LINCHAMENTO1
“Pode-se mesmo dizer que o progresso da
cultura humana, que anda pari passu com o da
vida jurídica, obedece a esta lei fundamental:
verifica-se uma passagem gradual na solução dos
conflitos do plano da força bruta para o plano da
força jurídica. Nas sociedades primitivas tudo se
resolve em termos de vingança, prevalecendo a
força, quer do indivíduo, quer da tribo a que ele
pertence.” (Miguel Reale)2
“Les esprits une fois émus ne s'arrêtent
point.” (“Uma vez excitados, os espíritos não mais
se detêm”)3
Como foi amplamente divulgado pela mídia (com
direito a foto de capa do pasquim Veja), no último dia 31 de janeiro, no bairro carioca
do Flamengo, um jovem negro, suspeito de praticar roubos, foi barbaramente espancado
por várias pessoas (tendo, inclusive, arrancada uma parte de sua orelha); depois das
agressões, prenderam-no a um poste pelo pescoço, com uma tranca de bicicleta e
completamente despido. Os bombeiros precisaram usar um maçarico para libertá-lo.
1
Rômulo de Andrade Moreira é Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do
Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e
Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda
Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na
pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato
sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo
pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de
Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de
Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para
ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pósgraduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Autor das obras “Curso Temático
de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (em coautoria com Issac Guimarães),
ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade
Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento
Sumaríssimo” (2013) e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister,
(Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”
(Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos
realizados no Brasil.
2
Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 19o. ed., 1991, p. 75.
3
Voltaire, Tratado Sobre a Tolerância, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 6.
O Datafolha, instituto de pesquisa, indicou que
79% dos cariocas repudiaram o fato. A pesquisa também mostrou que o apoio ao
espancamento foi maior entre os mais ricos, a classe média e escolarizados. Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1412865-acao-de-justiceiros-ereprovada-por-79-no-rio.shtml).
Pois bem.
É assustador como a cada dia se multiplicam nos
noticiários de nossa imprensa as informações acerca de um fenômeno social que se vem
tornando perigosamente contumaz em nossa sociedade, alastrando-se por todo o Brasil,
tendo o Estado da Bahia, indiscutivelmente, a primazia triste de estar ocupando lugar de
destaque: falamos do linchamento.
A mídia, cotidianamente, traz-nos a visão da brutal
e covarde prática do linchamento, consumado por um sem número de pessoas
transformadas, por instantes, em verdadeiras “bestas humanas”. O que resta, via de
regra, é um corpo dilacerado pela brutalidade selvagem do grupo agressor.
Ainda se ocultam em nossa memória as cenas
chocantes trazidas pelos noticiários televisivos, tais como as que ocorreram há alguns
anos quando uma presidiária de 35 anos foi agredida por outros detentos no interior do
presídio onde se encontrava, sob a acusação de homicídio. Nada obstante já sujeita ao
sistema penal, foi julgada e condenada à morte por outras presidiárias; à época, uma
revista semanal assim se reportou ao fato: “A presa foi assassinada a pontapés, golpes
de ferro elétrico, teve seus olhos perfurados a unha e foi escalpelada como uma vítima
de índios comanches num filme de faroeste – seus cabelos foram arrancados à força
junto com pedaços do couro cabeludo”4
Meses depois fato semelhante ocorreu na cidade de
Matupá, em Mato Grosso, oportunidade em que três homens acusados de roubo foram
espancados até a morte por uma multidão, sendo, ao final, queimados vivos como
registrou um impassível cinegrafista amador da cidade. O detalhe: entre os responsáveis
pela chacina estavam, possivelmente, um próspero comerciante local e um vereador do
mesmo Município.
Em março do ano de 1994 uma outra, mas
igualmente feroz multidão, invadiu a Delegacia de Polícia da cidade de Salto do Lontra,
no Paraná, matando um médico de 44 anos e mais dois presos, todos recolhidos sob a
suspeita, sequer formalizada, de participação na morte de uma enfermeira. Tudo, mais
uma vez, filtrado por uma câmera. Aliás, nesta região do sul do País, segundo o veículo
jornalístico já referido, até aquela data oito linchamentos tinham ocorrido nos últimos
onze anos.
