UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO HILDETE PEREIRA DOS ANJOS O ESPELHO EM CACOS: análise dos discursos imbricados na questão da inclusão Salvador 2006 HILDETE PEREIRA DOS ANJOS O ESPELHO EM CACOS: análise dos discursos imbricados na questão da inclusão Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de doutora em Educação. Orientadora: Miranda. Profa. Dra. Theresinha Guimarães Trabalho parcialmente financiado pelo CNPq –Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Brasil Salvador 2006 Biblioteca Anísio Teixeira – Faculdade de Educação/ UFBA A599 Anjos, Hildete Pereira dos. O espelho em cacos : análise dos discursos imbricados na questão da inclusão / Hildete Pereira dos Anjos. – 2006. 327 f. Orientadora: Profa. Dra. Theresinha Guimarães Miranda. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, 2006. 1. Educação especial. 2. Inclusão em educação. 3. Análise do discurso. 4. Sentido (Filosofia). I. Miranda, Theresinha Guimarães. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título CDD - 371.9 22.ed. TERMO DE APROVAÇAO HILDETE PEREIRA DOS ANJOS O ESPELHO EM CACOS: análise dos discursos imbricados na questão da inclusão Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de doutor em Educação, Universidade Federal da Bahia,pela seguinte banca examinadora: Alessandra Barros_Doutora/UFBA Bernard Charlot _ Doutor/Paris VIII, França Miguel Ángel Garcia Bordas _ Doutor/Universidade Complutense, Madrid Robinson Moreira Tenório _ Doutor/UFBA Theresinha Guimarães Miranda _Orientadora _Doutora/USP Salvador, 12 de dezembro de 2006 AGRADECIMENTOS À banca, especialmente àqueles presentes na qualificação, por ajudar a situar o meu discurso no campo em que ele se propunha fazer sentido, fazendo a critica cuidadosa e necessária. Aos professores, por possibilitar discussões coletivas sobre os projetos de pesquisa e intervenções fundamentais nos trabalhos uns dos outros, que trouxeram maior clareza sobre o que cada um se propunha Aos colegas do doutorado que se dispuseram, nos momentos iniciais do curso, a ler com seriedade este projeto, apontar vácuos, sugerir leituras, ajudar a palavra a tomar forma. A Miguel, Mariângela e Novoa, interlocutores amorosos sempre. A Verônica, Iara, Danilo, Suzana, José Antonio, Diana, Desirée, Bob, Thereza, Eliane, Nelma, Theresinha e a todo o Grupo de Estudos em Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais - GEINEE), sem o qual a gestação deste trabalho teria sido muito mais doloroso. Ao Campus Universitário do Sul e Sudeste da Universidade Federal do Pará, que me propiciou a oportunidade de formação superior, desde a graduação até este momento de doutorado. À comunidade escolar de Marabá, Pará, especialmente à equipe do CAP (Centro de Apoio Pedagógico) da Escola Municipal Jônathas Athias Pereira, cuja boa-vontade em participar do trabalho empírico e disposição para debater as temáticas da inclusão me permitiu um intenso aprendizado. A minha mãe, Delza Rocha (in memoriam), cuja coragem e gosto pelo aprender me abriram os caminhos da vida; A meus filhos Thayná, Mariana e Jairo, cúmplices nesse gosto pelo duvidar e pelo aprender; A minha neta, Lívia, pequeno-grande desafio; A Carlos Henrique Lopes de Sousa (in memoriam) companheiro, professor, patrono das ousadias de nós todos; Aos estudantes e professores de hoje e de sempre do Campus do Sul e Sudeste do Pará, cujo intenso desejo de contribuir para a transformação da sociedade e da educação força todos os dias meus limites de professora e pesquisadora. Não não tenho o sol escondido, no meu bolso de palavras... (Thiago de Melo) RESUMO ANJOS, Hildete Pereira dos. O espelho em cacos: análise dos discursos imbricados na questão da inclusão. Tese de doutorado. Faculdade de Educação/Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, 2006. Este trabalho se organizou em torno das seguintes questões: Como se configuram os modos de funcionamento dos discursos governamental, escolar e acadêmico no campo da inclusão? Que efeitos de sentido podem ser produzidos, em reconhecimento, a partir das relações entre esses modos de funcionamento? Para chegar à noção de práticas discursivas, o trabalho partiu da concepção vigotskiana de mediação pelo signo, relacionada com a idéia de mediação pelo habitus em Bourdieu: a mediação semiótica entendida como inserida em um habitus. O conceito vigotskiano de internalização foi articulado com a idéia de que as pessoas internalizam modos de operar em suas praticas sociais, de que essas práticas se constituem (também) ideologicamente, especialmente pelo fato de que a prática discursiva permeia todas as demais práticas. Dessa forma, analisou-se os enfeixamentos discursivos dos discursos governamental, acadêmico e escolar (com base nas propostas metodológicas de análise de discurso de Orlandi e Verón, complementadas pela análise conversacional no caso do discurso escolar), fazendo emergir as vozes em debate no interior dessas práticas, e fazendo dialogar os textos produzidos a partir delas. Foram analisados três conjuntos de textos: a coleção “Saberes e práticas da inclusão”, como texto oficial que subsidia a formação de professores para a criação de escolas inclusivas, recortes de textos acadêmicos que se organizam em torno da definição de inclusão, apresentados em congressos relacionados com a área e quatro sessões de entrevistas realizadas com professores que atuam na interface entre educação especial e comum, no município de Marabá, Pará; o texto produzido a partir da análise interna de cada conjunto de textos e das relações estabelecidas entre eles, ainda que se situando no pólo de reconhecimento dos discursos, não deixou de remeter ao de produção na medida em que evidenciou formações discursivas próprias de um determinado habitus, de uma determinada configuração ideológica. A pesquisa indicou que as formações discursivas dominantes se organizam em torno de certos elementos: flutuações do lugar do professor nos discursos, oscilando entre um lugar de passividade, militante da inclusão e de agente da cidadania; cisão desse lugar do professor em dois, polarizando professores da educação especial/inclusiva com professores da educação comum; flutuações do lugar do governo, o qual desliza entre autoridade opressora, provedor, educador, ajudante; disfarces e ocultamentos das relações de poder e das hierarquias funcionais; e ênfase na formação técnica especifica das necessidades educacionais especiais. Num processo de enfrentamento e complementaridade com essas formações, outras que se configuraram como recessivas entretecem as noções de transformação social, de participação no poder e construção de uma sociedade nãoexcludente, deslocando da escola as tarefas da inclusão, subordinando-as a um projeto de transformação social e/ou denunciando certos aspectos da inclusão como reprodutores do status quo. No entanto, nos dois tipos de formação discursiva, se entrecruzaram a subordinação do fazer ao pensar, da prática ao discurso, os saberes sendo dados como estabelecidos e a prática como passível de transformação a partir deles, elementos interpretados como reforçadores das formações discursivas dominantes e debilitadores das formações recessivas. Palavras-chave: inclusão; educação especial; análise de discurso; sentido ABSTRACT ANJOS, Hildete Pereira dos. The mirror rubbish: analysis of the overlapping discourses on inclusion question. Doctoral thesis. Faculdade de Educação/Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, 2006. The work is organized around the following questions: How are configured the functioning manners of governmental, educational and academic discourses in inclusion area? What effects of sense may be produced and recognized from the relations among these functioning manners? To reach the discursive practice notion, the work starts from Vygotsky conception of mediation by the sign related to the Bourdieu idea of mediation by the habitus: the semiotical mediation understood as insert in one habitus. The Vygotsky’s concept of internalization was articulated with the idea that people make internal work manners in their social practices and that these practices are (also) ideological specially because the discursive practices permeate all the other ones. That way, it analyzes the discursive bundling up of governmental, academic and educational discourses (using the Orlandi and Verón methodological proposals of discourse analysis, complemented by the conversation analysis for the educational discourse) to make arise the voices in contest into these practices, and dialogize the texts produced from them. There were analyzed three kits of texts: the collection “Knowledges and Practices of Inclusion” as the standard text for the teachers formation for the inclusive schools foundation; clipping of academic texts organized around the inclusion definition, presented in congress in the area, and four interview sessions with teachers that act in the interface among common and special education in the Marabá municipality, Pará state, Brazil. The text produced from the internal analyzes of the text kits and the relations between them, even though placed in the discourse recognition polo, also remits to the production polo since it evidenced discursive formations pertaining to a determinate habitus, to a determinate ideological configuration. The search showed that the dominant discursive formations are organized around certain elements: the fluctuation of teacher place in the discourse from the passivity to the inclusion militant and citizen agent; the scission of this teacher place in two, one of the special/inclusive education teachers and other of common education teachers; the fluctuation of government place between the oppressing, purveyor, educational or assistant authority; the disguise and occultation of power relations and hierarchy; and the emphasis in specific technical formation of special education necessities. In a process of face and complement these formations there were other recessive ones with the notion of social transformation, power participation and the construction of a no-excludent society with displace the inclusion work from the school for the society subordinate to a social transformation project and also with the denunciation of certain inclusion aspects as status quo reproducing. However, there are the intercrossing of making submit to thinking, practice submit to discourse, the knowledge regarded as established and the transformation of practice as possible from them, the elements seen as reinforcement for the dominant discursive formation and debilitating for recessive formations. Descriptors: inclusion; special education; discourse analysis; sense. RESÚMEN ANJOS, Hildete Pereira dos. Los pedazos del espejo: análisis de los discursos imbricados en la cuestión de la inclusión. Tesis doctoral. Faculdade de Educação/Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, 2006. Este trabajo se organizó acerca de las siguientes cuestiones: ¿Como se configuran los modos de funcionamiento de los discursos gubernamental, escolar y académico en el campo de la inclusión? ¿Que efectos de sentido pueden ser producidos, en reconocimiento, a partir de las relaciones entre esos modos de funcionamiento? Para llegar a la noción de prácticas discursivas, el trabajo partió de la concepción vigotskiana de mediación por el signo, relacionada con la idea de mediación por el habitus en Bourdieu: la mediación semiótica entendida como inserida en un habitus. El concepto vigotskiano de internalización fue articulado con la idea de que las personas se apropian de modos de operar en sus practicas socias, de que esas prácticas si constituyen (también) ideológicamente, especialmente por el hecho de que la práctica discursiva atraviesa todas las demás prácticas. De esa forma, se analizó los agrupamientos discursivos en los discursos gubernamental, académico y escolar (con base en las propuestas metodológicas de análisis de discurso de Orlandi y Verón, complementadas por la análisis conversacional en el caso del discurso escolar), haciendo emerger las voces en debate en el interior de las prácticas, y haciendo dialogar los textos producidos a partir de ellas. Fueran analizados tres conjuntos de textos: la colección “Conocimientos y prácticas de la inclusión”, como texto oficial que subsidia la formación de maestros para la creación de escuelas inclusivas, recortes de textos académicos que se organizan en torno a la definición de inclusión, presentados en congresos relacionados con la área y cuatro sesiones de entrevistas realizadas con maestros que actúan en la interfase entre educación especial y común, en la municipalidad de Marabá, Pará, Brasil; el texto producido a partir de la análisis interna de cada conjunto de textos y de las relaciones establecidas entre ellos, aun que si situando en el polo de reconocimiento de los discursos, no dejó de remeter a lo de producción en la medida en que evidenció formaciones discursivas propias de un determinado habitus, de una determinada configuración ideológica. A pesquisa indicó que las formaciones discursivas dominantes si organizan en torno de ciertos elementos: fluctuaciones del lugar del maestro en los discursos, oscilando entre un lugar de pasividad, militante de la inclusión y de agente de la ciudadanía; cisión del lugar del maestro en dos, polarizando los maestros de la educación especial/inclusiva con los de la educación común; fluctuaciones del lugar del gobierno, lo cual desliza entre autoridad opresora, proveedor, educador, ayudante; disfraces y ocultamientos de las relaciones de poder y de las jerarquías funcionales; destaque para la formación técnica especifica de las necesidades educacionales especiales. En un proceso de enfrentamiento y complementariedad con esas formaciones, otras que se configuraran como recesivas articulan las nociones de transformación social, de participación en el poder y construcción de una sociedad non-excluyente, dislocando de la escuela as tareas de la inclusión, subordinándolas a un proyecto de transformación social e/o denunciando ciertos aspectos de la inclusión como reproductores del status quo. Sin embargo, en los dos tipos de formación discursiva, se entrecruzarán la subordinación del hacer al pensar, de la práctica al discurso, los conocimientos siendo dados como establecidos y la práctica como pasible de transformación a partir de ellos, elementos interpretados como reforzadores de las formaciones discursivas dominantes y debilitadores de las formaciones recesivas. Palabras llave: inclusión; educación especial; análisis de discurso; sentido SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO..............................................................................12 2. A CONSTRUÇÃO DE UMA ESCOLA PARA UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO .......................................................................22 2.1. UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO? ............................................................. 2.2. EDUCAR PARA A DIVERSIDADE: DESNATURALIZAÇÃO DE UM CONCEITO ......... 2.3. UMA ESCOLA PARA TODOS/UMA ESCOLA PARA POUCOS................................ 2.4. O ESPECIAL NA EDUCAÇÃO: UM RECORTE DA ESCOLA PARA TODOS ............... 23 28 38 43 3. MEDIAÇÃO SEMIÓTICA, HABITUS E PRÁTICA DISCURSIVA ...............55 3.1. VIGOTSKI COMO PONTO DE PARTIDA PARA UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS .... 56 3.2. A MEDIAÇÃO SEMIÓTICA COMO DIMENSÃO DA MEDIAÇÃO PELO TRABALHO .... 60 3.3. MEDIAÇÃO PELO HABITUS: POTENCIALIDADES DE UM OPERADOR ................. 71 3.4. INTERNALIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADE MEDIADA PELO HABITUS ....................................................................................................... 82 3.4.1. Internalização: a apropriação de modos discursivos de operar .................... 83 3.4.2. Articulando internalização, habitus e subjetividade .................................... 86 3.5. O DISCURSO: DA MEDIAÇÃO SEMIÓTICA À NOÇÃO DE PRÁTICA DISCURSIVA .. 91 3.6. AS PRÁTICAS DISCURSIVAS E SEUS MODOS DE OPERAR ............................... 98 3.6.1. Conceito como operador ou como representação de uma realidade............. 107 3.6.2. O esquecimento/desvelamento das condições de produção e dos modos de operar da prática discursiva ............................................................................109 4. A PRÁTICA DISCURSIVA COMO FERRAMENTA E PRODUTO: UM EXERCICIO DE CONSTRUÇÃO DE DISPOSITIVOS DE TRABALHO ..... 113 4.1. APLICAÇÃO DO DISPOSITIVO DE ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO AO DISCURSO GOVERNAMENTAL.......................................................................................... 121 4.2. ANÁLISE CONVERSACIONAL E ANÁLISE DE DISCURSO: CRIANDO UM DIÁLOGO METODOLÓGICO ...........................................................................................125 4.3. O DISCURSO ACADÊMICO: ANALISANDO UM CORPUS FRAGMENTADO........... 132 5. FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES PARA A ESCOLA INCLUSIVA: UMA MANIFESTAÇÃO DO DISCURSO OFICIAL ............. 135 5.1. OS DISFARCES E OCULTAMENTOS DAS RELAÇÕES DE PODER ....................... 135 5.2. A SUBORDINAÇÃO DO FAZER AO PENSAR...................................................146 5.3. A PROPOSTA DE INCLUSÃO COMO BUSCA DE RUPTURA ............................... 152 5.4. O LUGAR DO PROFESSOR NOS ENUNCIADOS OFICIAIS ................................163 5.5. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO GOVERNAMENTAL: TEMÁTICAS E MODOS DE OPERAR ....................................................................................... 175 6. A INCLUSÃO NO DISCURSO ESCOLAR: CONVERSAS NA INTERFACE ENTRE EDUCAÇÃO COMUM E ESPECIAL ....................................... 180 6.1. A APRENDIZAGEM, A PRÁTICA E O OUTRO .................................................182 6.2. O OSCILAR DOS SENTIDOS DO OUTRO-GOVERNO .......................................188 6.3. O LUGAR DO PROFESSOR DO ATENDIMENTO ESPECIALIZADO: A MILITÂNCIA . 201 6.4. O PROFESSOR QUE FAZ INCLUSÃO E OS “OUTROS PROFESSORES”................ 209 6.5. O LUGAR DO ALUNO DITO “INCLUSO” ........................................................231 6.6. FORMAÇÃO SUPERIOR E FORMAÇÃO EM SERVIÇO .......................................242 6.7. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO ESCOLAR: TEMÁTICAS E MODOS DE OPERAR........................................................................................................ 249 7. A INCLUSÃO NO DISCURSO ACADÊMICO DO CAMPO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL ................................................................................. 254 7.1. INCLUSÃO COMO OPERADOR QUE INDICA MOVIMENTO E SUA CAPACIDADE DE DESLIZAMENTO ............................................................................................ 255 7.2. NUANCES DO FAZER INCLUSIVO: OS LIMITES DA INCLUSÃO NOS MUROS DA ESCOLA........................................................................................................ 263 7.3. A INCLUSÃO EM SUA DIMENSÃO DISCURSIVA: DA AUTONOMIA DO DISCURSO À PRÁTICA DISCURSIVA .................................................................................... 273 7.4. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO ACADÊMICO: TEMÁTICAS E MODOS DE OPERAR. ..................................................................................................278 8. INTERDISCURSIVIDADE E HABITUS: AS IMBRICAÇÕES DOS DISCURSOS NO CAMPO DA INCLUSÃO.........................................289 8.1. O “LUGAR” DE CADA ENUNCIADOR NO DISCURSO DO OUTRO ....................... 291 8.2. A PRÁTICA COMO UMA INSTÂNCIA (SUBORDINADA) DO REAL ....................... 295 8.3. CRENÇAS POSTAS EM AÇÃO NOS DISCURSOS............................................. 297 8.4. INTERDISCURSIVIDADE: FORMAÇÕES DISCURSIVAS DOMINANTES E RECESSIVAS ................................................................................................. 301 8.5.A INCLUSÃO, A PRÁTICA DISCURSIVA NA ESCOLA E OS CACOS DO ESPELHO ... 303 REFERÊNCIAS ...............................................................................311 ANEXO - Normas para transcrição de textos orais ............................325 1. INTRODUÇÃO Este trabalho de pesquisa tem em suas origens um incômodo antigo, gerado pela minha1 vivência de professora e militante da educação pública. A escola pública, meu espaço de trabalho, militância e pesquisa, foi nos últimos tempos arena dos mais diversos conflitos envolvendo a aplicação de projetos inovadores, projetos-piloto e experiências semelhantes. A cada nova proposta e a cada novo fracasso, parece se confirmar que a escola é que é impermeável a mudanças, o professor é que não quer mudar, etc., etc. Aplica-se o pensamento mais avançado, mais progressista, mais isso e mais aquilo e a escola está lá, aparentemente último reduto do atraso. Por seu lado, os governos, entidades, intelectuais não se cansam de elaborar e divulgar novos conceitos, forjar novas propostas, todas elas aparentemente ancoradas nas necessidades reais da educação, a maior parte delas sensata e interessante. Esse fosso entre a rica produção acadêmica nacional em educação e o fazer educativo propriamente dito me incomoda, me incomodou sempre, a mim que estive a maior parte da vida dentro da escola pública de ensino fundamental (como professora e como sindicalista) e os últimos dez anos na universidade pública, como professora e pesquisadora do campo da educação. Boaventura de Sousa Santos (2005) afirmava2 que essa distância entre prática pedagógica na educação básica e a produção científica do saber pedagógico faz com que a universidade perca legitimidade social: 1 Escrevo este trabalho na primeira pessoa do singular por que creio que este é o discurso possível de ser elaborado, neste momento, por um individuo que é social em sua definição. Portanto, é perpassado por vários discursos, mas a forma como se entrecruzam, mudam de rumo, se confrontam, entram em relações de subordinação, é única: depende das regras de formação discursiva, mas tais regras também estão vinculadas às escolhas que eu faço, entre um leque culturalmente (portanto ideologicamente) limitado. 2 Em debate sobre a reforma universitária brasileira (05/04/2004), depois publicado (2005). 13 Ao tratar o tema do acesso referi a necessidade de vincular a universidade à educação básica e secundária. Esta vinculação merece um tratamento separado por se me afigurar ser uma área fundamental na reconquista da legitimidade da universidade. É uma área muito vasta pelo que neste texto me concentro num tema específico: o saber pedagógico. Este tema abrange três subtemas: produção e difusão de saber pedagógico; pesquisa educacional; e formação dos docentes da escola pública. É um tema de importância crescente, avidamente cobiçado pelo mercado educacional, onde a universidade já teve uma intervenção hegemónica que entretanto perdeu. Este facto é hoje responsável pelo afastamento da universidade em relação à escola pública – a separação entre o mundo académico e o mundo da escola – um afastamento que, a manter-se, minará qualquer esforço sério no sentido de relegitimar socialmente a universidade. (SANTOS, 2005, p.81) Essa afirmação está no contexto da discussão sobre a reconquista da legitimidade da universidade pública, um dos princípios orientadores, na visão de Santos, de uma “reforma criativa, democrática e emancipatória” dessa universidade. Se a universidade perde legitimidade (ou não consegue relegitimar-se) ao não alcançar responder às demandas da escola pública, a escola pública se perde na impossibilidade de pensar sozinha as próprias práticas, mas também de reformulá-las baseada num pensar elaborado fora dela, assim como na dificuldade de lutar contra o preconceito e a desvalorização, e isso se torna um círculo vicioso. Decorrente desse incômodo, um outro tornou-se também importante no processo de forjar o problema da pesquisa: o discurso oficial não parece se angustiar com tal fosso, e mesmo os vários discursos acadêmicos apresentam pouca condição de superá-lo, preocupando-se mais com a coerência interna de suas teorias do que com as nuances e paradoxos que apresenta a prática educativa. Tenho a dolorosa sensação de que o pouco glamour da escola de verdade afasta a nós, acadêmicos, e gastamos parte significativa de nosso tempo e de nossa energia inventando uma escola a nosso gosto e propondo-a à escola realmente existente. Os gestores adotam, uns mais a sério, outros menos, nossas invenções, e quando vão dar o remédio milagroso ao menino doente, ele geralmente o cospe. A pergunta que isso suscita é: porque a escola rejeita 14 tais projetos? Mera teimosia, puro atraso, má formação dos professores? Tenho cá minhas dúvidas. Mais ainda: estou certa de que certos “anticorpos” vão sendo fortalecidos no embate entre projetos impostos e prática pedagógica recalcitrante, de forma que, a cada inovação educacional, a escola resiste mais eficientemente. Disso vem minha descrença nos projetos a curto prazo de transformação da educação, mesmo aqueles cujos princípios compartilho. Existe qualquer coisa anterior a isso, ou que permeia tudo isso, que não está bem clara. Suspeito que a educação de que estamos falando não seja a mesma de que falam os pais de alunos e a escola pública. Suspeito que falamos demais e ouvimos, olhamos, sentimos de menos. Suspeito que não se construiu, nas relações entre escola, governo e universidade um espaço comunicativo/comunicante que permita a vivência de projetos possíveis, em que o conflito, a crise, as contradições sejam fatores de crescimento, em que não se negue e recuse a vida escolar concreta, no afã de propor o novo. Todos esses são incômodos gerais com relação à questão, mas são eles que dão o contorno à lacuna que decidi explorar. De todas as propostas de mudança já implementados na educação das regiões sul e sudeste do Pará (e foram muitas), de longe a mais polêmica é a de inclusão nas escolas públicas dos alunos com necessidades educativas especiais. Ela aguça todos os questionamentos já feitos em relação à possibilidade de se educar, aos modelos educacionais, à formação dos profissionais da educação, ao financiamento, ao papel social do educador, à relação sociedade/escola, entre outros. É por isso que, passados os primeiros cinco anos da implantação da experiência de inclusão das crianças com necessidades especiais nas escolas públicas do município em que atuo (Marabá, Pará), como pesquisadora e professora universitária, me propus a acompanhar e analisar o discurso provocado por/nessa situação (e provocador dela). Desejei acompanhar as caretas do menino no próprio esforço/resistência 15 de beber o remédio, e apresento aqui os resultados desse acompanhamento, dentro dos limites criados pelas condições concretas da pesquisa, que incluem os meus limites como pesquisadora. A elaboração do problema, de inicio, ganhou a seguinte formulação: “como os profissionais da educação e alunos significam a presença da diferença em seu cotidiano escolar, explicitada pela inclusão das referidas crianças nas salas de aula comuns?”. Esse modo de formular remeteu a leituras e discussões, tanto no que se refere às teorias subjacentes quanto aos limites do recorte que ele pressupunha. Ao elaborar o problema considerava que, com nos base na discursos questão produzidos da em significação, suas eu interações e produtores delas, profissionais da educação e alunos evidenciassem sua compreensão do processo de inclusão, sua forma de vivenciar os conflitos produzidos nesse processo, seus sentimentos e crenças com relação a ele. Ou seja, eu situava no sujeito falante a produção e a origem do discurso, e imaginava poder me ancorar no pensamento vigotskiano para desenvolver tal proposta. No decorrer do doutorado, e especialmente depois da qualificação, as leituras e discussões me fizeram perceber que, em Vigotski3, o discurso não tem origem no sujeito, embora tome forma concreta em sua prática discursiva: os discursos se constituem no diálogo/debate com outros discursos, cultural e historicamente produzidos. Os estudos no campo da análise de discurso trouxeram mais clareza a essa questão: não me interessava o discurso que eu pudesse encontrar na escola em si e por si, mas em suas relações com outros discursos: os discursos da universidade e do governo. A idéia de que a produção discursiva é um debate, um diálogo, ainda quando realizada solitariamente, ajudou a compreender a questão da intersubjetividade em Optei por grafar o nome Vigotski, seguindo o critério fonético proposto por Blanck na introdução de Psicologia Pedagógica (VIGOTSKI, 2003, p.27). Em citações e nas referências, foram respeitadas as formas como o autor citado grafou o nome (as edições inglesas e americanas trazem a grafia “Vygotsky”). 3 16 Vigotski e me fez perceber que havia uma outra tese a ser defendida, previa à minha: a de que é possível traçar uma linha que vai da noção de mediação pela linguagem em Vigotski à análise de discurso contemporânea (à de linha francesa, mais especificamente). Isso me colocou diante de um problema para o qual eu via três saídas: adiar meu projeto de pesquisa e desenvolver um outro, buscando realizar essa discussão das relações entre Vigotski e a análise de discurso; deixar Vigotski de lado e simplesmente analisar os discursos com os instrumentais propostos pela análise de discurso, de resto suficientemente ricos; fazer as duas coisas, de forma imbricada, assumindo os riscos de não conseguir aprofundar o suficiente nenhuma das duas. Foi a última opção a que assumi, considerando que o fantasma da primeira assombraria todo o meu trabalho, se optasse pela segunda e que a necessidade e contemporaneidade da segunda criaria tensões insuportáveis para a realização da primeira. Desse modo, a formulação do problema sofreu um processo de amadurecimento no trajeto, e nesse amadurecer se modificou profundamente. Passei a lidar com a idéia de significação, entendendo-a não como expressão e representação do real, mas como expressão de um modo de funcionamento (ORLANDI, 2005) das práticas discursivas, o qual estabelece relações entre escolhas temáticas e modos de operar (VERÓN, 1980, 2004). Sendo o discurso produção humana, tais modos de funcionamento se relacionam com suas condições de produção e de reconhecimento. A questão da diferença também perdeu ênfase, nesse processo, já que impunha de entrada uma escolha temática aos discursos, e eu desejava ver que efeitos de sentido produziam as escolhas temáticas que apareciam nos discursos. O problema de pesquisa tomou então tomou a seguinte forma final: Como se configuram os modos de funcionamento dos discursos governamental, escolar e acadêmico no campo da inclusão? Que efeitos de sentido podem ser 17 produzidos, em reconhecimento, a partir das relações entre esses modos de funcionamento? Considerando que tais modos de funcionamento não se configuram em torno de características intrínsecas do discurso, mas de questões como o lugar do falante, sua posição em seu campo de atuação e a posição desse campo de atuação dentro das relações de poder (BOURDIEU,1994) incorporei ao trabalho o conceito de habitus, para poder analisar as tendências dominantes e recessivas, relacionadas às coerções a que o discurso é submetido nas configurações discursivas elaboradas, atravessadas pelo ideológico. Considerei que forças coercitivas configuram os discursos interna e externamente, assim como as reações a essas forças (ou forças de resistência): isso define os discursos e as relações interdiscursivas como arenas de disputa. Portanto, não está dada, pela mera existência das forças de coerção, a reprodução social: os indivíduos e grupos também se utilizam de estratégias discursivas para administrar e minar as coerções. No processo de operacionalização da pesquisa, a delimitação de um corpus para análise exigiu um recorte de cada tipo de discurso, considerando que o discurso é inesgotável (ORLANDI, 2005, p.62) e não pode ser apreendido em sua totalidade, mas apenas em sua expressão concreta: neste caso especifico, a fala e o texto. Recorri então à noção de gênero do discurso em Bakhtin (2003)4 para realizar esse recorte: no discurso governamental, optei por analisar os textos fornecidos como subsídios para a formação do professor inclusivo, na coleção Saberes da inclusão (BRASIL, 2005), tomando-o como um manual, um documento de tipo prescritivo; no discurso escolar, preferi analisar as falas produzidas em entrevista/conversação com professores que atuam como formadores 4 “Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos), nos quais devemos incluir as breves réplicas do diálogo do cotidiano, [...} o relato do dia-a-dia, a carta (em todas as suas diversas formas) o comando militar lacônico padronizado, a ordem desdobrada e detalhada, o repertório bastante vário (padronizado na maioria dos casos) dos documentos oficiais e o diversificado universo das manifestações publicísticas (no amplo sentido do termo: sociais, políticas); mas aí também devemos incluir as variadas formas das manifestações científicas e todos os gêneros literários (do provérbio ao romance de muitos volumes)” (BAKHTIN, 2003, p262; grifos meus). 18 na inclusão, atuando numa espécie de interface entre a educação especial e a comum, por sua relação privilegiada com o debate e a prática da inclusão; do discurso acadêmico, dentro do gênero “artigo de divulgação científica”, recortei as definições referentes a inclusão escolar (e suas derivações: movimento inclusivo, escola inclusiva, ensino inclusivo, prática inclusiva e discurso inclusivo) publicadas em textos apresentados em congressos da área. O objeto sobre o qual me debrucei, portanto, são as relações entre os discursos dos professores, governo e universidade, discursos que são produzidos no campo de sentidos denominado inclusão e participam da constituição de tal campus , e que se concretizam nos textos e falas referidos. Tais relações não “estão” nos textos (embora estejam lá os traços delas) mas se produzem “em reconhecimento” (VERÓN,1980), ou seja, foi na produção de um outro texto (esta tese), que pretende fazer uma leitura daqueles traços, que tais relações ganharam uma forma (entre as muitas que poderiam ter adquirido). Como objetivo geral do trabalho, então, busquei analisar o modo de funcionamento dos discursos escolar, acadêmico e governamental sobre o campo de sentidos denominado inclusão, considerando relações possíveis entre os efeitos de sentido investidos em tais discursos. Delimitado o corpus, tornou-se necessária a construção de dispositivos de análise que pudessem ajudar a responder às questões colocadas. Do estudo de Vigotski eu trazia o desejo de utilizar um método que entendesse a análise como “aplicação do método empregado e avaliação do significado dos fenômenos obtidos” (VIGOTSKI, 1996, p. 375), e não como redução de algo dado como realidade a seus componentes básicos; que percebesse transitividade entre as polarizações encontradas, ao invés de oposições insolúveis; que entendesse as “totalidades” vivas (homem, mundo, sociedade, história) como 19 provisórias, abertas e entrelaçadas, tratando-as como configurações5 ao invés de coisas. Tomando esses pressupostos como princípios gerais, incorporei as contribuições de Orlandi (2005) e Verón (1980, 2004). Seguindo este último, postulei operações discursivas, partindo de marcas no texto e relacionei tais operações com as escolhas temáticas de que tratavam; seguindo Orlandi, busquei elaborar, baseada nessas marcas, o não-dito, o dito de outro modo, o dito nas entrelinhas. Nos dois autores, o intento metodológico é o de lidar com o duplo esquecimento que fala Pêcheux: o esquecimento ideológico, que faz esquecer as condições sociais de produção dos discursos e imaginar que ele tem origem no sujeito, e o esquecimento enunciativo, que cria a impressão de que o que é dito só poderia ser dito daquela maneira (ORLANDI, op.cit., p.35). Para a análise das falas dos professores considerei importante lidar também com as marcas conversacionais, considerando que tais marcas refletem a produção do discurso no que se refere às negociações com o interlocutor e com toda a situação de diálogo; e mesmo levando em conta os desencontros entre essa linha metodológica e as demais, incorporei uma quarta contribuição, a análise conversacional (MARCUSCHI, 2005; PRETI, 1997). Dessa forma, as marcas do processo conversacional não são analisadas apenas em si e em suas relações internas, mas também em suas relações no interior das redes discursivas nas quais adquirem sentido. A tese foi estruturada em oito capítulos, dos quais o segundo (“A construção de uma escola para um mundo em transformação) traz um rápido esboço das exigências que se faz à escola no mundo contemporâneo, relacionando essas exigências com a questão da escola para todos, da diversidade e da educação especial. O terceiro capítulo (“Mediação semiótica, habitus e prática discursiva”) traça uma linha entre a noção vigotskiana de mediação semiótica e a noção de prática discursiva 5 A noção de configuração, aqui, se aproxima daquela da Gestalt, “conjunto organizado de dados perceptivos, apreendido como tal graças ao seu contorno ou traços essenciais” ou, “de maneira geral, conjunto organizado que se impõe como tal por ocasião da apreensão dos dados, ainda que não perceptivos”(DORON e PAROT, 1998, p. 170). 20 na chamada linha francesa de análise de discurso, tentando incorporar também o conceito de habitus. O dispositivo teórico reconstruído a partir das relações entre esses conceitos dá suporte ao dispositivo analítico, explicitado no quarto capitulo, “A prática discursiva como ferramenta e produto: um exercício de construção de dispositivos de trabalho”. Os capítulos seguintes tratam da análise propriamente dita: o capítulo cinco analisa o discurso oficial, mostrando as relações entre os efeitos de sentido criados pelo modo como são entretecidas temáticas e modos de operar; o capítulo seis faz o mesmo com as entrevistas/conversações extraídas do discurso escolar, incorporando também o modo como tais conversações se organizam internamente e o capítulo sete mostra os enfeixamentos produzidos no estudo das definições de inclusão que o discurso acadêmico do campo da educação especial assume. Em cada um dos capítulos, os enfeixamentos realizados são configurados em formações discursivas. O oitavo enfeixamentos capítulo produzidos foi ao dedicado longo da a relacionar análise, os diversos evidenciando as imbricações entre temáticas e modos de operar não mais dentro de cada discurso, mas na interdiscursividade que se estabelece entre eles. É o capitulo que busca fechar, para os limites desta tese, a resposta (já esboçada nos capítulos anteriores) à questão que moveu o trabalho, mostrando como os modos de funcionamentos dos três gêneros de discurso e articulam, se complementam e se enfrentam. Por fim, um comentário acerca do título; o “espelho em cacos” me parecia ser uma metáfora adequada para o meu trabalho de juntar marcas, pedaços, cacos do que é dito aqui, ali e acolá, tentando achar nesses cacos pontos de conexão com os outros. Só depois li o comentário de GREGOLIN (2004, p.172-173) sobre a metáfora do espelho em Pêcheux: decepcionado com a política do PCF e com a prática da análise de discursos feita até o final dos anos 70, Pêcheux chama de um “estranho espelho” o reflexo entre o fazer ciência (tomando como objeto 21 a política) e o fazer política; afirma que “é chegado o tempo de começar a partir os espelhos”. Não sei como me ocorreu essa metáfora antes de ter lido Pêcheux e Gregolin, mas creio que é chegado o tempo de recolher os cacos do espelho... Não necessariamente para fazer análise do discurso a serviço desta ou daquela política (ainda que eu não descarte essa possibilidade), mas para, compreendendo que pensar, dizer e fazer são processos interconstituintes, entendê-los como atividade transformadora e portanto, política. 2. A CONSTRUÇÃO TRANSFORMAÇÃO DE UMA ESCOLA PARA UM MUNDO EM Um trabalho de investigação que pretenda estudar os discursos constituídos pela/constituintes da questão da inclusão precisa referir-se às transformações sociais que, no final do século passado, possibilitaram a elaboração desse conceito. Neste trabalho, ainda que não tenha conseguido aprofundar muito tais questões, levanto alguns pontos que considero essenciais para a discussão da inclusão, relacionando-os com as premências que foram sendo construídas no sentido tanto da “escola para todos” quanto do “educar para a diversidade”. Essas premências ganharam ênfase no campo da educação denominado educação especial, campo que se constituiu nas lutas por educação para os alunos considerados com deficiência, mais tarde chamados de alunos com necessidades educacionais especiais. Dessa forma, este primeiro capítulo procura esboçar o contexto no qual a discussão da inclusão ganha sentido, no qual as chamadas práticas inclusivas se inserem como interconstituintes dessa discussão. Dividi o texto em quatro partes: na primeira, destaco aspectos das transformações do mundo recente que se relacionam com a idéia de inclusão, na segunda recupero aspectos do debate acerca da noção de diversidade; na quarta, levanto questões que as exigências sociais de uma escola para todos tornaram relevantes e, na última, entendendo as lutas pela inserção e participação efetiva dos alunos com necessidades educacionais especiais na escola como recorte dessas lutas por educação para todos, faço um breve relato histórico da educação especial e dos principais enfrentamentos dentro desse campo. 