição de compreender que a vida é dual, ambígua, complexa. Depois, segue para a casa do camarada Nossa Luta e lá aprende sobre a revolução, a guerra colonial e começa a ingressar no universo que o transformará num importante agente do combate. Ferese e, mais uma vez, deve sair da acomodação e prosseguir para a casa do camarada Socorrista. De lá leva mais um ensinamento: é preciso ter maturidade para cuidar das dores suas e/ou das alheias. Sua viagem continua e os caminhos acabam por levá-lo para a Casa do Presidente Kafuxi. Lugar onde aprende que dentro do próprio movimento há corrupção, há camaradas que tentam tirar proveito dos outros camaradas. Então, mais uma vez, prossegue, “salta para o outro lado do Kuando e anda dois dias até Quembo” (p. 16). Nestes percursos, observa os rios, as árvores, os pássaros, as montanhas. Chega a uma seção de guerrilheiros e seu encantamento pela luta trata de seduzi-lo cada vez mais, levando-o a decidir ficar. Até que é levado para a Escola, local onde encontra o professor União e aprende a mais importante lição: “um homem só pode ser livre se deixar de ser ignorante” (p. 37). É também na escola que Ngunga posiciona-se inesperadamente como o verdadeiro pioneiro que é, matando um dos tugas. A partir daí, é preso no Posto de Cangamba, tornando-se criado do chefe da Polícia Internacional e de Defesa do Estado - PIDE. Através de sua astúcia e determinação, consegue fugir pela mata cerrada ao leste, mas fica perdido por três dias. Lá o isolamento leva-o à reflexão e à tomada de consciência: “um pioneiro do MPLA luta onde estiver” (p. 38). Continua sua caminhada, sem jamais se intimidar e encontra o Kimbo de Uassamba, onde descobre o amor. Apesar de desejar ficar é obrigado a seguir para a Seção do Comandante Avança. Depois, retorna ao Kimbo onde reside Uassamba, todavia lá já não é mais o mesmo lugar do amor revelado; é o lugar do amor não realizado, da decepção e, o mais importante, da constatação de que não é preciso apenas libertar-se do julgo português, mas, sobretudo, de mentalidades e costumes arcaicos que acabam por limitar a história do povo angolano. Por fim, todos estes caminhos empreendidos o levam à descoberta de si mesmo e o desaparecimento de Ngunga nos deixa a latente revelação: cada um de nós, ao ler o texto, também se descobre um Ngunga, ou pelo menos, “cada um de nós que recusamos a viver no 10 arame farpado, nós os que recusamos o mundo dos patrões e dos criados, nós os que queremos o mel para todos” (p. 59). Ngunga segue sempre em frente, apesar da incerteza de nunca saber o que ou quem encontrará no seu caminho. Ele também não foge sorrateiramente. Geralmente, vai embora porque julga que já aprendeu/apreendeu daquele lugar tudo o que havia para ser ensinado. Algumas vezes, ele mostra aos presentes que vai embora e segue seu caminho, outras vezes deixa-se levar pelos mais velhos, apenas por acreditar que aquela é a melhor escolha. Todavia nunca se esquiva de qualquer coisa, vai embora quando quer ou precisa. Desta forma, por sua errância e por perambular pelos diversos lugares, confirmamos a identificação de Ngunga como um flâneur. Compreendemos que o jovem pioneiro associa-se ao sentido do termo, explicitado por Baudelaire (1996) e ampliado por Benjamin (2009), mas distancia-se em outros aspectos, induzindo-nos a pensá-lo como um flâneur que se atualiza, aproximando-se das exigências e demandas da pós-modernidade. Ngunga está no centro das cenas; é um solitário, errante. Sua itinerância o leva a integrarse intensamente ao local; não é um mero viajante, porque em seus caminhos não passa pelos lugares apenas, nem leva consigo meros souvenires. Ele vivencia a dinâmica do lugar; aproxima-se das pessoas e contempla seus modos de ser e viver em comunidade. Quando está no local, age como um da comunidade. Por isso, todo espaço novo por onde transita “abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como quarto” (Benjamin 2009, p. 462). Todo lugar é para ele lugar de contemplação e aprendizagem, mas também é o seu espaço; evoca uma parte de si mesmo. Assim, toda Angola (seus rios, montanhas, animais, vegetação e gentes) é a própria casa de Ngunga. O lugar com paredes e aparência de casa convencional, onde vivem os colonizadores, configura-se para ele como uma prisão. Como o flâneur, Ngunga embriaga-se, caminha a esmo, e mesmo faminto, continua seu empreendimento até a exaustão, entregando-se plenamente ao percurso. Todavia, apesar de perder-se, não