Veja a seguinte notícia publicada no Jornal A Tarde,
edição do dia 11 de fevereiro de 2008: “Em pouco mais de 24 horas, e a menos de 200
metros, um terceiro caso de linchamento foi registrado no bairro do Parque São
Cristovão, bairro da periferia na zona norte de Salvador. Nos três casos os motivos
4
Revista Veja, 09 de maio de 1990, p. 63.
foram casos de roubo e a ausência de policiamento nas ruas. Na manhã deste domingo,
10, por volta das 11h20, um homem, aparentando menos de 30 anos, de identidade
ignorada, foi perseguido por um grupo de mais de 30 pessoas, que o acusavam de ter
roubado uma casa e levado um aparelho de televisão.O acusado (sic) foi alcançado
pela multidão enfurecida quando tentava subir as escadarias do Caminho 40, que liga
o bairro de Mussurunga à Estrada Velha do Aeroporto, e ali mesmo, apesar dos gritos
de socorro, recebeu várias pedradas e pauladas, morrendo no local. No dia anterior,
por volta das 6h30, dois outros acusados de roubos às residências do Parque São
Cristovão, E. O. S., de 18 anos, e M. N. S. I., de 20 anos, também foram linchados por
mais de 30 pessoas. Em ambos os casos, a Lei do Silêncio impera entre os moradores e
quem dá algumas informações evita qualquer identificação.”
No Estado da Bahia, principalmente na Capital, os
linchamentos transformaram-se em notícias corriqueiras das páginas policiais, infensos
até a maiores comoções. Segundo o jornal O Globo 5 doze pessoas, nove das quais em
Salvador, “já foram espancadas até a morte este ano na Bahia”, informando, ainda, que
“há três anos o número de linchamentos vem aumentando”, sendo que “em alguns
casos as vítimas eram suspeitas de pequenos furtos”.
O fenômeno continua repetindo-se e de forma mais
constante, bastando uma aligeirada pesquisa nas páginas policiais dos nossos jornais
diários. A cifra impressiona...
Feitas estas primeiras considerações, muito mais
ilustrativas, diríamos que o linchamento envolve três aspectos principais: a crueldade, a
covardia e a inutilidade de sua prática.
É cruel porque se mata lentamente, minando as
forças do agredido com golpes sucessivos e nos diversos órgãos do corpo, utilizando-se
dos mais diferentes instrumentos, arruinando a vítima paulatinamente e deixando-lhe
sentir vagarosamente a dor e a morte. Por vezes, o espetáculo aterrador finda-se com a
cremação do que sobrou da matéria, como uma láurea aos vencedores. Nada mais
pungente, portanto.
Já a covardia se traduz no fato de que se reúnem
vários homens e atacam um, dois ou, no máximo, três, atitude absolutamente
pusilânime. A falta de coragem salta aos olhos quando atentamos para o fato de que o
linchamento é sempre precedido pela reunião dos executores, nunca se agindo
isoladamente. Não que preguemos, em absoluto, intrepidez no agir ou bravura em fazer
“justiça com as próprias mãos”, posto que tal procedimento, solitariamente ou em
grupo, é sempre detestável, além de defeso pelo nosso ordenamento jurídico, salvante
casos especialíssimos, permitidos pela lei, entre os quais não se encontra a execução
sumária de indivíduos indefesos. Assim, é lógico que numericamente inferiorizada a
vítima do linchamento chance nenhuma possui de defesa fato este, inclusive, também
qualificador do homicídio cometido, ao lado da torpeza e da crueldade.
Pensamos, outrossim, que o linchamento é um
exercício inócuo, tendo em vista que apenas na aparência solucionaria a questão da
5
Edição do dia 10 de julho do ano de 1995.
violência urbana. A ideia de que se matando um indivíduo, sumariamente ou não,
caminha-se para a solução da delinquência, é tacanho, falacioso e está superado (é como
imaginar, inocentemente, que a transposição das águas do Velho Chico resolveria o
problema da seca no Nordeste).