23 2.1. UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO? Para começar a discutir a questão da inclusão escolar, é interessante revisitar rapidamente algumas leituras das mudanças no final do século XX que tornaram tal conceituação possível e, mais do que isso, reconhecida e autorizada como representativa de certas dimensões do real. Dessas mudanças, especificamente: a quero questão do chamar a atenção enfraquecimento do para Estado duas, e da reorganização das relações entre capital e trabalho. Hobsbawn chamava a atenção, no final de seu livro “Era dos extremos: o breve século XX” (1995), para uma das características do panorama político global no final do milênio: o duplo enfraquecimento do Estado-nação, nas relações internas e externas. O Estado-nação, segundo o historiador, “perdia rapidamente poder e função para várias entidades supranacionais”, por um lado, e, por outro “perdia seu monopólio de poder efetivo e seus privilégios históricos dentro de suas fronteiras”. No final do século, o Estado–nação se achava na defensiva contra uma economia mundial que não podia controlar, contra as instituições que construíra para remediar suas próprias fraquezas internacionais, como a União Européia; contra sua aparente incapacidade fiscal de manter os serviços para seus cidadãos, tão confiantemente empreendidos algumas décadas atrás, contra sua incapacidade real de manter o que, pelos seus próprios critérios, era a sua maior função: a manutenção da lei e da ordem (HOBSBAWN, op. cit., p.554). Contraditoriamente a isso, afirma Hobsbawn, nunca o Estado foi tão necessário para garantir alguma realocação de renda para a parcela cada vez maior da sociedade que ficava de fora do mundo produtivo (op. cit., p.555). Tais padrões de concentração de riqueza chegaram a tal ponto que a velha polarização explorados/exploradores, durante muito tempo tida como explicativa das relações entre capital e trabalho, passou a ser 24 substituída, em alguns estudos, pela nova polarização excluídos/incluídos, polarização essa decorrente, segundo Tedesco (2002) da nova organização do trabalho: A exclusão tende, dessa maneira, a substituir a relação de exploração. A comparação entre ambos os modelos de relações permite notar que os vínculos entre exploradores e explorados são completamente diferentes dos que se estabelecem entre incluídos e excluídos. Exploradores e explorados pertencem à mesma esfera econômica e social, já que os explorados são necessários para manter o sistema. A tomada de consciência da exploração pode provocar, além disso, uma reação de mobilização coletiva e de conflito organizado pelas instituições representativas dos explorados, como os sindicatos, os partidos políticos etc. A exclusão, em compensação, não implica relação, mas sim divórcio. A tomada de consciência da exclusão não gera uma reação organizada de mobilização. Na exclusão não há grupo contestador, nem objeto preciso de reivindicação, nem instrumentos concretos para impô-la (TEDESCO, op. cit., p.17). O conceito de inclusão se constitui, assim, no bojo de um suposto esvaziamento da polarização entre explorados e exploradores, agora reduzida ao centro do capitalismo e sem grandes conseqüências para uma maioria excluída de tal polarização, “situada” na chamada sociedade horizontal, definida pela distância em relação a esse centro e cujos padrões de mobilidade estariam limitados dentro do mesmo espaço _ e na qual o movimento mais importante é aquele que garante não perder o lugar conquistado: mover-se o bastante para não sair do lugar (SENETTI, apud TEDESCO, op. cit., p.18). As novas desigualdades, segundo este último autor, tenderiam a ser percebidas muito mais como um fenômeno pessoal do que econômico, o que levaria a novas formas de reorganizar e pensar os campos da comportamento, da genética, da cognição, das relações sociais. Enquanto no modelo capitalista tradicional a pobreza ou a condição assalariada podiam ser percebidas como conseqüências de uma ordem social injusta, no novo capitalismo tendem a ser associadas à natureza das coisas e, em última instância, à responsabilidade pessoal. Não é casual, por isso, observar o ressurgimento de idéias que tendem a explicar a vigência de determinados padrões de conduta, dos níveis de desenvolvimento cognitivo pessoal e do lugar na estrutura social por fatores genéticos (TEDESCO, op. cit., p. 19-20) . 25 Aquela necessidade do Estado-nação como mecanismo de redução das desigualdades extremas na distribuição de riquezas de que falava Hobsbawn, pode ser situada nessa dimensão da horizontalidade, já que nessa reorganização, fica por conta dos enfrentamentos entre o mercado e as organizações de trabalhadores a regulação das relações entre explorados e exploradores. As conseqüências dessas mudanças para a educação parecem ser, para Tedesco (2002), a necessidade de adaptar a escola à situação, ou seja, sua função passaria a ser preparar as pessoas para as relações em uma sociedade horizontal (criando maiores potenciais de flexibilização, os quais possibilitariam ao educando mover-se sempre para ficar no mesmo lugar), já que parece ter ficado fora do interesse da maioria a discussão das relações entre explorados/exploradores, relações das quais estão excluídos. Dessa leitura das relações entre relações de trabalho no mundo contemporâneo e educação, algumas outras conseqüências podem ser visualizadas: o incentivo à autonomia da escola pode ser um espaço para uma espécie de “tribalização”, na medida em que ela não reconhecer mais qualquer possibilidade do Estado assumir suas responsabilidades e se fechar cada vez mais em suas fronteiras; a ascensão social, da qual durante muito tempo se imaginou ser a escola um instrumento, passa a ser traduzida como inclusão (no mercado de trabalho, no lazer, na educação,etc.): “acesso” passa a ser palavra-chave nas discussões educacionais; os paradigmas educacionais passam a ser buscados não nas elaborações produzidas pelas várias contribuições da academia (nas quais o conflito ainda é tido como produtor de conhecimento), mas daquelas legitimadas pelos organismos internacionais, articuladas muito mais em torno da idéia do consenso; da desigualdade compreendida como fenômeno de origem pessoal, decorrem compreensões de que as transformações no indivíduo são fundamentais para deflagrar mudanças na sociedade (mudanças que implicam na máxima redução possível _ 26 dentro do modo capitalista de organização _ das possibilidades de exclusão). As mudanças também no campo da produção do conhecimento, definidas por Gatti (2005, p.596) como um processo de problematização das “grandes utopias e modelos de análise” (o chamado pensamento pósmoderno), trazem para esse quadro certos elementos, dos quais destaco: ruptura com uma visão de mundo homogeneizante, a reposição do sujeito e a fragmentação e individualização das ações humanas. Quanto ao primeiro elemento, o fim do século XX traz a busca do heterogêneo, do diverso, do diferente como referência, numa contraposição às leituras homogeneizantes de homem e sociedade, próprias dos paradigmas dos séculos anteriores. [...] instala-se na modernidade uma crise, uma contradição histórica que se traduz nas rupturas trazidas quer pelas formas cotidianas do existir, fazendo emergir a necessidade de consideração das heterogeneidades, das diferenças, das desigualdades gritantes, quer pelas fissuras lógicas nas ciências (GATTI, op.cit., p. 597) A reposição do sujeito, que teria sido expulso inclusive das ciências sociais sob a ação dos determinismos, faz com que a variabilidade e a singularidade no campo do humano voltem a ser levadas em conta (GATTI, op. cit., p.600). Como um terceiro elemento desse novo paradigma, destaco a minimização das possibilidades da ação humana como construtora da própria história, de uma crença no sentido emancipador desse processo, como terceiro elemento (GATTI, op. cit., p.601). Considerando a relação entre os novos modos do capital se relacionar com o trabalho, produzindo massas de excluídos, e as transições na direção de um paradigma de produção do conhecimento que descreve certas rupturas do mundo contemporâneo, mas não se dedica mais a forjar nenhuma narrativa de superação, ocorrem mudanças também nos modos de se configurar a educação, e em tais mudanças às 27 vezes é possível antever um alinhamento, às vezes um confronto com as expectativas dominantes. Se a polarização entre incluídos /excluídos traz para a discussão da escola pública (a escola das massas populares) elementos como acesso, autonomia, mudanças nas capacidades do indivíduo, reacende também as questões da qualidade de ensino, da responsabilização do Estado e da construção coletiva do conhecimento. Às exigências de que a escola “se alinhe” aos novos tempos, que pressuporiam uma escola “fora do tempo”, território de sobrevivência da modernidade superada, se opõem exigências de se considerar o que-fazer humano que ocorre na escola como uma atividade complexa, que exige projetos de transformação do atual estado de coisas, mas que não supõe que tais projetos se esgotem na escola, nos agrupamentos fragmentados, nas tribos da pós-modernidade. Nessa posição, o agir pedagógico continua pressupondo objetivos. No dizer de Libâneo (2005), continua vinculado a relações entre leituras globais e locais, continua precisando se apoiar no conhecimento produzido anteriormente: Três coisas são, portanto necessárias de serem ditas para quem quiser ajudar e não dificultar as condições do agir pedagógico. A primeira é que práticas pedagógicas implicam necessariamente decisões e ações que envolvem o destino humano das pessoas, requerendo projetos que explicitem direção de sentido da ação educativa e formas explícitas do agir pedagógico. Quem se dispuser ao agir pedagógico estará ciente de que não se pode suprimir da pedagogia o fato de que ela lida com valores, com objetivos políticos, morais e ideológicos. A segunda é que não é suficiente, quando falamos em práticas escolares, a análise globalizante do problema educativo. Aos aspectos externos que explicitam fatores determinantes da realidade escolar é necessário agregar os meios educativos, os instrumentos de mediação que são os dispositivos e métodos de educação e ensino, ou seja, a didática. E terceira; dada a natureza dialética da pedagogia, ocupando-se ao mesmo tempo da subjetivação e da socialização, da individuação e da diferenciação, cumpre compreender as práticas educativas como atividade complexa, uma vez que se encontram determinadas por múltiplas relações e necessitam, para o seu estudo do aporte de outros campos de saberes (LIBÂNEO, 2005, p.22). Considerar apenas o diverso, o heterogêneo como valores positivos em si, o sujeito e as possibilidades de subjetivação como 28 explicativas do humano, a fragmentação das ações como única possibilidade do fazer humano pode empurrar a escola para a negação de tudo o que já foi feito em educação. Como diz a própria Gatti, há uma “corrida mundial em busca de novos currículos e de uma formação ao mesmo tempo polivalente e diversificada de professores” (2005, p. 603). Na melhor das hipóteses, isso empurra aos professores a obrigação de serem bons em tudo (porque, no mundo fragmentado, tudo pode ser útil, a qualquer momento) e à escola a busca de ensinar para a flexibilidade, para caber no mundo como ele se apresenta. Essa brevíssima introdução, que não apresenta senão pontos de uma leitura deste momento histórico, tem, neste texto, a função de remeter para uma leitura da diversidade, tema em voga neste início de século XXI por conta das questões já assinaladas. A chamada escola inclusiva tem sido considerada como um modelo adequado para os novos tempos exatamente por se configurar como uma escola para a diversidade. Vale a pena, portanto, deter-me em alguns estudos acerca desse conceito. 2.2. EDUCAR PARA A DIVERSIDADE: DESNATURALIZAÇÃO DE UM CONCEITO Ao tratar do tema da diversidade, SKLIAR (2001), FERRE, (2001), E SKLIAR E DUSCHATSKY (2001) procuram distinguir tal conceito do conceito de diferença; na análise de certas diferenças, outros autores apontam algumas questões importantes, como a distinção entre diferença e patologia (BUENO, 1998) a questão da integrabilidade de certas diferenças (FERRE, 2001; BARROS, 2005), as relações entre diferença, identidade e estereótipo, em que identidade e diferença podem ser lidas 29 como realidades estáticas ou num movimento de interconstituição (SILVA, T. 2000; SOUZA, 1998). O primeiro movimento que escolhi para uma leitura do conceito de diversidade foi estabelecer um confronto com o de diferença. Os autores analisados para este trabalho (SKLIAR, 2001; FERRE, 2001; SKLIAR E DUSCHATSKY,2001) chamam a atenção para que não se confunda diferença com diversidade, assim como alertam para que se considera que as muitas diferenças se constituem diferentemente, não podendo por isso ser agrupadas numa mesma categoria, sem que cada especificidade sofra perdas em sua definição. Assim, ao contrário das aparências, diversidade e diferença não teriam uma relação de sinonímia, mas o uso do primeiro termo pode inclusive servir para ocultar ou minimizar o segundo. Em outras palavras: na medida em que é aceito que todas as formas de ser e viver têm valor semelhante, perde-se a riqueza que cada forma específica de ser e viver significa, assim como são ocultos os conflitos entre os interesses que geram essas formas específicas. Para Skliar (op. cit.), o conceito de diversidade pode servir para evitar, nos discursos oficiais, justamente o enfrentamento da existência da diferença. Do ponto de vista desse autor, “autorizar” a existência do diverso pode significar uma homogeneização desse diverso: sob o adjetivo “plural”, esconder-se-ia um desejo de tornar inócuos os conflitos entre as diversas diferenças. Nos documentos oficiais e nos discursos das instituições de educação especial, encontra-se hoje uma preferência no uso do termo diversidade; neste e em outros contextos mais amplos, retrata uma estratégia conservadora que contém, obscurece o significado político das diferenças culturais. A ambigüidade _ e a hipocrisia _ com que se pensa e constrói a diversidade gera como conseqüência, no melhor dos casos, a aceitação de um certo pluralismo que se refere a uma norma ideal (SKLIAR, op. cit., p.96). 30 Tal estratégia conservadora, no mesmo movimento em que permite que o diverso se explicite, iguala as diferenças sob o mesmo manto. A norma ideal, nesse caso, pode ser exatamente o direito à pluralidade desde que essa pluralidade não signifique confronto entre as diferenças. Para Skliar (2001, p.95), o conceito de diversidade, autorizado pelo discurso hegemônico, é entendido “quase sempre como a variante aceitável e respeitável do projeto hegemônico da normalidade”. O mesmo autor, em texto escrito em parceria com Duschatsky (2001, p.119), lembra que “os discursos sociais se revestem com novas palavras, se disfarçam com véus democráticos e se acomodam sem conflito às intenções dos enunciadores do momento”. Ferre (2001, p.195) recorda que, nos dicionários, diversidade e diferença costumam se explicar uma à outra: “Vemos assim que o significado de ‘diferença’ e ‘diversidade’ permite-nos distinguir o outro do um, o outro do mesmo. Quer dizer que o diferente ou diverso é o contrário do idêntico”. No entanto, uma vez aceita a possibilidade da diversidade, parece acabar a necessidade de lidar com a diferença. Como na análise de Skliar (op. cit.), essa autora mostra que o diferente só e considerado como componente da diversidade geral, mas é preciso ir além, buscando entender a constituição histórica e social de cada diferença. A análise de tal constituição histórica e social pode levar a ver entre as diferenças certas especificidades, entre as quais aquelas historicamente definidas, na história do campo clínico, como anormalidade, excepcionalidade, deficiência, e, no campo pedagógico mais recente, como necessidades educacionais especiais. Nesse segundo movimento, duas distinções são feitas: uma primeira, entre características da chamada “necessidade especial” que, do ponto de vista da norma, tornam o aluno “ integrável” ou “não-integrável”, e uma segunda, entre patologia e característica cultural. 31 A primeira distinção remete para a questão de que o discurso da inclusão, ao tratar com o conceito abrangente de necessidades educacionais especiais todas as exigências decorrentes de todos os tipos de limitação (cognitivas, motrizes, neurológicas, sensoriais, psíquicas) oculta o fato de que muitas delas são suficientemente perturbadoras para não serem utilizadas como exemplos de inclusão. Há diferenças que, por perturbadoras, por evidentes, não podem ser simplesmente engolidas pelo discurso da diversidade. Ferre (2001) diz que o discurso da diversidade se esvazia ao remeter para diferentes enfoques conforme a deficiência se revele “integrável ou não”. O enfoque do pedagógico só seria aplicado nos casos das deficiências consideradas “integráveis”, enquanto às outras se destinariam um enfoque clínico. As abordagens sobre a diversidade mantêm, para a educação especial, enfoques tecnicistas biomédicos agora encobertos com as últimas descobertas neurológicas para novas entidades nosológicas (...) enfoques psicologizantes comportamentalistas, para as deficiências psíquicas profundas ou transtornos (...) ao mesmo tempo, um acabamento pedagogista da disciplina para todas aquelas deficiências – hoje necessidades educativas especiais –‘integráveis’, um enfoque que nega seus antecedentes biomédicos e psicológicos, jogando fora, com a água da banheira, a transdisciplinaridade que um olhar complexo a partir da Pedagogia da diversidade pudesse propor (FERRE, op. cit. p. 202203) Essas diferenças de enfoque revelam que, sob o conceito geral de diversidade, escondem-se especificidades que, para serem minimizadas, obrigam a certas operações discursivas. Uma delas é a escolha, descrita por Barros (2005, p.122;127) da criança com síndrome de Down como símbolo para propaganda da inclusão: Pois, tendo em vista ser a síndrome de Down aquela condição mais imediatamente associada à deficiência no imaginário popular – nem tanto pela incidência numérica, mas muito pela qualidade organizativa de entidades assistenciais próprias que lhe deram evidência –, as diretrizes da política educacional de inclusão de deficientes pareceram se aplicar mais especificamente a esta síndrome (BARROS, op. cit., 122). 32 Essa possibilidade de aplicação das políticas à síndrome de Down tem a ver com sua configuração como a mais “integrável” das necessidades especiais (a que causa menos transtornos à forma como tanto escola como o sistema educacional estão organizados). Tal distinção entre os graus de comprometimento das capacidades que teriam função na forma como se estrutura o sistema educacional também pode ser complementada com uma segunda distinção, aquela que deve ser feita entre patologia e diferença cultural Bueno (1998), em estudo sobre as relações entre surdez, linguagem e cultura, traz uma outra distinção importante: afirma que é importante distinguir diferença de deficiência, e caracteriza deficiência como a situação em que ocorre necessidade de promover a prevenção e a cura daquela característica. Também nesse autor se evidencia o cuidado em não homogeneizar, sob um discurso geral, especificidades que geram, inclusive, necessidades educacionais diferentes. Considerar o surdo como um grupo minoritário pode ser importante do ponto de vista das diferenças culturais, mas confundi-lo com outros grupos minoritários é, a meu ver, esconder uma distinção entre o patológico e a mera diferença. Em outras palavras, qualquer iniciativa de intervenção para homogeneizar diferenças, como, por exemplo, o embranquecimento das populações negras, ou a eliminação de características como a homossexualidade ou os ‘olhos puxados’ das etnias orientais, no meu modo de entender, devem ser combatidas, pois representam uma visão ‘arianis’ incompatível com as diferenças e com a construção da democracia. Isso, entretanto, não se estende a outros casos, como os patológicos, porque se houver possibilidade de evitar o seu advento, isto é, se houver formas de prevenir sua incidência ou de solucionar este mal isso deve ser feito (BUENO, op.cit., p. 52; grifo do autor). Bueno chama a atenção, então, para que não se considere a surdez como uma doença, caracterizando-a como “condição intrinsecamente adversa” (BUENO, op.cit., p. 53). Se, num discurso geral sobre diversidade, tais especificidades não são esclarecidas, corre-se o risco de denominar diferenças (que devem ser respeitadas) com condições que devem ser objeto de prevenção e cura. Cometido esse equívoco, é enorme a possibilidade de serem valorizados, como traços de identidade 33 aspectos que são característicos da patologia, risco tão sério como o de considerar patológico aquilo é característica cultural de um grupo. O discurso da diversidade, quando assume as muitas diferenças como equivalentes, sem levar em conta as várias distinções que é preciso operar no interior de cada diferença e em suas relações com as demais, trabalha com uma idéia de identidade como fixa, estável. O terceiro movimento que considero necessário, então, na análise do conceito de diversidade, é perceber suas relações com a noção de identidade. Considerada a identidade como algo dado, estático, repete-se o discurso de respeitar as diversas identidades, sem a discussão de como elas se constituem. Daí o discurso vazio que denuncia Ferre: Educar na diversidade respeitando a identidade de cada um, aceitar e respeitar as diferenças a partir da igualdade entre os seres humanos, poderiam ser frases de manual não por repetidas menos vazias, eufemísticas e adaptáveis a qualquer enfoque que se queira dar à educação hoje (2001, p.197) Afirma a mesma autora (op.cit., p.195) que, quando se recorre aos dicionários, identidade e diferença se explicam uma à outra: “o diferente ou diverso é o contrário do idêntico”. Dessa forma, será preciso definir o idêntico, para poder definir o diferente, e vice-versa. Nosso mundo tem certa facilidade para definir o que é e o que não é; nesse raciocínio linear, a identidade é “concebida como um fato autônomo. Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é auto-contida e auto-suficiente” (SILVA,T., 2000, p.74). Essa forma afirmativa de definir a identidade esconde, diz Silva, toda uma cadeia de negações. Sou isso, porque não sou aquilo, nem aquilo... Também coloca a diferença como derivada da identidade, de forma que há uma “tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos” (SILVA,T., op.cit., p.75-76). Essa concepção de identidade aparece fortemente na história da deficiência: sua definição geralmente acaba sendo caracterizada pela falta (eles representam a diferença, não a identidade, já que a identidade se 34 faz pela norma, e a norma é um suposto ser humano sem deficiências). O conceito de limitação é elaborado na comparação com seu contrário, o de ilimitação, de completude, que só pode ser abstrato, uma vez que o ser humano completo é uma idealização. Também Bueno (1998, p.43), nos seus estudos sobre a surdez, critica essa noção de identidade fixa, estável, auto-suficiente e baseada numa única característica: “O surdo [...] passa a ter como única característica determinante de sua identidade a surdez. Não conta o fato de ser branco ou negro, rico ou pobre, homem ou mulher” (grifos do autor) Nesse texto, o autor faz uma crítica aos teóricos da surdez, que, ao se apropriarem da concepção multiculturalista, “transformam diversidade cultural em homogeneidade cultural (cultura ouvinte) reduzindo [...] a riqueza teórica dessa abordagem”. Garcia (1998) analisa os limites de uma abordagem centrada no indivíduo para a educação do aluno portador de seqüela motora, afirmando que tais limites desencadeiam relações de perpetuação das dificuldades dessa pessoa. Considerando a identidade como algo que se forma em torno da falta, da deficiência, [...] esse aluno vai aprender de que maneira se comportar como deficiente e que é preciso esperar o momento em que vai estar maduro, após muita estimulação do ambiente, para realizar um repertório mínimo de atividades condizentes com sua lesão e seu grau de deficiência. Nessa abordagem há uma cristalização do papel de portador de seqüela motora que se generaliza para outros aspectos de sua vida, em que a tônica é o ‘limite’, o ‘não ser capaz de’ (GARCIA, op.cit., p.82). Ao se cristalizarem os papéis, e ao se situar no indivíduo os seus limites, se ignora e se atrapalha o desenvolvimento; ao se considerar a identidade como estável e individualizada, desconsidera-se o potencial das relações com o outro na construção do sujeito. No entanto, mesmo quando se situa em fatores considerado externos ao indivíduo os limites, num modelo social de deficiência, não se está isento da compreensão de identidade como fixa. Os limites podem continuar sendo entendidos 35 dentro de um padrão idealizado de relações e não entre as relações que se dão de fato entre os homens concretos. Dessa forma, no interior do imenso caldeirão que acolhe as muitas diversidades, há que se considerar as relações de poder e saber que fazem com que uns aspectos apareçam como referência e símbolo e outros sejam omitidos, uns sejam mais objeto do campo do clínico e outros do pedagógico, certas diferenças mais naturalizados e outras menos... Enfim, há que se considerar os movimentos históricos de interconstituição de identidades e diferença. De acordo com Garcia, o indivíduo considerado portador de deficiência convive com limitações porque a sociedade atribuiu aos homens um caráter idealizado, com base no qual distingue como limitações tudo o que foge ao seu padrão. O que é chamado de limite corporal, sensorial ou cinestésico seria primordial se os homens não vivessem em coletividade (1998, p.86). Ao homem considerado isoladamente, a falta de visão, ou de possibilidades de locomoção, ou qualquer outra falta, de fato podem impossibilitar a existência. Mas o homem isolado também é uma abstração. As fronteiras do ser humano, ser geneticamente social não podem estar no indivíduo: a identidade individual é, portanto, produto mutante e flexível do processo de relações coletivas. Souza (1998), ao analisar a constituição do sujeito nas relações com o outro, mediadas pela linguagem, também considera que a identidade não pode ser vista como estática, porque cada sujeito se constitui de forma multifacetada, na dinâmica das relações com os demais. Para esta autora, O sujeito se constitui com o outro pela linguagem (...) o outro é marcado pelas vozes de muitos outros; ecos que fazem ressoar visões de mundo contraditórias porque contraditórios são os interesses das classes sociais e os conhecimentos sobre o mundo que constroem. O outro é um ser em conflito, em permanente tensão com todas as vozes que o constituíram. O eu está imerso no fluxo dessas contradições e se constitui com elas (...). É pela pluridimensionalidade desse processo, pela presença 36 simbolicamente marcada de todas as vozes alheias que o tecem, que o sujeito se constitui como ser multifacetado ou possuidor de várias máscaras. É na/pela ebulição das vozes que essas máscaras fazem ecoar – ao longo da história do sujeito –que elas, transformadas, se monologizam. ...(SOUZA, 1998, p.63). Essa compreensão de identidade como algo cristalizado vinculase àquela do desenvolvimento como prévio à aprendizagem, já tão debatida por Vigotski (1993) para quem é a aprendizagem, pelo contrário, que impulsiona o desenvolvimento. Quando se considera o desenvolvimento com um caráter mais biológico do que cultural, há um predomínio do entendimento de que é preciso primeiro amadurecer para depois se desenvolver, desenvolver-se para depois aprender, assimilar os conteúdos para depois responder às questões apresentados pelo professor, estudar para depois de anos de escola adquirir qualificação profissional com capacidades, habilidades e destrezas (GARCIA, 1998, p.82). Como Souza (1998), Silva (2000, p.77-78) considera que identidade e diferença só podem ser compreendidas no interior dos “sistemas de significação nos quais adquirem sentido”. Tais sistemas, no entanto, só aparentemente são seguros: o significado depende sempre da indeterminação e da instabilidade da linguagem. Está vinculado a relações de poder, a disputas entre grupos sociais que se situam assimetricamente uns com relação aos outros. Podemos dizer que onde existe diferenciação _ ou seja, identidade e diferença _ aí estão presente o poder. A diferenciação é o processo central pelo qual a identidade e a diferença são produzidas. Há, entretanto, uma série de outros processos que traduzem essa diferenciação ou que com ela guardam uma estreita relação. São outras tantas marcas da presença do poder: incluir/excluir (“estes pertencem, aqueles não”); demarcar fronteiras (“nós” e “eles”); classificar (“bons e maus”; “puros e impuros”; “desenvolvidos e primitivos”, “racionais e irracionais”); normalizar (“nós somos normais; eles são anormais”). (SILVA ,T., op.cit., p.81), Os processos pelos quais se produz a identidade não são unidirecionais. Para Silva (op.cit., p.84-89), oscilam entre os movimentos “que tendem a fixar e a estabilizar a identidade” e os que “tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la”. Pode-se afirmar o mesmo com relação às 37 diferenças: haverá oscilação entre esforços para torná-las estáveis e para subvertê-las, conforme as correlações de forças entre os grupos de interesse em que se agreguem. Historicamente, os efeitos de se chamar alguém “negro”, “surdo”, “mulher”, por exemplo, vão se modificando, ganhando valorações distintas. A própria existência de expressões como “poder negro”, “orgulho surdo”, “pensamento feminista”, impensáveis em certas épocas, expressam essas mudanças históricas. Compreender cada diferença como interconstituída em sua relação com as outras, cada identidade como processo baseado nas relações culturais e históricas, como busca de normatividade e de escapar da norma ao mesmo tempo, enfim, desnaturalizar o termo diversidade, pode ser importante para uma leitura da escola como espaço onde essas relações são trabalhadas. Tal conceito de diversidade se apresenta, na análise dos autores aqui utilizados, como um tanto escorregadio: tanto pode ser útil para expressar uma homogeneização das diferenças, com a conseqüente esquiva da discussão das relações de poder constitutivas de certas diferenças, quanto pode criar um esvaziamento das especificidades, abrangendo de cultura a patologia; se considerar a identidade como algo dado, estático, auto-referenciado, pode conceber o heterogêneo como ajuntamento das diferenças, ao invés de perceber as relações entre elas. Pensar a temática da diversidade na configuração de um lugar da escola no mundo contemporâneo exige, portanto, que consideremos o conceito em sua capacidade de mostrar e esconder: mostrar as diferenças que se apresentam como reais, mas esconder a forma como elas se interconstituem. Diferenças entre ricos e pobres, empregados, subempregados e desempregados, favelados e moradores de bairros nobres; entre grupos étnicos; entre a clientela da educação especial e a da educação comum, só para citar alguns exemplos; diferenças que não se constituem pelos mesmos processos nem pelas mesmas razões. 38 2.3. UMA ESCOLA PARA TODOS/UMA ESCOLA PARA POUCOS A critica aos aspectos reprodutores da escola, exercitada mais enfaticamente nas décadas de 60 e 70 e aqui analisada, principalmente, com base nos escritos de Bourdieu (1998), destacava sua dualidade: tanto na relação entre estabelecimentos, entre sistemas, como no interior da mesma escola, ocorriam processos diferentes de formação, expectativas diferentes de futuro, para os filhos de classes sociais diferentes. Assim, ainda que não assumida oficialmente, havia de fato uma escola para favorecidos e uma escola para desfavorecidos. Tal situação se reforçava pelas exigências de eqüidade (dentro da escola) entre desiguais por força das estruturas sociais, das quais a escola parecia não tomar conhecimento. “Com efeito”, diz Bourdieu, [...] para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades sociais entre crianças das diferentes classes sociais (BOURDIEU, 1998, p.53). Essa crítica, entre outras, está na base de muitos movimentos por uma escola para todos; a ampliação do direito a uma educação de qualidade para os filhos de trabalhadores pressupunha que não bastava o acesso a escola, ainda que esse fosse pré-condição para tal educação: era preciso que tais crianças recebessem na escola o capital cultural6 que sua classe não tinha condições de lhe fornecer. Nesse caso, a expressão “escola para todos” significa que aqueles a quem as diferenças de classe mantinham fora da escola tinham direito a ela, e mais do que isso, tinham o direito a escapar, por força da atuação da escola, das injunções de seu pertencimento a uma classe desfavorecida. 6 “O capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado, ou seja, sob a forma de disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais [...]e, enfim, no estado institucionalizado, forma de objetivação que é preciso colocar à parte porque, como se observa em relação ao certificado escolar, ela confere ao capital cultural _ de que é, supostamente, a garantia_ propriedades inteiramente originais. (BOURDIEU, 1998, p. 74) 39 Não é preciso muito para concluir que tal escola nunca se concretizou; ainda que as distinções entre classes e as reivindicações de uma escola popular tenham perdido espaço e importância na literatura educacional, as crianças pobres continuaram sendo expulsas da escola (pública e gratuita) em certos momentos de “filtragem”: na passagem da quarta para a quinta série, no final do ensino fundamental, no final do ensino médio, nos vestibulares, na “escolha” do curso superior (os poucos que conseguem chegar a tanto). É verdade que a dualidade de escolas, em muitos casos, continuou sendo material e explícita, conforme destaca Beyer (2005): Para encurtar, na história da educação formal ou escolar, nunca houve uma escola que recebesse todas as crianças, sem exceção alguma. As escolas sempre se serviram de algum tipo de seleção. Todas elas foram, cada uma à sua maneira, escolas especiais, isto é, escola para crianças selecionadas. As escolas de filosofia da Antigüidade, os mosteiros da Idade Média, as escolas burguesas da Renascença _todas elas foram escolas especiais para crianças especiais, selecionadas. Nesse sentido, também hoje as melhores escolas particulares em nosso país são escolas especiais, que acolhem não todas as crianças, porém apenas algumas delas (obviamente, aquelas cujas famílias têm condição privilegiada para bancar seus estudos (BEYER, op.cit., p.13)). No entanto, mesmo no interior da escola pública e gratuita, os processos que Bourdieu descrevia não deixaram de operar; a escola não deixou de ser dual por ter se aberto às diferenças, aliás, talvez tal dualidade tenha se reforçado quando se coloriu de pluralidade. A diferença constituída pelo pertencimento de classe parece ter se diluído nas diferenças étnicas, de gênero, de grupo, geográficas, nacionais, relativas a necessidades educacionais especiais, entre as muitas que a busca e a valorização da heterogeneidade ajuda a constituir diariamente. À exigência de que a escolar deveria contribuir para ampliar o capital cultural daqueles excluídos desse bem foram acrescentadas muitas outras injunções, algumas pouco relacionadas com a função da escola. 40 Não questiono que a escola seja reivindicada como o espaço onde deve ser atendido todo o espectro da diversidade humana (e não apenas os recortes desse espectro cultural e historicamente autorizados como diferenças a serem consideradas) A questão é bem outra, e se refere às contradições de uma educação para todos numa sociedade de desiguais. Dessas contradições, eu gostaria de destacar pelo menos duas. Uma delas tem relação com as promessas implícitas de uma educação para todos, numa sociedade democrática, promessas que têm relação com garantia de espaços de bem-estar social, de mudança pra melhor na posição social que as pessoas ocupam. Desnecessário dizer que tais promessas não se dirigem a todos: têm um destinatário específico, que são aqueles que estão em posição desfavorecida. Segundo Charlot (2005), o movimento de educação para todos se articula tanto ao vinculo entre nível de escolaridade e inserção profissional quanto à exigência de sucesso escolar, fenômeno contraditórios entre si. Diz o autor que tanto é democrático “abrir o ensino a todos”, quanto “atribuir os empregos de acordo com os diplomas e não em função das relações sociofamiliares”, quanto ainda “considerar que qualquer aluno tem direito ao sucesso escolar”, mas esses três princípios são incompatíveis: Só se pode abrir os ensinos médio e superior a todos, com exigência de um sucesso de todos os alunos, se não afirmarmos, ao mesmo tempo, que todos terão cargos correspondentes a seus diplomas _o que seria prometer a todos cargos de chefia. Pode-se evidentemente, abrir o ensino a todos e garantir cargos que correspondam a seus diplomas, mas contanto que nem todos sejam bem sucedidos[...]. Pode-se igualmente visar a bom desempenho escolar de todos os alunos e garantir cargos que correspondam aos alunos, desde que nem todos entrem no ensino médio ou superior (o que era a solução clássica) (CHARLOT, op.cit, p.79). Não podendo cumprir as promessas de acesso, sucesso educacional e sucesso no mercado, a escola contemporânea centra seus esforços nas duas primeiras promessas. A ênfase no acesso e no sucesso nos processos de aprendizagem (ensino centrado no aluno), creio eu, cria um outro tipo de solução: a escola pública se desobriga das questões 41 referentes a emprego, salário e status (às quais ela não pode responder) voltando-se para si mesma. Sua função se torna maternal: acolher, abrigar, proteger do preconceito, fortalecer a auto-estima, contornar os fracassos precoces da reprovação e da repetência. O desamparo social da escola a converte em amparo dos necessitados. Essa função de amparo traz para a discussão a segunda contradição: uma educação para todos, ao se centrar no acesso à escola e no sucesso no interior dela, coloca uma grande ênfase na ação pedagógica, no ensinar; contraditoriamente, a capacidade de ensino da escola tende a se reduzir na mesma medida em que dela são exigidas aquelas competências maternais a que me referia, cujo exercício extrapola o ensino e muitas vezes se choca com ele. Parece-me que uma das reivindicações urgentes que a escola deveria fazer era justamente poder ensinar: dispender seu tempo, energia e patrimônio físico e cultural acumulado no esforço de fazer com que seus alunos (todos eles) se apropriassem da capacidade de ler (eficiente e criticamente), escrever (idem), calcular, projetar, organizar e reorganizar a vida com as ferramentas escolares. Do contrario, o ser “para todos” pode custar o preço de deixar de ser escola, na contemporaneidade. Acerca das exigências feitas à pedagogia nesse mundo em mudança, Libâneo (2005) chama a atenção para essa possível descaracterização da escola, resultante do esforço de atender a exigências em si contraditórias: Destaca-se no contexto social contemporâneo a contradição entre a pobreza de muitos e a riqueza de poucos, entre a lógica da gestão empresarial e as lógicas da inclusão social, ampliando as formas explicitas e ocultas de exclusão. As escolas e as salas de aula têm contribuído pouco para a superação dessas contradições, especialmente estão falhando em sua missão primordial de promover o desenvolvimento cognitivo dos alunos, correndo o risco de terem que assumir o ônus de estarem ampliando a exclusão com medidas aparentemente bem intencionadas como a eliminação da organização curricular em séries, a promoção automática, a integração de alunos portadores de necessidades especiais, a flexibilização da avaliação escolar, a transformação da escola em mero espaço de vivência de experiências socioculturais (LIBÂNEO, in LIBÂNEO e SANTOS, 2005, p.21). 42 Não é de admirar que as escolas estejam falhando em sua missão de promover o desenvolvimento cognitivo, ou em ampliar o capital cultural, ou em ser espaço de convivência democrática das diferenças. Não pode ser missão de uma parte da sociedade resolver contradições que são geradas nas relações que produzem o conjunto. Mas esse é, sem dúvida, um ponto de vista que se ancora numa das narrativas geradas na modernidade. Se for desconsiderada qualquer possibilidade de, pela ação humana, construir formar novas (e mais justas) de ser e viver, há também que desconsiderar projetos de reforma da escola, projetos de alinhá-la com o pensamento mais “recente”; afinal, também a escola é sobra da modernidade, de um tempo em que se acreditava que o acesso ao capital cultural era um dos fatores que possibilitavam ao homem modificar as relações que ele próprio construía. Há que se suspeitar que a escola também tenha feito, nos anos recentes, aquele mesmo movimento que Sennett (apud TEDESCO, 2002, p. 18) surpreendia na nova organização do trabalho: não parar de se mover para não sair do lugar. A ânsia de reformas, cujos objetivos geralmente escapam aos envolvidos, talvez tenha a ver com isso: Poucas vezes os sistemas escolares modernos experimentaram um a variedade tão ampla e ambiciosa de reformas em tão pouco tempo. Não obstante, ainda que medir a euforia e a decepção seja um assunto sociologicamente arriscado, um sentimento parece difundir-se: de maneira geral, são poucos os que confiam que essas reformas sirvam para produzir a tão ansiada mudança. A escola está mudando para continuar sendo a mesma (GENTILI, 2001, in SILVA e VIZIM, 2001, p.47). No caso da escola, eu diria que, além disso, tal movimento tem mais de espasmo do que de fluxo: a variedade de reformas implica também numa desarticulação delas entre si, no melhor estilo pósmoderno: cada momento é um momento, o novo não tem nada a ver com o velho, as condições de produção das práticas humanas parecem ser meramente o cenário no qual a escola se retorce (e não é em dores de parto, parece). 43 É, portanto, também de se suspeitar que quanto mais a escola se abre para todos, mantido o processo de produção de desigualdade, e exacerbando-se os processos de exclusão social, mais a educação se fecha para servir a poucos (inclusive pela razão de que esses poucos, na chamada sociedade do conhecimento, pouca necessidade têm de escola, e, não precisando mais dela, podem graciosamente concedê-la aos excluídos). 