há devaneios. Ngunga é prático, determinado, jamais perde o foco. De maneira decidida, apesar de contar com as incertezas do caminho e com a possibilidade de ser levado por força das circunstâncias ou da dominação de outrem, jamais deixa de ter consciência disso e de tomar decisões usando sua autonomia e livre arbítrio. Assim, este jovem personagem renova a concepção de flâneur. Ngunga vivencia o lugar, sorvendo dele suas interpretações e experiências. Ele se aproxima constantemente das pessoas, especialmente as mais velhas, para conhecê-las nos momentos em que vivenciam práticas sociais cotidianas. Ngunga tem o hábito de ouvi-las 11 para saber desde as notícias mais atuais sobre o local, até sobre questões culturais e filosóficas. Mas também, muitas vezes ao se aproximar do outro nada diz, porque é no silêncio atento que Ngunga vai conhecendo o mundo, a si mesmo e tecendo suas aprendizagens sobre Angola e sobre seu processo de relação/ integração individual e coletiva. Desta forma, aquela embriaguez anamnésica, na qual o flâneur vagueia pela cidade não se nutre apenas daquilo que lhe passa sensorialmente diante dos olhos, mas apodera-se frequentemente do simples saber , de dados inertes, como de algo experienciado e vivido. Este saber sentido transmite-se de uma pessoa a outra, sobretudo oralmente. (Benjamin 2009, p. 462) É por isso, que toda vez que Ngunga chega ao local, ele se aproxima em silêncio das pessoas, especialmente dos mais velhos e as ouve atentamente. Pouco interfere na fala do outro, mas observa e exerce a difícil ação da escuta atenta e assim aprende também os gestos, os discursos, os movimentos, os olhares outros. Nas pessoas diversas, encontra seus professores; elas o ensinam sobre os costumes, a tradição, a história, a geografia; falam sobre a guerra sob diversos pontos de vista. O solitário Ngunga está sempre cercado por uma multidão e ele se integra à aglomeração de pessoas como estratégia, pois se por um lado, neste jogo, ocorre uma incorporação do individual ao coletivo; por outro, possibilita que através do apagamento/ diluição deste individual no todo, seja possível infiltrar-se tão intensamente, a ponto da parte se esconder e/ou desaparecer no todo e se constituir no próprio local. Assim ao desaparecer na multidão, e aparentemente esconder-se, transforma-se nela. O menino-homem angolano em suas aventuras é multifacetado, pois “de um lado, (...) se sente olhado por tudo e por todos, como um verdadeiro suspeito; de outro, (...) pode dificilmente ser encontrado, o escondido” (Benjamin 2009, p. 465). Por isso, ao mesmo tempo, que Ngunga é percebido e destacado nos lugares por onde caminha, a exemplo da vez em que viaja como o Comandante Mavinga; ele também passa despercebido pelos outros locais, a ponto de sentar-se ao lado dos mais velhos, beber o hidromel9 deles e só depois ser identificado como uma criança que partilha do lugar dos adultos ou que está fora do seu lugar. Ao usar tal estratégia, Ngunga rompe com os limites geográficos, temporais e sociais. Esta dubiedade do nosso herói serve mais uma vez como combinação astuciosa para o menino manter-se no ostracismo quando lhe é conveniente ou expressar-se quando é preciso. 9 Hidromel é uma bebida alcoólica fermentada à base de mel e água, sendo utilizados, em geral na sua produção, uma proporção de uma parte de mel por duas de água, mas pode variar conforme a receita ou a região de produção. 12 A Angola de Ngunga abre-se para ele “como uma paisagem sem limiares” (Benjamin 2009, p. 466). Não há fronteiras, pois ora se camuflando ora se revelando, Ngunga consegue entrar e sair de todos os lugares. Nesse intenso trânsito, cada vez que mais se distancia do ponto de onde partiu, torna-se mais envolvido com a guerra colonialista e a luta pela libertação de Angola, pois sabe que “(...) só a revolução cria o ar livre na cidade” (Ibidem). Desta forma, inserir-se na luta pela independência não é prender-se nem limitar-se, pelo contrário, significa ampliar as possibilidades individuais e coletivas e se tornar plenamente livre. Ngunga é um flâneur e, o contexto sócio-político-cultural de Angola impõe a demarcação explícita de uma intenção pedagógica e política de libertação e autonomia. Para isso, é preciso perder-se em Angola para conhecer, vivenciar, compreender, impregnar-se de seus costumes, de seu contexto histórico, de sua geografia, de suas tradições, de suas identidades. Desta forma, em toda a narrativa, expõem-se