A questão, para nós, deve ser encarada sob um
outro aspecto, haja vista que consideramos tremendamente nocivo em um estado
democrático de direito que a sociedade dissemine o jus puniendi como um direito posto
à disposição dos cidadãos quando, na verdade, ele pertence tão-somente ao Estado.
Estes fatos apenas geram uma descrença progressiva nos poderes constituídos (o que, de
mais a mais, já ocorre) a ensejar um perigoso processo de “cada um por si”,
aumentando, sem dúvidas, o grau de violência no País. Assim, visto também por esse
prisma, infrutuoso é o linchamento.
Na presente análise há algo que não pode ser
olvidado: a causa da contumácia dos linchamentos. Temos para nós, a priori, que o
aumento da violência, aliado à falta de confiança da população na punição dos
infratores, motiva atos dessa natureza. A crença de que a polícia não pode dar cabo da
violência (o que, diga-se de passagem, é verdade, em decorrência do estado de miséria
em que vive a nossa população) nem, ao menos, reduzi-la a níveis suportáveis (esta sim,
circunstância perfeitamente factível diante dos mecanismos postos à disposição da
organização estatal), acarreta a revolta e o desejo de dizer o Direito motu proprio, sem
aguardar que o faça o Estado.
Nesse ponto resulta exatamente o maior erro de
quem participa de um linchamento (e de quem o aplaude ou o aceita): o mesmo órgão (o
grupo agressor) acusa, defende, julga e executa, tal como na Inquisição, sem que seja
dado ao “réu”, por si próprio ou por terceiro, ensejo em defender-se, expurgando-se do
Estado a possibilidade de aplicar o devido processo legal (art. 5º, LIV da Constituição
Federal), princípio, aliás, existente desde a Constituição Americana de 1791 (due
process of law) e segundo o qual é vedado o julgamento de um cidadão sem que lhe
seja assegurado um processo legalmente constituído, garantindo-se, absoluta e
inarredavelmente, o seu direito à mais ampla e irrestrita defesa com todos os seus
corolários (contraditório, duplo grau de jurisdição, não autoincriminação, etc.). Sem o
devido processo legal qualquer julgamento será execrável; todo processo que diga
respeito à liberdade, ao patrimônio ou à vida de uma pessoa deve observá-lo,
dissociando-se claramente acusador, defensor e julgador (sistema acusatório), sob pena
de não se legitimar constitucionalmente.
A socióloga Jacqueline Sinhoretto define os
linchamentos como “práticas coletivas de execução sumária de pessoas consideradas
criminosas. Sua característica diferenciadora de outros tipos de execução sumária é o
seu caráter de ação única, ou seja, o grupo linchador se forma em torno de uma vítima,
ou grupos de vítimas, e após a ação, se dissolve. Por isso, diz-se dos linchamentos que
são ações espontâneas e sem prévia organização.” Em excelente monografia, ela
informa, inclusive, que “a literatura internacional a respeito de linchamentos é
basicamente de origem norte-americana e está referida ao período das últimas décadas
do século XIX e primeiras do século XX, momento em que ocorreram muitos
linchamentos nos Estados Unidos, especialmente vitimando negros. Por estar referida a
este contexto específico, essa literatura remete o leitor muito mais às diferenças entre
os fenômenos brasileiro e americano, do que às suas semelhanças.”6
Fragoso já afirmava que “o Estado detém o
monopólio do magistério punitivo, mesmo quando a acusação é promovida pelo
ofendido (ação penal privada)”, o que significa que o indivíduo, ainda que o bem
jurídico atingido seja próprio, não pode, por si só, querer dizer o Direito, sob pena de
ingerência indevida nas coisas específicas do Estado.7 No linchamento, contraria-se este
princípio jurídico, visto que, tal como o concebeu o norte-americano Willian Lynch
(1742-1820), linchar é execução sumária, sem prerrogativas de alguma espécie para o
indivíduo.