2.4. O ESPECIAL NA EDUCAÇÃO: UM RECORTE DA ESCOLA PARA TODOS Como um dos recortes das muitas versões das lutas de educação para todos, o movimento contra a segregação de crianças com deficiência tem seus primórdios, segundo Mantoan (1998, p. 99) nos países nórdicos e nos anos sessenta. Tais movimentos questionavam as práticas escolares de segregação, assim como as práticas sociais em relação às pessoas com deficiência intelectual. Tais práticas segregacionistas, apoiadas numa concepção inatista do desenvolvimento humano, davam pouca ênfase ao papel da educação, e se concentravam na categorização dos distúrbios, entendidos como inerentes àquela pessoa (MARCHESI E MARTÍN, 1995, p. 8-9). O que veio a se chamar educação especial nasce, assim, com um cunho fortemente assistencial. Tratava-se muito mais de oferecer atendimento a todas as necessidades que a família e a escola regular não poderiam oferecer (suporte médico e psicológico, principalmente) do que de assumir a responsabilidade pela educação, no sentido de uma busca do desenvolvimento pleno dessas pessoas. Segundo Marchesi e Martín (1995, p.9-11), os movimentos em favor da superação do segregacionismo estão relacionados com uma série 44 de modificações na sociedade e no interior da escola: mudou a concepção de distúrbio do desenvolvimento, de deficiência, de aprendizagem, de avaliação, deslocando-se a ênfase de fatores orgânicos ou individuais para fatores sociais e ambientais. A noção de “fracasso escolar” fez com que fossem reavaliados “os limites entre normalidade, fracasso e deficiência” (MARCHESI E MARTÍN, op. cit, p. 10); isso ocorre dentro de uma rediscussão do papel da escola, que agora precisava atender a uma diversidade maior de características e de interesses, de novas exigências de formação de professores, portanto. Mudaram também as atitudes em relação às minorias de modo geral, o que repercutiu na luta do que os autores chamam de “minorias dos deficientes”. Essas transformações e outras tantas constituíram, ao mesmo tempo em que expressaram, uma nova maneira de conceber a deficiência, dizem Marchesi e Martín (id. ibid); essa nova maneira tinha a ver com a transição de um modelo médico da deficiência _ no qual a limitação é vista como “um problema do indivíduo e, por isso, o próprio individuo teria que se adaptar à sociedade ou ele teria que ser mudando por profissionais através da reabilitação ou cura” (FLETCHER, apud SASSAKI,1997, p.29) para um modelo social, no qual “os problemas da pessoas com necessidades especiais estão tanto nela quanto na sociedade (SASSAKI, op. cit., p. 47). Assim, a transição de um modelo médico para um modelo social se materializava na prática da integração educacional, compreendida como um processo em que as necessidades específicas dos alunos deveriam ser o parâmetro para a organização do sistema educacional, criando-se um continuum de possibilidades de atendimento que vai das adaptações a classe regular com ou sem apoio ao atendimento especializado em tempo integral (MARCHESI e MARTÍN, 1995, p.17-18). Essa forma de organização, ainda que tenha significado um avanço com relação ao segregacionismo, não deixou de herdar certa forma de segregação: a distinção entre educação especial (para as 45 crianças “diferentes”) e educação (para os outros, ditos normais). O que define a educação como especial, nesse caso, vem a ser a suposta anormalidade de sua clientela, e isso implica em que as políticas de educação especial muitas vezes são conduzidas paralelamente às políticas educacionais gerais, como é o caso de nosso país: “A educação especial, no Brasil, como em outros países, tem correspondido a um campo de trabalho delimitado por certas formas de compreensão da educação de sua clientela, acoplada a políticas sociais públicas específicas” (SILVA, S., 2001, p.179). No final do século XX, tais discussões adquiriram corpo e se inseriram na pauta da maior parte das discussões internacionais sobre educação e deficiência, tendo na conferência de Salamanca (UNESCO, 1994) um de seus momentos mais importantes. Esta última década (final do século XX e início do XXI), segundo Omote (2004, p.2) “se caracteriza como aquela que definitivamente trouxe a discussão sobre as questões relacionadas a deficiências e pessoas deficientes para o cenário da educação de modo geral”. Tomada como referência em boa parte dos trabalhos sobre educação das pessoas com necessidades especiais, a Declaração de Salamanca vem propor uma substituição do conceito de integração pelo de inclusão, quando afirma o direito de toda criança à educação, ao respeito às características individuais e à diversidade, ao acesso à escola regular e a “uma pedagogia centrada na criança”, que possa satisfazer a suas necessidades (UNESCO, 1994). O respeito a tais direitos constitui o que a declaração chama de uma “orientação inclusiva”, capaz de combater a discriminação e promover uma educação efetiva. Descrito assim, o avanço de uma concepção segregacionista até a chamada educação inclusiva parece linear e harmonioso, como se a crítica de uma concepção possibilitasse sempre visões mais abrangentes e a superação de determinado conceito por outro, nas práticas, nas políticas e na produção acadêmica. Veremos a seguir que isso não ocorre dessa 46 maneira: as concepções se imbricam ao mesmo tempo em que se combatem, tanto na prática pedagógica quanto nas políticas públicas e no debate acadêmico; as polarizações estabelecidas nesses embates fazem às vezes com que o movimento a ser superado seja identificado com negatividades que tem suas raízes para além dele: E as escolas especiais, são de fato as escolas certas para crianças com necessidades especiais? Na opinião dos defensores da inclusão, a resposta é não. No cruzamento da escola especial com a proposta de educação inclusiva, as escolas especiais passam a ser concebidas como escolas que segregam. Uma olhada na história das escolas especiais pode nos ensinar que esta idéia, em parte, representa um preconceito ou, no mínimo, um equívoco (BEYER, 2005, p. 14). Foi dito anteriormente que o movimento por uma educação integradora tinha como objetivo superar a concepção segregacionista, garantindo às crianças com necessidades especiais a possibilidade de educar-se, conforme suas possibilidades. É assim que o conceito aparece em Marchesi e Martin, que, analisando os vários modelos propostos e experimentados na Europa, definem integração como: Um processo com vários níveis, através do qual se pretende que o sistema educacional tenha os meios adequados para atender às necessidades dos alunos. Esta gama de possibilidades de integração deve fazer com que cada aluno seja posicionado na mais conveniente para sua educação, podendo mudar, quando suas condições em relação à aprendizagem mudarem (MARCHESI e MARTIN, 1995, p.18). Fica claro, nessa definição, que se trata de inserir no sistema educacional os alunos com necessidades educacionais especiais, e que é necessário que esse sistema tenha uma estrutura que permita a mobilidade de tais alunos. Essa mobilidade supõe que a escola, além de oferecer a esses alunos condições de aprendizagem adequadas, deve contar com apoio específico, uma vez que muitas necessidades exigem um atendimento que vai além daquilo que é estritamente escolar (fonoaudiólogos, neurologistas, etc.). Isso remete à discussão do quanto a escola pode ser integradora em si mesma, ou seja, remete à questão do papel da escola numa sociedade excludente. 47 Em síntese, a maior parte dos posicionamentos dos autores a respeito da questão se concentra em dois blocos: para alguns, reconhecer o direito de todos a educação de qualidade implica em que a escola regular pública deva oferecer vagas, equipamentos, pessoal especializado, etc. para todas as crianças, incluindo aquelas com necessidades especiais. Outros consideram tal direito contemplado mesmo quando boa parte das condições de acompanhamento se concentra nas instituições particulares. Duas polêmicas inter-relacionadas emergem dessa questão: o financiamento público ou privado da educação e a sobrevivência de uma dualidade de sistemas, ou seja, de um sistema de educação especial paralelo ao sistema geral de educação. A questão da dualidade de sistemas aparece na legislação brasileira, já na lei 4024/61 (MAZZOTTA, 2006, p.68). Aí, o conceito de integração aparece como uma integração “dentro do possível”, ou seja, o legislador reconhece as deficiências do sistema para uma integração completa e prevê uma continuidade dos serviços de educação especial, para os casos em que os serviços educacionais em geral não forem adequados a todos: Pode-se inferir que o princípio básico aí implícito [no art.88] é o de que a educação dos excepcionais deve ocorrer com a utilização dos mesmos serviços educacionais organizados para a população em geral (situação comum de ensino), podendo se realizar através de serviços educacionais especiais (...) quando aquela situação não for possível (MAZZOTTA, op. cit). Tal situação geralmente não era possível, evidentemente. Mazzotta chama a atenção para o fato de que os casos situados fora das possibilidades, não se enquadrando no sistema geral de educação acabariam sendo remetidos para instituições especializadas de caráter assistencial (geralmente particulares e subvencionadas pelo Estado), de forma que qualquer tipo de serviço educacional (ainda que não escolar) podia se candidatar às subvenções estatais. Kassar (1998) identifica nessa distribuição, entre os setores público e privado, do atendimento à educação especial, uma característica do liberalismo difuso na época. Em 48 tempos neoliberais, esse processo tende a se radicalizar, o privado ganhando mais subvenções e o público perdendo cada vez mais capacidade de assumir a educação de modo geral. A excepcionalidade aberta pela preferência expressa na legislação atual mantém a questão em termos semelhantes. A Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de fevereiro de 2001, que institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, define que o atendimento extraordinário (não preferencial) continuará ocorrendo em escolas especiais: Art. 10. Os alunos que apresentem necessidades educacionais especiais e requeiram atenção individualizada nas atividades da vida autônoma e social, recursos, ajudas e apoios intensos e contínuos, bem como adaptações curriculares tão significativas que a escola comum não consiga prover, podem ser atendidos, em caráter extraordinário, em escolas especiais, públicas ou privadas, atendimento esse complementado, sempre que necessário e de maneira articulada, por serviços das áreas de Saúde, Trabalho e Assistência Social (BRASIL, 2001) As políticas posteriores mostram um incremento do investimento publico em educação especial. Assim, em 2005, dos 42765 estabelecimentos com educação especial, no Brasil, 36697 eram públicos e 5866 privados. Entre 2002 e 2005, houve um crescimento de 75,3% de estabelecimentos públicos com educação especial. Também ocorre um crescimento na quantidade de estabelecimentos inclusivos, ou seja, escolas que recebem, nas classes regulares, alunos com necessidades educacionais especiais: de 17994 em 2002 (sendo 16282 públicos e 1712 privados) saltam para 38019 em 2005 (sendo 34366 públicos e 3653 privados), num crescimento de 111%.7 Mesmo assim, o acesso à escola inclusiva não pressupõe necessariamente a superação de toda segregação, já que os alunos que requerem atenção especializada (que a escola chamada inclusiva não tem, no momento, condições de oferecer) tenderão a encontrá-la no ensino 7 Dados da Secretaria de Educação Especial (SEESP) do Ministério da Educação (MEC), disponíveis em http://portal.mec.gov.br/seesp. 49 privado, ficando excluídos os que não podem pagar por ele; na mesma linha de raciocínio, não expressa uma mudança no sistema geral de ensino para atender às especificidades, mas no “enquadramento” dos “casos possíveis” dentro desse sistema, que continua a oferecer dois tipos de educação _ regular e especial. Para Mazzotta (2003, p.78), a vinculação necessária entre portador de deficiência (sic) e educação especial pode representar uma visão estática, enquanto que uma “visão por unidade (do educando e/ou do atendimento educacional) ou dinâmica, por conter as noções de tempo, mudança e flutuação” exigiria considerar que o educando especial se vinculará a situações de educação comum ou especial, conforme as necessidades de cada momento e de cada situação de aprendizagem. É preciso não perder de vista a importante observação de que nem todo portador de deficiência requer ou requererá serviços de educação especial, ainda que possa necessitar de tratamento ou intervenção terapêutica (Habilitação ou Reabilitação) em função de suas condições físicas e mentais (MAZZOTTA, 2003, p.195). Para esse autor, o atendimento às necessidades educativas especiais é, sempre e antes de tudo, atividade educativa, devendo ser compreendido como parte integrante da educação formal. Como Mazzotta (op. cit.), Cartolano (1988) defende que a divisão da educação em dois sistemas, um regular e outro especial limitam as possibilidades do processo de inserção das minorias na escola, considerando que necessitam de atendimento especial, mas também e principalmente de educação regular, de convívio escolar e exercício da cidadania. Essa situação, segundo Mantoan (2004, p. 120-124), tem relação, nos aspectos legais, com a distorção que ocorre entre o texto da Constituição Federal e o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O direito à igualdade, expresso no artigo 5º, e o direito de todos à educação (a partir do art 205), estariam se chocando com a possibilidade de substituição do ensino regular pelo especial, prevista no 50 art.58 e seguintes da LDB. Há uma confusão, diz Mantoan, entre as expressões “educação especial” e “atendimento educacional especializado”, como se fossem sinônimos. Esta última aparece na Constituição Federal, no art. 208, e na LDB, art. 58 e seguintes, significando o atendimento complementar para “melhor atender às especificidades dos alunos com deficiência, abrangendo principalmente instrumentos necessários à eliminação de barreiras que as pessoas com deficiência têm para relacionar-se com o ambiente externo [...]” Já Educação Especial, a menos que seja reconceituada, sempre significou uma modalidade de educação que substitui a educação regular, mesmo quando oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, na forma de classes especiais. Para concluir esse percurso acerca do especial na educação, considero importante, dentro dessa transição de integração a inclusão, e permeando a dualidade escola comum/educação especial, apresentar alguns aspectos das tentativas de reconceituação próprio do campo, em que as expressões definidoras do real são substituídas de tempos em tempo, numa possível crença de que as relações concretas se modificam quando se modifica o discurso. Deficiente, portador de deficiência, portador de necessidades educacionais especiais, pessoa com necessidades educacionais especiais são algumas dessas expressões. Tratarei aqui, especificamente da polarização deficiente/pessoa com necessidades educacionais especiais, polarização que sugere a necessidade de resposta a algumas perguntas: A expressão “necessidades educacionais especiais” significa uma mudança de ponto de vista, com relação ao conceito de deficiência, devendo, portanto, substituí-lo, ou uma elaboração mais abrangente, incluindo a noção de deficiência? Que conseqüências tem a negação da existência da limitação como parte constitutiva da identidade? Não seria tão incoerente quanto considerar como identidade unicamente a característica tida como limitação? 51 A primeira pergunta tem como uma das respostas possíveis a visão de Marchesi e Martín (1995, p.11). Conforme esses autores, a denominação “necessidades educativas especiais” começou a ser utilizada nos anos 60 (no Reino Unido, a partir do relatório Warnock), e pretendia deslocar a ênfase da deficiência para a capacidade da educação em atender às necessidades da criança. ‘“Essa mudança substancial de enfoque”, dizem os autores, “lança luz sobre inúmeras e variadas dificuldades de aprendizagem que afetam uma proporção muito maior de alunos”. Ou seja, eles consideram que amplia consideravelmente a compreensão antes centrada na terminologia da deficiência, e, portanto, nas características do indivíduo interpretadas com base numa suposta normalidade. Na utilização do conceito por outros autores, ele aparece muito mais como uma conceituação mais abrangente, que engloba várias especificidades. Ferreira (1998), analisando o processo de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96), afirma que a mudança na denominação ocorre “de modo a englobar os superdotados”. Não parece explicitar uma mudança de ponto de vista, mas a adoção de uma categoria capaz de incluir diversas especificidades: A categoria das necessidades especiais aparece pela primeira vez no texto da Câmara (relatório Amin e no projeto aprovado em 1993) de modo a englobar os portadores de deficiência e os superdotados – estes apareciam no projeto original e foram retirados em 1989, com a adoção da redação do Artigo 208 da Constituição. O parecer Cid Sabóia, aprovado no Senado em 1994, incluiu os alunos com problemas de conduta nos portadores de necessidades especiais. A versão final mantém a categoria mais ampla mas não mais especifica quem são os educandos com necessidades especiais ou quais são essas necessidades – apenas mantém uma referência pontual, em um inciso, à deficiência e à superdotação (FERREIRA, 1998, p.10 - grifos meus). Ainda no texto de Ferreira (1998), há a informação de que até então “o Ministério da Educação vinha trabalhando, em seus documentos, com a indicação de que o alunado considerado especial inclui os educandos com deficiência, condutas típicas e altas habilidades” (FERREIRA, 1998, p.10). Ainda que o autor ressalte, logo após, que a 52 referência à nova denominação acompanha a tendência internacional fortalecida principalmente com a Declaração de Salamanca, a referência à inclusão dos superdotados como motivo para a mudança na denominação legal não deixa de ser um indicativo do quanto são ambíguas tais discussões. Em Omote também é encontrada a expressão “necessidades educacionais especiais” como um termo de maior abrangência, que inclui as diversas especificidades, mas não as substitui enquanto definição. Diz ele, em nota de rodapé que explica o uso da palavra “deficiência”: Embora a educação inclusiva se refira ao ensino de uma ampla diversidade de condições que tornam o seu portador suficientemente diferente para requerer adaptações e adequações na avaliação e procedimentos de ensino, eventualmente até de seus objetivos, neste texto trataremos particularmente da educação de deficientes. Nesse sentido, serão empregados os termos deficiência e deficiente, em vez de necessidades educacionais especiais e pessoas com necessidades especiais (OMOTE, 2004, p. 1, grifos do autor). O adjetivo “portador” também é questionado, desta vez por Cartolano (1998, p.37, nota 3), que compreende que “a surdez, a cegueira, a síndrome de Down, a paralisia cerebral, etc., são condições que integram os seres, que são inerentes ao seu modo de ser”, portanto, não se pode afirmar que as pessoas sejam suas “portadoras”. “A ‘diferença’, portanto, assumida por eles como tal, faz parte deles e é a partir disso que integra também sua percepção do mundo e dos homens”. Dessa forma, considerar alguém “portador” de algo significaria excluir, daquilo que é considerado sua identidade, aquele aspecto. Aqui, aparece uma negação da limitação como parte constitutiva da identidade; mais uma vez, o idêntico se confunde com o normal e com o ideal. Desse ponto de vista, o surdo seria um ouvinte-menos-os-ouvidos, um cego, um vidente-menos-os-olhos, como já criticava Vygotsky (1989, p.3), nos Fundamentos da Defectologia, escrito nos anos 20 (VALSINER e VAN DER VEER, 1996): “Nunca obteremos pelo método da subtração a psicologia de 53 uma criança cega, se da psicologia de um vidente subtrairmos a percepção visual e tudo o que está relacionado com esta”. Por outro lado, há também a possibilidade de se considerar como identidade unicamente a característica tida como limitação, como lembram Skliar (2001) e Bueno (1998), esquecendo-se dos demais aspectos e também da mutabilidade e instabilidade do conceito, por conta das relações de poder nas quais se constitui. Para Skliar, a identidade dos surdos não pode ser pensada em termos de identidade negativa –todos os surdos têm uma identidade deficitária _ ou de identidade positiva – todos os surdos têm uma identidade constituída a partir da identificação com outros surdos e com a língua de sinais. [...] A construção da identidade surda dependerá, entre outras coisas, da forma como cada sujeito é inventado, traduzido, interpelado e interpretado no contexto no qual vive (2001, p.100). Por isso, a discussão da terminologia é considerada, por Skliar, como “apenas um debate sobre melhores e piores eufemismos para denominar a alteridade e que não caracteriza, por si mesma, nenhuma mudança política, epistemológica e/ou pedagógica” (SKLIAR, op.cit., p.96). Alerta, no entanto, para os riscos que a utilização de tais conceitos traz para a vida cotidiana. Acaba admitindo que se “trata [...] de novas e velhas acepções que servem para traçar novas e velhas fronteiras de exclusão/inclusão, referidas ao estar fora, ao estar do outro lado, ao definirmo-nos em oposição”. Ora, se assim é, então é preciso considerar que faz diferença denominar alguém deficiente, ou diferente, ou portador de necessidades tais ou quais, assim como faz diferença pensar nas razões de tais denominações. E, se faz diferença na vida cotidiana, faz também politicamente, epistemologicamente, pedagogicamente. Nossas definições identitárias, imersas nas relações de poder (SILVA, T., 2000), não deixam de ser campos de confronto, de redefinição. Se isso ocorre mais no cotidiano ou mais no campo epistemológico, ou pedagógico, ou político, isso tem a ver com a configuração atual da disputa. Afinal, sempre é 54 possível vê-los como campos em inter-relação, ao invés de campos isolados. Dedicar-me a essa reflexão sobre o “especial” na educação para todos tem algumas razões: o discurso da inclusão encontra mais eco nesse terreno do que em outros; as disputas no território da educação especial são ressonâncias das disputas no campo educacional como um todo; o lugar da escola, no interior de tais disputas e por força delas, vai se deslocando de modo que os esforços de transformação podem acabar se transformando também em esforços de manutenção (mover-se muito, para não sair do lugar...), mas não há que se deixar esmaecer a possibilidade de que tal mover-se acabe se deslocando de seu centro: e produzindo, quem sabe, transformações... Retornarei a todas essas questões nos capítulos em que tento analisar o discurso oficial, acadêmico e escolar em torno da inclusão. Criam-se redes de sentidos a respeito da inclusão nos mundos acadêmicos, oficial e escolar, e a pergunta que me faço e tento responder é: como tais redes discursivas se configuram e se entrelaçam? Para um esboço de resposta a essa questão, penso ser necessário interromper a discussão semiótica. sobre inclusão para estudar os processos de mediação 3. MEDIAÇÃO SEMIÓTICA, HABITUS E PRÁTICA DISCURSIVA Neste capítulo, procuro estabelecer relações entre a produção de Vigotski, mais especialmente as noções de mediação pelo signo e internalização, o conceito de habitus em Bourdieu e a noção de prática discursiva. Não se trata aqui apenas de delimitar um campo teórico no qual tomarei assento para pensar os discursos. Na verdade, é muito mais um esforço de construir ferramentas de trabalho para lidar com a questão dos discursos, ou seja, já é um esforço metodológico, uma vez que meu objeto (o discurso) e minhas ferramentas são da mesma ordem. Construo, numa prática discursiva, um texto acerca de determinados discursos, texto esse que se constitui no dialogo, imbricação e distanciamento com relação a esses discursos que tomo como objeto de pesquisa. Mas há discursos que se entretecem nesse meu texto: uma descrição de homem e mundo como interconstituintes, onde se pode encontrar a voz de Marx (1996, 1996a; 1989); uma concepção das práticas humanas como (também) determinadas a partir de práticas sociais mais amplas, de formas mais gerais da organização da sociedade, e nisso me amparo em Bourdieu (1994; 1998; 2001; 2005); um entendimento de discurso como prática, como fazer humano, e nisso me servem de referência Vigotski (1988; 1989; 1993; 1996; 1998; 2000; 2003), Bakhtin (2003; 2004), Foucault(1995; 2006), Pêcheux(2006); e por fim, uma disposição de colocar minha própria prática discursiva, como pesquisadora, a serviço de uma análise de como determinados discursos se constituem em interação dialógica e em enfrentamento ideológico com outros discursos. Para tanto, foram de grande utilidade as elaborações teórico-metodológicas de Orlandi (2005) e Verón (1980; 2004). A linha que tento tecer, indo de Vigotski à análise de discurso na tradição de Pêcheux e Foucault e passando por Bourdieu, é 56 responsabilidade minha. Tem mais de intuição do que de pesquisa em sua base. Pareceu-me, no entanto, quase impossível escapar dela, tal o rumo que foi tomando, no decorrer da pesquisa e da escrita, os diálogos entre os autores, no interior do meu discurso. Teve pouco a ver com um desejo prévio, devo confessar, e menos ainda com o que se delineava no projeto original de doutorado. O discurso toma rumos próprios, alguns à revelia de quem se pensa seu autor, embora este não possa se recusar a assumir-lhe os riscos... De qualquer modo, pareceu-me ter a coerência necessária para amparar tanto a análise quanto a interpretação dos discursos a que eu me propunha. 3.1. VIGOTSKI COMO PONTO DE PARTIDA PARA UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS Meu campo de atuação prática é o campo pedagógico. É nos limites permitidos pelas compreensões forjadas nessa minha atividade que serão analisados os textos e falas produzidos no recorte desse campo denominado “inclusão escolar”. O fato de que, ao fazê-lo, eu acabe explorando as interfaces da pedagogia com campos teóricos diversos (a filosofia, a psicologia, a sociologia, a lingüística...), buscando brechas e “ganchos” nas fronteiras desses campos, só explicita uma das características das práticas humanas, que é a de não se configurarem dentro de limites disciplinares. Voltarei a esta questão em vários momentos do trabalho, e mais especialmente quando discutir o conceito de prática discursiva. Pois bem: como a pedagogia é minha referência, o primeiro critério que me ocorre para justificar a escolha de Vigotski como ponto de partida para certo tipo de análise dos discursos é o volume de referências a esse 57 autor nos textos acadêmicos da área8, associado ao fato de que não é necessário argumentar sobre a pertinência desse autor para a temática do discurso. Não há dúvida de que Vigotski é uma autoridade no estudo da constituição psicossocial dos processos discursivos: analisou a gênese da interconstituição entre pensamento e palavra, o percurso da fala ao pensamento, apontou para uma história do desenvolvimento dos conceitos, enfim, deu uma enorme contribuição, no início do século XX, para se pensar subjetivação/objetivação e discurso. É verdade que ele o fez no início do século passado, numa União Soviética em pleno processo revolucionário, e estava imerso na tarefa gigantesca de construir uma psicologia que respondesse às necessidades práticas de reconstrução do país. Durante esse século que nos separa de Vigotski, muita coisa aconteceu na seara dos estudos do discurso. Há elaborações complexas a respeito, de modo que parece estranho remeter a Vigotski para fazer qualquer trabalho analítico nessa área. Eu justifico: estudo Vigotski há muito tempo, e sempre me perguntei por que os textos que tratam de sua obra, ou que o relacionam com Bakhtin, ou que o “aplicam” às várias situações pedagógicas, nunca colocam em questão, já que trazem Vigotski para os tempos atuais, o uso da palavra “signo”. É como se a psicologia da educação que trata de Vigotski, ou que se ampara em sua elaboração teórica e a lingüística/semiologia que tratam dos discursos, nunca tivessem se encontrado em terras brasileiras. A lingüística se constituía num território estranho para mim. Produzi sempre dentro da psicologia da educação, mas me parecia que as noções vigotskianas de signo, palavra, evolução do conceito, fala interior tinham bastante a dizer a uma análise do discurso. E certamente bastante a ”ouvir”. De modo que, partindo de Vigotski para estudar os discursos produzidos no campo da inclusão, e não deixando de fazer minhas 8 Góes (1991), Pino (1993), Garcia (1998), Lacerda (2000), Rego (1995), Smolka (1993;), Freitas (1994), Duarte (2004) são alguns dos trabalhos mais conhecidos, cuja presença nos cursos de formação de professores (tanto licenciaturas quanto cursos de formação em serviço) é inegável. 58 escolhas entre as várias linhas da análise de discurso, tive que ir construindo um percurso próprio. Não trabalhei às cegas, porque, além de Vigotski ser um autor conhecido, respeitado, além de minha hipótese sobre sua contribuição a uma análise do discurso, há uma terceira razão para sua escolha: ao procurar analisar os discursos no campo de sentidos denominado “inclusão, proponho-me a fazê-lo compreendendo-os como produzidos em um “fazer discursivo”, em uma prática, e isso pressupõe sua definição como produção humana, nos termos de Marx (1996; 1996a; 1989). Produzir discurso aqui é ação objetiva, material: não é apenas um “falar sobre”, um “escrever sobre”. Chamo-o, com Foucault e Pecheux, de prática discursiva9; o adjetivo ‘discursiva” não pretende dizer que há práticas humanas não-discursivas, mas que o fazer humano que implica em produzir-reconhecer discursos tem sua especificidade própria. O material com que trabalhamos, as ferramentas usadas, o modo de operar e o produto são uma mesma coisa: o discurso. O campo teórico/metodológico em que me movo tem, portanto, suas raízes no modo como Marx trabalhou. Pressupõe, principalmente, a adoção de um método de trabalho que, ao invés de estudar teorias e sua pretensas relações com uma possível verdade, ou a prática e suas regularidades como verdades em si, entenda como noções operatórias aquilo que se convencionou denominar “conceito”10 ; que entenda a análise como “aplicação do método empregado e avaliação do significado dos fenômenos obtidos” (Vigotski, 1996, p. 375), uma realidade a seus componentes básicos; e não como redução de que perceba transitividade entre as polarizações encontradas, ao invés de oposições insolúveis; que 9 Charaudeau e Maingueneau escrevem que para fazer “convergir o vocabulário marxista da ‘práxis’ e o de Foucault”, a análise do discurso francófona empregou a noção de prática discursiva (é assim que a usam Verón, Pêcheux, Bourdieu). Acrescentam os autores: “Na verdade,quando se diz ‘prática discursiva’ em vez de discurso, efetua-se um ato de posicionamento teórico: sublinha-se obrigatoriamente o discurso como uma forma de ação sobre o mundo produzida fundamentalmente nas relações de força sociais” (2004, p 396). 10 Na prática científica, tratar um conceito como operador significa que ele não apenas representa um objeto, ou uma relação, ou rede de relações: ele é um instrumento que permite construir certas relações entre objetividade e subjetividade. Configuram-se como ferramentas para certas operações, dentro da ação de fazer análise, dentro da atividade de fazer ciência (Para maior clareza, ver 3.6.1 : Conceito como operador ou como representação de uma realidade, p.106-109). 59 entenda as “totalidades” vivas (homem, mundo, sociedade, história) como provisórias, abertas e entrelaçadas, tratando-as como configurações ao invés de coisas; que pressuponha processos que se entrecruzam criando novas totalidades no desenrolar dos processos humanos, ao invés de desenvolvimento linearizado. Tento, com isso, aproximar-me da própria prática discursiva e científica de Vigotski (1996), o qual fazia a defesa da utilização do método de Marx, ao invés e fazer uma colagem de citações do marxismo11 . Torna-se então, compreensível, como busca de coerência, a escolha de Vigotski, desta vez pelo ângulo da filiação teórico-metodológica: talvez seja, juntamente com Bakhtin e Wallon, os pesquisadores de base marxista mais conhecidos/citados na produção acadêmica contemporânea da área da Educação (ao menos aqui no Brasil). Da intersecção desses dois campos _ a pedagogia e o pensamento de Marx – já se produziu muito, em termos acadêmicos, mas não há como negar que o discurso referenciado em Marx perdeu boa parte da sua “autoridade”. Pode-se dizer que, em educação, há tempos não está mais “na moda” referir-se a Marx. As crenças sobre o fim da história, as várias interpretações e releituras do discurso de Marx, as diversas leituras e releituras das experiências socialistas, a descrença pós-moderna em quaisquer grandes narrativas, entre tantos elementos, parecem estar na base dessa deslegitimação. Paradoxalmente, é neste momento em que parece que Marx não é mais referência “autorizada” (ou pelo menos interlocutor “aceitável”) para a maior parte do discurso pedagógico, que estudiosos que assumidamente bebem em suas fontes12 passam a ser aceitos e referendados no interior desse mesmo discurso13. 11 “Não quero receber de lambuja, pescando aqui e ali algumas citações,o que é a psique, o que desejo é apreender na globalidade do método de Marx como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique” (VIGOTSKI, op.cit, p.395), 12 “O pensamento de Vygotsky, portanto, não foi radical simplesmente no contexto da psicologia e da metapsicologia dominantes de sua época, mas radical também no âmbito da própria tradição de Marx. Afinal , ele atacou de frente a questão da consciência e da psicologia, o que Marx não fizera – com isso, levou adiante e própria psicologia de Marx” (NEWMAN e HOLZMANN, 2002, p.29). 13 Não estou defendendo, de modo algum, que não se possa “ler” qualquer autor de outro ângulo que não aquele que ele assume como sua referência. É uma questão apenas de saber qual/is é/são a/s referência/s que o autor 60 Analisar a situação acima apontada exigiria muitas outras teses. Para efeito deste trabalho, basta dizer que Vigotski me serve como ponto de partida para uma empreitada da análise dos discursos porque nele encontro ferramentas, noções operatórias suficientemente poderosas para ajudar a forjar uma compreensão do discursivo, e creio que tais noções dão uma contribuição para as concepções e métodos de análise dos discursos contemporâneos. Tentarei fundamentar essa afirmação nos textos a seguir. 3.2. A MEDIAÇÃO SEMIÓTICA COMO DIMENSÃO DA MEDIAÇÃO PELO TRABALHO Mediação é uma noção operatória que faz sentido na produção textual de Marx14 porque, para ele, o que nos torna humanos é o fato de agirmos de forma mediada pela cultura e pela história 15 (nossos atos, à diferença dos atos animais, são atos que se beneficiam dos atos anteriores dos membros de nossa espécie e se articulam com relação às dimensões passado-presente-futuro 16). Não reagimos somente ao presente imediato, mas às condições antecedentes desse presente e às conseqüências possíveis do que fazemos nele. assume, qual/is as que eu com leitor assumo e que novas elaborações teóricas se constroem na relação entre essas leituras. 14 Os conceitos de Marx que estou usando aqui são parte de sua produção inicial, do que se convencionar chamar “o jovem Marx”. Recorro a eles porque são os que aparecem explícita ou implicitamente nos textos vigotskianos analisados. 15 Newman e Holzman (2002, p.137) insistem em que a “atividade humana não é mediada de modo nenhum” . Aqui há, em minha opinião, um sério equivoco quanto ao conceito de mediação. Mediação não é necessariamente instrumental, como algo que “está entre”( a enxada entre a mão e a terra, p.ex.), mas algo que transforma os dois termos (o uso do instrumento modificando a mão e a tarefa, ao mesmo tempo). “As circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias” (MARX, 1996, p.56). Assim, quando falo de mediação pela história, estou dizendo, com Marx, que a atividade humana nunca é puramente imediata (os homens, mesmo que num primeiro momento tivessem se apropriado de algo natural e o transformado em instrumento, não somente se apropriam daquilo que fazem agora, mas do que já foi feito pela humanidade e, ao objetivarem isso que foi apropriado, objetivam também o processo histórico incorporado). 16 Compreendidas como fluxo, “totalidade viva, sensível, contínua , indivisível da existência humana” (NEWMAN e HOLZMANN, 2002, p.25), mas que, quando (do ponto de vista conceitual) esse fluxo se articula com um “ponto” no tempo/espaço, que é a existência concreta do ser que age, pode ser “imobilizado” provisoriamente. 61 Compreendendo que as reduções do pensamento de Vigotski (aqui entendidos como fazendo parte de um processo de isolamento dos conceitos vigotskianos de sua matriz de pensamento) têm relação, entre outras coisas, com uma redução da idéia de mediação, considero importante o argumento que Duarte (2004) desenvolve a respeito da relação dialética que Marx pressupõe entre os conceitos de apropriação e objetivação, relação constituinte da historicidade do ser humano. Partindo dos conceitos de apropriação e objetivação em Marx, o primeiro definido como o processo pelo qual “o ser humano, pela sua atividade transformadora, apropria-se da natureza incorporando-a à prática social” e o segundo como produção de uma “realidade objetiva que passa a ser portadora de características humanas”, Duarte nos recorda que, em Marx, é a dialética entre um e outro processo que constitui a “dinâmica essencial do processo de produção e reprodução da cultura humana” (DUARTE, 2004, p. 117). Em Marx, não há a suposição de uma cultura e uma história, separadas da humanidade em sua concretude. A idéia de uma realidade para-sempre-externa ao homem, que constrói instrumentos para “agir sobre” essa realidade17, não leva em conta que só se constitui como “realidade” aquilo que faz sentido para a atividade humana, e é na dialética entre o apropriar-se e o objetivar que esse “fazer sentido” ocorre. As fronteiras entre homem e sociedade, estabelecidas de modo fossilizado, se diluem nesse processo: o homem só o é porque é coletividade. Não se trata aqui de relações “entre” homem e sociedade, cada um tomado isoladamente. Trata-se da própria configuração humana, que não pode ser meramente individual, nem pode ser pura coerção social: o que nos configura como humanos é o fato de sermos-com-osoutros-na-história18 . Esse “outros” são o que se convencionou chamar de 17 Não há aqui uma defesa de que as “coisas do mundo” não existam, ou que só existam para os sentidos do homem, mas que o que faz com que tais coisas adquiram realidade para os homens é o fato de fazerem sentido em sua atividade de apropriação/objetivação. 18 Ver a noção de história que _apoiados na Nova História e em Nietsche _ Foucault e Pêcheux assumem: “o tempo é constituído por relações de força em permanente mudança e essa oscilação permite um relativo equilíbrio entre lembrar e esquecer no interior de um jogo entre a forma homem com as forças do tempo”. 62 sociedade, mas também são o que se convencionou chamar de história: porém, não se limitam nem à presença imediata (o face-a-face), nem à geração atual, nem apenas aqueles que já viveram, mas também, os que potencialmente existirão (nosso projeto de humanidade)... São toda a atividade humana objetivada. O outro está no livro, na roupa, no doce, na máquina, na pintura. Está nas discussões que travo “comigo mesma”. Está nos códigos, nos valores, na elaboração de normas. Também não existe em si. Existe porque está em-relação-comigo. Aliás, o verbo “estar” não ajuda na compreensão, porque dá uma idéia de estático, enquanto que a presença do outro é também dinamismo. O outro-em-relação– dinâmica-comigo é social e é histórico, mas não é “dado” pelo social nem pela história como “totalidades fechadas”. Como chegar à questão da linguagem, partindo de uma construção conceitual que articula apropriação e objetivação? Volto ao que dizia sobre “fazer sentido”: ao organizar sua existência, os homens não se apropriam de tudo, mas somente daquilo que parece vinculável a melhores condições de sobrevivência. Nesse processo de apropriação/objetivação, aquilo que era “realidade externa ao homem” passa a ser realidade humana: é objetivada e subjetivada, num mesmo movimento. “A objetivação”, afirma Duarte (2004, p.118), “também resulta em produtos que não são objetos físicos, como a linguagem, as relações entre os homens, o conhecimento”. Creio que a palavra “também” pode dar a impressão de que a linguagem e conhecimento são subproduto da objetivação; não é isso, no entanto, a compreensão de Marx, expressa em trecho selecionado pelo próprio Duarte (2004, p.1189): “o homem precisa conhecer a natureza do objeto para poder adequálo às suas finalidades” da mesma forma como a transformação do objeto em instrumento exige “levar em conta, conhecer, as características naturais do objeto[...] relacionadas às funções que terá o instrumento”. (GREGOLIN, 2004, p.163). O conceito incorpora a idéia de descontinuidade, de heterogeneidade, de provisoriedade e contingência (história para) (Op. cit., p.165-166). 63 Parece, a se considerar esse conhecer e considerar as características do objeto como constituintes da própria possibilidade de apropriação, que a dialética entre os processos de apropriação e objetivação já se constitui produzindo sentido (por mais primárias que sejam tais produções). Linguagem, então, pode ser entendida como produto de objetivações, mas é preciso não esquecer de que só se objetiva aquilo que precisa ser apropriado; produto e processo têm uma conexão intrínseca: a produção de sentido é, ao mesmo tempo, resultado e instrumento da busca humana pela sobrevivência. Incorporada à atividade e tornando-a especificamente humana, não pode mais se separar dela: torna-a atividade significativa (é objetivação e subjetivação). A ação humana se torna simbólica, discursiva. A dialética entre os processos de apropriação e objetivação não poderia, porém, ser compreendida como se não tivesse historicidade, isto é, como se os modos dos homens produzirem sua existência não modificassem a si próprios. A análise desse processo, feita nos escritos de Marx, é bastante conhecida no meio acadêmico. Para efeito desse trabalho, basta-me apontar o modo assimétrico como tais modos de produção foram se configurando, de modo que o produto da atividade humana foi lentamente se separando de seu produtor. Apropriar-se/objetivar implica sempre em novas apropriações/objetivações, a cada momento incorporando os produtos anteriormente elaborados processo necessidades as no processo vão sendo histórico-cultural. produzidas em Se nesse condições assimétricas (em relações de distribuição desigual do poder de produzir sua própria vida no interior da coletividade e entre as coletividades) então a dialética entre apropriação e objetivação deixa de ter sua razão última de ser nas necessidades reais dos homens, e passa a se organizar em torno de necessidades estranhas à produção da vida. Marx denomina a esse processo alienação, processo no qual o homem se separa de sua 64 atividade (que o constitui), da natureza, de si mesmo como ser genérico e dos outros homens19. No mundo real, prático, a auto-alienação só pode revelar-se através da relação prática, real, a outros homens. O meio, pelo qual a alienação ocorre, também é prático. Por conseguinte, o homem, através do trabalho alienado não só produz a sua relação ao objecto e ao acto de produção como a homens estranhos e hostis, mas produz ainda a relação dos outros homens à sua produção e ao seu produto e a relação entre ele mesmo e os outros homens. Assim como ele cria a sua produção como a sua desrealização, com a sua punição, e ao seu produto como perda, como produto que não lhe pertence, da mesma maneira cria o domínio daquele que não produz sobre a produção e o respectivo produto. Assim como aliena sua própria atividade, da mesma maneira outorga a um estranho a atividade que não lhe pertence. (MARX, 1989, p.168; grifos meus) Há quem interprete que, nas condições acima descritas, as ações especificamente humanas percam sua configuração onde se interconstituem o pensar-falar-agir: a prática alienada não produziria discurso, mas se ampararia num discurso estranho a ela e seu pensarfalar estariam descolados dessa prática. Minha discordância disso tem relação com a própria idéia de Marx de que a alienação é produto e necessidade da atual forma como se relacionam capital e trabalho, e não condição humana atemporal. As relações de trabalho no capitalismo separam o homem daquilo que ele faz e precisam, para sua própria manutenção e reprodução, que ele acredite que subjetividade e objetividade são concretudes que existem independentemente da ação humana, necessitam de que ele não perceba sua própria atividade como constituinte da subjetivação–e-objetivação, necessitam que ele outorgue a estranhos a atividade que não lhe pertence. Diz Marx, a esse respeito: Os economistas burgueses estão tão enclausurados nas representações de determinada etapa histórica de desenvolvimento da sociedade, que a necessidade de que se objetivem os poderes sociais do trabalho lhes aparece como 19 Cf.. Mészáros, A teoria da alienação em Marx (2006, p.20). 