questões culturais como o multilinguismo, a partir do uso do Mbundo e do português; os hábitos alimentares, identificados com o ato de beber o hidromel nas festas ou ter as quindas de fubá como base das refeições, além dos peixes, do mel retirado de cortiços, do pirão de massango ou milho. Além disso, o trabalho das mulheres nas lavras, a importância de se ter um filho homem, a poligamia, a proibição de se interromper a fala do outro estão descritas nas cenas que envolvem os caminhos por quais Ngunga circula como importantes práticas sociais. Também, aparecem narradas as ações impostas pelo contexto da guerra e pela organização do movimento como a doação de parte da produção agrícola de base familiar para aqueles que estavam na frente dos combates. O cenário que envolve todas as ações é constituído pela geografia característica de Angola. Há matas, florestas, muitos rios e planaltos. Por conta da temperatura geralmente quente e seca com chuvas, o céu está sempre pintado de um amarelo intenso que com o passar do dia se avermelha até dar lugar à escuridão, polvilhada de estrelas. Transita no cenário uma rica fauna, repleta de palancas e muitos pássaros. Nos caminhos de Ngunga, também se aprende sobre a guerra contra o colonialismo português. A orfandade de crianças por conta do assassinato dos pais, a existência de zonas de conflito, as ofensivas constantes dos colonialistas, a existência de movimentos revolucionários como o MPLA. A associação destes movimentos a questões educacionais e o começo do processo de libertação aparecem na narrativa como a principal razão de existência de todos os espaços pelas quais o jovem revolucionário caminha. 13 Assim, por ser um incansável caminhante não é difícil identificar Ngunga como um flâneur. Ele viaja na dupla tentativa de conhecer desde “onde nasce o rio (...)” (p.17) até o mundo inteiro para chegar ao seu próprio interior. Não tem certeza das rotas e muito menos sabe o que o caminho o oferecerá. Segue sem planos nem roteiros, mas nunca deixa de ir adiante ou de tomar decisões assertivas. Apesar de solitário, está sempre cercado por uma multidão que ora o acolhe ora o ignora. Para ele, não é importante passar pelo lugar, mas vivenciá-lo, experiênciá-lo, observá-lo, contemplá-lo, escutá-lo. Como sujeito ambíguo, multifacetado, plural que é, Ngunga não se deixa limitar pelas imposições do universo adulto nem por sua condição física infantil. Para ele, não há fronteiras nem limiares. Ngunga inaugura uma nova ideia de caminhante, mais próxima das necessidades de um país colonizado em pleno conflito, porque sua intenção política, sua determinação em contribuir com a sua formação individual e coletiva, o impelem a não caminhar a esmo e sem direção, como um flâneur da modernidade faria. Sua opção político-pedagógica o orienta para a luta, para a revolução e, consequentemente, para inspirar outros Ngungas a lutar pelo ideal de liberdade, principiando assim uma perspectiva atual de flâneur. 4. Considerações finais A narrativa analisada coloca o flâneur como o aprendiz, pois aquele que se larga no mundo a fim de viver nele experiências múltiplas acaba por aprender nessa empreitada conhecimentos diversos que vão desde questões culturais, históricas e políticas até questões individuais, subjetivas. Todavia, suas implicações políticas e pedagógicas são determinantes e explícitas. Assim, este texto literário pensa a escola como um espaço de disseminação da liberdade e defende que por ela e através dela é possível difundir a insurreição. A grande revolução proposta por Pepetela é educacional, pois no seio da escola se pode espalhar laivos de rebeldia, consciência, criticidade, organização política. E o instrumento para esta ação é o texto literário que dialoga com o jovem pioneiro não para doutriná-lo, mas para mostrar a ele uma realidade que é também sua. A ideia é, durante a leitura, evocar o local e a situação de conflito, para depois mostrar como age um herói íntegro e destituído dos vícios e corrupções do universo adulto. Ao final, a leitura do texto de literatura leva à criação de uma relação de pertencimento entre leitor e situação exposta como também de uma identidade entre o jovem leitor e o protagonista Ngunga. 