Retorna-se, então, aos primórdios da Roma Antiga
(753 a.C.), onde “o transgressor era considerado execrável ou maldito (sacer esto),
sujeito à vingança dos deuses ou de qualquer pessoa, que poderia matá-lo
impunemente”, como nos lembra Fragoso.8 Relembra Tornaghi que o “homo sacer era
aquele que, por haver praticado ato nefasto era amaldiçoado. Quase todos os autores
sustentam que o sacer homo perdia a proteção do Direito, era abandonado á própria
sorte e podia até ser morto por qualquer pessoa.” Segundo o mestre, na Alemanha
dava-se o mesmo, pois “o profanador, privado da paz (friedensloss) embrenhava-se
pelas florestas para escapar ao castigo. Quando aparecia esquálido, barbado, tinha o
aspecto de um lobo (wolf), donde o nome de wolfmensch (homem lobo ou lobisomem).
Alguns estudiosos sustentam que a denominação provém do fato de o criminoso ser
rebaixado à condição de animal que, por ser daninho, devia ser morto (BrunnerSchwerin, História del Derecho Germânico, p. 22).” E, finalizando, compara o
inesquecível processualista brasileiro: “Por mais estranho que pareça esse costume,
dele não difere o linchamento americano.”9
Observa-se que este fenômeno, além de nefasto por
tudo quanto já dito, também o é pela real possibilidade, não de matar-se um culpado (o
que bastaria para sê-lo), mas de se eliminar um inocente, fato bastante provável à vista
da precipitação e rapidez em que ocorre o massacre. 10 Ora, se erros judiciários
acontecem nada obstante o referido due process of law, suponha-se em sentenças
sumárias? Note-se que no erro cometido por um Magistrado, acena-se para o
sentenciado a possibilidade, até, de uma reparação civil, sem falar na devolução da
liberdade física (se ainda for possível, evidentemente). Aqui, ao contrário, no erro
perpetrado pelos linchadores, vislumbra-se para o ofendido, tão-somente, a morte ou,
em hipótese melhor, a marca indelével da tortura.
Outro dado de arrepiar em todos os linchamentos é
a falta de punição dos agentes, seja por ser difícil a identificação, seja pela falta de
testemunhas disponíveis ou, ainda, pelo pouco interesse na apuração do delito, pois, ao
que parece, a morte de um suposto autor de um crime é muito mais cômoda do que o
6
Os Justiçadores e sua Justiça, São Paulo: IBCCrim, 2002, pp. 40 e 84.
Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal – Parte Geral, Rio de Janeiro: Forense, 9ª. ed., p. 02.
8
Ob. cit. p. 24.
9
Compêndio de Processo Penal, Tomo I, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1967, p. 7 (em nota de
rodapé).
10
Indicamos, a propósito, um filme do cineasta Rodrigo Pla, ambientado na cidade do México, “Zona do
Crime”, em espanhol “La Zona”, produção de 2007. Um filme que vale a pena asistir!
7
trabalho em averiguar a responsabilidade penal dos responsáveis. A falta de punição,
como é lógico, leva à repetição dos atos ilícitos.
Ao final das considerações acima expostas, fica a
nossa expectativa de que o Brasil suplante a crise social em que está mergulhado desde
há muito, originada de indisfarçável desnível social que leva, por sua vez, à maioria da
população a um estado de miséria total, proporcionando, induvidosamente, este
alarmante índice de violência do qual o linchamento é mais uma vertente, dentre tantas
outras. É inquestionável que este triste fenômeno, cada vez mais crescente, provém da
questão socioeconômica. Resolvida esta, certamente morrer linchado será tão raro e
estranho quanto, por exemplo, morrer de fome...
Para que finalizemos com letras mais insignes,
transcrevemos, mais uma vez, a lição de um grande jurista brasileiro, um homem que
dedicou a sua vida ao Direito e à ordem jurídica:
“Matar alguém é um ato que fere tanto um
mandamento ético-religioso como um dispositivo penal. A diferença está em que, no
plano jurídico, a sociedade se organiza contra o homicida, através do aparelhamento
policial e o Poder Judiciário”.11
11
Ob. cit., p. 74.
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