65 inseparável da necessidade que esses poderes se alienem em relação ao trabalho vivo (Marx, apud Duarte, 2004, p.127). Duarte diz que, para superar a situação em que o trabalho morto (objetivado) domina o trabalho vivo, situação que é uma inversão do processo humanizante, é necessário um trabalho de compreensão e análise; “para que sejam realizadas ações coletivas de superação objetiva das relações de produção que determinam tal inversão” (2004, p.127). É preciso não esquecer que o trabalho de compreensão e análise é trabalho prático, é fazer coisas. Os esforços de superação objetiva da forma como se configuraram as relações de produção se dão também no fazer discursivo, como dimensão da totalidade da prática humana. Não são prévios nem posteriores a quaisquer outras dimensões da prática. Objetivação/subjetivação, que são decorrência e necessidade da própria atividade humana, aparece nas representações capitalísticas como processos de origem distinta e com objetivos distintos (separação necessária entre homem e mundo, entre pensar/falar e agir). Esse aparecer não é casual, como já foi dito: é produzido nos processos de alienação. E preciso entender que o homem age-pensa-fala de forma interconstituinte, mesmo quando isso se dá dentro da alienação capitalista. O homem não se rompe internamente (subjetivação e objetivação não se desvinculam mais, uma vez interconstituidas), mas precisa acreditar que se rompe, precisa se sentir cindido (e a ideologia conforme descrita por Marx _ ilusão, acobertamento das relações reais _ serve para que ele continue pensando assim). Se de fato ocorresse tal ruptura, que razão de ser teriam os esforços de acobertamento, de naturalização, de reificação? Um processo que é histórico, situado e datado, precisa se mostrar como se não o fosse, como se fosse “coisa” e não processo20. 20 “Para Foucault, o fato de haver uma disciplinarização, de ter sido necessário desenvolver mecanismos de controle e vigilância contínuos demonstra que os sujeitos lutam. Dessa luta deriva, como conseqüência, o fato de que nenhum poder é absoluto ou permanente, ele é, pelo contrário, transitório e circular,o que permite a aparição de fissuras onde é possível a substituição da docilidade pela meta contínua e infindável de libertação dos corpos” (GREGOLIN, 2004, p..136). 66 É por isso que defendo que as dimensões do humano, uma vez constituindo um todo, não podem mais se separar: continuam se interconstituindo, só que em condições de assimetria, de disputa de poder, o agir/falar/pensar passa a ser palco de negociação, de disputa, de luta (não apenas disputa “entre os homens” ou “entre as classes”, mas também disputa entranhada no “interior” do agir/falar/pensar de cada um, tomado como totalidade); a atividade humana continua produzindo sentidos. Sim, argumentariam talvez, mas se Marx pressupõe que, no capitalismo, o produto do trabalho é desvinculado de suas condições reais de produção (a mercadoria é fetichizada21), então isso quer dizer que se quebraram os vínculos entre os processos que constituíam aquilo que foi descrito como o especificamente humano. Esses sentidos produzidos no processo de alienação não serviriam então para definir o humano, porque são desumanizantes. Sim, mas estaríamos então supondo um humano como essência prévia à existência, e não como história. Só há o “humano” dos homens concretos, em sua vida concreta (esses que são a premissa de Marx22); é esse humano histórico que tem que enfrentar/conviver com a circunstância da alienação. Marx teria analisado como os modos de produção foram se constituindo apenas para chegar à conclusão que o capitalismo é alienante? Certamente não: o esforço de entender porque e como o capitalismo é alienante tem objetivo, se insere na prática de Marx; ele propõe a organização dos homens em coletividades que lutem contra a alienação, a dominação ideológica, as assimetrias de poder (“proletários do mundo, uni-vos...”), entende alienação como processo histórico e 21 “A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total,, ao refleti-la como relação social existente,à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho” (MARX, in IANNI (org.), 1996, p. 160) 22 “Essa maneira de considerar as coisas não é desprovida de pressupostos. Parte de pressupostos reais e não os abandona um só instante. Esses pressupostos são os homens,não em qualquer fixação ou isolamento fantásticos, mas em seu processo de desenvolvimento real, em condições determinadas, empiricamente visíveis” (MARX, 1996, p.38) 67 superável: o homem pode atuar no sentido de desvelar/superar a própria alienação23. Nessa lógica, posso pensar que, em condições de menor assimetria (menos coerções) a atividade humana permita apropriações/objetivações, nas quais o pensar, o falar e o agir se interconstituam de forma mais integra e ao mesmo tempo mais flexível. Em condições de maior assimetria, essa interconstituição continua se fazendo de forma a garantir a sobrevivência (tanto físico-corporal quanto cultural): as energias humanas se dirigem para o enfrentamento ou a fuga, a negociação, a criação de estratégias. A atividade humana perde em fluidez, em integridade e em flexibilidade, limitam-se os processos vitais da organização humana, tanto na forma de individuo como de grupo, digamos, mas tal atividade continua podendo ser entendida como uma totalidade, e o que lhe dá consistência é o que projeta esse pensaragir-falar, sua história interligada e a forma como se organiza no presente. Pretendo retomar, então, a questão da interconstituição do pensar-falar-agir no desenvolvimento do psiquismo humano. Na busca de compreender como a atividade humana foi capaz de resultar num psiquismo24, Vigotski se apropria da idéia de Marx25, de que a linguagem é produzida nas condições reais de existência. Concebe-a como mediadora das relações entre os homens (comunicação e Mészáros (2006, p. 22) afirma que, das duas séries de questões propostas nos Manuscritos Econômicofilosóficos (uma primeira acerca das contradições entre tendências filosóficas, filosofia e ciência, ética e economia política, teoria e prática, e uma segunda acerca da possibilidade de transcendência, de superação dessas contradições) é a segunda que anima e estrutura a primeira, ou seja, é a possibilidade de superação que dá sentido a uma investigação das razões dos antagonismos. 24 Em “Instrumento e símbolo no desenvolvimento da criança”, Vigotski assim descreve seu problema de pesquisa; “(1) Qual a relação entre os seres humanos e seu ambiente físico e social? (2) Quais as formas novas de atividade que fizeram com que o trabalho fosse o meio fundamental de relacionamento entre o homem e a natureza e quais são as conseqüências psicológicas dessas formas de atividade? (3)Qual a natureza das relações entre o uso de instrumentos e o desenvolvimento da linguagem?” (VIGOTSKI, 1998, p.25) 25 “ Desde o início pesa sobre o ‘espírito’ a maldição de estar ‘contaminado’ pela matéria, que se apresenta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência_ a linguagem é a consciência real, prática que existe para os outros homens e, portanto, existe também para mim mesm., e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbios com outros homens” (MARX e ENGELS, 1996, p.43). 23 68 generalização se interconstituindo)26 e dos homens consigo próprios (organização). Vigotski não entende “mediação” no sentido instrumental apenas: a linguagem é produto e processo, é instrumento e também resultado daquilo que os homens fazem. É, portanto, na atividade humana concreta que o falar-pensar se torna possível porque necessário (porque formam uma unidade com o agir). Com o falar-pensar, os homens afetam o próprio comportamento e o dos outros, como explicitado nesse trecho de Ferramenta e signo, texto publicado originalmente em 1930: Essa análise [do conceito de mediação em Hegel e Marx] fornece uma base sólida para que se designe o uso dos signos à categoria de atividade mediada, uma vez que a essência do seu uso consiste em os homens afetarem o seu comportamento através dos signos (VIGOTSKI, 2003, p.72)27 . Assim, é compreensível que, em obra publicada em 1934, Vigotski defenda o vínculo entre pensamento e palavra como dado no desenvolvimento (não existe a priori) e em desenvolvimento (modificase). Esse processo é imediatamente explicado pelo próprio Vigotski, talvez para evitar qualquer acesso de inatismo: “A palavra não esteve no principio. No princípio esteve a ação. A palavra constitui antes o fim que o princípio do desenvolvimento. A palavra é o fim que coroa a ação”. (2000, p.485). Como Vigotski não defende que a ontogênese repita indefinidamente a filogênese, a ação humana desprovida de palavra e pensamento não existe: é nela que os dois se fundem, no processo de desenvolvimento, formando o pensamento discursivo. Seu método, é preciso não esquecer, pressupõe que as mudanças qualitativas se incorporam, passando a constituir a totalidade em transformação. Ao teorizar sobre o surgimento da conexão entre atividade prática e linguagem, Vigotski critica as pesquisas que entendiam o 26 “Só começamos a entender a relação efetiva entre o desenvolvimento do pensamento da criança e o desenvolvimento social da criança quando aprendemos a ver a unidade entre comunicação e generalização” (VIGOTSKI 2000, p.13) 27 Aqui na publicação traduzida do inglês, denominada A Formação Social da Mente, que juntou textos de Instrumento e Símbolo em seus quatro primeiros capítulos. Trata-se do mesmo texto intitulado Ferramenta e Signo (BEZERRA, In: VIGOTSKI, 2000, p.492). 69 desenvolvimento da linguagem como isolado do desenvolvimento da inteligência prática: O estudo do uso de instrumentos isolado do uso de signos é habitual em trabalhos de pesquisa sobre a história natural do intelecto prático, assim como no procedimento de psicólogos que estudaram o desenvolvimento dos processos simbólicos na criança. Consequentemente, a origem e desenvolvimento da fala e de todas as outras atividades que usam signos foram tratados como independentes da organização da atividade prática na criança. Os psicólogos preferiram estudar o desenvolvimento do uso de signos como um exemplo de intelecto puro, e não como o produto da história do desenvolvimento da criança. (VIGOTSKI, 2003, p.31). Utilizando o mesmo método de buscar relações onde outros pesquisadores preferiram ver totalidades fechadas e em oposição, Vigotski analisa a relação entre o processo de desenvolvimento de palavra e pensamento: pensar-e-falar só podem se constituir no processo histórico da humanidade: [...]verifica-se que essas relações [entre pensamento e palavra], incógnitas para nós, não são uma grandeza primordial e dada antecipadamente, premissa, fundamento ou ponto de partida de todo um ulterior desenvolvimento, mas surgem e se constituem unicamente no processo de desenvolvimento histórico da consciência humana, sendo elas próprias um produto e não uma premissa de formação do homem. (VIGOTSKI, 2000, p.395; grifos meus). Uma vez que atividade prática e uso de signos se encontram (criando-se a atividade prática pensada e falada) uma vez que pensamento e palavra constituam uma unidade (a prática discursiva), não podem mais voltar a ser o que eram antes: uma vez estabelecidos (tendo a atividade humana como mediadora) os vínculos entre pensar/falar/agir, não há mais possibilidade de separação entre essas capacidades humanas (elas se interpenetram formando o especificamente humano), ainda que se possa falar de predominância de uma ou outra, sob determinadas condições. Dessa forma, é falando-pensando-agindo (sem preocupação com qualquer ordem, já tais dimensões não são separáveis sem perder sua característica humana) que o homem-com-os-outros garante sua 70 sobrevivência material e cultural. É falando-pensando-agindo (de acordo com aquilo que o move: os objetivos que histórica, social e culturalmente lhe foi possível/preciso elaborar) que ele se apropria de redes de sentidos, constrói novos sentidos, destrói sentidos que já não “fazem sentido” (a palavra é histórica: nasce, se desenvolve, morre (VIGOTSKI, 2000)). Uma leitura de Vigotski que leve em conta essa compreensão permite que se leia sua defesa de que, no psiquismo humano, “o uso dos signos é dirigido para o controle do próprio indivíduo” (VIGOTSKI, 1998, p.73) sem desejar que esse controle esteja desgarrado das “relações entre” indivíduo e história/sociedade (estas também como uma unidade). Quando o ser humano é tomado como “individuo” recortado, produtor de discursos próprios, aí sim a linguagem aparece como principal e talvez única mediadora: porque pressupõe que tal indivíduo não tenha outras conexões com o “mundo” (também este recortado) a não ser tentando “expressar” aquilo que produz internamente e “traduzir” para si aquilo que os outros (separados dele) produzem. Esteriliza-se, de uma só vez, a idéia de mediação, de cultura e de história, e então é possível ler Vigotski apenas como um psicólogo das micro-interações, ou das relações entre fala e pensamento. Espero, para depois fazer a critica de uma concepção que subordina todas as outras práticas humanas à discursiva, ter mostrado que assumo um ponto de vista que entende a linguagem como uma prática humana, portanto histórica. Considerar que a discursivo nas práticas humanas tem em si o poder de colocar os demais aspectos dessas práticas humanas numa relação de subordinação a ele significaria esquecer que as condições materiais de existência incluem relações não-discursivas, ainda que claramente mediadas pela história e pela cultura. “Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”, afirmou Marx. Para ele, a compreensão das relações que configuram os seres humanos exige que se parta “dos próprios indivíduos reais e vivos” e que se considere “a consciência apenas como sua consciência” (MARX e 71 ENGELS, 2005, p.26; grifos meus). Portanto, é somente de modo histórico e cultural que o homem pode ser homem, sendo produtor de cultura e produzido por ela. A compreensão vigotskiana da constituição do psiquismo humano se assenta nesse princípio geral. Nunca é demais recordar que parte da perda da historicidade da noção de mediação vem de sua absorção pela noção recortada de “social” ou de “cultural”: a noção de mediação “encolhe” (sofre perdas em seu poder heuristico) quando perde a dimensão histórica, o fluxo da vida recortado num presente eterno e repetitivo, e quando perde a idéia da atividade humana como força incorporadora e produtora da história e da cultura; o conceito de mediação pela linguagem também sofre sérias perdas quando ampliado a ponto de subsumir a construção conceitual mais abrangente na qual ela faz sentido, que é o da mediação pelo trabalho, pela atividade humana significativa. 3.3. MEDIAÇÃO PELO HABITUS: POTENCIALIDADES DE UM OPERADOR O esforço teórico de perceber o movimento entre a totalidade do modo de produção e as totalidades da atividade específica (aquilo que se costuma chamar de relações entre superestrutura e estrutura28) já produziu muita teoria no terreno das interpretações da produção de Marx. Não entrarei nos detalhes dessas discussões e das divergências que as produziram. Basta, para os objetivos desta tese, afirmar que qualquer interpretação que compreenda cada totalidade (nesse caso, estrutura e superestrutura) como coisa, ou que polarize, separando e opondo uma à outra, que ignore a possibilidade de movimentação entre uma noção e outra, não possibilitará esse esforço teórico. Da mesma forma, qualquer 28 “A rigor o texto de Marx se apóia na idéia de uma totalidade articulada por dois termos, a saber, a estrutura econômica que determina o grau de autonomia relativa de que dispõem as formas ideológicas” (MICELI, in: BOURDIEU, 2005, p.XXXV) 72 teoria que reduza uma à outra, ignorando suas especificidades, terá pouca condição de perceber relações. Os escritos de Pierre Bourdieu, especialmente o Esboço de uma teoria da prática (1994), têm um interesse especial para este trabalho, exatamente por sua dedicação em construir uma teoria que trate da “mediação entre o agente social e a sociedade” (ORTIZ,1994, p.8). Como é possível estabelecer relações entre Vigotski e Bourdieu? Que campo de sentidos medeia suas elaborações, ainda que distantes no tempo e no espaço? A filiação dos dois (cada um do seu modo e dentro das condições históricas do seu tempo) ao pensamento marxista foi o que me permitiu tentar uma aproximação de suas elaborações teóricas. De Bourdieu, “recortei” o conceito de habitus (1994, p.73) para fazê-lo dialogar com Vigotski. Considero que habitus é um construto que refina a idéia de mediação, equacionando o problema de como a interioridade se faz exterioridade e vice-versa. Isso permite sua articulação com a noção de mediação semiótica em Vigotski (que, dentro de um estudo de como se constitui o pensamento discursivo, busca explicar como a exterioridade se faz interioridade). Tratarei nesta parte do trabalho de como Bourdieu faz isso, no Esboço de uma teoria da prática ao desenvolver o conceito de habitus, e tentarei analisar o conceito “por dentro” para depois chegar a Vigotski e à noção de mediação semiótica, que tentarei relacionar com uma certa compreensão de habitus. Primeiro, Bourdieu faz um recorte da noção mais abrangente de atividade humana, tomando como dimensão de análise a ação concreta dos agentes singulares. “Fecha o zoom”29 sobre o ser que age. Segundo, não se perde numa subjetivização da ação, porque supõe que o ser que age não o faz por si nem para si: ao analisar sua prática, Bourdieu o faz levando em conta sua relação com a situação em geral e com certas condições objetivas e subjetivas que constrangem o ser que age. “A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma com 29 Cada um usa as metáforas que a cultura de sua época disponibiliza... 73 relação à situação considerada em sua imediatitude pontual, porque ela é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus” (BOURDIEU, 1994, p.65). Habitus é entendido por Bourdieu (1994, p.65) como "sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações”. Em outro trecho do mesmo texto, (1994, p.73), tal matriz é concebida como: "a mediação universalizante que faz com que as práticas sem razão explícita e sem intenção significante de um agente singular sejam, no entanto, “sensatas”, “razoáveis” e objetivamente orquestradas”. Trata-se, diz Bourdieu, de “disposições” que regulam tanto as práticas quanto as representações (as quais, suponho, podem ser tomadas como uma unidade, já que reguladas pelas mesmas disposições). Tais disposições têm a ver com a “antecipação implícita”, baseada em eventos passados, das conseqüências de práticas sociais, como explica Bourdieu (1994, p.61): [...] a avaliação subjetiva das chances de sucesso de uma ação determinada numa situação determinada faz intervir todo um corpo de sabedoria semiformal, ditados, lugares-comuns, preceitos éticos [...] e, mais profundamente, princípios inconscientes do ethos, disposição geral e transponível que, sendo o produto de um aprendizado dominado por um tipo determinado de regularidades objetivas, determina as condutas “razoáveis” ou “absurdas” [...] para qualquer agente submetido a essas regularidades. Bourdieu define disposição como por um lado, “o resultado de uma ação organizadora”, por outro, “uma maneira de ser, um estado habitual (em particular do corpo) [...] uma predisposição, uma tendência, uma propensão ou uma inclinação” (BOURDIEU, 1994, p. 61, nota de rodapé). O habitus tem, portanto, pelo menos uma dimensão corpórea (ou corporalizada), uma dimensão da ação e uma dimensão discursiva. A linguagem enquanto prática aparece como dimensão do habitus: aquela antecipação se constitui necessariamente de forma discursiva (avaliação, sabedoria semiformal, ditados, lugares comuns, preceitos). 74 Antes de passar à frente na questão da linguagem num habitus, acho necessário abrir parênteses para uma breve discussão do habitus como dimensão de reprodução, assim como das possibilidades que antevejo nessa noção com relação a processos de transformação. Não há dúvida de que Bourdieu pretende explicar, através do conceito de habitus, os processos de reprodução. Não creio que denominá-lo “reprodutivista” faça justiça a seu trabalho. Explicar a reprodução não pressupõe defender que só ela seja possível. Explicar a reprodução é pré-requisito indispensável a qualquer prática que pretenda superá-la. A noção de habitus, portanto, é construída num esforço de explicar a reprodução (ORTIZ, 1994; MICELI, 2005), num contexto em que a crença na possibilidade de superá-la era muito mais intensa que hoje. O habitus tende, portanto, a conformar e orientar a ação, mas na medida em que é produto das relações sociais ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendraram (ORTIZ, 1994, p.15). Tendendo a reproduzir-se, o habitus não depende das intenções individuais, se constitui nas relações de dominação: É sua posição presente e passada na estrutura social que os indivíduos, entendidos como pessoas físicas, transportam com eles, em todo tempo e lugar, sob a forma de habitus. Os indivíduos “vestem” os habitus como hábitos, assim como o habito faz o monge, isto é, faz a pessoa social, com todas as disposições que são, ao mesmo tempo, marcas da posição social, e, portanto, da distância social entre as posições objetivas[...] (BOURDIEU, 1994, p.75 – grifos do autor). No entanto, se parece que Bourdieu não trata da superação de um habitus, ele não deixa de se referir às modificações no interior do habitus que fazem com que ele funcione sempre como uma instância reguladora nos processos de interconstituição de indivíduo e sociedade: É tão verdadeiro quanto falso dizer que as ações coletivas produzem o acontecimento ou que elas são seu produto. A conjuntura política (por exemplo, revolucionária) só pode exercer sua ação de estímulo condicional atraindo ou exigindo uma resposta determinada dos que a apreendem enquanto tal, sobre 75 aqueles que estão dispostos a constituí-la enquanto tal porque são dotados de um determinado tipo de disposições passíveis de serem redobradas e reforçadas pela “tomada de consciência”, quer dizer, pela posse, direta ou imediata, de um discurso capaz de assegurar o domínio simbólico dos princípios praticamente dominados do habitus de classe (BOURDIEU, 1994, p. 76). Parece evidente que esse “ser dotado” de que fala não tem nada de disposição inata; o habitus é produto da história. funcionaria tanto numa explicação da reprodução Sendo assim, quanto da transformação. É por essa brecha deixada por Bourdieu que faço, a partir deste momento, uma extrapolação não-autorizada do operador habitus, porque só assim ele se torna produtivo para uma possível teorização de uma prática discursiva que possa tender não apenas a reproduzir, mas também a transformar30. O potencial de habitus como operador vai além de permitir analisar sua função na reprodução: considero, com Pêcheux (GREGOLIN, 2004, p. 134), que é possível pensar as disposições que regulam a atividade humana tanto em seus aspectos de reprodução quanto de transformação. Seria uma violência (simbólica...) à noção construída por Bourdieu? Quero argumentar que não: o operador mantém, à primeira vista, duas de suas características centrais: a) continua funcionando como uma matriz que organiza as disposições, integrando as experiências passadas e suas conseqüências; b) continua tendo uma dimensão corpórea, uma dimensão da ação e uma dimensão discursiva. Restam, claro, questões importantes: as questões do inconsciente, da alienação e da ideologia. Tratarei inicialmente da questão do inconsciente 31. Certas práticas parecem “sensatas”, “adequadas”, “razoáveis” em si por conta de um 30 “esquecimento” de suas condições de produção. Mantendo-se Estou adiantando uma defesa de que não há transformação sem reprodução, e que não é possível uma reprodução pura do status quo, sem que se reproduzam também as reações a ele. Uma das razões pelas quais a transformação é possível é que os processos humanos tendem a se reproduzir e não podem se repetir . 31 Bourdieu pressupõe, ao elaborar a idéia de habitus, sua característica inconsciente: o habitus só funciona porque parece pertencer ao indivíduo, ser sua característica natural (“ele é história feita natureza, isto é, negada enquanto tal porque realizada numa segunda natureza” (Bourdieu, 1994, p.65). 76 inconscientes suas razões de ser, o indivíduo as assume como “suas”: seu caráter, sua personalidade, seu “eu”. Desde Freud, no entanto, assiste-se a todo um esforço para fazer emergir, das profundezas do inconsciente, “as razões de ser” das práticas de cada indivíduo. Boa parte da psicanálise se funda na crença de que, na medida em que conteúdos inconscientes se tornam conscientes, o indivíduo ganha maior integridade. Há uma valorização do tornar-se consciente como processo de integração interna do indivíduo. Não se trata propor uma “terapia do habitus”, até porque isso descaracterizaria o conceito (passando a ser ação consciente, deixa de ser habitus, é que parece). O que quero fazer é uma reflexão sobre a forma coisificada como tem sido entendida e popularizada a noção de inconsciente (e nem quero entrar nas discussões sobre a contribuição de Freud para essa coisificação). As perguntas que me ocorrem são as seguintes: porque um processo, para ser produtivo, precisaria se manter consciente? Consciência é um estado sempre desejável, em qualquer situação? Parece-me importante não esquecer que toda disposição modificada (pela ação consciente) precisa se tornar automatizada (inconsciente) para poder ser considerada incorporada (enquanto é ação consciente exige esforço, intenção, premeditação...). Ou seja, volta a funcionar como habitus, exatamente nos termos propostos por Bourdieu, mas já então o operador incorpora, em sua dimensão de inconsciente, a idéia de transitividade: não trata mais de conteúdos inconscientes (se é que só tratava disso), mas de processos inconscientes que emergem para o nível da consciência, se transformam e voltam a esse nível, já modificados. Proponho então pensar a partir daí a questão da ideologia e da alienação. Pelo habitus, o indivíduo incorpora os processos sociais mais amplos e ao mesmo tempo os produz/reproduz. Como pensar processos de “desalienação” fora disso, fora do próprio homem, de seu habitus, do mundo em/com que ele se constitui? Disse Paulo Freire em algum lugar que os homens se educam em comunhão; pode-se dizer também que se 77 alienam/”desalienam” em comunhão. A “desalienação” só pode ser empreendida pelos próprios seres alienados, coletivamente, em sua vida concreta. Para tanto, sua atividade (mesmo a mais alienada) precisa ser compreendida como movimento, não como mera repetição; a ação humana é geralmente aproveitamento de coisas velhas para a criação de coisas novas; ignorar isso supõe continuar separando os homens em dois grupos: os “reprodutores” e os “transformadores”, aqueles se constituindo ou em matéria prima para o trabalho de conscientização destes ou em inimigos que devem ser combatidos. Retornando às características que Bourdieu percebe num habitus: ele tem um aspecto de alienação (o sujeito se pensa produtor do habitus) e portanto uma dimensão ideológica (não percebe as condições em que se produzem as disposições que ele pensa “suas”). Tudo isso traz à baila a questão da antecipação guiada pelas conseqüências das ações passadas: num desconformes desagradáveis, mundo com a coercitivo, tendência trabalharão no as conseqüências geral sentido tenderão de a manter das ser o ações sempre rumo de movimento, os desenvolvimento das condições de produção32. Quero, no entanto, defender que, sendo processos de reprodução são criativos, porque são humanos. É aí que está uma brecha que vejo como pouco explorada: o capitalismo só pode se reproduzir em nós: não “é” uma totalidade alheia a nossa existência; não “dispõe” de uma instância fora da concretude da vida humana para se reproduzir. Só em nós pode ser criativo. Lidar com as conseqüências coercitivas da desigualdade é a atividade cotidiana de milhares de pessoas. Escapar, driblar, enfrentar, reconfigurar, esquecer, adaptar-se às possibilidades de coerção, objetiva e subjetivamente, consciente e inconscientemente: é isso que fazemos todos os dias. Há fracassos, mas 32 Insisto: escapemos da noção ingênua de que, quando o capitalismo busca perpetuar as condições de produção, ele “atua” promovendo a repetição alienada: trata, isso sim, de manter flexíveis as formas como essas condições se articulam no sentido de se fortalecer, criar relações novas que as fortaleçam (toda produção humana implica em movimento e em criatividade: o capitalismo é produção humana, donde... ). 78 também sucessos localizados, nessa rotina. Seria mesmo de surpreender a integridade pessoal de pessoas submetidas às mais duras condições de existência? Isso evidencia que as “instâncias de reforçamento” de que dispomos não são apenas aquelas que valorizam e fazem parecer lógicas, necessárias e eternas as várias dominações. Evidencia também que os processos de reforçamento nem sempre funcionam com os humanos. É nesse processo que se configuram as disposições humanas: a matriz que as organiza precisa necessariamente ser móvel e flexível33 . Dessa forma, a noção de habitus ganha maior potencial explicativo, porque não pressupõe que reprodução seja a repetição eterna de uma ordem estática. Reproduzir, no caso do habitus, pode supor a incorporação também das ações (e conseqüências delas) da resistência, do enfrentamento, e é isso (o movimento no interior do que parece estático) que não foi percebido por aqueles que usaram a noção de habitus somente para entender como funciona a alienação na prática, e não tiraram daí conseqüências para uma ação transformadora (considerando a prática discursiva de Bourdieu, não creio que seja o seu caso). Concordo plenamente com Miceli (2005), quando escreve: A ausência de um princípio-mediação como o habitus está na base de todas as representações artificialistas da ação coletiva, tanto os que reconhecem “a decisão consciente e meditada como único princípio unificador da ação ordinária ou extraordinária de um grupo ou classe” como aqueles que tornam a “tomada de consciência uma espécie de cogito revolucionário, o único capaz de dar existência ao constituí-la como classe para si” (MICELI, in BOURDIEU, 2005, p.XLI). Eu acrescentaria: entre as representações artificialistas é preciso incluir os que pensam (imobilizam, reificam, fetichizam) o conceito de habitus como instância de reprodução ou, mesmo entendendo-o como 33 Pêcheux (2006) afirma que os estruturalistas teriam uma “concepção aristocrática” que “se atribuindo de fato o monopólio do segundo espaço (o das discursividades não-estabilizadas logicamente) permanecia presa, mesmo através de sua inversão proletária, à velha certeza elitista que pretende que as classes dominadas não inventam jamais nada, porque elas estão muito absorvidas pelas lógicas do cotidiano: no limite, os proletários, as massas, o povo... teriam tal necessidade vital de universos logicamente estabilizados que os jogos de ordem simbólica não os concerniriam!” (p.52-53). Essa reflexão nos serve como uma luva (ou nos cai como uma carapuça...). 79 operador, interpretam seu poder de explicar a reprodução como um poder de explicar a repetição, a não-criatividade, a impossibilidade de mudança. São representações, além de artificialistas, imobilistas e imobilizantes. A recusa da tentação de profetizar, feita por Bourdieu (MICELI, 2005, p.VII) não tem razão de ser nesse sentido: fazer ciência não perde sua especificidade quando se aceita que explicar o mundo e modificá-lo podem ser uma e mesma coisa: para Marx, assim como para Vigotski, parecia ser uma questão de método. Compreender a atividade do homem contemporâneo significa estudá-la em suas possibilidades de consciência (unicidade entre a atividade humana e seu produto), em suas possibilidades de alienação (dissociação dos dois) e nas relações entre um e outro conjunto de possibilidades; eu diria que há graus e graus de alienação na atividade humana (pelo menos na forma como ela se configura hoje); aliás, melhor: que se pode situar tal atividade num continuum que vai de uma alienação completa (o homem totalmente separado de sua produção) a uma consciência absoluta (nenhuma possibilidade de separação entre o homem e o que ele faz). É provável que Marx não aceitasse a afirmação que decorre disso: um e outro pólo escapam das condições materiais de existência do humano34; mas é provável também que ele se reconhecesse na lógica que leva a essa elaboração: os processos humanos precisam ser analisados em sua transitividade, em seu movimento, e analisar como movimento (e não como oposições irredutíveis) as relações entre alienação e consciência pode ser útil para se compreender a atividade humana atual, produtora de zonas de luz e sombra, de utopias e desesperanças. Neste momento histórico, isso pode ser feito recolocando a ação humana concreta como ponto de referência, analisando os graus de alienação e consciência, em relação à relação interconstituinte entre 34 Com um pouco de imaginação, dá para “visualizar” o pólo da consciência perfeita como a representação do Paraíso, e o pólo da completa alienação como a representação do Inferno (mas isso já é teologia, e não é terreno onde eu possa transitar com desenvoltura...). 80 homens e circunstâncias hoje descrita como neoliberalismo 35, assim como a configurações mais restritas, a campos de atividade, a instituições, a crenças (como fez brilhantemente Bourdieu). A adoção da idéia de habitus nos remete aquele outro continuum a que já me referi: entre consciente e inconsciente. Se a noção de consciência em Marx é fundamental para a compreensão de como se constitui o especificamente humano, a possibilidade de consciência (no sentido contrário ao de inconsciente) não é positiva nem negativa em si: só tem sentido se a serviço desse processo histórico de colocar num outro movimento as energias humanas. A noção de inconsciente, seu outro pólo, será movimento, aqui considerada não como simplesmente reprimidos/recalcados/esquecidos. nomeando como Falarei, uma acúmulo então, de dimensão de em conteúdos processos de “inconscientização” (processos necessários de automatização no interior de um habitus), tanto quanto de processos, também necessários, de “conscientização” (no sentido de “tomar consciência de”, não de “fazer alguém tomar consciência”). Como se pode pensar a consciência (tanto em seu aspecto de superação da alienação quanto em seu aspecto de trazer algo para o nível do perceptível, do compreensível) em suas relações com a história, nesse caso específico? Com toda a provisoriedade que toda resposta supõe, proponho que aquilo que os processos de alienação tornaram automático e inconsciente deveria se desenvolver na direção do consciente e do voluntário, mas esse consciente/voluntário precisaria se tornar nova automatização, transformando o habitus não em consciência, mas num novo habitus (consciência seria ponto de passagem, entre uma e outra automatizações, de níveis qualitativos diferenciados: transitividade). Consciência se opondo a alienação, consciência se opondo a inconsciente, reprodução se opondo a transformação são “imobilidades”: é a movimentação entre um pólo para o outro (importante: que não é linear, 35 A totalidade hoje denominada neoliberalismo se alimenta da alienação, em padrões muito mais abrangentes do que aquilo que Marx analisava nos momentos iniciais do capitalismo. 81 porque a relação de oposição entre os pólos é só uma forma de compreender, não uma descrição da realidade) que consigo ler como o “especificamente humano”. Essa elaboração abre vastas possibilidades de discussão, mas é preciso fechar este (longo) parênteses e retornar para esta totalidade provisória: uma tese de doutorado que pretende discutir o produto das práticas discursivas que constituem/são constituídas pela inclusão. Para os efeitos deste trabalho, portanto, já é possível: a) considerar a mediação semiótica, como proposta em Vigotski, como dimensão constituinte da mediação pela atividade humana concreta, como proposto em Marx; b) considerar o habitus, dentro daquilo que Bourdieu propôs, como mediador entre atividade humana genérica e atividade específica de indivíduos e grupos, “princípio gerador de estratégias que permitem fazer face a situações imprevisíveis e sem cessar renovadas” (BOURDIEU, 1994, p.61); indo além, considerar esse operador como dispondo de movimento interno, isso é, entender sua predeterminação a explicar a reprodução do status quo como articulada com as possibilidades de incorporar as transformações que a prática humana produz; c) considerar a possibilidade de produzir/perceber movimento no continuum entre consciência e alienação, consciente e inconsciente, reprodução e transformação, percebendo e fazendo ocorrerem transformações na atividade humana, que permitam a criação de um habitus novo, ou seja, de um inconsciente que incorpore também estratégias de transformação. A produção de mudanças no habitus pressupõe uma ênfase nos aspectos transformadores da prática. Quero crer que a ação de analisar a prática discursiva produzida considerando sua inserção num habitus pode ser uma prática que se movimente na direção de estratégias criativas, de estratégias de transformação. Antes de chegar a essa análise, entretanto, é necessário um rápido estudo de um conceito importante na estrutura teórica vigotskiana: 82 o conceito de internalização. Criando a possibilidade de fazer tal conceito interagir com o de habitus, poderei chegar a um conceito de prática discursiva que permita levar em conta a subjetividade: é esse o objetivo da parte do trabalho que se segue. 3.4. INTERNALIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADE MEDIADA PELO HABITUS Considero necessário abrir aqui um espaço específico para a noção de internalização (cujas interpretações têm causado algumas polêmicas entre os que discutem Vigotski)36 , por suas possibilidades operatórias com relação à idéia de habitus, como apontei anteriormente. Internalização é descrita por Vigotski, ao analisar a formação social e histórica do psiquismo humano “como a reconstrução interna de uma operação externa” (1998, p. 74). Essa remissão aos conceitos de exterioridade e interioridade faz todo o sentido dentro de uma lógica que pressupõe as duas dimensões do humano se interconstituindo: remete à dialética entre apropriação e objetivação. Em palavras simples: internalizar é o nome do trajeto externo-interno do processo mais global em que o homem, agindo, se apropria do conhecimento37 , nome que é dado ao produto da apropriação primeira (a primeira objetivação) que se transformou por sucessivas apropriações e objetivações. Nesse processo de apropriação, exterioridade se reconfigura em interioridade, e vice-versa. Interioridade é aqui sinônimo de subjetividade; exterioridade, de mundo objetivado. Psiquismo é, de acordo com Vigotski (1998), a transitividade de um pólo a outro. Desse ponto de vista, o 36 Tal noção é um dos pontos da teoria considerados frágeis, diz Rey (1997a, p. 42), apontando uma suposta inspiração objetivista na base da elaboração da noção. 37 Ainda que substantivado, utilizo o termo para expressar tanto o ato de conhecer, que se baseia num modo de operar sobre o mundo, quanto aquilo que é conhecido, o produto. 83 psiquismo humano não é entendido apenas como o pólo da interioridade, mas como a configuração que emerge do movimento entre os dois pólos. 3.4.1. Internalização: a apropriação de modos discursivos de operar A noção operatória de internalização permitiu a Vigotski analisar parte das relações entre dois mundos considerados, de um ponto de vista cartesiano, com origens distintas e com características opostas. Considerando que interno/externo se interconstituem, ele analisa a “parte” do movimento que vai do exterior para o interior. Vigotski não diz que não ocorre o movimento inverso, apenas não o inclui na noção de internalização. Ele diz: “Chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação externa” (1998, p.74-75) e diz ainda que esse processo “consiste numa série de transformações”: a) Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e passa a ocorrer internamente (...) b) um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal (...) c) a transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento. Os comentários que Vigotski faz entre a descrição de uma e outra transformação do processo não deixam nenhuma dúvida, nem quanto a sua opção por um modo discursivo de operar que tenha a ação/relação entre os homens concretos como referência (“Todas as funções superiores originam-se nas relações reais entre indivíduos humanos”), nem de sua compreensão de atividade como condição para que o psíquico se constitua internamente (“o processo, sendo transformado, continua a existir e a mudar como uma forma externa de atividade por um longo período de tempo, antes de internalizar-se definitivamente”), nem de sua clareza de que a totalidade psíquica sofre mudanças qualitativas ao se mover de um 84 pólo a outro de sua constituição “sua transferência [das funções psíquicas] para dentro está ligada a mudanças nas leis que governam sua atividade; elas são incorporadas em um novo sistema com suas próprias leis” (VIGOTSKI, 1998, p.75). Desse ponto de vista, não seria possível compreender internalização simplesmente como movimento que relaciona experiências pessoais (subjetivas) com definições estáveis historicamente construídas (objetivas), ou seja, com o conhecimento pronto e acabado. Essas relações ocorrem, naturalmente, mas internalizar significa _ na descrição vigotskiana_ principalmente apropriar-se de processos, de operações. Vigotski certamente compreendia a sutileza de uma prática discursiva (ainda que a nomeasse como signo, palavra, discurso) e da constituição psíquica constituída por ela e dela constituinte: só se pode perceber-lhe a mobilidade quando analisamos suas operações e seu modo de operar, não seus produtos em si. O texto de Vigotski que descreve internalização38 é sucinto e talvez não expresse claramente esse esforço metodológico, embora ele use explicitamente “operações” e “processos” como definidores (op. cit.p,745). Parece óbvio que Vigotski não está falando apenas de assimilar conteúdos: está falando do processo dialético em que uma totalidade que se constitui “exteriormente” se transforma noutra totalidade (“interiorizada”). Ajuda a compreender sua forma de fazer ciência, e, portanto, os modos como elaborou a noção de internalização um texto posterior, sobre a interconstituição de pensamento e linguagem. Não poderia haver forma melhor para reiterar isso do que deixar falar o próprio Vigotski, como pesquisador que assume um método e o leva às últimas conseqüências. Por isso poderíamos resumir o resultado básico de toda a nossa pesquisa numa tese: os processos que se consideravam tolhidos Refiro-me ao texto disponível em língua portuguesa, publicado como capítulo 4 do livro A formação social da mente (6ª ed., 2003), tradução da edição em língua inglesa Mind in society, elaborado a partir do original russo de Ferramenta e signo (originalmente publicado em 1930). 