14 Os outros personagens angolanos da narrativa aparecem também com a intenção de criar uma identificação entre eles e os jovens leitores. São descritos com precisão e podem ser divididos em dois grandes grupos: os escolhidos como exemplos para Ngunga e os antiexemplos. Todavia, entre tais grupos há um elo que os enlaça e os coloca como coletividade, pois “todos tinha uma coisa boa: recusavam ser escravos. (...) Eram pessoas; os outros eram animais domésticos” (p. 41). O grupo dos animais alienados é identificado como os antagonistas e são eles os colonialistas portugueses e todos aqueles que silenciam e aceitam a condição de assujeitamento imposta pelo sistema. No texto, sugere-se que Ngunga é um indivíduo real, pois muitos outros já ouviram falar dele ou o conheceram ou souberam de suas façanhas. Todavia, seu desaparecimento impossibilita ao narrador apontá-lo, destacá-lo para comprovar sua existência. Desta maneira, instaura-se a incerteza que fecunda o mito. Questões arrebentam-se da cabeça do leitor: seria Ngunga apenas um jovem pioneiro? Ou seriam as façanhas de vários pioneiros angolanos que passados de um para outro nas rodas de conversas ao pé da fogueira foram se misturando e criando a figura deste herói? Talvez, os contadores, empolgados, ao narrar suas histórias aumentem os feitos, floreiem as ações que são, na verdade, somente os movimentos ordinários de qualquer guerrilheiro. O que sabemos ao fim da história é que o narrador nunca encontrou Ngunga, mas ficou seduzido pelas artimanhas realizadas pelo menino e contadas ali e acolá sobre o jovem guerrilheiro de integridade inabalável. Sabe de sua existência pela escuta atenta das histórias que quem o viu a ele contou. Todavia, de maneira astuciosa convida a cada leitor para olhar para o lado e nos provoca: “talvez o camarada/guerrilheiro que contigo estuda, que contigo come, contigo brinca, seja o Ngunga” (p. 58). Vai além e amplia o desafio ao nos induzir a pensar que talvez “Ngunga tivesse um poder misterioso e esteja agora em todos nós” (p. 59). Acaba por fazer o leitor olhar para si e, reflexivamente, se vincular a Ngunga, pois se o leitor também for um insatisfeito com a situação colonial, se compreender como injusta a exploração histórica pela qual os angolanos passaram, se acreditar que todos devem ter direitos e deveres iguais e viver numa sociedade livre, democrática, tais leitores também possuem em si a essência de Ngunga e devem buscar a força e a coragem para agir, transformar, deslocar-se, desbravar. Para isso, é necessário se dispor a empreender os esforços de se lançar ao mundo, olhar para si, partilhar, aprender e lutar. 15 É óbvio que o autor provoca o leitor para se posicionar diante do texto e para, além disso, se posicionar diante da situação social e política que vigorava na Angola explorada pelo colonialista português. Sabemos todos da dificuldade em empreender esta aventura e mais do que isso dos entraves que cada um deve transpor por medo ou comodismo para trilhá-la. É por isso que o argumento é responsabilizar aqueles que acreditam na independência política e cultural de Angola e convocá-los para a luta. Entretanto, há de se pensar por que esta narrativa, vinte e nove anos depois de sua primeira publicação, ainda emociona seus leitores e se mostra atual. Uma das possíveis respostas é que países outrora colonizados, como Angola, ainda não conseguiram dar conta de sua independência plenamente, até porque ainda vigora a exploração estrangeira e internamente permanecem fortes desigualdades sociais, econômicas, educacionais. Pois se a independência política já chegou para os países colonizados, a autonomia intelectual e cultural ainda se constrói paulatinamente e a passos lentos. Sendo assim o convite para principiar a transformação das realidades vigentes ainda continua em pauta e, talvez, evocar a criança que vive em nós para nos dar a mão e nos auxiliar nesta dura empreitada seja uma forma de trilhar o caminho da luta pela independência política e intelectual com mais leveza, picardia e autoestima. Portanto, o ideal do flâneur que viaja para fora para encontrar a si mesmo e aprender sobre todas as coisas, ensina-nos uma forma lúdica de aprender a ser, sendo. Bibliografia BASTOS, Marco Toledo de Assis. Flâneur, blasé, zappeur: variações sobre o tema do indivíduo. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação. COMPÓS. Disponível em: http://www.compos.org.br/seer/index.php/ecompos/article/viewFile/200/201 (acedido em Maio de 2013). BAUDELAIRE, Charles. 1996. Sobre a Modernidade. Coleção Leitura. Rio de Janeiro: Paz e Terra. BAYER, Adriana Elisabete. 2008. Juventude: a travessia entre margens móveis. 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