38 85 de modo uniforme e imóvel são, de fato, interligados pela mobilidade (VIGOTSKI, 2000, p.482). Foi necessário ao pesquisador Vigotski, então, considerar o “imóvel” em suas articulações, em sua gênese, em suas relações, para perceber que ele nunca foi imóvel: assim parece apenas em função do prisma, do recorte. Só considerando as relações entre duas totalidades (ou várias totalidades) é que pode ser percebido o movimento daquilo que parece imobilizado. Tendo a noção de prática discursiva como prática na qual ocorre uma apropriação tanto consciente quanto inconsciente, de conhecimentos e modos de operar transformados historicamente, é possível pensar em internalização como uma operação que permite essa prática: ou seja, estou tomando prática discursiva como totalidade mais abrangente (ação humana concreta) e internalização como processo de apropriação/objetivação, pelo agente, das operações e do modo de operar nesta prática. Se parecia faltar um conceito de “externalização” para configurar o outro pólo do movimento iniciado com internalização, é porque os críticos de Vigotski não o souberam buscar no lugar certo. Marx já o tinha elaborado, e Vigotski nunca o ignorou: é a própria ação humana sobre o mundo. A fragilidade que certos críticos vêem no conceito, então, tornou agora fácil de compreender: descolada de seu campo de sentido, tomada em si mesma e recolocada no seio de um modo de conhecimento estranho àquele em que se constituiu; um modo que mantém recortados (e só os entende em oposição) aspectos internos e externos do desenvolvimento, a idéia de internalização só pode ser objetivista. É preciso não perder de vista o caráter de reconstrução do externo implicado no processo de internalização, assim como o fato de que Vigotski, como Marx, atribuía um caráter holístico à constituição psíquica humana: na psicologia de Marx o vínculo do homem com o real se apresentou através de um homem considerado holisticamente, ou 86 seja, de um homem que intervinha a partir da constituição integral de sua psique na constituição subjetiva na realidade social na qual se determinava, mesmo quando os termos através dos quais esses complexos processos tinham lugar ainda não haviam encontrado uma definição teórica precisa naqueles momentos (REY, 1997, p.42). A definição de Vigotski, creio, ainda é a mais precisa. Talvez cause incômodo, nesses tempos em que tudo parece ser fluxo que leva do nada a lugar nenhum, o fato de que ele não receava usar reificações, conceitos em oposição e imobilizados; Vigotski o faz entendendo que funcionam como momentos do percurso metodológico, necessários inclusive ao avanço na história do pensamento discursivo: A complexa estrutura dessa unidade [o pensamento discursivo], os complexos vínculos móveis e as transições entre planos isolados do pensamento verbal só surgem no desenvolvimento. Isto a pesquisa mostrou. A separação entre significado e som, entre palavra e objeto e entre pensamento e palavra são estágios indispensáveis na história do desenvolvimento dos conceitos (VIGOTSKI, 2000, p.482-3). 3.4.2. Articulando internalização, habitus e subjetividade A prática discursiva de Vigotski é, creio eu, muito mais eloqüente do que a rede conceitual estruturada por ele como produto dessa prática. Creio que ele estaria, inclusive, plenamente de acordo com Bourdieu (1994), quando este afirma que só se pode compreender como as dimensões da interioridade e da exterioridade se constituem mutuamente quando se investiga o modo de engendramento das práticas: Para escapar ao realismo da estrutura, que hipostasia os sistemas de relações objetivas convertendo-os em totalidades já constituídas fora da história do indivíduo e da história do grupo, é suficiente e necessário ir do opus operatum ao modus operandi, a realidade estatística ou da estrutura algébrica ao princípio de produção dessa ordem, ou mais exatamente, do modo de engendramento das práticas, condição de construção de uma ciência experimental da dialética da interioridade e da 87 exterioridade, isto é, da interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade(op.cit., p.60),. Bourdieu se refere à investigação específica dos processos de interconstituição da interioridade e da exterioridade, fazendo o esforço explicito de situá-las em suas condições históricas. Esse esforço o leva a construção de uma noção que designe não um processo (como o é internalização), mas um sistema que coloca em relação às totalidades da situação imediata e da situação geral. Então: o processo dialético que constitui a interioridade foi denominado por Vigotski internalização; o sistema, perpassado pelo ideológico, que faz com que interioridade e exterioridade tendam a estar em consonância em cada indivíduo e em cada grupo foi chamado por Bourdieu de habitus. Bourdieu produz um operador que incorpora o ideológico: só se pode entender habitus considerando que essa tendência a estar em consonância é produzida social e historicamente. É preciso, no entanto, supor um movimento que atualize habitus e estrutura em certa sincronia: “A oposição entre estrutura e indivíduo”, diz Bourdieu, “obstaculiza a construção da relação dialética entre a estrutura e as disposições constitutivas do habitus” (1994, p.78). Superar essa oposição significaria supor um movimento entre estrutura e indivíduo, criando e renovando um habitus, que tende a preservar-se, tendendo assim a preservar o essencial da estrutura. Esse movimento, atualizando-se sempre, implica em que se suponha “modos de internalizar”, modos de se apropriar/objetivar: modos de operar/representar, portanto “modos de engendramento” da prática, sendo que esta “é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus” (op.cit., p. 65). Construir uma operação teórica que dê conta do processo de construção de subjetividades nas relações assimétricas de poder que se construíram no mundo contemporâneo (e não quaisquer relações assimétricas) exige um operador flexível. Há que levar em conta, hoje o fato contemporâneo não só da sobrevivência, mas da flexibilização, abrangência, fortalecimento dos processos de alienação. Há que levar em 88 conta as incontáveis ações concretas que, nesses tempos, mostraram a necessidade premente de teorizar/praticar a superação desses processos. Não basta, creio eu, descrever como se engendram as práticas nas relações de dominação: é preciso teorizar sobre as fragilidades desse processo de engendramento39. Trata-se, então, de construir um novo operador, considerando habitus como superado? Creio já ter argumentado suficientemente contra essa necessidade, sugerindo a possibilidade de colocar em movimento, no interior do conceito de habitus, seus próprios operadores: as noções de consciente e inconsciente, de alienação, de reforçamento. É ainda de Bourdieu a afirmação abaixo: Cada agente, quer ele saiba ou não, quer ele queira ou não, é produtor e reprodutor do sentido objetivo: porque suas ações e suas obras são o produto de um modus operandi do qual ele não é o produtor e do qual não tem o domínio consciente, encerram uma ‘intenção objetiva”, como diz a escolástica, que ultrapassa sempre suas ações conscientes (1994, p.72, grifos meus). O grifo nas expressões “do qual ele não é o produtor” e “do qual não tem o domínio consciente” é para chamar a atenção para essas condições explicitas que Bourdieu coloca para que um habitus seja reprodutor. Passar a investigar o próprio modus operandi faria, até certo ponto, superar a segunda condição: trazê-lo para o plano da consciência; começar a produzir formas de produzi-lo (construir conscientemente ferramentas, operadores) faria com que a primeira deixasse de ser entendida como um destino do indivíduo, e passasse a ser lida como circunstância histórica e social: o homem não é produtor isolado de seu modo de ser e agir, mas os homens em coletividade o são, e cada homem individualmente pode se aperceber e se apropriar disso. Estou supondo, é claro, que consciente e inconsciente não são “estados fechados” e se pode passar de um para o outro. Estou supondo que a 39 Pêcheux, ao redefinir as noções de “ideologia” e “assujeitamento ideológico”(GREGOLIN, 2004, p.126-9) argumenta que “não existe prática, a não ser através de uma ideologia e dentro dela; não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos” . 89 passagem de um estado de inconsciência para um de consciência exige transformações no modo de operar do indivíduo e dos grupos: que há uma mudança qualitativa; e estou, por fim supondo que essa mudança pode ser incorporada a um novo inconsciente: a um inconsciente atualizado. Daí se pode inferir que o conceito de habitus se mantém plenamente operacional para explicar, para além da reprodução, a transformação. E que a idéia de internalização se mantém, também, plenamente operacional para explicar a passagem de modos de operar (tanto os que tendem à reprodução quanto os que tendem à transformação) do plano da ação concreta para o plano da subjetividade. Habitus, recordemos, são disposições estruturadas e estruturantes: o ideológico que perpassa todas as ações humanas (PÊCHEUX, apud GREGOLIN, 2004,128-129; VERÓN, 1980, p.102-106) não se situa nem apenas fora nem apenas dentro dele, se situa também nesse processo de objetivação e subjetivação; refere-se a todas as ações e discursos envolvidos nas relações de poder, os dominantes e os não dominantes. Daqui por diante chamarei a esses últimos de recessivos, tomando emprestada da biologia a noção de recessividade, em oposição a dominância, significando vozes que se contrapõem a outras, mas que numa dada relação de poder são subsumidas por estas últimas. Não significa que desapareçam nesse processo ou que estejam condenadas à subordinação; podem, numa determinada conjuntura, tornar-se dominantes. O que quero defender é que as “vozes vencidas” continuam ativas no diálogo social, e é por isso que as dominantes precisam por em ação mecanismos e estratégias que as enfraqueçam. É por isso que faz sentido retomar a noção de habitus pensando em sua possibilidade de nomear também as disposições e representações engendradas nas práticas transformadoras, ou nos aspectos transformadores das práticas. Incorporando disposições e representações que, de modo inconsciente, engendram práticas, e tais disposições e representações tendo sido internalizadas com base numa avaliação 90 inconsciente que supervaloriza as conseqüências da experiência primeira (BOURDIEU, 1994, 61-62), um habitus precisaria levar em conta somente os efeitos dos discursos e dos modos de agir dominantes para ser puramente reprodutor. Como bom cientista, Bourdieu tem o cuidado de lembrar que um habitus “tende” a reprodução. Viveu neste século de grandes transformações. Sabe que há discursos e modos de operar com a discursividade que não são dominantes: o seu próprio não o foi, a não ser em territórios bem circunscritos. Não se propõe a ser profeta: opera discursivamente na intenção de criar explicações para um determinado real. No cuidado de não profetizar, porém deixa de evidenciar a potencialidade do seu próprio modo de operar enquanto produz discurso. Da mesma forma como a prática discursiva de Vigotski é mais eloqüente para mim do que sua teorização, a de Bourdieu me ensina muito mais do que as conclusões a que ele chega. É mais nas entrelinhas do Esboço de uma teoria da prática (1994) que eu encontro o exercício de uma atividade de pesquisador e de produtor de discursos que me permite (quem sabe pelas tentativas de imitação, no sentido vigotskiano do termo?) internalizar um modo não-dominante de produzir ciência e discurso (apropriar-me, à minha moda, de seu modo de operar, objetivando-o neste texto). Pensar o ideológico como movimento, como processo (o ideológico no interior das práticas, permeadas por um habitus) pode ser mais frutífero hoje do que pensar as ideologias estabilizadas, sem para isso precisar negá-las. É isso que faz Verón (1980, p.102-116), ao definir o“ideológico” como dimensão que perpassa todos os conteúdos e todos os modos de operar, porque se constitui nas relações de poder (que implicam também em conflito entre discursos, e não na mera imposição de um discurso sobre o outro) e não se coisifica nas denominações fechadas; continua operando através dos modos de operar humanos, que são discursivos. 91 Considerei internalização como processo em que são interiorizados os modos de operar, em determinadas condições concretas, em determinadas redes de coerções. A prática discursiva, que produz discursos para os outros no mesmo movimento em que os produz para si mesma _ discurso interior, pensamento (VIGOTSKI, 2000)_ internaliza modos discursivos de operar de acordo com disposições e representações relativamente automatizados, disposições e representações que podem se tornar conscientes cada vez que isso se faz necessário à sobrevivência humana: cada vez que as tensões criadas pela alienação se tornam insuportáveis. Esse “relativamente” tem a ver com a provisoriedade dos discursos e das práticas: eles estão permanentemente se desfazendo e refazendo, não porque a fragmentação seja a condição necessária do homem contemporâneo, mas porque as ações do homem não têm um sentido-direção único, nem um sentido-conteúdo semântico único. Alienamo-nos e desalienamo-nos todos os dias, na mesma medida em que as necessidades concretas exigem: e se alienar-se pode ser condição necessária para sobreviver neste momento histórico, desalienar-se também pode. Afinal, quando falamos de humanidade, sobreviver é sempre mais do que alimentar-se, reproduzir-se, repousar (se considerarmos o homem isoladamente, organismo biológico, isso talvez seja sobrevivência; mas como lembrava Garcia (1998, p.86), o homem isolado é uma ficção). 3.5. O DISCURSO: DA MEDIAÇÃO SEMIÓTICA À NOÇÃO DE PRÁTICA DISCURSIVA O desenvolvimento da análise que empreendi anteriormente, recuperando as relações entre mediação pelo trabalho e mediação semiótica, permitiu-me apontar para duas faces de um uso parcial e 92 deslocado do conceito de mediação. A primeira delas se refere a uma subordinação de toda e qualquer prática a sua dimensão discursiva; criase um descolamento dessa dimensão de sua relação com as demais dimensões das práticas humanas, atribuindo à linguagem o poder de, por si, organizar o mundo humano. Uma outra face: reificada, a linguagem deixa de ser considerada atividade social40, e passa a ser entendida como expressão (de um conteúdo dado pela essencialização e idealização do humano) e comunicação (desse mesmo conteúdo). No primeiro caso, temos como conclusão que “tudo é linguagem”. No segundo, que é o sujeito falante o centro e a origem da linguagem. Tratarei das duas questões ao mesmo tempo, por considerar que sua matriz é a mesma: a cisão entre o homem individuo/sociedade, e sua produção, homem/mundo, geradora das oposições linguagem/pensamento, prática/teoria, sujeito/objeto41. Para poder tratar delas, é preciso considerar que o esvaziamento do conceito e suas conseqüências não se dá no vazio, nem por conta da boa ou má vontade deste ou daquele pesquisador. Têm suas raízes num processo histórico de desenvolvimento da própria noção de linguagem, processo que sofreu, neste final de século passado, uma transformação que veio a ser denominada “giro lingüístico” (GRACIA, 2004), ou “virada lingüística” (SPINK E MENEGON, 2004) ou ainda “giro discursivo” (VAN DIJK, 2004). Os autores que analisam esse fenômeno (pelo menos aqueles a que tive acesso), não mencionam Vigotski, nem como pesquisador que atuou paralelamente aos desenvolvimentos do lado do Ocidente, nem como autor que poderia ter contribuído caso sua produção tivesse algum tipo de contato com a ciência ocidental. Desse modo, estarei aqui 40 Para Foucault, o discurso é produzido e controlado socialmente: (2006, p.8-9): “[...] suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada, e redistribuída por um certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. 41 Ver VIGOTSKI (1996, p. 203-420), em “O significado da crise na psicologia”. 93 arriscando, sem o suporte de uma pesquisa mais rigorosa42, relações entre a produção vigotskiana e o desenrolar dos estudos da linguagem no lado ocidental. Para Gracia (IÑIGUEZ, 2004, p.19-20), ocorreram profundas mudanças não apenas na ênfase dada à linguagem, mas a própria concepção da sua natureza sofreu transformações. Esse autor diz que uma genealogia do giro remeteria às discussões medievais entre os escolásticos acerca dos universais, isto é, de categorias gerais que explicassem e nomeassem as classes de objetos. “As duas soluções típicas e iniciais do problema”, segundo Abbagnano (2003, p.982), o nominalismo e o realismo, defendiam posições contrárias: o primeiro, que “o universal é o signo das coisas”; o segundo, que “o universal é a essência necessária da substância das coisas”. Mas é com Descartes que a filosofia se torna uma “filosofia da consciência”: linguagem é entendida como manifestação de idéias gestadas num mundo interior. Estabelece-se a dicotomia interno-externo e a filosofia se dedica às questões dela decorrentes, em especial, como se dão as relações entre mente e corpo, e entre mente e mundo (GRACIA; SPINK E MENEGON, ambos in: IÑIGUEZ, op. cit.). Já no século passado, duas rupturas estimulam o crescimento da atenção à questão da linguagem: uma ruptura de ordem filosófica, com Frege e Russell propondo um centramento das atenções filosóficas na linguagem tal como ela se apresenta objetiva e publicamente; e uma ruptura com as tradições da filologia, com Saussure propondo o estudo da língua considerada em si mesma (GRACIA, in IÑIGUEZ, op. cit., p.21). Spink e Menegon (in IÑIGUEZ, op.cit., p.261) dizem que ocorre aí uma inversão, se deslocando o foco da cognição para a comunicação. Rojo chama a esse momento o “primeiro giro”: o giro logicista, que dá início ao processo “pelo qual a linguagem torna-se o referente principal e 42 Fica a sugestão para que essa pesquisa se constitua; seria de grande utilidade para todos os que estudamos Vigotski, e daria muita contribuição aos estudos da linguagem noutros territórios. 94 determinante de todo o âmbito mental, representativo e de conhecimento” (in IÑIGUEZ, 2004, p. 208).43 Antes de continuar tratando das transformações que sofreu a prática discursiva e as concepções nela produzidas, farei aqui um corte de ordem temporal: Vigotski começa a escrever sobre linguagem e a fazer pesquisa sobre o pensamento discursivo poucos anos depois da publicação da obra fundadora da lingüística, O Cours de Linguistique Génèrale, de Saussure44. Tratou, em seus trabalhos, da função psicológica e do desenvolvimento do signo. Não aparecem, nas traduções de Vigotski a que tive acesso (1988, 1989, 1993, 1996, 1998, 2000, 2003), referências explícitas a Saussure45. Ainda que ele não o tenha lido, certamente conhecia as concepções defendidas no Cours, dada a quantidade de críticas às formas idealistas de conceber o signo; tais criticas aparecem tanto em A formação social da mente (1998) quanto em A construção do pensamento e da linguagem (2000)46. Seria, portanto, uma injustiça aos esforços de Vigotski como pesquisador (uma ofensa, especialmente, ao seu empenho como metodólogo) acreditar que ele simplesmente adotou um conceito disponível na literatura da época, e o incorporou à sua pesquisa. As próprias críticas que Vigotski faz ao isolamento de elementos nos estudos lingüísticos permitem pressupor que ele também tinha claras as concepções a que se vinculava o conceito de signo na lingüística em formação: 43 Tenório (2006) afirma que o logicismo vai além de trazer a linguagem de tornar a linguagem referência par ao conhecimento: “O logicismo não só inicia o momento no qual a linguagem passa a ser o referente principal de todo o conhecimento, mas, principal e especificamente, afirma a redutibilidade da linguagem, e, por conseguinte, de todo o conhecimento, à lógica formal clássica”. 44 O Cours de linguistique générale, texto considerado como fundador da lingüística, é publicado postumamente em 1916 (Saussure morre em 1913), por Bally e Sechehaye, discípulos de Saussure que elaboraram o Cours, baseados em notas das aulas proferidas pelo mestre (VERÓN , 1980, pp.97-172) 45 As produções acerca da obra de Vigotski, e/ou que pretendem a aplicação de sua teoria à educação, normalmente aceitam o uso de signo sem questionamento e fazem pouca ou nenhuma referência à lingüística, a semiologia, à teoria do discurso. Considero isso uma evidência do solipsismo em que atuam as várias áreas da ciência. 46 A formação social da mente (1998), é uma publicação que reúne textos escritos entre 1930 e 1934 ; A construção do pensamento e da linguagem tem sua primeira publicação, com o título de Pensamento e linguagem, em 1934; o texto dessa última obra, aqui usado (na tradução brasileira diretamente do russo) é de 2000. 95 Segundo um dos lingüistas mais importantes da atualidade, esses dois elementos [refere-se a som e significado], unificados no signo, levam vidas totalmente separadas. Por isso não surpreende que semelhante concepção só possa ter acarretado os resultados mais melancólicos para o estudo dos aspectos fonético e semântico da língua (Vigotski, 2000, p.7). Suponho que poderia ser justificável, dado o desenvolvimento da lingüística durante o período de sua produção intelectual (anos 20 e 30 do século passado), que Vigotski mantivesse o uso da palavra signo47, mas sua compreensão de tal termo remete para muito além da compreensão da lingüística saussuriana. Vigotski usa, ao longo dos textos, tanto signo como palavra, mas insiste em que não entende tais noções da forma fragmentária como o fazia a lingüística saussuriana (1993, p.3; 2000, p.58). Muito pelo contrário, todo o tempo, Vigotski é coerente com aquilo que ele assume como método: investiga os processos de gênese e imbricação de atividade prática e pensamento (2000, p. 395-486); mantém a historicidade como condição para o desenvolvimento da palavra, analisando tal processo (op.cit., p.399); assume a idéia de sentido como muito mais abrangente do que a de significado (op.cit., p.465-466), questão que só vem a ser desenvolvida depois da segunda metade do século pela semiologia (VERÓN, 2004, p. 215); e investiga as relações interconstituintes entre pensamento e palavra como “processo vivo de nascimento do pensamento na palavra”, operando com o pensamento discursivo como unidade (VIGOTSKI, 2000, p.484): vê a linguagem como uma forma de atividade (op.cit., p.452). É somente percebendo tal esforço analítico que é possível entender o quanto Vigotski, ainda que limitado pelo alcance das elaborações possíveis em seu tempo, avançou numa explicação do Em Pensamento e Palavra, último capítulo de A construção do pensamento e da linguagem (2000, pp. 395486), aparece apenas uma vez o termo signo; no restante do trabalho, são utilizados os termos palavra, discurso, pensamento discursivo. Considerando que Ferramenta e signo foi publicado originalmente em 1930 e Pensamento e Linguagem em 1934, não posso deixar de supor que houve uma modificação no processo de elaboração das noções tomadas emprestadas da lingüística da época. Claro que isso pode ser indício, simplesmente, de elaborações dos tradutores, cuja prática se situa na contemporaneidade e têm melhores condições de considerar as transformações no campo da lingüística e da semiologia. De qualquer modo, a possibilidade de intercambiar os termos sem que se pereça o sentido geral da obra já indica que Vigotski tinha uma compreensão abrangente da noção de signo. 47 96 psiquismo humano. Tanto avançou que creio que suas análises permitiriam (caso as condições históricas permitissem que fossem levadas em conta) os primeiros passos para a construção de uma noção de prática discursiva. Não há como negar que sua produção representa um “giro” com relação à concepção de linguagem, ainda que dentro de outra tradição, de outras condições de produção do discurso, dentro da construção de outra disciplina (a psicologia) e dirigido a outros rumos: Vigotski não admite uma filosofia da consciência, não reconhece uma oposição entre mente e corpo, nem entre mente e mundo. Não pressupõe, pois, um sujeito pensante e autônomo como produtor dos discursos. Por outro lado, como psicólogo e estudioso da gênese e do desenvolvimento dos processos discursivos, investiga o pensamento a partir da palavra, da forma como ela se apresenta objetivamente, mas para perceber a unidade pensamento-palavra se constituindo em pensamento discursivo. Concordaria que a análise da linguagem pode informar sobre a realidade (GRACIA, in IÑIGUEZ, p.26), mas não pressuporia que essa realidade fosse alheia às condições concretas de sua produção. Gracia diz que uma das mudanças elaboradas na busca da superação de uma filosofia da consciência é que “deixa-se de considerar que são nossas idéias que se relacionam com o mundo [tese idealista] e passa-se a afirmar que são nossas palavras que se correspondem com os objetos do mundo [tese realista]” (p.27). Vigotski expressa, no capítulo final de A Construção do Pensamento e da Linguagem (2000, p.485-486), a necessidade de se aprofundarem os estudos “da consciência”, mas não se preocupa em sair da consciência para o enunciado, abandonando a primeira, e sim em perceber como consciência e enunciação se interconstituem. O tempo de vida de Vigotski encerra-se em 1934; sob Stalin, seus trabalhos deixam de ser publicados na União Soviética. Suspende-se então uma trajetória promissora que, em minha opinião, poderia ter 97 desaguado nos estudos do discurso, e seus textos só começam a aparecer no Ocidente na década de 70, quando a lingüística já estava plenamente estabelecida como ciência e os rompimentos no seu interior já tinham causado profundas modificações; na filosofia, o positivismo lógico é superado por análises da linguagem comum, “tal qual ela se dá” (GRACIA, in INIGUEZ, 2004, p.32): com a publicação de “Investigações filosóficas”, de Wittgenstein (1952) e surgimento, em torno de suas reflexões, dos “filósofos de Oxford” (Ryle, Austin, Strawson, Grice) os usos e funções da linguagem passam a ser considerados tão importantes quanto sua função descritivo-representacional: a linguagem faz coisas, faz realidades48 (op.cit., p.34); quando, enfim, Foucault, Pêcheux e outros tantos, na França, já se batem com a leitura althusseriana do marxismo, já propõem inversões nos modos de compreender a linguagem e geram uma das linhas do que já se chamava “análise do discurso” (GREGOLIN, 2004); quando Bakhtin emerge nos estudos literários com os conceitos de dialogismo e polifonia, no interior de uma concepção de linguagem que “incluía a história e o sujeito” (BRAIT, 2003, p.21). Sob o nome de Análise do Discurso, diz Iñiguez (op.cit., p.53) “existem rótulos, nomes e perspectivas múltiplas e muito diferentes, com princípios, características e procedimentos também diferentes”. autor menciona, como mais importantes, aquelas Esse perspectivas identificadas com a teoria dos atos da fala, da pragmática lingüística, da etnometodologia e a “obra de Michel de Foucault”. Parece estranho referirse a Foucault, no que se refere à análise dos discursos, sem uma referência a Pêcheux, já que é dos enfrentamentos e complementaridades 48 Não há dúvida de que “são feitas coisas” através da linguagem, nisso é possível concordar com Austin: no entanto, que sujeito é esse chamado “linguagem”, que faz coisas? Para que ele faz coisas? Essas coisas se inserem em que atividade mais abrangente? Os seres humanos fazem coisas, parece, mas não usam a linguagem pelo gosto de usá-la; ela faz sentido em sua ação concreta. Porque os noivos do exemplo clássico dizem “sim”? Por que, ao dizer sim, casam-se. É isso que eles estão fazendo: casando-se (e não é a linguagem que está casando os dois, através do sim). O sim é o acontecimento discursivo (PECHEUX, 2006), mas ele não pode se descolar dos demais acontecimentos humanos, sob pena de perder o sentido. 98 entre as obras dos dois autores que se fez boa parte do que se costuma chamar “análise do discurso de linha francesa”.49 Não farei aqui a distinção entre as várias linhas de análise do discurso, de resto já muito bem feita por vários autores _ os aqui citados Gracia, Iñiguez, Spink e Menegon, Van Dijk, entre outros, cujos textos foram enfeixados por Iñiguez, (2004); Orlandi (2005); Maingueneau e Charaudeau (2004); Maingueneau (1997); Indursky e Ferreira (1999). Passarei, em vez disso, a caracterizar aquilo que venho chamando, desde o início do trabalho, de prática discursiva, assentada em duas bases: a) na herança vigotskiana e na relação que faço entre essa herança e o conceito de habitus, de Bourdieu (1994); e b) nos trabalhos de Foucault (1995, 2006), Pêcheux (2006); Bakhtin (2003, 2004), lidos com a ajuda de Verón (1980,2004); Orlandi (2005), Brait (2003,2005) e Gregolin (2004). 3.6. AS PRÁTICAS DISCURSIVAS E SEUS MODOS DE OPERAR Até aqui, a questão da linguagem foi tratada da forma em que “aparece” (ou mais propriamente: da forma em que aparece aos meus olhos) na produção vigotskiana, e meu trabalho foi encontrar nessa forma de tratamento indícios da filiação ao pensamento de Marx, dentro do compromisso que Vigotski assume explicitamente de criar um método partindo dos mesmos princípios que aquele. Busquei numa leitura de Bourdieu (cujo “contato” com Marx passa por filtros históricos bem diferentes daqueles de Vigotski, mas que ele compartilha, pela contemporaneidade e filiação, com Foucault e Pêcheux) possibilidades de tornar operacional para este meu trabalho o conceito de habitus, aproximando-o daquele de internalização. Na busca de evidenciar as 49 A esse respeito,ver Gregolin (2004): Foucault e Pêcheux na análise do discurso _ diálogos e duelos. 99 contribuições de Vigotski para um estudo das práticas discursivas, dei uma espécie de salto no tempo e no espaço, evidentemente. Aproximei estruturas conceptuais elaboradas em condições e situações históricas diferentes, com diferentes objetivos. Não o fiz, porém, de forma absolutamente artificial. É só porque ecos das mesmas vozes50 ressoam (mais ou menos longinquamente) na produção textual dos três autores (Vigotski, Bourdieu, Foucault), assim como na práxis discursiva que tais discursos permitem entrever, que foi possível estabelecer certo diálogo entre eles. É verdade que a voz de um “certo Marx” ressoa diferentemente em cada um deles: em Vigotski, no entusiasmo contagiante da construção de uma psicologia socialista; em Bourdieu e Foucault, no diálogo/enfrentamento, por diferentes ângulos, da releitura de Marx por Althusser51. Daqui em diante, acrescentarei outras vozes ao diálogo, menos por uma escolha pessoal do que por força das definições que venho elaborando a respeito de uma prática discursiva: as vozes de Pêcheux, Bakhtin e Verón. Pêcheux se incorpora a esse texto porque como diz Gregolin (2004, p.13) é ele o “centro de gravitação” do que veio a se denominar “análise do discurso de linha francesa”. Sua produção e a de Foucault se constituíram num debate que durou cerca de duas décadas (GREGOLIN op.cit., p.119), e cujas divergências diziam respeito muito mais às propostas althusserianas do que a uma teoria do discurso. No que se refere a Bakhtin, já é uma outra situação. Por direito, sua contribuição deveria ter-se incorporado a este texto já de início, quando proponho Vigotski como ponto de partida para a compreensão e construção de uma prática discursiva. Assim como Vigotski, no entanto, Bakhtin chegou recentemente ao Ocidente, e, mais recentemente do que aquele, às minhas leituras. De modo que contraio uma dívida de fazer mais tarde, em outras circunstâncias, um esforço de vinculação de sua 50 Ver Bakhtin (2003). Quanto a Bourdieu, esse enfrentamento aparece com clareza no artigo El discurso importante – algunas reflexiones sociológicas sobre “algunas observaciones críticas em torno a Leer el Capital” (BOURDIEU, 2001, pp.134-151) 51 100 contribuição ao que poderia ter sido uma gênese diferente das teorias do discurso. Neste momento, procuro trazer sua voz (ou não impedir que ela apareça) na medida do possível, sabendo que é muito pouco para um estudioso de seu porte. A este trabalho serve, especialmente, o conceito de gênero do discurso, como suporte das decisões metodológicas no que se refere ao recorte do discurso a ser estudado. Considerando os gêneros como “tipos relativamente estáveis de enunciados”(BAKHTIN, 2003, p.262), entendo que tal estabilidade tem relação com as relações entre linguagem e ideologia: “O gênero discursivo diz respeito às coerções estabelecidas entre as diferentes atividades humanas e os usos da língua nessas atividades, ou seja, as práticas discursivas implicam necessariamente coerções” (BRAIT, 2003, p.27). Proponho retornar então a Pêcheux e Foucault. Não entrarei na história do debate que os dois travaram; para este momento, importa ver em que suas contribuições convergiram de forma a potencializar a análise do discurso. De novo, aproveitarei o trabalho de Gregolin (2004), já citado, para resumir aquilo que os aproximou, produto de um diálogo/enfrentamento rico e franco: nem Foucault nem Pêcheux admitem o sujeito como fonte de sentidos (GREGOLIN, op.cit., p.134), assim como criticam os projetos científicos totalizadores, teorias unitárias, globalizadoras (GREGOLIN, op.cit., p.148). Propõem tomar como objeto da prática científica “as relações entre a língua (campo de virtualidades, que não pode ser desviado) e o discurso (universo do acontecimento, ligado à história e ao poder)”, assim como “as relações entre enunciados” e as relações entre discurso e sujeito (pensado não como individual, mas como dispersão de lugares) (op.cit., p.124). Pêcheux se interessa, a partir disso, pela “escuta das circulações ordinárias do sentido”, aproximando-se do Foucault da Arqueologia do Saber (op.cit., p.130) e pelo estudo das “resistências inscritas no simbólico” (op.cit., p.146). Há, portanto, uma mudança no tipo de discurso em foco. Se antes tal análise do discurso se interessava pelos “saberes dominantes” e 101 os modos como operavam para dominar, agora interessa a “insurreição dos saberes dominados”: “saberes históricos [...] mascarados “no interior dos conjuntos funcionais e saberes desqualificados”, “ingênuos”, “particulares”, “regionais” (GREGOLIN, 2004, p.176). Os “universos discursivos logicamente estabilizados” não são mais entendidos como o discurso de referência, e sim como gêneros diferenciados, obrigados a conviver, disputar e se confrontar com “espaços discursivos não estabilizados logicamente (o filosófico, o político, o estético, os múltiplos registros do cotidiano)”(GREGOLIN, op.cit., p.179). Assim, desde a sua fundação, na análise do discurso derivada de Pêcheux, o discurso é entendido como um conceito que não se confunde com o discurso empírico de um sujeito (parole saussureana) nem com o texto (o discurso não está na manifestação de seus encaixamentos; sendo um processo, é preciso desconstruir a discursividade para enxergá-lo) nem com a função comunicacional [...]. A análise visa a apreender esse novo objeto (discurso como processo) indagando sobre as condições de sua produção, a partir do pressuposto de que o discurso é determinado pelo tecido histórico-social que o constitui (GREGOLIN, 2003, p.7; grifos da autora). Talvez o mais importante, para este trabalho, de tal reviravolta teórica, sejam três questões: a) a primeira, o fato de que não se considera mais que apenas o pensamento culto, elitizado, acadêmico seja capaz de produzir discursos, e o povo, as “massas” devam “consumir” tais discursos de forma alienada52. A prática discursiva da ciência se debruça sobre as diversas práticas discursivas do “ordinário”, não para explicá-las, mas para “encontrar-se” com elas, ou encontrar-se nelas. Para encontrar lógicas próprias e assim redescobrir as próprias lógicas; para assumir-se ideológica e debruçar-se sobre as condições que a produziram. Resumindo: considera-se que não há um espaço privilegiado de “produção discursiva”, reservando aos demais espaços o simples “consumo”: todas as práticas discursivas são instâncias válidas de produção de discurso. 52 É de Foucault ( 1995) a concepção de processo discursivo como produção,circulação e consumo. 102 b) a segunda, decorrente da primeira, é que se abre a possibilidade de estudar os processos de reconhecimento dos discursos, para além do simples consumo. É Verón (1980, p. 190;2004, p.51-54) que propõe essa redefinição do pólo discursivo que Foucault chamou de “consumo”, levando em conta que qualquer texto pode ser lido de várias maneiras, pode gerar várias “gramáticas de reconhecimento”, em “condições de reconhecimento” diversas. Importa então analisar não só as condições de produção dos discursos, mas também as de reconhecimento: e é na defasagem entre um e outro processo que se pode definir “circulação”. Reconhecer um discurso implica numa posição diferente daquela do consumir (ainda que não se exclua a possibilidade desta)53; implica numa reconstituição das “regras de ‘leitura’ ou de interpretação desse discurso” (VERÓN, 2004, p. 264). Tem a ver com poder: “em análise dos discursos, ‘poder’ é o nome do sistema de relações entre um discurso e suas condições (sociais) de reconhecimento. O conceito de ‘poder’ diz respeito, portanto, à problemática dos efeitos de sentido dos discursos” (VERÓN, op.cit., p.59). c) A reconstrução das regras de leitura do discurso significa que são estabelecidas relações entre enunciados, o que, no dizer de Foucault, implica em definir regularidades, certa ordem, certo funcionamento entre “os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas” (1995, p.62): implica em configurar formações discursivas. d) os discursos não são monolíticos, não são a expressão do pensamento de um sujeito: são arenas de disputa, “locais” de confronto. Assume-se de Bakhtin as noções de polifonia, da heterogeneidade do discurso, da presença do outro no interior do discurso (BAKHTIN, 2003). 53 “Do ponto de vista teórico, a posição do analista, do observador, não coincide com a do ‘consumidor’ dos discursos; um e outro não fazem exatamente a mesma leitura. A leitura do analista é mediada pelo seu método e pelos instrumentos que ele aplica às superfícies discursivas. Essa mediação afeta o discurso analisado no poder do mesmo: há um fenômeno do poder-crença que é próprio do ‘consumo’ e que é destruído pela análise. Sendo assim, quando um analista se propõe a reconstruir uma gramática de reconhecimento de um discurso ou de um tipo de discurso, sua leitura, mesmo não coincidindo com a leitura do consumidor, tem como objetivo reconstituir esta última”(VERÓN, op.cit, p.70) 103 O trabalho da análise de discurso se concentrará, nesse modo de compreendê-lo e de operar com ele, nos “pontos de deriva” (PÊCHEUX, 2006, p.53), nos desvios (VERÓN, op.cit., p.68), nos deslocamentos que a prática imprime em todo enunciado fazendo-o derivar para um outro; nas marcas que certos discursos deixaram na produção de um terceiro e na postulação de efeitos de sentido, já que a análise é uma leitura “em reconhecimento”. A aproximação com Bakhtin, aqui, tem a ver com a questão da intertextualidade, isto é, com a idéia de que todo discurso é um diálogo com muitos outros discursos, que no interior do texto muitos textos emergem ou são sufocados, muitas vozes entram em confronto (BAKHTIN, 2003), e também com a noção de gênero do discurso, a qual, segundo Brait (2003, p.26), tem relação com as condições de produção, de circulação e de recepção dos discursos, por se constituírem e atuarem em esferas de atividades específicas. Creio que, feitas essas escolhas, seja possível retornar ao ponto de onde parti: como relacionar a produção de Vigotski com esse desenrolar da análise de discurso na versão chamada francófona? Apontarei, resumidamente, alguns pontos de encontro. Vigotski deixou em aberto, em sua obra, e o reconhece explicitamente, a necessidade de investigar como ocorrem as operações implicadas no processo de interconstituição da consciência e da realidade (2000, p.485). Considera suas investigações sobre pensamento e palavra como introdutórias a esse grande programa de pesquisa. Ainda que o imaginasse como um trabalho da psicologia em construção, Vigotski não teve nenhum problema em transitar pela lingüística, pela literatura, pela antropologia, na busca de referenciar suas escolhas teóricas. Não seria estranho para ele que uma teoria dos discursos ou que uma sociologia viesse a responder, à sua moda, aquela questão. Resumirei, portanto, da seguinte forma os pontos de encontro que teci entre uma psicologia vigotskiana, a sociologia de Bourdieu e a análise de discurso baseada em Pêcheux e Foucault, enriquecida pela contribuição de Bakhtin: 104 a) Os discursos são o produto de práticas54: não apenas da ação humana em geral, mas de uma ação específica: a ação de produzir discursos. Essa prática é discursiva, isto é, é ferramenta e é produto a um só discursiva), tempo. O tendo empenho como matéria em produzir prima “realidades” “realidades” já (prática produzidas (apropriadas/objetivadas), é o próprio processo de interconstituição do que Vigotski chamou consciência e realidade: o processo em que psiquismo e mundo se interconstituem. b) O discurso é histórico, como queria Vigotski (2000): o que se diz é o que tem possibilidade de ser dito, o que é legítimo, razoável, aceitável dizer naquele momento histórico, naquele determinado feixe de relações de poder (Foucault, 2006). A prática discursiva que o produz também tem que ser histórica: o “como” se age discursivamente, como é adequado e legítimo dizer/pensar, o como dizer/pensar o que não é ainda adequado e legítimo, mas tem potencial de vir a ser: tudo isso se configura nas condições históricas de vida dos falantes, dos enunciadores do discurso. c) Para a análise do discurso de que tratamos aqui, o discurso não provém do sujeito, não é sua obra, mas é produzido nas relações (assimétricas) entre os discursos já produzidos e determinada prática discursiva, em determinadas condições de produção, e podendo criar um leque de efeitos de sentido. Para Vigotski, subjetividade se constitui na relação com objetividade; portanto na relação intersubjetiva. A palavra para ele também não provém do sujeito, entendido com entidade isolada, já que Vigotski sequer reconhece tal entidade isolada: não há como conceber o indivíduo em si, nem no que se refere à constituição psíquica, nem no que se refere à produção discursiva. Discurso aqui é compreendido como processo que perpassa as falas, os textos, a produção de imagens: é produção coletiva, sócio-histórica. Desse ponto de vista, 54 Diz Verón (1980, p.81) a esse respeito: “As operações produtoras de significação no seio do discursivo, isto é, as operações de investimento do sentido nas matérias significantes são, ao mesmo tempo, práticas sociais específicas”. 105 supor processos de conscientização e “inconscientização”, que ocorrem numa configuração individual, não pressupõe que tenham gênese e desenvolvimento individualizados. d) É na análise do modo com operam as práticas que se pode sair da oposição entre consciência e realidade, entre interioridade e exterioridade. Basta, como dizia Bourdieu, “ir ao modus operandi das práticas”, “para escapar ao “realismo da estrutura” (BOURDIEU, 1994, p.60). No caso das práticas discursivas, isso quer dizer buscar suas coerções de engendramento, suas regras de funcionamento, mas também suas estratégias de resistência, e isso só pode ser feito na busca da interdiscursividade que constitui cada discurso (VERÓN, 2004, p.69). Assim como a palavra é “endereçada”, “se dirige a”, ela o faz dentro de estratégias específicas, que respondem a relações específicas:, responde, contrapõe-se, justifica, oculta, sobrepõe-se (BAKHTIN, 2003; VIGOTSKI, 2000), também as práticas que a produzem se guiam (conscientemente ou não) pelo modo como se configuram essas relações. e) Deixar de supor um sujeito enquanto origem do discurso, não implica ignorar a existência de um agente da prática discursiva, o qual opera a partir de determinadas posições, vinculadas a um habitus, mas também toma atitudes que modificam essas posições e esse habitus. As possibilidades de transformação e reprodução nas práticas têm a ver com a flexibilização desse habitus, isto é não têm a ver somente com processos de “conscientização”, mas também de automatizações das mudanças. O processo de internalização implica os dois processos; isso quer dizer que superar a alienação discursiva exige voltar-se sobre a própria prática discursiva, sobre os processos de produção e reconhecimento de discursos que configuram a cada um como agente. f) Voltar-se sobre as práticas discursivas supõe, portanto, dois movimentos, os quais têm a ver com a busca e a intenção de superação por parte desse agente: o primeiro, estabelecer relações entre 106 enunciados, entendendo tais relações como formações discursivas (FOUCAULT, 1995); o segundo, estabelecer relações entre tais formações e determinadas matrizes de percepção, ação e apreciação (BOURDIEU, 1994), entre formação discursiva e habitus. Ao invés de opor um conceito ao outro, entendê-los como movimentos diferentes, porém complementares, de um percurso metodológico. No primeiro movimento, romper com a experiência em si, desvelando o sistema que a regula; no segundo, romper com a naturalização dessa experiência, buscando sua relação com o modo de engendramento das práticas (BOURDIEU, 1994). Não tenho dúvidas de que as noções de discurso e de prática discursiva, tais como descritas, servem melhor ao projeto vigotskiano, na atualidade, do que a noção de signo. Quando Verón sugere que a semiologia dos anos 80 deveria abarcar “o processo que vai da produção de sentido até a ‘consumação’ de sentido, sendo a mensagem o ponto de passagem que sustenta a circulação social das significações” (2004, p.216), resume, no meu ponto de vista, a elaboração atual da velha e sempre relegada questão que propunha Vigotski: o problema de como ocorrem as operações implicadas no processo de interconstituição de consciência e realidade. Finalmente, para concluir este momento das considerações mais propriamente teórico-metodológicas, e remeter para o processo de configuração das ferramentas metodológicas adequadas a esta pesquisa, duas questões serão tratadas aqui (ainda que tenham surgido em vários momentos do texto), para esclarecer o modus operandi desta minha prática discursiva concreta: considerações sobre a dupla função e configuração dos conceitos e sobre a superação do esquecimento das condições de produção e dos modos de operar de uma prática discursiva. 107 3.6.1. Conceito como operador ou como representação de uma realidade Bourdieu comenta, em sua análise do modo de pensamento objetivista, que os etnólogos estruturalistas se apropriaram de uma terminologia cujas condições de produção eles nem sempre sabiam reproduzir, e deixaram de fazer a “reflexão epistemológica das condições e dos limites de validade de uma transposição da construção saussuriana” (1994, p.50) Esse trecho me chama a atenção porque Bourdieu está defendendo o ponto de vista de que a validade de um conhecimento tem a ver com a análise de suas condições de produção, e isso implica supor uma história do conceito, como queria Vigotski55. Analisar as condições de produção de um conceito parece ser retomar as condições de possibilidade de elaboração teórica na qual ele fazia sentido como operador. Transformada em representação do real, coisificada, a palavra aparece dissociada de suas condições de produção: é naturalizada. Bourdieu se refere a um “inconsciente epistemológico” (1994, p. 50): os atos pelos quais a teoria construiu seu objeto são esquecidos, restando apenas o objeto, que aparece como universal. Podese dizer que houve uma “apropriação alienada” de uma terminologia. Palavras que eram operadores (tinham a função de nomear determinada elaboração teórica) ganharam substância e se transformaram em expressão da realidade. Deixaram de ser considerados produtos de uma determinada prática discursiva, elaborada em determinadas condições. O conceito entendido como operador, elaborado na práxis discursiva como ferramenta, tende a se enrijecer quando adquire poder explicativo, 55 Abbagnano define conceito, em termos gerais, “como todo processo que torne possível a descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis” (2000, p.164). Tal noção, segundo o autor citado, dá origem a duas questões; acerca da natureza do conceito e acerca das funções do conceito. Sobre a natureza, as duas principais soluções para a questão definem conceito ou como a essência das coisas, ou como signo. Sobre as funções, a primeira definição de natureza supõe uma função final para o conceito (o conceito serve para “exprimir ou revelar a substância das coisas”), enquanto que a segunda supõe uma função instrumental (o conceito descreve, classifica, organiza e antecipa). A visão de Vigotski, que aqui adoto, se alinha à segunda solução, por supor uma historicidade no conceito, entendendo-o como produção humana, mas não supõe conceito como processo, e sim como elemento que desencadeia um processo. 108 ou seja, quando se ganha legitimidade e autoridade nas relações de poder. Dentro dessa lógica, para analisar o produto de uma prática discursiva é necessário fazer aquilo que Foucault propunha: suspender o esforço interpretativo (a busca do sentido último do que é dito); contrapor a isso um esforço de perceber em que condições e dentro de que relações se constituíram aquela produção, sua estrutura e seus conceitos. Buscar a gênese da elaboração conceitual, no meu entendimento, significa retomar sua potencialidade de operador (em vez de pensar “signo é...”, pensar “signo se constitui nas seguintes condições, em polarização com tais e tais outros operadores, no esforço objetivo de..., dentro de tal ação”...). Para poder compreender uma totalidade é preciso vê-la em suas relações. Os conceitos, tidos como totalidade, passam a funcionar como operadores quando “vistos” numa totalidade maior. Por exemplo, habitus funciona como operador quando Bourdieu o usa para mostrar a possibilidade de transitividade entre estrutura e superestrutura. Funciona como conceito quando define uma totalidade (sistema de...; conjunto de...). Diluído em suas fronteiras, se aproxima do pólo do movimento. Enrijecido em sua identidade, se aproxima do pólo do estático (ou da inércia). Isso tem relação com apropriação/objetivação de objetivações, isto é, tem a ver com internalização. Uma tendência a internalizar conceitos como coisas, expressão da realidade, verdade, pode indicar condições de produção/circulação/consumo dos discursos fortemente coercitivas, ou alienantes; isso implica, creio eu, em pouca mobilidade das operações discursivas, e implica num funcionamento tendencialmente mais automático e inconsciente da prática discursiva. Em condições de menor coerção, é possível internalizar operadores, o que permite maior flexibilidade para não só entender as relações já elaboradas por teóricos autorizados, mas estabelecer novas relações de modo criativo, criticar as 109 estruturas conceituais já montadas, flexibilizá-las, atribuindo-lhes poder operatório. Esse entendimento das definições de conceito ajuda a entender a distinção que Verón (1980, p.102-116) faz entre ciência e ideologia. Para ele, a dimensão do ideológico perpassa qualquer tipo de conhecimento: tem a ver com as coerções, com as relações de poder. Não é nos conceitos, então, que se pode localizar o ideológico, embora se possa rotular certos conteúdos como “ideológicos”. Um discurso ideológico pode ter a mesma rede conceitual do discurso científico, não é enquanto conteúdo que ele se distingue do discurso científico: é no fato de que ele propaga a si mesmo como verdade (conceito acabado e definitivo) enquanto o científico propaga a si mesmo como possibilidade, reconhecendo o fato de que não pode deixar de ter função ideológica (já que não é a prática do pesquisador que determina isso). Uma prática discursiva lida, portanto, com conceitos, podendo entendê-los como operadores ou como expressão do real. Quanto mais entendê-los desse ultimo modo, mais rígida será (reproduzirá verdades); quanto mais lidar com operadores, mais flexível será (reproduzirá possibilidades). Não pode se dar ao luxo de só reproduzir possibilidades, uma vez que é ação concreta, voltada para objetivos criados pelas necessidades vitais dos agentes concretos. Precisa produzir e reproduzir “verdades”, tanto aquelas aceitas no universo de sentidos onde aquela prática “faz sentido”, quanto aquelas provisórias, ilegítimas, não- autorizadas (ideologias não-dominantes estarão aí sendo gestadas). 3.6.2. O esquecimento/desvelamento das condições de produção e dos modos de operar da prática discursiva Orlandi (2005, p.34-6) diz, citando Pêcheux, que é possível distinguir, no discurso, duas formas de esquecimento. Uma delas é o 110 esquecimento enunciativo: ao escolhermos um modo de dizer, esquecemos todo um leque de outros modos possíveis. O segundo é o esquecimento ideológico: “por esse esquecimento temos a ilusão de ser a origem, do que dizemos, quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes” (ORLANDI, 2005, p.35). Esse segundo esquecimento tem a ver com aquilo que diz Bourdieu (1994, p.50) sobre inconsciente epistemológico. Legitimada a construção teórica, tende a ser esquecida a prática que a construiu; aliás, pode ser que o esquecimento de tal prática seja inclusive condição de legitimação daquele conhecimento. Orlandi afirma que o esquecimento é estruturante: “as ilusões não são um defeito, são uma necessidade para que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos” (2005, p.36). o funcionamento da linguagem exige, portanto, a ilusão de um sujeito produtor de discurso; o reconhecimento de um conhecimento como válido exige que ele se descole dos sujeitos e das circunstâncias em que foi produzido, ganhando a ilusão da universalidade. Analisar os discursos implica num esforço de trazer para o nível da consciência, dentro dos limites do possível, tais ilusões, já que o fato de “desaparecerem” num inconsciente as condições de produção e os modos de operar do discurso autorizado não implica nem que a prática discursiva que acontece no presente possa abrir mão de realizar operações (utilizar-se de operadores: não há funcionamento discursivo sem eles) ao produzir discursos, nem que esteja ela própria separada de determinadas condições de produção. Imersa num habitus, a ação de produzir discursos opera geralmente de modo inconsciente, automatizado, mas é possível a construção de um dispositivo de análise (ORLANDI, 2005, p.59-62) que explicite não um sentido “verdadeiro”, mas sua materialidade. O agente da prática discursiva pode se aperceber da própria prática: tanto das operações colocadas em movimento quanto das condições que fazem com que tais operações sejam adequadas e legítimas, ou o contrário. 111 Uma de suas possibilidades-limite de operação é de forma alienada. Não é difícil imaginar as linhas gerais desse modo de operar: trata-se de um esforço de articulação entre todos fechados; quando esses todos parecem estar em oposição, exige escolhas entre um e outro (atribui um estatuto de verdade e a outro estatuto de mentira, a um o estatuto de “certo” e ao outro o de “errado”, “legítimo” versus “ilegítimo”, e assim por diante...); subordina uns conceitos a outros e só a eles. Procura definições fechadas e não as questiona. Explica certos recortes da realidade e só eles com determinada teoria, imaginando uma teoria diferente e recortada para cada campo. O discurso produzido é vinculado de forma fechada a determinado autor, ou a determinado campo. As condições de produção dos discursos em que tal modo de operar faz sentido são aquelas em que a linearidade, as totalidades fechadas, as oposições irredutíveis fazem sentido, porque garantem, na medida em que obscurecem a possibilidade de produção de novos e diferentes discursos, um determinado tipo de movimento: o da reprodução. Uma prática discursiva ganha rumos transformadores em seu movimento quando percebe a si mesma como prática. Recordo aqui a definição de alienação em Marx: não é apenas a separação entre o homem e o que ele produz, mas também é a crença produzida no homem de que ele está definitivamente separado de sua atividade. Da mesma forma, uma prática discursiva alienada não é uma que separa teoria e prática; é uma que imagina que teoria e prática possam ser separadas. Quando, por meio do próprio exercício de ser o que faz, (produzir discursos), o agente da prática se descobre teorizando, e não reproduzindo teorias já prontas, percebe então que está fazendo coisas, pensando sobre elas e falando sobre elas, e que tudo isso é uma coisa só. Descobre que é capaz não apenas de reproduzir verdades, que é capaz de lidar com as coerções. Descobrindo que se insere num habitus, se dilui em suas fronteiras e dilui as fronteiras desse habitus, percebendo a própria 112 prática como operadora em relação ao habitus e a este como operador com relação aos campos da produção do simbólico e do poder. Uma das possibilidades de reforçamento dessa prática pode ser vista como “interna”: suas potencialidades se ampliam e renovam; ela ganha em eficácia e em competência. Outra possibilidade pode se situar no pólo do “externo”, do interdiscursivo: ainda que não responda às exigências de reprodução do status quo para ser valorizada, ela pode responder a exigência de grupos e espaços, nos quais o agente da prática é valorizado: nos movimentos sociais, nos espaços vinculados à produção cientifica, em tradições familiares e grupais de resistência. O esquecimento de que fala o titulo deste item, a alienação a ele vinculada, ainda que se configurando em condição para a “constituição dos sujeitos e dos sentidos” (ORLANDI, 2005, p.36) não são o destino definitivo de toda prática discursiva. Pelo contrário, podem ser momentos históricos necessários à constituição de outros momentos de desvelamento das práticas e elaboração de novas práticas. Haverá quem argumente, já foi dito, que não se pode reduzir as práticas humanas ao discursivo. Sem dúvida, mas não há que negar o discursivo em toda prática humana. Se um redimensionamento do discursivo enquanto prática pode contribuir para um redimensionamento das práticas humanas como um todo, é coisa ainda a ser investigada e experimentada. Mas que é uma possibilidade fascinante, isso é. A análise que apresento a seguir pretende se juntar aos esforços nessa direção. 4. A PRÁTICA DISCURSIVA COMO FERRAMENTA E PRODUTO: UM EXERCICIO DE CONSTRUÇÃO DE DISPOSITIVOS DE TRABALHO Para apresentar a maneira como foram construídos os dispositivos de análise e interpretação, considero necessário retomar e esclarecer algumas questões, relacionadas tanto à forma como o objeto foi sendo construído e reconstruído ao longo do trabalho quanto as possibilidades mais propriamente técnicas que foram, nesse processo, sendo elaboradas. Tendo eleito as relações entre os discursos sobre a inclusão como objeto de pesquisa, tive que aprofundar-me nas teorias a respeito de discurso, e isso fez com quem me apercebesse de que o objeto e as técnicas para lidar com ele eram de uma mesma ordem: para analisar o produto de uma prática discursiva eu precisava lançar mão de uma outra prática discursiva. Isso se constituiu num problema e na sua própria solução, uma vez que os estudos a respeito do objeto eram ao mesmo tempo aqueles necessários a subsidiar a elaboração dos dispositivos de análise e interpretação. Entre a quase infinidade de redes discursivas imbricadas na questão da inclusão, precisei recortar os campos que diziam respeito à inclusão escolar. Por campos, estou entendendo um “sistema de relações constitutivo da classe de fatos (reais ou possíveis) de que [o objeto] faz parte sócio-logicamente” (BOURDIEU, 2005, p.183). Desse ponto de vista, o recorte dos campos acadêmico, escolar e governamental não foi propriamente uma escolha, mas um reconhecimento de que se tornava impossível tratar dos discursos produzidos num campo sem remeter ao outro. Segundo Bakhtin, “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos 114 gênero do discurso” (2003, p. 261). O processo de escolha, dentro de cada um desses campos, do gênero a ser analisado tornou-se bastante complexo. O campo governamental tem uma razoável produção de material nesse terreno: leis, recomendações, instruções, manuais, entre outros formatos. Baseei minha escolha na questão do destinatário do discurso, considerando a interdiscursividade que está colocada no problema: escolhi uma coleção de manuais que se propõe a capacitar o professor para tornar sua atividade inclusiva, já que é o professor o enunciador do outro discurso a ser analisado. No campo acadêmico, a produção é muito mais vasta, mais diversificada e muito mais complexa. Nos últimos anos, publicou-se muito no Brasil, na área do pedagógico, a respeito de inclusão. Considerando a dificuldade de selecionar um artigo ou grupo de artigos representativo do campo, e analisá-los na integra, preferi realizar um recorte específico, dentro do gênero “artigo de divulgação científica”: em três publicações que selecionaram artigos de autores que são referência na área, apresentados em encontros também nacionalmente reconhecidos como representativos, recortei os trechos que definiam inclusão, movimento inclusivo, escola inclusiva, ensino inclusivo, prática inclusiva e discurso inclusivo. Desse modo, tive acesso a um leque maior de produções. Em cada recorte, considerei aquilo que Bakhtin (2003, p.275-287) define como os limites do enunciado: a possibilidade de alternância dos falantes e a conclusibilidade, peculiaridade do enunciado que assegura a possibilidade de resposta. Num artigo científico, a exauribilidade, que é um elemento importante da conclusibilidade, é naturalmente relativa, mas é mais fácil de ser alcançada num trecho dele que define um conceito: em certo momento, o autor se refere ao termo inclusão em termos de definição: “inclusão é...”, “por inclusão se entende...”, “inclusão implica em...” ou outras expressões correlatas. Também ajuda a forma de 115 acabamento do gênero: definição é um subgênero com formato muito específico,o que permite seu recorte sem grandes perdas de sentido. Esses dois primeiros gêneros selecionados podem ser considerados, segundo a definição de Bakhtin, como gêneros secundários, no sentido de que “surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito _ artístico, científico, sociopolítico, etc.” (BAKHTIN, 2003, p.263) No campo escolar, adotei uma espécie de entrevista dialogada, cuja estrutura foi sendo negociada no próprio processo do entrevistar. Considerei a entrevista dialogada como um gênero que transita entre o secundário e o primário: ao mesmo tempo em que é um diálogo face a face, influenciada pelas “condições de comunicação discursiva imediata” (BAKHTIN, 2003, p.263), também é uma situação estruturada em que os papéis (de entrevistado e entrevistador) estão historicamente estabelecidos, direcionando as expectativas de quem fala com relação a quem ouve (é uma elaboração do campo da ciência, portanto uma elaboração complexa). Considerei que cada gênero de discurso tem sofre suas próprias coerções de engendramento (VERÓN, 1980), da mesma forma como, em cada campo, se estabelecem relações especificas que têm a ver com disputas de poder, com correlações de força, com as posições que cada grupo de agentes ocupa dentro da estrutura do campo, com o fato de que “ele é determinado em sua estrutura e em sua função pela posição que ocupa no interior do campo do poder” (BOURDIEU, 2005, p.190). Um trabalho analítico que leve em conta essas duas elaborações (campo e gênero) precisará dar conta da montagem de certos quadros, certas configurações _formações discursivas_ no interior de cada gênero: quais os modos discursivos de operar; que vozes entram em embate e em diálogo no interior do gênero e do campo, que relações se pode perceber entre essas vozes... 116 Pressupondo relações assimétricas no interior dessas configurações, estabeleci distinção entre vozes dominantes e vozes recessivas, assumindo estas últimas como vozes que se mantêm vivas no discurso, ainda que em posição de desvantagem. Uma voz recessiva é fora de moda, out. Já foi superada, se diz na academia. É politicamente incorreta. É de outros tempos (anacrônica). É de outros espaços. No entanto, é renitente. Para quem se dispõe a escutar outras vozes que não as dominantes, ela continua ali, esperando uma brecha. Perceber as vozes recessivas pode ser fundamental na organização de um discurso que se pretende dominante, já que permite tentar calá-las antes mesmo que possam emergir. Também pode ser muito importante como parte de uma estratégia para fazer frente à dominação das vozes _ no dizer de Foucault_ autorizadas, legitimadas socialmente. É uma noção importante numa concepção em que o poder está em permanente disputa; recessividade pode ter a ver com os conteúdos (coisas que podem/devem, não podem/não devem ser ditas),com os modos de operar (jeitos de dizer que são/não são adequados), com os estilos, etc. Tais modos de operar, tais relações entre vozes dominantes e recessivas, não podem ser “mostrados” como fatos, elementos recortáveis para uma análise fria e distanciada: só podem se configurar como efeitos de sentido produzidos num outro discurso: aquele que assumo como pesquisadora. E assim que Verón define efeito de sentido: “Vejo mal, efetivamente, o que é um efeito de sentido de um discurso, do ponto de vista semiótico, se não é um outro discurso no qual se manifesta, refletese, inscreve-se, o efeito do primeiro” (VERÓN, 2004, p.237; grifo do autor). Assim, o esforço analítico ocorre no interior de relações interdiscursivas56. 56 Ver Verón (2004, p.69-70): “Se a análise dos discursos é uma análise de diferenças, é porque os discursos sociais são sempre produzidos (e recebidos) dentro de uma rede extremamente complexa de interdeterminações. [...] Na verdade, pode-se dizer que todo discurso produzido constitui um fenômeno de reconhecimento dos discursos que fazem parte de suas condições de produção. Do mesmo modo,uma gramática de reconhecimento só existe sob a forma de discursos produzidos, a partir dos quais se pode tentar reconstituir tal gramática”. 117 Minha intenção foi, portanto, analisar o modo de funcionamento dos discursos (ORLANDI, 2005, p.86). Por modos de funcionamento do discurso entendo a forma como os elementos que constituem o discurso (considerando aí tanto as temáticas tratadas como os modos de operar) relacionam-se entre si e com suas condições de produção. Fiz a opção de analisar esse modo de funcionamento de duas formas: primeiro, postulei, com base nas marcas do texto, operações discursivas, nos termos propostos por Verón: Quando fazemos análise dos discursos, descrevemos operações [...]. Uma superfície textual é composta por marcas. Essas marcas podem ser interpretadas como os traços de operações discursivas subjacentes, remetendo às condições de produção do discurso, cuja economia de conjunto define o marco das leituras possíveis. As operações não são, portanto, elas próprias visíveis na superfície textual: elas devem ser reconstruídas (ou postuladas) a partir das marcas na superfície (VERÓN, 2004, p.65-68). Por exemplo, no texto governamental, “estimular a participação de todos os professores nas sessões de leitura dos documentos” (C1, p.13) destaquei como marcas no texto o verbo de ação estimular, os substantivos participação indireto).Que operações (objeto direto) e professores (objeto podem subjazer à escolha de um verbo como esse, com relação a esses objetos? Para evidenciá-las, é preciso realizar outras operações: esclarecer a que sujeito o operador se refere, qual é o objeto do verbo. O sujeito a quem esse verbo se refere é o formador: é a ele que cabe estimular a participação. O objeto são os professores: eles é que devem ser estimulados a participar. Temos então uma operação discursiva na qual alguém (o professor) precisa ser estimulado (pelo formador) a participar. Essa operação pressupõe uma expectativa com relação aos professores: de que eles terão uma atitude passiva diante das sessões de leitura. Num segundo movimento, relacionei tais operações com as temáticas a que se referem, considerando que o conteúdo dos enunciados é visado de uma maneira especifica quando se presta atenção no 118 dispositivo de enunciação, nas operações enunciativas realizadas (VERÓN, op.cit., p 219). No caso acima, a temática da participação sofre um determinado tratamento no conjunto do texto: ela é valorizada quando sob controle (deve emergir sob coordenação de formadores e coordenadores e produzir os resultados previstos). Desse modo, modo de operar e temática podem ser relacionados: dentro de uma lógica do controle, faz sentido que se pressuponha a passividade do professor, assim como se planeje formas de fazê-lo sair dessa passividade (da direção dos objetivos previstos). Para lidar com as temáticas, explicitando suas formas de tratamento, recorri a Orlandi (op.cit., p. 60), a qual afirma que o analista precisa criar um dispositivo de análise que lhe permita trabalhar “não numa posição neutra, mas que seja relativizada em face da interpretação”; o esforço de incluir, nesse dispositivo, a questão das temáticas, levou-me a organizar minha leitura do texto em quatro dimensões diferentes, propostas pela mesma Orlandi (op.cit.,p.59): o que é dito, o que não é dito, o que é dito nas entrelinhas, outras formas de dizer o mesmo. A busca do não-dito, do dito de outro modo procura responder ao esquecimento número dois de que fala Pêcheux (apud ORLANDI, op.cit., p.34), esquecimento que é da ordem da enunciação: ao dizer, “pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras, que só pode ser assim”. O modo de dizer, então, a escolha das palavras, tem a ver com os limites impostos por determinadas formações discursivas. A busca do não dito, dos dizeres esquecidos não se faz a partir de uma dimensão extradiscursiva, mas na própria elaboração de um novo texto, que é parte de um discurso em reconhecimento, como propõe Verón (1980, p.190; 2004, p.51;233;264). De acordo com este autor, considerar os efeitos de sentido que se constituem nesse esforço de desvelar o esquecimento enunciativo como parte de um sistema produtivo implica levar em conta, primeiro, a existência de uma determinada 119 gramática de produção, a que se quer evidenciar pelo uso do dispositivo de análise e interpretação; segundo, a possibilidade de várias gramáticas de reconhecimento, uma das quais se está construindo no próprio esforço de interpretação. O analista dos discursos não pode fazer senão leituras dos mesmos. Melhor dizendo: o analista de discursos, por definição, sempre é colocado em posição de reconhecimento. Na verdade, o discurso analisado [...] é uma condição de produção do discurso produzido pelo analista. Do ponto de vista teórico, a posição do analista, do “observador”, não coincide exatamente com a do consumidor dos discursos; um e outro não fazem a mesma leitura. A leitura do analista é mediada por seus métodos e pelos instrumentos que ele aplica às superfícies discursivas. Essa mediação afeta o discurso analisado no poder do mesmo: há um fenômeno de poder-crença que é própria do “consumo” e que é destruído pela análise (VERÓN, 2004, p.70; grifo do autor). No empenho de amalgamar as propostas de Orlandi e de Verón, então, busquei marcas no texto que funcionassem como traços de operações discursivas subjacentes na primeira das dimensões (o que é dito) e postulei operações discursivas com base nesses traços, atingindo assim as dimensões do que não era dito e do que era dito nas entrelinhas, e propondo outras formas de dizer. Não apenas postulei operações discursivas no texto analisado, portanto: criei um modo de operar, em minha prática discursiva, para poder lidar com essas operações. Do entrelaçamento dessas operações discursivas (as do enunciador e as minhas, como analista) sugeri efeitos de sentido, produzidos em reconhecimento (VERÓN, op.cit., p.51-52), buscando atravessar “o efeito de transparência da linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do sujeito” (ORLANDI, op.cit., p.60). Às estratégias do dizer, contrapus as estratégias do evidenciar o não-dizer, do dizer de outro modo. Tratava-se uma prática discursiva (a minha, de pesquisadora) tomando uma outra como objeto, fazendo um discurso “em reconhecimento” e, portanto, não se pode falar de verificação ou de descoberta, mas dos efeitos discursivos que foram sendo construídos na 120 interdiscursividade57. Descrição e interpretação se entrecruzaram, embora distintas; o lugar de uma e de outra nas práticas de análise de discurso, diz Pêcheux, deve ficar claro: Desse ponto de vista [de que toda descrição oferece lugar à interpretação, porque não pode evitar estabelecer ligações com outros discursos], o problema principal é determinar nas práticas de análise de discurso o lugar e o momento da interpretação, em relação aos da descrição: dizer que não se trata de duas fases sucessivas, mas de uma alternância ou de um batimento, não implica que a descrição e a interpretação sejam condenadas a se misturar no indiscernível (PECHEUX, 2006, p.54). Assim, parti daquilo que está dito no texto: descrevi. Mas nesse dito já entrevi não-ditos, modos de dizer, processos parafrásticos _dizer o mesmo de forma diferente_ e polissêmicos _ “deslocamento, rupturas de processos de significação” (ORLANDI,2005, p. 36-37): interpretei. Portanto, o interpretar permeou todo o processo de descrição. Os efeitos discursivos produzidos não foram “achados” no texto, ainda que suas marcas ali estivessem e pudessem ser apontadas: foram produzidos nesse “batimento” de que falava Pêcheux. Para elaborar os quadros interpretativos de cada gênero, propus então enfeixamentos das temáticas tratadas e dos modos de operar. Ou seja, trabalhei tanto com os conteúdos dos enunciados quanto com as operações enunciativas, de modo que as temáticas estão fortemente imbricadas com os modos de operar do discurso. Se os enfeixamentos, tanto das temáticas quanto dos modos de operar, são feitos “de fora”, por quem está na posição de pesquisador, não são feitos da forma exigida pelos desejos de quem pesquisa. Não há que negar que eles só podem ser feitos porque algo nas configurações dos efeitos de sentido os “atrai” para uma mesma “rede semântica”, e isso certamente tem relação com as posições daquele modo de operar, 57 Ver Verón, (2004, p.69-70): “Se a análise dos discursos é uma análise de diferenças, é porque os discursos sociais são sempre produzidos (e recebidos) dentro de uma rede extremamente complexa de interdeterminações. [...] Na verdade, pode-se dizer que todo discurso produzido constitui um fenômeno de reconhecimento dos discursos que fazem parte de suas condições de produção. Do mesmo modo, uma gramática de reconhecimento só existe sob a forma de discursos produzidos, a partir dos quais se pode tentar reconstituir tal gramática”. 121 temática ou gênero de discurso no campo relacional. Busquei captar esse processo no duplo movimento metodológico de configurar formações discursivas e relacionar tais formações com um habitus. 4.1. APLICAÇÃO DO DISPOSITIVO DE ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO AO DISCURSO GOVERNAMENTAL Para aclarar a utilização do dispositivo de análise e interpretação, aplicando-o ao gênero escolhido, dentro do campo governamental, considero necessários alguns esclarecimentos prévios referentes a autoria, texto, formato do gênero e delimitação do corpus de pesquisa. Considerei como governamental ( ou oficial, já que usei os dois termos como sinônimos) o texto assumido explicitamente por alguma instância de governo58 , neste caso a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (Brasil), daqui por diante referida como SEESP/MEC, e tal texto, assim assumido, como uma (entre as muitas) manifestação concreta do discurso oficial. Minha escolha do discurso governamental se fundou no debate que essa esfera de uso da linguagem necessariamente estabelece com os outros dois gêneros: o discurso acadêmico e o discurso escolar organizado nas falas dos professores, em cuja configuração polifônica eu encontrei também os ecos do enfrentamento e diálogo com as instâncias e relações de poder que lhes dizem respeito59. O discurso oficial pode assumir configurações diversas, organizar em diversos gêneros: pode ter a forma legal (diretriz, lei, 58 Para definir que um texto é assumido explicitamente como oficial, considerei a presença de marcas como a assinatura da autoridade, o logotipo do governo e a referência oficial na ficha catalográfica. 59 “A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a ‘ideologia do cotidiano’, que se exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas” (YAGUELLO, in BAKHTIN, 2004, p.16) 122 decreto) a forma de instrução, a forma de manual, a forma de comunicação em eventos, entre tantas. Aqui, o discurso oficial aparece sob a forma de manual prático, destinado a subsidiar a formação de professores para a construção de escolas inclusivas. A escolha desse gênero tem relação com o nível do destinatário: todo discurso é dirigido, endereçado (VERÓN, 1980, p.77; BAKHTIN, 2004, p. 112); todo texto responde em alguma medida a outros textos, assumidamente ou não. No caso deste, é dirigido intencionalmente ao professor, como se pode ler na apresentação de cada fascículo. Propõe um diálogo diretamente com os professores das escolas públicas, se apresenta como proposta para mudanças na atuação deles. Também é um texto dirigido às secretarias de educação estaduais e municipais, aos coordenadores e formadores de grupo, naturalmente, mas somente do sentido em que essas instâncias e papéis têm uma função naquilo que pode ser chamado um percurso discursivo entre a SEESP/MEC e seu interlocutor privilegiado, o professor. O endereçamento do discurso tem relação, então, com seu propósito. Sendo o produto de uma prática discursiva, uma atividade, um empenho em produzir realidades, o discurso não somente é dirigido a alguém, mas também é dirigido a algum aspecto da realidade. Para este momento inicial, basta considerar seu propósito explícito: subsidiar a construção de escolas inclusivas, propósito já estabelecido na Resolução CNE/CEB nº. 2, de 11 de fevereiro de 2001 (BRASIL, 2001). Parti desse propósito explícito para, no estudo dos traços discursivos presentes no texto, fazer emergir outras possibilidades. Minha intenção era, portanto, analisar o modo de funcionamento do discurso oficial nesse gênero específico: o formato de manual, que, nesse caso, se configura em subsídio para a formação continuada de professores e, portanto, para a prática pedagógica. Na busca de delimitar um corpus coerente e homogêneo de documentos, selecionei a coleção Saberes e práticas da inclusão (2005), composta de sete cadernos: um “Caderno do coordenador/formador de 123 grupos” (daqui em diante denominado C1), um caderno de “Recomendações para a construção de escolas inclusivas” (C2), cinco cadernos específicos, com o título geral de “Desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais” cada um se referindo a uma especificidade no campo da educação especial (alunos surdos (C3), alunos com deficiência física/neuromotora (C4), alunos com altas habilidades/superdotação (C5) e alunos cegos/baixa visão (C6)) e um “Caderno de avaliação para identificação das necessidades educacionais especiais” (C7). Para efeito desta análise, tomei, no interior da coleção, três textos centrais: C1, C2 e C7. O primeiro, por tratar das finalidades (objetivos), os quais são passíveis de confronto com o restante dos textos; o segundo, por trazer as recomendações para a construção de escolas inclusivas (fundamentos filosóficos, sociológicos, psicológicos legais) e o terceiro, por tratar da questão da avaliação, evidenciando, portanto, os valores defendidos. No nível do autor, não interessam aqui as pessoas que escreveram o texto (são diversos textos, e em cada um deles consta, na ficha catalográfica, o autor ou coordenador da equipe de elaboração), mas o fato de que o MEC o assume como seu e o destinatário o recebe como a posição oficial acerca do assunto. Diz Orlandi (2005, p.73), citando Vignaux, que há na base de todo discurso um projeto totalizante de sujeito, projeto que o converte em autor. O autor é o lugar onde se realiza esse projeto totalizante, o lugar em que se constrói a unidade do sujeito. Como o lugar de unidade é o texto, o sujeito se constitui como autor ao constituir o texto em sua unidade, com sua coerência e completude. Parto desse princípio para considerar a coleção como “um texto”60 oficial, cujo autor é o Ministério da Educação e Cultura do governo brasileiro, através de sua Secretaria de Educação Especial, embora no 60 Um texto, segundo Orlandi (2005, p.68-73), não se define pela extensão, nem por ser escrito ou oral, “o que delimita um texto é o fato de, ao ser referido à discursividade, constituir uma unidade em relação à situação”. Essa definição está de acordo com a de Verón: “Texto designa, assim, para nós, num plano empírico, aqueles objetos concretos que tiramos do fluxo da circulação de sentido e que tomamos como ponto de partida para produzir o conceito de discurso” (2004, p.71). 124 sentido comum ele se constitua de muitos textos, escritos por pessoas diferentes, provavelmente em tempos e condições diferentes. Parto também do fato que o MEC/SEESP o publica e o recomenda às secretarias municipais e estaduais visando, entre outras coisas, “evitar a fragmentação e pulverização das ações educacionais” (C1, p.7); portanto, considera-o representativo de um projeto unitário, uma totalidade. Considerar o MEC/SEESP como autor, entretanto, não implica entendê-lo como origem de sua palavra, plenamente consciente dela e de seus propósitos. O sujeito é “sujeito à língua e à história” (ORLANDI, op.cit.,p.49) ou, dito de modo bakhtiniano, o autor criador é um “modo de ver o mundo”, uma posição axiológica (FARACO, in BRAIT, 2005, p.42) O sujeito discursivo, o enunciador é pensado, aqui, como uma posição, um lugar que ocupa para ser sujeito do que diz (FOUCAULT, 2006, p.2636). O dispositivo de análise e interpretação elaborado foi utilizado, para este gênero específico, da seguinte forma: o texto foi lido integralmente e as marcas foram destacadas; cada marca foi comentada como um traço das condições de produção do discurso, destacando o que era dito ali, o que não era dito e outras formas possíveis de dizer o mesmo; os trechos onde aparecem tais traços foram transcritos na seqüência em que aparecem, com as marcas destacadas em negrito, já que as aspas foram reservadas para a citação de trechos do texto61; os traços foram “cruzados” entre si, buscando momentos e modos em que a mesma temática aparece (ou não) em lugares diferentes do texto, ou em que o mesmo modo de operar era utilizado (ou não) em temáticas diferentes. Desse processo, em que os efeitos de sentido foram sendo estruturados no diálogo/enfrentamento entre as muitas vozes que se configuram na minha voz enquanto pesquisadora e as vozes diversas que se 61 enfrentam no texto, criando um texto “em reconhecimento”, A menos que os trechos recortados se limitassem a duas linhas ou a palavras e expressões, eles ganharam o mesmo formato de citação longa, para tornar o texto menos pesado. 125 emergiram configurações que organizei sob cinco temáticas diferentes embora imbricadas: a) os disfarces e ocultamentos das relações de poder; b) a subordinação do fazer ao pensar; c) a proposta de inclusão como ponto de ruptura; d) a responsabilização do professor por todo o processo de mudança, e e) esvaziamento dos discursos recessivos. Em tais temáticas, procurei analisar os modos de operar que emergem no uso de estratégias de dizer e de não-dizer e os efeitos discursivos produzidos por esse uso e pelo modo como temáticas e modos de operar se imbricam, como organizado no capítulo 5, denominado Formação continuada de professores para a escola inclusiva: uma manifestação do discurso oficial. 4.2. ANÁLISE CONVERSACIONAL E ANÁLISE DE DISCURSO: CRIANDO UM DIÁLOGO METODOLÓGICO Para a construção do dispositivo de análise e interpretação do discurso escolar, precisei seguir um percurso diferente. Primeiro, por considerar as distinções entre língua escrita e falada, as quais “resultam de diferenças entre os processos do falar e do escrever, ou entre condições de produção do texto falado e escrito” (RODRIGUES, in PRETI 1997, p.31). Temos na língua falada características próprias, como a dialogicidade instaurada face a face, uma tendência para o nãoplanejamento e para o envolvimento entre os interlocutores, as quais não são encontradas no escrito (op.cit, p.17-32). Tais diferentes processos certamente sofrem coerções diferentes. O discurso em sua forma falada está em produção naquele momento, portanto é muito mais sensível ao contexto em que ocorre, sofre reorganizações por causa das expectativas com relação ao interlocutor, 126 daquilo que o falante deseja evidenciar ou ocultar, dos riscos possíveis que ele corre no exercício da fala, entre outras coerções. Como o contexto em que a entrevista ocorre não é apenas o contexto imediato, mas também injunções socio-históricas, que têm a ver com as relações em que está inserido o falante, antes de passar à descrição do modo como organizei a coleta de dados, parece-me importante apresentar alguns dados a respeito da cidade de Marabá, no qual atuo e atuam os professores entrevistados. Marabá, sede do município de mesmo nome, localiza-se no sudeste do Estado do Pará, Amazônia Oriental, e é município desde 1913. Área de segurança nacional nos anos da ditadura militar, tem forte presença militar ainda hoje. Em parte pela mesma razão, tem também forte presença dos movimentos sociais, principalmente daqueles relativos à luta pela terra e à defesa das questões do campo e dos direitos humanos. Tem uma população estimada em 195.807 habitantes, e uma área de 15.092 km2 . Economia baseada na exploração do caucho e da castanha no começo do século XX, atualmente se concentra na pecuária, comércio, indústria de transformação (principalmente de metalurgia) e lavoura62 . Região de altos índices migratórios por causa dos grandes garimpos (Serra Pelada foi o maior e mais conhecidos deles) nos anos 70/80 e dos grandes projetos governamentais (abertura da Transamazônica, Projeto Grande Carajás, Hidrelétrica de Tucuruí...), o município de Marabá teve um crescimento populacional em torno de 200% em 25 anos (em 1980 a 2005), enquanto a população brasileira teve, no mesmo período, um aumento de cerca de 50%. Marabá é, como tantos outros no Brasil, um município rico e pobre; estando entre os municípios fora de região metropolitana que tem maior participação no PIB regional, pelo fato de centralizar uma rede de 62 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2005, disponíveis em www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php. 127 distribuição comercial para todo o sul e sudeste paraense e ter grande número de indústrias minero - metalúrgicas, e tendo tido uma renda per capita de 5.132,00 em 2003 (acima da média do Norte e Nordeste) 63, tem graves problemas na área de habitação, saneamento, saúde pública, educação, inclusive pelo crescimento febril e desordenado que sofreu nas últimas décadas, com o deslocamento de grandes massas de trabalhadores para a região, em busca de trabalho e terra, mas principalmente por estar inserido numa lógica de desenvolvimento que produz exclusão. A educação pública é responsável pelo maior número de matriculas em todos os níveis de ensino. Em 200464 , o poder público municipal respondia por 93,3% das matrículas no ensino fundamental e por 71,5% das matriculas em educação infantil; o estadual, por 92% das matriculas no ensino médio; a Universidade Federal por 77,5% das matriculas no ensino superior. A presença da Universidade Federal do Pará na região começou em 1987, quando foi criado o Campus Universitário de Marabá, hoje Campus Universitário do Sul e Sudeste, o qual responde majoritariamente pela formação docente na região, e tem um histórico, desde a sua implantação, de atuação em projetos, em conjunto com os municípios e/ou com os movimentos sociais, ligados a educação, aprendizagem e formação docente. No que se refere à educação especial, no entanto, o Campus Universitário não tinha nenhuma experiência (foi somente a partir da reformulação curricular de 1999 que o curso de Pedagogia passou a contar com a disciplina Fundamentos da Educação Especial, enquanto já havia turmas de educação especial, vinculadas à secretaria de Educação do Estado, desde 1987). O projeto municipal denominado “Escola 63 Dados coletados em www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/pibmunicipios/2003/pibmunic2003.pdf Fonte: Ministério da Educação, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP , (1)Censo Educacional 2004, (2) Censo da Educação Superior 2003; dados disponíveis no site www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php 64 128 inclusiva: respeito às diferenças”, iniciou-se em 2001, com a extinção das salas especiais e a estruturação de salas de recursos e salas de apoio pedagógico específico (num total de 16 em 2005, atendendo a 35 turmas das escolas municipais nas quais estão inclusos alunos com deficiência visual _ entre os quais alunos com baixa visão_ ou auditiva) e um Centro de Apoio Pedagógico (CAP) para deficientes visuais (em 2004). Dos 222 estabelecimentos de educação fundamental do município, 67 têm alunos inclusos, atendendo a um total de 387 alunos, a maioria com déficit cognitivo (285) deficiência auditiva (58) e deficiência visual (44). As escolas se organizam em torno de cinco pólos, situados nos principais bairros da cidade65. São os docentes que hoje atuam na interface entre educação especial e educação comum, mas que têm uma formação na educação especial, os sujeitos desta pesquisa (a maioria deles professores concursados com nível superior completo ou cursando). Considerei que uma entrevista tradicional com esses docentes, em que entrevistador e entrevistado não se conhecem, daria ao discurso produzido um tom de formalidade que faria perder o objetivo de fazer com que a fala fosse o mais próximo possível de uma conversação: tivesse a maior proximidade possível do tom de espontaneidade da fala cotidiana. Uma amostragem aleatória de professores que atuam com inclusão teria essa deficiência. Dessa forma, elegi como espaço de observação e convivência o Centro de Apoio Pedagógico (CAP), que funciona na Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof. Jônathas Pontes Athias. Nesse centro, atende-se a alunos cegos e com baixa visão, assim como a seus professores, atuantes nas escolas públicas da cidade. Na mesma escola funciona uma turma de alunos surdos, cuja professora também é interprete e auxilia os professores de alunos surdos. 65 Dados gentilmente cedidos pela Secretaria Municipal de Educação/Diretoria de Ensino/Departamento de Educação Especial, referentes ao ano de 2005. 129 Expliquei meu projeto de pesquisa à direção da escola, coordenação e professores, aos quais abriram generosamente seu espaço de trabalho, dando-me livre acesso a todas as discussões e tarefas ali realizadas. Tive, então a convivência privilegiada durante três meses (fevereiro a abril de 2006) com essas pessoas, sem entrevistas gravadas (apenas anotações no diário de campo), o que criou a intimidade necessária para as entrevistas fluírem como algo mais próximo a uma conversação. Foram realizadas, após esse período, quatro sessões de conversa com professores que, a partir do CAP, atuam no processo inclusivo, tanto na formação de professores quanto no acompanhamento dos alunos no dia a dia escolar. São: uma professora itinerante de ensino médio (sessão A), duas professoras de Braille e Orientação e Mobilidade (sessão B), um professor de computação e uma professora de Linguagem Brasileira de Sinais - LIBRAS (sessão C) e dois professores de disciplinas em ensino médio e fundamental (sessão D). O cuidado em criar um período de convivência para tornar as entrevistas o mais próximo possível de conversações tem a ver com minha intenção de estabelecer contato com as falas sobre a temática da inclusão de um modo próximo ao modo como elas se organizam no cotidiano. A definição de conversação dada por Rodrigues (1997) ajuda a compreender essa minha intenção: A conversação é um evento de fala especial: corresponde a uma interação verbal centrada, que se desenvolve durante todo o tempo em que dois interlocutores voltam sua atenção para uma tarefa comum, que é a de trocar idéias sobre um determinado assunto. Conversação natural, que ocorre espontaneamente no dia a dia, dá-se face a face, presentes os dois falantes, ao mesmo tempo, no mesmo espaço (RODRIGUES, in PRETI, 1997, p.18). O grau de espontaneidade da conversa entre pesquisador e pesquisado será sempre discutível, é claro. O que tentei fazer foi reduzir o distanciamento, mas não deixo de levar em conta as assimetrias existentes na interação. Essas assimetrias não ocorrem somente nessa 130 relação específica, mas em qualquer interação humana. Concordo com Brait quando esta afirma que, “mesmo nos contextos menos formais e aparentemente mais simétricos [...], há sempre manifestações de poder nas diferentes formas de interação” (BRAIT, in PRETI, 1997, p.213). O que me interessa, ao escolher essa configuração discursiva, são os modos de operar da prática de cada falante na interlocução comigo enquanto pesquisadora, mas também com tantos outros discursos que vão emergindo enquanto referência. Os falantes de uma dada língua combinam sua competência lingüística com outras competências, o que lhes possibilita utilizar as formas lingüísticas em diferentes contextos, em diferentes situações de comunicação, com diferentes finalidades. Os falantes não somente trocam informações e expressam idéias, mas também, durante um diálogo, constroem juntos o texto, desempenhando papéis que, exatamente como numa partida de um jogo qualquer, visam a atuação sobre o outro (op.cit., p.195). Para analisar os textos produzidos na interação pesquisadora/professores, considerando-os em sua especificidade, recorri então às técnicas de análise da conversação 66.O contexto da entrevista é uma situação até certo ponto estruturada, proposta por mim, após certa convivência e muitos diálogos com os entrevistados (por isso há muitas remissões a conversas anteriores). Os tópicos discursivos67 (op. cit., p.209) são sugeridos por mim, mas não se mantêm forçosamente; os entrevistados Estratégias 66 inserem de livremente envolvimento e sub-tópicos ou distanciamentos novos são tópicos. observadas Ver Marcuschi, (2005, p.6): “A Análise da Conversação (AC) iniciou-se na década de 60 na linha da etnometodologia e da Antropologia Cognitiva e preocupou-se, até meados dos anos 70, sobretudo, com a descrição das estruturas da conversação e seus mecanismos organizadores. Norteou-a o principio básico de que todos os aspectos da ação e interação social poderiam ser examinados e descritos em termos de organização estrutural convencionalizada ou institucionalizada (...) Hoje, tende-se a observar outros aspectos envolvidos na atividade conversacional. Segundo J. J. Gumperz (1982) a AC deve preocupar-se sobretudo com a especificação dos conhecimentos lingüísticos , paralingüísticos e socioculturais que devem ser partilhados para que a interação seja bem sucedida.” 67 Foram analisadas, em cada entrevista, a estrutura de tópicos discursivos, as tomadas de turno, as marcas conversacionais. Tópico discursivo, segundo Fávero ( in PRETI, 1997, p. 33-54.), é a temática acerca da qual se está falando. Tomada de turno (GALENBECK , in PRETI, 1997, p. 55-79.) refere-se a cada momento em que se alternam os participantes do diálogo nos papéis de ouvinte e falante. Marcas conversacionais são “elementos que ajudam a construir e a dar coesão e coerência ao texto falado, especialmente dentro do enfoque conversacional. Nesse sentido, funcionam como articuladores não só das unidades cognitivo-informativas do texto como também dos seus interlocutores, revelando e marcando, de uma forma ou de outra, as condições de produção do texto, naquilo que ela, a produção, apresenta de interacional e pragmático” (URBANO, in PRETI, 1997, p. 81-101) 131 (RODRIGUES, in PRETI, 1997, P.29), as tomadas de turno “ajudam a perceber não apenas a negociação e cooperação existentes na interação verbal, mas também a disputa pela palavra, o jogo de poder que se estabelece durante o intercurso verbal” (BRAIT, op. cit, p.208). No texto oficial e nos excertos de texto acadêmico, textos escritos, tratava-se de analisar as marcas presentes no discurso como traços de suas condições de produção. Aqui, considerei como traços de produção, numa primeira análise, a estrutura de tópicos, as tomadas de turno e as marcas conversacionais; isso permitiu uma leitura dos textos produzidos nos diálogos em sua organização interna. A seguir, esta leitura foi remetida ao mesmo dispositivo de análise e interpretação utilizado para investigar o texto governamental e acadêmico, nos termos da análise de discurso: o que é dito, o que não é dito, o que pode ser dito de outro modo; que operadores (marcas) e operações (estratégias de dizer) podem ser localizados no texto produzido e que campo de sentidos permitem configurar (ORLANDI, 2005; VERÓN, 2004). Quero crer que, de certa forma, exercitei o uso aplicado da Análise Conversacional: Basicamente, a análise conversacional (AC) pode ser realizada de duas maneiras. Uma delas, a mais básica, é expandir nosso conhecimento sobre como as conversas “operam” _ o que é que as pessoas fazem com sua fala para serem entendidas umas pelas outras, e para produzir “a vida cotidiana” como a conhecemos. Quanto mais pudermos fazer isso, mais seremos capazes de chegar ao outro uso da AC, que é aplicar todo esse conhecimento a algum dado específico e ver o que ele nos diz (ANTAKI e DÍAZ, in IÑIGUEZ, 2004, p. 162-163). Esse segundo uso, porém, no caso deste trabalho, precisou ser complementado com técnicas de análise de discurso: aqui, as elaborações sobre como as conversas operam internamente só têm sentido dentro da busca de estabelecer efeitos de reconhecimento, ou seja, criar uma leitura, entre todas as leituras possíveis, dos efeitos de sentido criados na relação entre o texto produzido pelo diálogo pesquisadora/professores e os discursos que perpassam esse diálogo. Assim, se é coerente buscar compreender, pela análise da conversação, as coerções próprias desse 132 gênero de discurso, não se pode esquecer que ele não se esgota em sua especificidade (no tratar-se de uma conversação), mas se insere em redes de relações discursivas, dentro das quais fazem sentido as coerções propriamente conversacionais. Com resultado desse processo de análise e interpretação, seis feixes de efeitos de sentido foram configurados, os quais seguinte forma: a) a aprendizagem, designei da a prática e o outro; b) o outro- governo e suas oscilações de sentido; c) o lugar que o professor de atendimento especializado propõe para si mesmo no discurso; d) o lugar do outro-professor; e) o lugar do aluno incluso e a formação. O capítulo 6, denominado A inclusão no discurso escolar: conversas na interface entre educação comum e especial, mostra a forma como tais feixes foram elaborados e analisados68. 4.3. O DISCURSO ACADÊMICO: ANALISANDO UM CORPUS FRAGMENTADO. Para cada tipo de produção discursiva, a aplicação do dispositivo de análise e interpretação precisou ser repensada. No caso dos textos oficial e acadêmico, mesmo se tratando de textos escritos, não foi possível dar o mesmo tratamento, no que se refere à delimitação do corpus. Se, no caso do discurso oficial, foi possível encontrar num texto elementos que permitissem uma análise unificada, considerando um autor/enunciador, no caso do discurso acadêmico a polifonia é mais explicita, não apenas porque os autores assinam individualmente os 68 Como normas de transcrição das entrevistas, utilizei aquelas sugeridas por PRETI, (1997, p.11-12) conforme Anexo. Indiquei as citações extraídas das transcrições das sessões de entrevistas pela letra de referência da sessão (A, B, C,ou D), seguida da indicação da(s) páginas(s) e da(s) linha(s). Por exemplo: A, p.2. ls. l.12-115. 133 textos, mas também porque as universidades a que se vinculam são distintas e os próprios grupos de pesquisa a que se vinculam têm tradições distintas. Para atender a essa diversidade, considerei mais produtivo, para os objetivos deste trabalho, recortar trechos da literatura educacional que trata de inclusão, agrupados em publicações que representam momentos específicos do processo: o Cadernos Cedes, n° 46 (1998), que buscou divulgar artigos de profissionais atuantes em “universidades e instituições de reconhecido trabalho em educação” (MONTEIRO e CAIADO, 1998) analisando as relações entre a nova Lei de Diretrizes e Bases (promulgada dois anos antes) e as necessidades educativas especiais; o livro Educação Especial: múltiplas leituras e diferentes significados, organizado por Silva e Vizim (2001) ”fruto de atividades do Núcleo de Educação Especial e Leitura da Associação de leitura do Brasil” (SILVA e VIZIM, 2001) e o livro Inclusão: intenção e realidade, organizado por Omote (2004), que apresenta textos de convidados da VII Jornada de Educação Especial, promovida pela UNESP Marília, no ano do aniversário de dez anos da Declaração de Salamanca; de cada artigo, extraí excertos nos quais o termo inclusão e seus derivados são definidos, de uma forma ou de outra69. Os autores de cujos artigos foram extraídos trechos onde aparecem marcadores que remetem a definições de inclusão são, em ordem alfabética: Aranha (2004), Carvalho (2001); Cartolano (1998); Denari (2004); Ferreira (2004); Garcia (1998); Gil (2004); Kruppa (2001); Mantoan (1998; 2004;); Mrech (2001); Silva (2001); Skliar (2001); Oliveira (2004;) Omote (2004) e Vizim (2001). Nem de longe a seleção que fiz esgota a produção acadêmica em torno do tema da inclusão; os trechos não foram selecionados por serem considerados 69 representativos de posições especificas, nem por Considerei definição como “enunciado que parafraseia a acepção de uma palavra ou locução pela indicação de suas características genéricas e específicas, de sua finalidade, pela sua inclusão num determinado campo do conhecimento etc.” (HOUAISS, 2002). No Dicionário de Filosofia, aparece, entre outras acepções, como “a declaração do significado de um termo, ou seja do uso que o termo pode ter em determinado campo de investigação[...]. Assim, pode-se considerar definição qualquer restrição ou limitação do uso de um termo em determinado contexto” (ABBAGNANO, 2000, p. 237). Creio que as duas conceituações são complementares. 134 apresentarem todas as nuances dessas posições. São “momentos” da produção acadêmica acerca da inclusão em que o conceito é definido (e nessa definição é qualificado, renomeado, parafraseado); é um caleidoscópio de trechos, e o que faço é um exercício de análise desses recortes. Certamente há que se questionar se eles representam uma mostra adequada; afirmo que não são nem uma amostra, nem adequada: são vozes que se entrecruzam no discurso acadêmico/pedagógico cuja temática é a inclusão. Não são quaisquer vozes, é claro: seus autores são reconhecidamente referências na área, mas os trechos não são tratados como “o que o autor quer dizer”, e sim como “o que diz o discurso”, às vezes à revelia do enunciador (ORLANDI, 2005, p.75). Por isso, os excertos foram numerados e analisados assim, sem referência ao autor, para evitar tentativas de classificação prévia baseada nos pontos de vista que eles assumem publicamente ou que lhes possam ser imputados, e somente num momento posterior à análise foram referenciados. Não são analisados com relação ao sujeito que os produz, num primeiro momento da pesquisa, para evitar a reprodução acrítica de categorias já estabelecidas, mas continuam sendo entendidos como produção singular de determinados sujeitos imbricados em determinadas redes de relações, por isso voltam a ser referenciados. Realizada a análise de cada excerto separadamente, agrupei-os por temática com base nos operadores destacados (os quais não pretendo que esgotem as possibilidades de análise, e sim apontem para possíveis formações discursivas) e dos efeitos discursivos produzidos nas operações discursivas que descrevo, a partir daquilo que é dito, sugerido ou omitido em cada momento discursivo. Tais agrupamentos foram organizados em torno de: capacidade de deslizamento de inclusão como operador que indica movimento; nuances do fazer inclusivo (como a prática aparece no discurso) e; como a inclusão é tratada em sua dimensão discursiva. Por fim, analisei o modo como temáticas e modos de operar aparecem e se imbricam e o resultado disso é apresentado no capítulo 7, ao qual intitulei A inclusão no discurso acadêmico do campo da Educação. 5. FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES PARA A ESCOLA INCLUSIVA: UMA MANIFESTAÇÃO DO DISCURSO OFICIAL Neste capítulo apresento os enfeixamentos dos efeitos discursivos relativos produzidos na análise e interpretação da coleção “Saberes e práticas da inclusão (2005)”, aqui tratada como um texto oficial no qual se configura o discurso da Secretaria da Educação Especial/Ministério da Educação acerca da inclusão. O dispositivo de análise e interpretação que elaborei para dar conta de compreender as configurações do discurso nesse recorte específico procura destacar marcas no texto que funcionam como operadores (realizam certas operações no interior do texto e nas relações dele com outros textos e outros discursos, pela escolha das formas de dizer e não dizer), analisar tais operações, enfeixando as temáticas e modos de operar reconhecidos no discurso que perpassa o texto. O capítulo foi organizado em torno dos efeitos produzidos por operadores que remetem a quatro enfeixamentos: os disfarces e ocultamento das relações de poder, a subordinação do fazer ao pensar, a proposta de inclusão como busca de ruptura e o lugar do professor nos enunciados oficiais, com base nos quais agrupei e analisei as temáticas tratadas e os modos de operar produzidos nesse gênero de discurso. 5.1. OS DISFARCES E OCULTAMENTOS DAS RELAÇÕES DE PODER Configuram-se de vários modos, no texto, os ocultamentos e disfarces das relações de poder, desde a desqualificação do pensar diferente, a omissão de pontos de vista contrários, o ocultamento de 136 projetos em conflito, o ocultamento do próprio projeto, até a atenuação das relações de mando sob a representação de relações de colaboração e diálogo. O primeiro fragmento trata da finalidade e público alvo do material. A SEESP/MEC disponibiliza às secretarias de educação interessadas em implementar educação de qualidade para todos o material didático Saberes e Práticas da Inclusão. Esse material foi planejado para ser utilizado em um contexto de formação tendo como público alvo profissionais da educação, propiciando o estabelecimento de vínculos com as práticas locais [...] (C1, p.7). Quando (SEESP/MEC) é dito disponibiliza que o a Secretaria material às de Educação “secretarias de Especial educação interessadas em implementar educação de qualidade para todos” (C1, p.7), o texto diz nas entrelinhas, através do uso do adjetivo interessadas, que as secretarias que não estiverem interessadas não precisam fazê-lo. Por outro lado, faz presumir que quem não se interessar em utilizar o material não oferecerá educação “de qualidade” e “para todos” (estratégia predicativa combinada com uma referência a expressões comuns nos textos produzidos pelos movimentos educacionais, referentes à universalização do ensino). Ocorre um jogo de compartilhamento de vozes entre o discurso oficial e os movimentos educacionais. Essa estratégia discursiva de qualificar/desqualificando desvia a atenção do que não é dito: as secretarias podem estar tão interessadas que já tenham um material e esse material pode coincidir ou não com a interpretação da SEESP sobre educação de qualidade e para todos. Um efeito discursivo desse dizer/não dizer/dizer de outro modo é ocultar os efeitos de possíveis insubordinações, ao mesmo tempo em que as desqualifica. Produz, por outro lado, o efeito de estar atendendo a reivindicações antigas dos movimentos. Ainda quando reconhece a existência de conflito entre modos de pensar diferentes, o texto não se situa com relação a esses modos de 137 pensar. A quinta finalidade dos cadernos (por ordem de apresentação, porque, no texto, as finalidades não são numeradas) é assim descrita: Contribuir para o debate e a reflexão sobre o papel da escola e do professor na perspectiva do desenvolvimento de uma prática de transformação da ação pedagógica (C1, p.8). O texto reconhece, portanto, que existem, no Brasil, um debate e uma reflexão sobre o papel da escola e do professor, já que se propõe a contribuir para tal. A estratégia discursiva utilizada é uso de artigos definidos: “o” debate, “a” reflexão; o que faz pensar que já são conhecidos de todos; não necessita referência. No entanto, esse debate não aparece no desenvolvimento dos cadernos. Não se fica sabendo até onde avançou, qual a contribuição do MEC, que espaço essa contribuição vem preencher, em que posições (de poder) se situam os interlocutores. A idéia de transformação da ação pedagógica pode remeter às discussões sobre uma escola transformadora. Mas a idéia de educação transformadora tem a ver com a tarefa da educação de contribuir com a superação das desigualdades sociais, não com transformação na ação pedagógica (que pode se transformar em qualquer coisa). As lutas por transformação entram no texto como discurso recessivo: remetidas ao âmbito da ação pedagógica, criam o efeito discursivo de disfarçar/atenuar a participação governamental no debate. Mas a existência de conflito entre projetos de educação (e os projetos de sociedade a que se vinculam), acima atenuada, ganha uma solução prática logo a seguir, na descrição da sétima finalidade: Identificar as idéias nucleares presentes e fazer os ajustes locais necessários, atendendo às demandas identificadas no âmbito da comunidade, da própria escola e dos sistemas estaduais/municipais (C1, p.8). O gerúndio “atendendo” faz entender que, ao identificar as idéias nucleares presentes e fazer os ajustes, as demandas estarão sendo atendidas. Pode ser um lapso; o objetivo central pode ser atender as demandas e os subordinados podem ser identificar as idéias nucleares e 138 fazer os ajustes. Ainda assim: o que significa “fazer ajustes”? Segundo Houaiss (2002), ajuste é: atitude de integração harmônica em um contexto; adaptação, amoldamento; estabelecimento de um pacto; trato, acordo, convenção; ato através do qual duas ou mais pessoas celebram um contrato ou acordo; ajustamento; ou ainda [por] derivação: por metonímia, o próprio contrato ou acordo; ajustamento. Partindo do princípio de que as demandas serão diversas e em muitos casos estarão em conflito, é, então, durante o curso e baseado de uso do material que serão solucionados tais conflitos. As idéias nucleares presentes também serão tratadas desse modo. Quando vinculadas a interesses contraditórios, como se chegará ao consenso? É necessário chegar ao consenso? Será decidido pelo voto, por maioria? O exercício do poder ora é ocultado e disfarçado, ora é remetido a âmbitos específicos. É evidente que nem todas as demandas poderão/deverão ser atendidas, mas a questão aqui é que o processo de escolha é remetido ao grupo local, o MEC é dado como neutro nesse processo. É importante lembrar que ajustar pressupõe um molde, um projeto; ignorar isso é submeter ao projeto dominante, evidenciado na opinião da maioria. Basta escrever a frase de outra forma, substituindo ajustes por enfrentamentos e atendendo por selecionando, priorizando, para perceber a diferença: “Identificar as idéias nucleares presentes e proceder aos enfrentamentos locais necessários, selecionando e priorizando demandas entre as identificadas no âmbito da comunidade, da própria escola e dos sistemas estaduais/municipais, de acordo com o projeto tal (mais geral)”. Nada é dito sobre a possibilidade de fazer “ajustes” mais gerais (questionamentos a âmbitos mais gerais não aparecem no texto). A não referência a um projeto mais amplo (e a remissão a decisões locais) pode criar a impressão de democracia (tudo está para ser construído, e todos participaremos do processo, em pé de igualdade), o que apenas disfarça a existência de um projeto geral (assumido ou não, conhecido ou não). 139 Em outra parte do texto, surge uma luz sobre essa questão: quando se trata de criar indicadores para avaliação dos aspectos externos à escola, as limitações à autonomia são descritos como sendo “impostos por um organograma” e não por uma hierarquia, por um modelo de sociedade que produz desigualdades. Em se tratando de identificar necessidades educacionais especiais, a avaliação desse aspecto [do funcionamento organizacional] implicará em indicadores que permitam conhecer, por exemplo:[...] os limites de autonomia da comunidade escolar, impostos por um organograma (C7, p.53). O recurso à metonímia (o gráfico da estrutura hierárquica substituindo tal estrutura) cria o efeito de naturalização das relações de poder. Outra estratégia é esconder o sujeito/autor sob o véu da universalidade, da verdade científica, indiscutível. Não se encontram asserções do tipo: “este ministério assume como verdade...” ou “este governo se apóia nos seguintes princípios e ou critérios”... ou “os seguintes autores concepções”. As são nossa estratégias referência” são várias: “recusamos tais o partícula uso da ou tais de indeterminação “se”: “o próprio título do capítulo já contém a mensagem que se considera como a mais significativa e que substitui qualquer posição quanto à função da avaliação (C7; p.19; grifo meu); o uso da voz passiva: “Para o contexto educacional as dimensões estabelecidas para análise são: a instituição educacional escolar e a ação pedagógica” (C7,p.48; grifo meu); o uso de verbos que indicam essencialidade (ser, constar): Considerando-se a finalidade deste documento, nem todas as dimensões acima citadas constam como elementos de análise. O foco é a escola (C7,p.50; grifos meus). Os efeitos discursivos produzidos resguardam o enunciador e suas escolhas de qualquer procedimento crítico. Com o reconhecimento da existência de uma instância (aqui designada “se”) cujas definições são peremptórias, inquestionáveis (outras posições são inaceitáveis), o sujeito 140 não só é dado como indeterminado como suas escolhas são dadas como decorrentes da ordem natural das coisas. Um ato falho, certamente, é o acesso de poder evidenciado no trecho: “substitui qualquer posição com relação à avaliação”. “Se” pode ser indeterminado, mas sem dúvida está acima dos mortais comuns: não permite nenhum outro tipo de posição. Tal estratégia discursiva tem efeitos contraditórios: se por um lado ela confere força ao texto, por outro evidencia a existência de outras posições, ou dizer que elas foram substituídas. O que torna ideológico o discurso, diz Verón, é o fato de que ele se apresenta como verdadeiro, como “o único discurso possível acerca daquilo que se fala” (1998, p.198). Este exemplo mostra que mesmo se apresentar como verdadeiro é um esforço discursivo passível de contradição, porque obriga a remeter a outras verdades (ainda quando são apresentadas como falsidade). A substituição de qualquer daqueles elementos por um sujeito explícito seria o suficiente para que o recurso perdesse seu efeito: “as dimensões que nós estabelecemos para análise são...”; “enfocaremos a escola (deixando de lado os demais elementos)...”; são construções que permitem a crítica, porque assumem a existência de outras dimensões passíveis de análise, de outros elementos importantes, ao mesmo tempo em que evidenciam um enunciador que assume a escolha de certas dimensões, de certos elementos (e a conseqüente recusa de outros). O lugar de onde fala o sujeito é constitutivo do que ele diz (ORLANDI, 2005, p. 39). O sujeito indeterminado parece falar de “nenhum lugar”, e isso o preserva dos enfrentamentos, já que o que ele diz ganha foros de universalidade. A tendência à preservação do sujeito não impede que surjam estratégias de legitimação do discurso, baseadas na referência à autoridade, mas também essa autoridade é o mais genérica possível (UNESCO), o que apenas reforça o efeito de proteção/ocultação do sujeito e a indeterminação do lugar a partir do qual ele fala: Cabe uma referência à tipologia dos conteúdos que são desenvolvidos em qualquer das áreas de conhecimento: conceituais, procedimentais e atitudinais, já mencionados 141 anteriormente. Justifica-se esse destaque pela relação entre eles e os quatro pilares que a UNESCO estabeleceu para a educação deste século: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver junto (C7, p.68). O ocultamento/disfarce/deslocamento/naturalização das relações de poder e a dissimulação do sujeito-enunciador se complementam com uma concepção de sociedade que em certos trechos parece estática, em outros, organizada a partir do consenso. Quando se trata, por exemplo, das dificuldades em fazer parceria com profissionais de saúde para avaliações que “estão além das possibilidades de avaliação psicopedagógica” (C7, p.72), (de resto garantida pelo art. 6° da Resolução nº. 2, de 11/09/01), a relação adversativa evidencia a oposição entre realidade e idealização: “Essa parceria, embora ideal, nem sempre se concretiza, principalmente para alunos oriundos das camadas populares” (C7, p.72; grifo meu). Isso não impede uma outra relação adversativa, na seqüência: “embora deva-se [sic] lutar pelo ideal, sempre, há que trabalhar com os dados da realidade, ainda que adversos (C7, p.72)”; a lei é colocada no campo da idealização, uma vez que se choca com os dados da “realidade”, e aí os direitos são remetidos ao campo da luta. A concepção estática de realidade emerge substantivada em “tempo” e “recursos”, os quais não se relacionam com a ação humana: são “fatores”: Com as pressões decorrentes do fator tempo e com a escassez de recursos, há que prevalecer o bom senso na seleção de prioridades para análise segundo os objetivos da avaliação (C7, p.46). Os recursos e o tempo necessários a uma avaliação séria das necessidades educacionais (sejam elas especiais ou não) são regidos por outra ordem; contra essa ordem, não pode a prática pedagógica senão adequar-se, de acordo com o bom senso, o senso de realidade. O efeito discursivo é reificar certos aspectos da realidade, separando, como ação humana, certos aspectos (selecionar prioridades, por exemplo) e como coisa, outros aspectos (tempo, recursos). Não é difícil desfazer-se esse 142 efeito: basta acrescentar aos substantivos verbos de ação (planejar o uso do tempo, estabelecer estratégias de ampliação do tempo disponível, projetar a superação da escassez de recursos) e esses aspectos da realidade passam a ser descritos como ação humana, reversível, modificável. As estratégias que levam a uma reificação de certos aspectos da realidade não impedem a busca de consenso (e a subjacente admissão da existência de conflitos) em determinados momentos. O texto atribui às instâncias municipais e estaduais a tarefa de criar consensos locais, ajustes (C1, p.8; c2, p.11;). Parece ser tarefa federal criar um consenso geral, partindo dos relatórios de cada instância. Em certo momento, aparecem a função do coordenador de organizar um “caderno de registro com a memória do curso, que permita a posterior elaboração de relatórios a serem enviados à SEESP/MEC” (C1; p.11) e a função do formador de grupo, que deve avaliar o desenvolvimento de cada tema, o desempenho dos participantes e a própria atuação”, utilizando essa avaliação para orientar seu trabalho, fazendo mudanças e adaptações nas propostas e elaborar relatórios a serem enviados ao coordenador e à SEESP/MEC (C1, p.13; grifos meus). Nada é dito, no entanto, a respeito do destino desses relatórios ou da possibilidade de retorno das questões neles colocada. Se têm algum papel na transformação da prática dos planejadores, das secretarias, da SEESP, do MEC, isso fica por conta da imaginação do leitor. Esse silêncio tem uma função discursiva, que é criar, por extensão, o efeito de sentido de mostrar uma sociedade que se organiza por consensos, não pelo enfrentamento de interesses distintos e contraditórios. Da mesma forma como o grupo na escola tem “autonomia” para decidir por consenso quais são as melhores propostas, haverá grupos no município, no Estado (a cada grau na hierarquia, aumenta o grau de autonomia) que farão o mesmo, de modo que no final só sobrarão as melhores propostas comuns. As relações de poder são disfarçadas com a 143 sugestão implícita de que esses grupos se movem, todos, guiados pela mesma intenção: o melhor para todos. As relações de poder não são, evidentemente, ignoradas. Elas exigem apenas “os devidos cuidados”, como aparece no seguinte trecho: A avaliação implica sempre na relação entre quem é avalia [...] e quem é avaliado, cabendo ao(s) primeiro(s) apreciar, refletir, analisar determinados aspectos [...] considerados como significativos. Se há avaliação, há julgamento. Este se processa em um contexto de valorização, o que requer os devidos cuidados com o uso do poder e com a maior ou menor subjetividade no ato de julgar. (C7,p.21). Não é dito o que é que cabe ao segundo (o avaliado, apreciado, analisado), nem a origem do poder do que avalia. O que é dito em outro lugar, no entanto, traz novos sentidos para a definição acima: o conceito geral apresentado de início não é considerado aplicável à instituição escolar. A questão do poder desaparece e agora [...] convém evitar as atitudes maniqueístas dos juízos de valor em termos de bom/mau, certo/errado, que descaracterizam os objetivos a serem alcançados (C7, p.22). Complementa isso a afirmação de que “na escola todos são avaliadores e avaliados” (C.7, p.22). Dizendo de outro modo: na escola as relações de poder se diluem, todos se unem em torno dos mesmos objetivos _ ainda que haja diferentes “graus de consenso” (C7, p.50); isso faz com que pareça não haver disputas a serem consideradas com seriedade num processo avaliativo escolar (e deixa dúvidas quanto à forma da escola intervir nas possíveis disputas referentes ao projeto educacional e social mais amplo subjacente a tal processo avaliativo). Tanto é recorrente essa compreensão (de que todos os envolvidos são guiados pela melhor das intenções), que em C7 (p.87) e acerca de outros relatórios (aqueles que resumirão as propostas de avaliação dos municípios e estados), o MEC aparece como uma instância “de acompanhamento e análise”: ele apenas acompanha a implementação 144 das ações decididas por estados e municípios e analisa seus resultados. Não aparece como instância decisória. Além de constituírem [as propostas de avaliação] importante acervo para intercâmbio entre gestores, também servirão para acompanhamento, pelo MEC/SEESP, da implementação das ações e análise de seus resultados, contribuindo efetivamente com todos os seus interlocutores. [...] Afinal, todos lutamos por escolas inclusivas, isto é, escolas de boa qualidade para todos (C7, p.87). O fechamento com uma referência à idéia de luta por educação de qualidade para todos, expressão recorrente nos documentos dos movimentos sociais ligados a educação, evidencia um processo que só é parafrástico na aparência. A palavra luta, normalmente implicando em oposição, embate, contenda, aqui se atenua e significa “esforço coletivo para superar algo”, já que a noção de conflito desaparece. A idéia de consenso iguala em poder a todos os interlocutores, considera-os todos envolvidos na mesma luta, no mesmo esforço. Temos, portanto um jogo com os sentidos de luta, um jogo polissêmico. Importante reparar que aquela questão das secretarias interessadas a que me referi de início também desaparece aqui: o efeito de sentido criado é de que todos os gestores (e naturalmente os “gestados”), de todos os níveis, estão envolvidos num esforço coletivo pela inclusão: tornam-se todos militantes, no equivoco trabalhado com base na expressão “luta por educação de qualidade para todos”. Há todo um esforço discursivo do enunciador em fechar sentidos em uma dada direção argumentativa, esforço que se explicita na paráfrase explicativa de “escolas inclusivas’: “isto é, escolas de qualidade”. Essa estratégia discursiva impede contrapalavras formuladas no interior de outros discursos que se opõem ao discurso da educação inclusiva nos moldes em que ela se concretiza na maioria das escolas. Daí porque se impõe a necessidade de explicitar com uma paráfrase o que seja educação inclusiva. 145 Por fim, mas não menos importante para o estabelecimento de um efeito discursivo de consensualidade, evidencia-se uma estratégia70 de nomear as instruções oficiais como sugestões, colaboração, subsídio, (apresentação; C1(p.7;10;11), C2, (p.13;39;83), C7, (p.7;85)), assim como de manter o tom “recomendativo” de grandes partes do texto (C7, p. 45-87; C2, p. 57-81), seguindo o estilo da declaração de Salamanca. Favorece a interpretação de que as instâncias federais de governo não assimilam, não elaboram as recomendações gerais: repassam-nas diretamente para os municípios, as escolas, os professores. Como também parece não ser esperado que haja na instância municipal tais órgãos de “digestão”, de elaboração local, a recomendação é remetida tal e qual para a “ponta” do processo: o professor. Dessa forma, parece ser do professor a responsabilidade de responder às recomendações: de Salamanca, das diretrizes, dos manuais (retomarei essa questão quando tratar da concepção de professor no texto). O efeito discursivo com isso produzido é a atenuação das relações entre MEC, secretarias e escola, através da subordinação do professor à avaliação a respeito das recomendações. Creio que posso dizer, nessas alturas, da existência de uma regularidade no discurso, no que se refere às relações de poder. Ocultamento, atenuação, deslocamento, naturalização, reificação são efeitos discursivos recorrentes, que revelam um projeto social e educacional que, ao pretender se organizar pelo consenso, e não pelo enfrentamento dos conflitos inerentes a um mundo desigual, obscurece o processo de produção das desigualdades. Tal pretensão, no entanto, não pode se furtar ao embate com as redes discursivas produzidas na dimensão da militância contra a produção das desigualdades: por isso o jogo polissêmico com a palavra luta, as referências ao trabalho coletivo, à democracia na tomada de decisões. São discursos recessivos, atestando, 70 Aqui, estratégia não tem, como em Martín Rojo (in: INIGUEZ, 2004, p.220), o sentido de plano de ação mais ou menos consciente: é uma estratégia discursiva orientada por condições históricas nas quais os sujeitos se encontram inseridos. 146 com diz Orlandi a respeito do jogo entre paráfrase e polissemia, “o confronto entre o simbólico e o político” (2005, p.38), e remetendo às condições de produção do discurso oficial, elaborado na dinâmica das relações (mais ou menos tensas) com as propostas dos movimentos sociais. Pretendendo se organizar pelo consenso, e não podendo escapar das disputas nas quais se configura, o discurso recorre à intenção individual como explicação para as possibilidades de sucesso ou fracasso de sues propósitos, numa concepção maniqueísta de bem/mal: se todos se envolverem no processo ele será exitoso. Os que não se envolverem, parece ser a conclusão adequada, é porque não têm boas intenções. A previsão de um interlocutor que pode não ser cúmplice de tais pontos de vista já o coloca no pólo do mal. Orlandi (2005, p.39) chama a isso de mecanismo de antecipação: estratégias em que o enunciador, colocandose no lugar do sujeito que ouve suas palavras, antevê suas reações e reorganiza sua argumentação, deixando-o em posição indefensável. É nessa posição que nosso enunciador parece querer deixar o destinatário, o professor: ou está envolvido no processo proposto, ou não tem boas intenções. 5.2. A SUBORDINAÇÃO DO FAZER AO PENSAR Considerar o pensar, o fazer e o dizer como dimensões do processo em que psiquismo e realidade se interconstituem implica entender a prática discursiva como um empenho, a um só tempo, em produzir realidades (discursivas) e em produzir-se como sujeito (do discurso). Tais dimensões aparecem, no texto analisado, em relação de subordinação, do modo que a ressignificação de uma prática é remetida à compreensão, ao conhecimento. O significar é remetido aos processos do 147 pensar, da cognição, do imaginário; prática é a prática “do professor” (o fazer), e esta pode ser modificada por intervenções no nível do discurso. Entre os vários recursos de que o discurso se utiliza para estabelecer essa dissociação, está o jogo semântico com os verbos “analisar”, “discutir”, “criticar” e “ressignificar”. Quando o texto propõe que o professor deva “analisar as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação, norteadoras do trabalho nas escolas” (C1, p.7), o que se entende por analisar pode ter dois sentidos: separar em seus elementos ou componentes ou submeter à crítica. Aparentemente, é ao segundo sentido que o texto se refere, como se pode ler nas expectativas de aprendizagem do Caderno 2, 3º encontro: Ao final deste encontro, o professor participante deverá ser capaz de discutir criticamente sobre as diretrizes, a educação especial e as necessidades educacionais especiais com vistas a ressignificar sua prática (C2,p.39; grifo meu). O objetivo da discussão não é, portanto, submeter à crítica os textos propostos, como poderia parecer, mas a prática do professor; é ela que precisa ser ressignificada a partir da discussão crítica. Ocorre um desvio semântico em que aquilo que parece estar sendo submetido à critica (as diretrizes e demais textos) não é que deve ser ressignificado. Ressignificar, por outro lado, implica em lidar com o campo dos sentidos: aquilo que se supõe que haja de errado com a prática se afigura como algo que pode ser corrigido por mudanças no campo dos sentidos; supõese que a discussão sobre as diretrizes, a educação especial e as necessidades educacionais especiais levem o professor a mudar seu modo de agir. Uma série de conseqüências pode ser tirada desse modo de dizer, primeiro pela estratégia de evidenciar aquilo que não é dito. Não aparece no texto, por exemplo, que é possível ressignificar as diretrizes, propondo encaminhamentos legais, partindo de uma discussão crítica. A lei aparece como intocável, acabada, o que esvazia qualquer razão para 148 uma discussão crítica. Uma outra estratégia que abre novas possibilidades semânticas, é dizer de outra forma o texto inicial. É possível fazer isso por um recurso à antonímia, invertendo-se o sentido do advérbio de tempo: antes desse material, o professor não discutia criticamente as diretrizes e todo o restante... Emerge então outro aspecto: é como se, fora dessa prática específica, não ocorressem discussões críticas das diretrizes, da educação especial, das necessidades educacionais especiais, que pudessem ser incorporadas a esse debate... Complementa isso um silêncio expressivo: a crítica já elaborada (pelos movimentos sociais vinculados à educação, por exemplo) não recebe nenhuma referência. Reflexão e prática são dissociadas no discurso, e se estabelece uma relação de subordinação em que refletir serve para mudar a prática: aquela se dá sobre esta e não nesta. A mesma relação pode ser encontrada em outro objetivo: Favorecer ao professor a reflexão sobre sua realidade profissional e sua prática pedagógica, bem como os ajustes que parecem ser necessários, para que se atenda às propostas contidas na Declaração de Salamanca (C1, p.13). Aqui, o verbo favorecer tem dois objetos diretos: a reflexão e os ajustes. A oração subordinada indica finalidade: para que se atenda às propostas contidas na Declaração de Salamanca. Ou seja, o objetivo principal é atender às propostas contidas na Declaração; o objetivo imediatamente subordinado é fazer ajustes na realidade e na prática pedagógica; em terceiro nível de subordinação está o refletir sobre a realidade e a prática, a serviço daqueles ajustes. O conectivo “bem como” disfarça essa subordinação, dando a impressão de que são orações coordenadas (fazer uma coisa “e” outra), mas o “para que”, logo a seguir, explicita a relação entre as orações. O verbo refletir, nesse caso, tem o sentido de chegar à compreensão de algo já elaborado (as propostas contidas na Declaração de Salamanca), não de meditar, pensar criticamente a respeito de algo, o que poderia levar à criação de coisas novas. 149 Por outro lado, a discussão do poder, subjacente a quaisquer ações que remetam a “ajustes na realidade”, é obliterada, o que cria a impressão de que as recomendações de Salamanca só se referem ao lugar do destinatário (o professor) e só exigem ajustes em sua prática (ou pelo menos que os demais ajustes são de outra esfera, não dizem respeito à prática pedagógica e a seus sujeitos). O efeito discursivo produzido nesses movimentos de dissociação entre reflexão e prática, de subordinação da prática à reflexão, de reduzir a reflexão à compreensão e ao ajuste expressam uma concepção do lugar do destinatário como um lugar de alheamento; seu pensar se destina a ajustes locais e imediatos, tem a ver com o entendimento e com aplicação; ao mesmo tempo, num movimento contraditório, é nesse lugar de alheamento que pode haver mudanças na prática, sendo esta responsabilidade pessoal do destinatário, enquanto produzir e dirigir a reflexão é responsabilidade do enunciador. A prática discursiva assim configurada emerge numa prática de formação de professores fortemente “conscientizadora”, no sentido de uma prática que se propõe a criar consciência nos outros a partir do exercício da leitura, da fala e do pensamento sobre a prática. Nas sugestões operacionais para implementar a proposta de avaliação, é proposta a “capacitação de todos os envolvidos, ressignificando-se conceitos e procedimentos avaliativos [...] (C7, p.78)”. Por capacitação, geralmente se entende “dar cursos”, baseados numa crença de que a ressignificação se dá na capacitação, no estudo, e não no próprio exercício pedagógico. O raciocínio é claro: a prática avaliativa precisa ser modificada, e isso só ocorrerá quando os professores mudarem sua compreensão de avaliação; essa compreensão será mudada quando eles forem informados de que há concepções mais adequadas e se convencerem de que sua forma de avaliar é inadequada. Mais uma vez, a mudança é responsabilidade individual, e está posta em relação causal com mudanças no pensamento, na compreensão. Em nenhum momento 150 se anuncia uma intenção do enunciador de defender a suspensão do uso de medidas no sistema educacional (portanto, dos vestibulares, diários de classe, canhotos de notas, etc.), para que o professor possa ressignificar sua prática, ajudando a criar novas formas de avaliar. O discurso não assume que a idéia de medida é produzida socialmente, mas aponta onde está enraizada: A idéia de que a avaliação é medida dos desempenhos dos alunos está fortemente enraizada no imaginário dos educadores e dos aprendizes(C7, p.23, grifos meus). O que não é dito é que tal idéia tem raízes na prática social, da qual fazem parte professores e aprendizes (se é que professores não são aprendizes), mas imersos em relações de poder; eles não criam a própria prática firmados nas próprias convicções, mas na interação entre essas convicções e as diversas instâncias de um mundo competitivo e seletor, produtor de um modo generalizado de pensar que privilegia a seleção dos “melhores”. O efeito discursivo decorrente dessa compreensão é que há que se trabalhar o imaginário de “professores e aprendizes” para assim modificar sua prática. Dissociação, mais uma vez, entre pensar/fazer, subordinando o segundo ao primeiro. O pensar deve ser trabalhado em capacitações, formação em serviço, formação continuada, etc., de modo que a capacitação faça o efeito de tornar o professor crítico (superando preconceitos “enraizados”): p.ex: “ao final desse encontro, o professor participante deverá ser capaz de discutir criticamente sobre...”(C2, p.39). Basta inverter a temporalidade da frase, para evidenciar novas possibilidades de sentido: “antes desse encontro, o professor não era capaz de discutir criticamente sobre...” As práticas anteriores ao processo de formação são desqualificadas; as práticas consideradas externas a esse processo, (como a participação em fóruns, grupos de estudos, sindicatos, igrejas, etc.), mergulham no silêncio. 151 Tais efeitos de sentido, produzidos em reconhecimento, não seriam possíveis se o processo de produção do discurso governamental sobre inclusão não se vinculasse a um dualismo de fundo que separa indivíduo e sociedade, descrevendo esta última como algo estável e situando no indivíduo a responsabilidade pelas práticas chamadas de inclusivas. De acordo com esse discurso, enquanto a sociedade propõe a inclusão, os indivíduos continuam tendo práticas não–inclusivas, e isso pode fazer abortar os projetos. Tal dualização _indivíduo/sociedade_ se vincula à dualização prática/pensamento: considera o estereótipo que emerge nos discursos como opção consciente do sujeito falante (e reduzida à esfera do pensar),e isso remete a ações de conscientização (ligados a um modo de operar objetivista). Se esse estereótipo fosse considerado produto do entrecruzamento de práticas socialmente legitimadas (habitus), isso poderia levar a ações que levassem ao enfraquecimento de tais práticas e das instâncias que as legitimam. São as ações possíveis em determinadas condições (sócio-culturais) que possibilitam o preconceito. A subordinação do fazer ao pensar, que procurei evidenciar como um dos aspectos do discurso oficial acerca da inclusão, tenta criar uma realidade discursiva na qual o destinatário é levado a pensar sobre sua prática, encontrando e combatendo nela as inadequações; a prática do enunciador não se coloca como objeto de reflexão; seu pensar, por escorregadio, não se situa onde possa ser criticado. Isso exige um ocultamento da prática social como produtora do modo-de-ser-e-pensar e uma crença na conscientização como saída para práticas (locais) excludentes. A possibilidade de cisão da voz do outro, o destinatário, cisão através da qual ele só poderá falar ou a partir do campo do pensamento ou do campo da prática, é o mecanismo discursivo em operação. Tal fala só poderá estar enfraquecida, já que no campo do pensamento não tem autoridade (não tem como opor sua verdade às verdades que lhe são 152 trazidas através dos textos), no campo da prática é atrasado, tradicional ou inadequado (é lá que se situam as falhas a serem corrigidas). 5.3. A PROPOSTA DE INCLUSÃO COMO BUSCA DE RUPTURA Considerando as práticas pedagógicas vigentes como inadequadas ao processo inclusivo, e o pensar pedagógico vigente como causador de tal inadequação, o texto se organiza em torno da idéia da interrupção de certas continuidades: a intenção de romper com as formas como vêm sendo atendidas as necessidades educacionais especiais, com determinado modelo de educação e sociedade, com a fragmentação da formação continuada, com o individualismo são buscas de ruptura assumidas. Uma outra emerge do texto mais pelo silêncio do que pelo que é dito, que é a ruptura insinuada/pressuposta entre a formação básica e a continuada. Não são necessariamente buscas que se articulem pacificamente: algumas entram em conflito, em enfrentamento no próprio interior do discurso. A primeira busca de ruptura que se evidencia é aquela que intenta superar as formas como vêm sendo atendidas as necessidades educacionais especiais, e essa se confunde com a pretensa busca de ruptura com um modelo social e educacional. Todo o material tem essa função, ainda que seja intitulado “saberes e práticas da inclusão” e que, em alguns momentos, inclusão seja definida como um processo mais amplo do que o atendimento nas escolas comuns aos alunos com necessidades educacionais especiais, e que seja considerado equivocada uma compreensão mais restrita: “prevalece o equívoco de que educação inclusiva é uma proposta dirigida apenas, ao alunado da educação especial” (C7, p. 27). De fato, afirma a Declaração de Salamanca que as escolas 153 devem acolher crianças com deficiência e crianças com superdotação; crianças de rua e que trabalham; crianças de populações distantes ou nômades; crianças pertencentes a minorias lingüísticas, étnicas e culturais e crianças de outros grupos ou zonas, desfavorecidas ou marginalizadas (Linhas de ação sobre necessidades educacionais especiais, Declaração de Salamanca, C2. p.18). O que não precisaria ser dito, porque salta aos olhos, é que os quatro módulos específicos são dirigidos à compreensão do alunado da educação especial (alunos cegos e de baixa visão, surdos, superdotados/altas habilidades, e com deficiência física/neuro-motora). Considerando que a declaração é citada como o norte da questão inclusiva, ficaria de fato um vácuo num curso chamado “Saberes e práticas da inclusão” lidar apenas com as chamadas deficiências e a superdotação, deixando de lado todo o restante, explicitamente nomeado na declaração. Se esse vácuo não parece tão evidente é porque o que se convencionou chamar de inclusão escolar é de fato o atendimento às crianças com necessidades educacionais nas salas de aula comuns, e todo o restante se configura como discurso periférico. Fora do discurso, mas como parte de suas condições de produção, está o próprio fato do material ser produzido pela Secretaria de Educação Especial, sem nenhuma referência à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), a qual “reúne temas como alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental, educação escolar indígena e diversidade étnicoracial” (BRASIL, 2006). No interior do discurso, a apresentação dos fascículos deixa claro esse vínculo entre os conceitos de inclusão escolar e o de educação especial: considerando a importância da formação de professores e a necessidade de organização de sistemas educacionais inclusivos, para a concretização dos direitos dos alunos com necessidades educacionais especiais, a secretaria de educação especial tem a satisfação de entregar-lhe a coleção [...] (todos os cadernos, página inicial não numerada, grifos meus). 154 O conectivo para indica finalidade, o que subordina a organização de sistemas inclusivos à concretização dos direitos dos alunos com necessidades educacionais especiais. Um outro movimento, no entanto, remete mais uma vez para a ampliação do conceito de inclusão, como proposto na Declaração de Salamanca: entre os oito objetivos propostos (C1, P.7-8), somente aquele que propõe a análise das Diretrizes para a Educação Especial na Educação Básica (Resolução nº. 02 de 11/02/2001) toca na questão da educação especial. Aquele que trata de necessidades educacionais específicas (o terceiro, pela ordem de apresentação) é genérico: “Apresentar alternativas de estudo sobre como atender as necessidades educacionais específicas dos alunos a grupos de professores e a especialistas em educação, de modo que possam servir de instrumentos para o desenvolvimento profissional desses educadores” (C1, p.7; grifo meu). Esse esforço de dilatação do conceito de inclusão tropeça, porém, nas escolhas evidenciadas na estrutura do trabalho e em sua formatação, no suporte textual (são três manuais sobre como atender a necessidades específicas: o como atender remete diretamente ao a quem atender). E definir como um equívoco o entendimento da inclusão como limitada à educação especial não resolve a questão do silêncio acerca do como atender quaisquer outras especificidades (para me manter na referência ao texto de Salamanca: crianças de rua, trabalhadoras; nômades; pertencentes a minorias, desfavorecidas ou marginalizadas). O dispositivo de enunciação, ou contrato de leitura, como quer Verón (2004, p.218), as modalidades de dizer o conteúdo dão novo sentido àquilo que é dito. O que é dito, no caso, tem um modo de dizer oscilante: alterna-se entre a ampliação do conceito de inclusão e sua redução. Esse oscilar pode ganhar um sentido específico através da estratégia de relacioná-lo com aspectos da formação discursiva esboçada na parte da análise em que trato das relações de poder. 155 Um discurso elaborado no interior de um projeto social e educacional que pretende se organizar pelo consenso, e não pelo enfrentamento dos conflitos, mas que não pode deixar de dialogar com outros discursos, forjados em práticas sociais e discursivas que admitem a existência de conflito na sociedade, poderia ter como estratégia de enfrentamento assumir a voz do outro, dando-lhe outras possibilidades semânticas: o fato do anúncio da ruptura com todo um modelo social e pedagógico se concretizar na inclusão da criança com necessidades educacionais na escola pública ganha, nessa relação, sentido. A pergunta gerada por esse fato _ por que a necessidade de anunciar uma ruptura mais ampla, já que um processo de inclusão nas escolas das pessoas com limitações físicas, sensoriais, neurológicas, com especificidades quanto à forma de comunicação, com capacidades acima da média, está suficientemente justificado, amparado no direito que têm todas as pessoas à educação conjunta, e nos benefícios que traz educação traz para todos? _ ganha resposta: porque essa é a forma do discurso dominante se defrontar com os discursos que o desafiam: apropriar-se de sua voz, transformando-a em voz recessiva. Poder-se-ia argumentar, claro, que é uma questão de recorte, criada pela impossibilidade de tratar de tudo ao mesmo tempo; que aqui se trata de educação especial, enquanto em outro lugar serão tratadas as demais especificidades. Mas nisso se evidencia uma outra estratégia, a de transformar questões de fundo em questões de recorte. Tal estratégia está vinculada a uma impossibilidade criada pelo próprio discurso: como a questão da pobreza, da marginalização é estrutural, e não uma peculiaridade, uma diferença entre tantas, dedicar-se a ela, do ponto de vista técnico, pode criar dificuldades discursivas. É possível (e necessário ao discurso) citá-la como especificidade, mas preparar um manual sobre como atender à criança pobre, marginalizada, poderia evidenciar por demais a fragilidade do discurso (pode evidenciar o tratamento que é dado às crianças não-pobres, da mesma forma como evidenciar o 156 tratamento dado às necessidades educacionais especiais põe a descoberto a forma como são tratados e entendidos os ditos “normais”). Traços das condições de produção do discurso que evidenciam o tipo de aluno que é esboçado pelo enunciador aparecem na proposta de indicadores que ajudem a avaliar as expectativas da família, quando pela primeira vez aparece a questão salarial: “visão otimista ou não da vida, das possibilidades de melhoria salarial e da qualidade de vida” (C7, p.75). O ou não faz subentender os aspectos contrários, que, se ditos, desvelariam uma realidade menos agradável de ser citada: “visão pessimista da vida, possibilidade de perda do emprego, piora da qualidade de vida”. A escolha de descrever todos esses aspectos sob a expressão “ou não”, deixando-os como ditos recessivos, coloca num segundo plano também aqueles a quem eles se referem. Os exemplos escolhidos a seguir para ilustrar um possível indicador de planos para o futuro falam por si só: “Planos para o futuro, incluindo viagens, mudança de carro, aquisição de bens de consumo...” (C7, p.75). Está claro que tais planos têm pouco vínculo com os projetos das famílias marginalizadas. Sempre se poderá argumentar que o verbo “incluindo” pressupõe outros planos, de outros grupos sociais. Sem dúvida. Em análise do discurso, porém, interessam as escolhas discursivas feitas: porque foram escolhidos esses exemplos e não outros? Basta dizer de outra forma para evidenciar a estranheza de uma outra formação discursiva (ou de um outro jogo semântico): planos para o futuro, incluindo: emprego, compra de bicicleta, pagamento das prestações atrasadas da televisão... Outro argumento que justifica a inclusão na escola comum do aluno com necessidades educacionais especiais é o de que sua presença faz repensar as concepções e práticas da educação comum, argumento fartamente sustentado na literatura acerca da educação especial, e isso traria transformações à educação como um todo, e à sociedade por conseqüência. O anúncio de práticas novas na educação comum, a partir 157 da ressignificação da educação especial, das necessidades educacionais especiais (ressignificação construída nos cursos de formação), é mais enfatizado no texto sobre avaliação (C7). A superação dos atuais modelos de avaliação por uma proposta “crítico/transformadora” é assumida como um esforço necessário (C7, p.45). Obviamente, pensar uma avaliação crítico-transformadora remete a uma concepção de educação que mereça esse qualificativo, e o objeto da crítica e da transformação, suponho, é a sociedade como um todo. Compreender a amplitude da inclusão teria a ver, nesse caso, com os efeitos que um procedimento relativamente simples (inserir nas escolas comuns as crianças com necessidades educacionais especiais) teria sobre a educação como um todo. O argumento, quando usado para fazer coincidir as duas noções de inclusão (e, consequentemente, os dois tipos de ruptura considerados), encontraria problemas no caso do discurso em análise, tanto naquilo que é dito, quanto no que é silenciado. No caso daquilo que é dito, pelo menos duas questões podem ser consideradas: é contraditório pensar uma educação crítico- transformadora para um projeto de sociedade que deve buscar consensos, portanto reproduzir o status quo; também parece estranho considerar, numa concepção crítico-transformadora, as deficiências da escola como superáveis pela educação de seus profissionais, entendida como mudanças no campo do pensar. No campo do que é silenciado, o argumento também mostra fragilidade: aparecem muito vagamente, no texto, os sujeitos “sem deficiência”, assim como os superdotados; toda a crítica aos processos reprodutores no interior da escola é ignorada, portanto, não se fala dos efeitos excludentes da educação comum (forjada numa sociedade excludente) sobre as crianças com necessidades educacionais especiais, mais especificamente, sobre as crianças cujas limitações exigem um atendimento individualizado. 158 Posso, dito isso, afirmar que não é, portanto, uma questão de recorte nem de compreensão a oscilação no discurso: é um modo de ser discursivo que se conforma em suas condições de produção: precisa parecer o que não é, para disfarçar o que é realmente. Reforça esse jogo discursivo a estratégia de fazer tabula rasa das realizações anteriores, seja no campo da produção acadêmica, seja no campo da rotina pedagógica, o que produz um efeito discursivo que estabelece o agora como ponto de ruptura e a ação pedagógica presentificada como detonadora dessa ruptura. Essa estratégia se evidencia especialmente quando o texto se refere à superação dos atuais modelos de avaliação, referindo-se a uma forma tradicional, verificadora, aferidora de resultados. O que não é dito é que essa crítica de nova não tem nada. É no mínimo arriscado dizer que a hegemonia de um modelo tradicional de avaliação escolar no Brasil deste começo de século tem a ver com ausência desse debate na formação de professores. O discurso se situa numa espécie de “ponto de ruptura”: até aqui foi assim, daqui pra frente será diferente (se todos se empenharem, já que “queremos todos a mesma coisa” (C7, p.87)). No entanto, nem a descrição “do que foi” e do atual se amparam em dados objetivos, nem o projeto “do que será” é claro e assumido. A fragmentação da educação continuada, cuja busca de superação é anunciada no segundo objetivo (C1, p7), não ganha um tratamento específico no texto: algumas considerações a respeito, no entanto, podem ser feitas, com base naquilo que é dito em outras partes do texto: considerando que há uma defesa de que as particularidades e singularidades regionais e locais sejam respeitadas e valorizadas (C1, p. 14); e levando em conta as dimensões territoriais brasileiras e sua diversidade considerando que o curso tem um planejamento bastante verticalizado com relação à escolha de conteúdos e formas de trabalhálos; considerando que os encaminhamentos tirados nele terão a implementação analisada e acompanhada pelo MEC (C7, p. 87), parece 159 plausível pensar que a superação de tal fragmentação será buscada, na prática, por uma unificação dos resultados e sugestões num projeto de educação continuada de longo prazo. A esse respeito, porém, nada é dito. Por fim, a cisão entre formação continuada e formação básica não é anunciada; entrevê-se mais pelo silêncio do que pelo que é dito. O subsidio tem como uma das finalidades “incentivar a prática de formação continuada no interior dos sistemas educacionais” (C1, p.7), portanto não é de se esperar que ele trate de educação básica. É de se esperar, no entanto, que uma continuação se estruture sobre uma base, e nesse sentido o silêncio acerca da formação básica é eloqüente. Não se fica sabendo se o texto pressupõe que todos os professores já tenham a formação básica, mas sendo um discurso cujo enunciador é o MEC, espera-se que faça parte de seu repertório de informações a obrigatoriedade de que até 2007 todos os docentes tenham formação superior ou “sejam formados por treinamento em serviço” (Lei 9394/96, art. 87). Relacionando a proposta com a rotina profissional dos professores, é possível ler o texto de outra forma: A formação de que trata é um curso de cerca de 230 h (pode ser ampliado ou reduzido, conforme a decisão de cada secretaria) para o qual o material publicado é subsídio (material didático). Sendo formação continuada, ocupará necessariamente os sábados _ e domingos, se contarmos a produção de relatórios e as leituras prévias necessárias_ dos professores. Se os professores ainda não têm o curso superior (como ainda é o caso na maioria dos municípios do Sul e Sudeste do Pará), devem, por imposição legal, estar cursando em suas horas vagas (noites, ou férias, sábados e domingos). A busca de titulação, necessária tanto para a transformação da prática pedagógica como para melhorar o padrão salarial, se choca com a premência das formações em serviço. Como fica o ano letivo? (numa demonstração rápida das cargas horárias de ano letivo, formação em serviço e formação obrigatória: para um professor que trabalha 8 160 horas dia, calculo cerca de 3600 h/ano ou 360 dias com 10 horas ocupadas em cada dia, sem contar correções de trabalhos e provas e preparação da aula. Se contarmos 2 horas/dia de preparação de aula e correção de trabalhos, o total sobe para 351 dias, trabalhando 12 h/dia ou 422 dias, trabalhando 10 h/dia). O silêncio acerca dessa situação traz sérias conseqüências práticas para a ação pedagógica, porque ela afeta o destinatário em sua força vital; a quantidade de energia a ser investida em formação básica, continuada e trabalho propriamente dito consome o seu tempo para além do que é humanamente suportável. Parece aceitável chamar de excludente tal situação; parece estranho exigir desse excluído práticas inclusivas. Juntam-se ao silêncio sobre formação básica as poucas referências ao trabalho das universidades e centros universitários, os quais deveriam ser responsáveis por tal formação. Quando aparecem, é como mais uma contribuição: [...] interação com especialistas em educação/pesquisadores da própria região ou de outros locais, como lingüistas, por exemplo, que tenham desenvolvido ou estejam desenvolvendo pesquisas sobre a educação de surdos no estado e que possam contribuir para ampliar as reflexões que acontecem nas escolas (C1, p.11). Não é dito que a formação universitária (cursos de licenciatura) tenha alguma função no exercício da profissão docente. É como se se tratasse de uma tabula rasa, na qual os cursos de formação continuada inscreverão a formação adequada. A universidade e a formação superior obrigatória são dadas como algo de fora, do externo. O efeito discursivo produzido consiste em recortar a realidade em partes sem relação entre si. Formação básica e formação continuada são colocadas, cada uma separadamente, como exigências ao professor. Cada vez que se trata de um dos aspectos da rotina educacional, omite-se o outro; cada um deles, no entanto, exige do professor dedicação integral. O fato de que isso não caiba no tempo concreto de que dispõe o 161 profissional não parece se configurar num problema para o planejador. Mesmo a necessidade de “fortalecer o papel das secretarias na construção de escolas que atendam a todos os alunos e a formação dos professores71, evitando a fragmentação e pulverização de ações educacionais” (C1, p.7) exige que não se fragmente a formação em cursos diferenciados cujos objetivos muitas vezes se sobrepõem. O desejo de romper com o individualismo na ação pedagógica emerge na própria forma como o curso está estruturado. A maior parte dos encontros está estruturada à moda da educação popular e sindical: constam de trabalhos em grupos e plenárias, sendo que nos trabalhos em grupo se realiza estudo dirigido e nas plenárias se identificam pontos em comum e pontos de divergência, culminando num fechamento onde o formador ajuda a fazer uma síntese das questões discutidas (C2, P.11;14;40;58;84; C3, p 19-20;36;60-61;64-65; C4, P.10-12; C5, P.1011;46;53;76-77;82-84;93;104;110-113;116; C6, P.55;57;83;126;155; 158;162;174;186;187;199). Esse desejo está expresso como objetivo do curso: Criar espaços de aprendizagem coletiva, incentivando a prática de encontros para estudar e trocar experiências e o trabalho em grupo nas escolas (C1, p.8). Ainda que não seja dito, a referência ao trabalho coletivo remete ao discurso pedagógico socialista, às propostas de Freire, de Makarenko, de Freinet. Essas propostas, no entanto, fazem o esforço de refletir sobre as relações de poder nas quais a escola se insere, a coletividade se reúne não somente para aprender, mas aprende para algo (potencializar as ações de transformação social). O exercício da crítica em si e por si faz aqui bastante sentido; ganha uma função alienadora. A prática discursiva “crítica” substitui a criticidade na prática política. O sujeito crê que está participando porque lhe é permitido fazer a crítica, mas sua critica tem pouca função na 71 Deve ser “e na formação dos professores”, me parece. 162 transformação das coisas. O efeito discursivo construído é a definição de atividade crítica como exercício em si, sem vinculo com um processo real de transformação. O uso da palavra criar possibilita que seja dito de outro modo: não há espaços de aprendizagem coletiva nas escolas (eles precisam ser “criados”). Mais uma vez, evidencia-se a disposição de começar do zero, de romper com o atraso e criar o novo. A superação do individualismo, porém, exigiria que os efeitos da ação coletiva se fizessem sentir nas relações de poder, nas práticas produtoras de exclusão. Os professores precisariam sentir que as decisões tomadas coletivamente são de fato inclusivas, porque têm efeitos naquelas práticas sociais. Quando, no entanto, os efeitos dessas decisões se centram no pedagógico (isto é, o professor só pode decidir sobre suas próprias ações dentro da escola, premido pela imposição social de não parecer preconceituoso ou tradicional), é de novo o indivíduo que emerge fortalecido, e as práticas coletivas ganham “novo” sentido, nesse jogo em que a aparente produção de polissemia é o disfarce de processos parafrásticos: aparentemente encerrados em si mesmos, parecem puro exercício de convivência. Digo parecem porque, de fato, tais exercícios somente ganham sentido nos processos de manutenção do status quo, pela tentativa de absorção dos discursos dominados. O efeito discursivo obtido com esse recurso a temáticas e modos de fazer recorrentes na história da educação popular é uma atenuação dos efeitos já analisados, relativos às relações de poder e à cisão entre pensar e fazer. Através da estratégia discursiva de remeter a temáticas caras aos movimentos sociais (grupo, encontros, troca de experiências, coletividade) a noção de ruptura ganha força (a “velha” estrutura pedagógica não continha esses espaços; eles serão criados no “novo”); ao encarcerar essa possibilidade de mudança na “aprendizagem escolar”, no entanto, a busca de ruptura se esvazia porque constrangida a um espaço específico. 163 Para resumir e ancorar provisoriamente este momento analítico no jogo semântico mais amplo, teço algumas considerações: a articulação entre os desejos de ruptura anunciados no texto, afirmei antes, não se processa pacificamente. A defesa da inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais nas salas de aula comum perde sua especificidade e sua força porque se disfarça de mudanças na sociedade mais ampla; a busca de mudança nas práticas sociais e pedagógicas enfrenta o vácuo entre o social e o pedagógico, criado por uma concepção recortada da ação humana; o desejo de criação do “novo” tropeça numa polarização com um “velho” pouco claro, a que se fazem alusões rápidas e estigmatizadoras (fazem tabula rasa das experiências e produções anteriores) assim como se embaralha em descrições vagas desse novo; o desejo de um projeto unificado de formação continuada, rompendo com a fragmentação das ações educacionais, perde base por causa da vaguidão do projeto geral de educação dentro do qual se insere e, por fim, dar a formação básica como questão resolvida cria empecilhos à execução de qualquer projeto de educação continuada, porque não leva em conta as bases dessa continuação. 5.4. O LUGAR DO PROFESSOR NOS ENUNCIADOS OFICIAIS É principalmente ao professor, já foi dito, que o discurso oficial se dirige explicitamente, no texto analisado. Segundo Verón (2004, p. 233), o enunciador, por formas variadas, propõe um lugar a um destinatário. Ao analisar os trechos referentes ao professor, busquei marcas que evidenciassem esse lugar, que o situassem com relação ao enunciador, assim como investiguei as relações que o discurso propõe entre enunciador e destinatário (VERÓN, op.cit., p. 218). 164 O lugar proposto ao professor no discurso se mostra flutuante e contraditório. Os traços de tais flutuações e contradições foram localizados naquilo que é dito ou silenciado em vários momentos: na previsão das ações a serem realizadas nas sessões de leitura, debates e plenárias, nas relações entre conhecimento e prática pedagógica, na divisão de funções e tarefas, na sistemática de avaliação e, enfim, na caracterização de um certo perfil de professor que se configura nesses momentos todos. Na previsão das ações a serem realizadas nas sessões de leitura, debates e plenárias, aparecem traços das condições de produção do discurso no que se refere à relação com o texto que serve de subsídio à discussão, à sistemática de escolha de pauta e estrutura do curso e da oscilação do poder-dizer do sujeito/destinatário ao longo do curso. Com relação às sessões de leitura, geralmente propostas para grupos, o formador deve [...] estimular a participação de todos os professores nas sessões de leitura dos documentos, intervindo para que todos fiquem à vontade para expressar dúvidas de qualquer natureza (C1, p.13, grifos meus). Esta descrição faz imaginar uma postura tradicional diante do texto: o professor, aqui travestido de aluno, expressa suas dúvidas, mas não suas divergências. O texto está numa posição hierárquica superior. O processo de seleção desses textos e autores é silenciado, o que o coloca numa dimensão separada para a qual não está prevista nem mesmo a expressão de dúvidas. Nesse momento da leitura, não aparece a possibilidade de expressar discordâncias daquilo que é lido, ou da própria escolha dos textos e autores (haverá um momento para isso, como mostrarei a seguir). A mesma subordinação a uma escolha de conteúdos cujo sujeito se eclipsa aparece em outro trecho: É importante [...] que o formador apresente a pauta de conteúdos de todo o fascículo (para que os professores possam saber o que será tratado no período) (C1, p.14 – grifos meus). 165 Os verbos escolhidos são claros: nenhuma possibilidade de mudança da pauta se coloca, assim como não se supõe que o formador possa ficar sabendo (pela voz dos professores) que outros conteúdos/temas são mais interessantes do que aqueles que o fascículo apresenta. O que será tratado é definido no fascículo (por uma equipe de planejadores da SEESP/MEC), o formador “apresenta”, e os professores “ficam sabendo”. Não é preciso lembrar como isso entra em contradição com a estrutura de plenárias, espaço de tomada de decisões em pé de igualdade (um homem, um voto). O que isso evidencia é uma distribuição desigual de poder: as plenárias podem decidir certas coisas e não outras, e aquilo que pode ou não pode ser decidido nas plenárias é definido em outra instância de decisão, numa estrutura em que a plenária é instância subordinada. É reservado, enfim, um momento para o posicionamento crítico: ao final da discussão sobre cada tema, [...] é fundamental que os professores tenham oportunidade de posicionar-se criticamente quanto aos diferentes assuntos abordados (C1, p.14; grifos meus). Naquilo que é dito, já aparecem os traços de uma relação desigual de poder: quem dá essa oportunidade é o formador, num momento específico definido pelos planejadores (ao final da discussão). Não há instruções ao formador sobre o que fazer se o posicionamento crítico surge no momento inicial (com relação ao conteúdo, ao texto escolhido, à forma de encaminhar o trabalho...), ou no meio, e não no final. O discurso remete a outros discursos acerca de uma educação crítico-transformadora, a possibilidade de criticidade se associa semanticamente à estrutura de plenárias; uma voz recessiva fala desde o interior do discurso dominante. Para lidar com essa voz, no entanto, surgem estratégias que permitem um jogo polissêmico em que outra voz atenua aquela: primeiro, o conjunto de expressões “é fundamental/ posicionar-se criticamente” é enfraquecido por “ao final da discussão /tenham oportunidade”. Quando é lembrado que “é fundamental que 166 tenham oportunidade” surge a dúvida sobre se essa oportunidade aconteceria caso o enunciador não fizesse o alerta: o enunciador se coloca como aquele que advoga o pensamento crítico, alertando o formador para que dê essa oportunidade aos professores, tomados como objeto da oração, e não sujeito. O posicionamento crítico, portanto, não é pressuposto como uma capacidade que o professor pode exercer a qualquer momento, como inerente a seres que pensam; é o formador que lhes dá essa oportunidade. Aí entra a segunda estratégia, em que a questão da temporalidade modifica a rede de sentidos: essa oportunidade não ocorrerá em qualquer momento, mas ao final do processo. O jogo semântico com a palavra final brinca com suas possibilidades polissêmicas: a “palavra final” parece ser do professor, mas o fato dela estar no fim do processo não significa que seja decisiva: expressa simplesmente temporalidade, como na piada em que o marido diz que em sua casa a última palavra é dele (e, no exercício dessa palavra final, ele grita: “já vou, meu bem, já vou”...). O modo de dizer do planejamento do curso cria, então, certos efeitos discursivos em que o lugar do destinatário oscila entre a passividade e a atuação crítica, mas nesse oscilar, o descolamento entre atuação crítica e possibilidades de mudança, a atomização dos momentos e espaços de decisão, a presença de um enunciador cuja posição de poder permite escolher que temas são ou não passiveis de decisão pelo professor, são fatores que empurram o pêndulo para o pólo da passividade. Não estou pressupondo que o destinatário seja necessariamente passivo, estou afirmando que se surpreende essa expectativa do enunciador: que o destinatário seja critico, mas não tão crítico que questione certas decisões de base, e que o seja na hora determinada pelo enunciador; que participe, mas que essa participação não pressuponha formação. propor outros conteúdos, outra estrutura, outra 167 As relações entre conhecimento e prática pedagógica também evidenciam um determinado lugar para o professor e sua prática no discurso. No seguinte trecho, a rotina do trabalho pedagógico aparece como modificável pelo estudo de conteúdos, os quais devem servir de base para a reflexão sobre a prática: Em todos os fascículos dá-se atenção especial a análise da rotina do trabalho pedagógico, pois entende-se (sic) que esta deva ocupar um lugar de destaque na formação dos professores. Esta é abordada dentro da perspectiva de relacionar o conteúdo que está sendo discutido com a prática do professor, permitindo a este a reflexão sobre como esses novos procedimentos podem gerar novos conhecimentos sobre sua prática (C1, p.14, grifos meus). Vale a pena destrinchar o que é dito, para colocar em evidência o modo-de-fazer discursivo: os novos procedimentos ensinados (sobre como atender aos alunos com necessidades educacionais especiais) devem gerar novos conhecimentos sobre a prática do professor. Analisase a rotina, relaciona-se com os novos procedimentos (ensinados) e elabora-se conhecimento acerca da prática (do professor). Não aparecem as possibilidades da prática do professor já ter avançado para além desses novos procedimentos, ou deles não serem tão novos assim, ou de, sendo novos, não terem grande contribuição a dar72 . Também não aventa a possibilidade de que tais procedimentos possam ser modificados no interior das práticas existentes, ou de que outras práticas, que não a do professor (rotina do trabalho pedagógico), precisem ser modificadas e exijam a elaboração de novos conhecimentos. A prática é dada como estática (não se modificou ao longo dos anos de experiência e de cursos de formação), e alienada (em si mesma, não gera conhecimento; é a relação com conteúdos estudados que permite a reflexão). Essa desqualificação da prática profissional, aliada à subordinação ao ensino, à formação (nesse caso, à aprendizagem de 72 O discurso atribui uma positividade intrínseca à idéia do “novo”, em oposição à (também considerada inerente) negatividade do velho, do tradicional. 168 novos procedimentos) se fortalece quando são localizados os traços discursivos que encontram um lugar para o tradicionalismo: o pensar do professor de professores e alunos. Após fazer uma crítica já bem conhecida da avaliação tradicional, o texto atribui esse tradicionalismo ao professor e seu modo de pensar. Não aparecem referências às raízes sociais da aferição, da seleção, da competitividade: A idéia de que a avaliação é medida dos desempenhos dos alunos está fortemente enraizada no imaginário dos educadores e dos aprendizes (C7, p.23). O que não é dito é que tal idéia tem raízes nas práticas sociais, nas quais tanto têm lugar professores e alunos quanto planejadores e dirigentes, envolvidos em relações de poder; eles não criam a própria prática a partir das próprias convicções, mas da interação entre essas convicções e as diversas instâncias de um mundo competitivo e seletor. Tal idéia, portanto, espelha um modo generalizado de pensar que privilegia a seleção dos melhores. Situá-la no imaginário dos professores e alunos não seria problemático (ela também “está” lá, claro), se não mobilizasse uma crença: a de que é necessário e suficiente “trabalhar o imaginário” de “professores e aprendizes” para assim modificar sua prática. Em termos menos poéticos: há que instruir os professores a respeito do que significa realmente avaliação (e todo o resto), de forma que eles possam refletir sobre isso e modificar sua prática. Tal crença pressupõe que há um significado real em algum lugar, a que se terá acesso através da formação; considera que é por não conhecerem, ou por conhecerem significados equivocados, que os professores não mudam sua prática. O recurso discursivo de dissociar o pensar do fazer, subordinando o segundo ao primeiro, situa o professor e seu fazer como alienados e o conhecimento (ou mesmo a mera instrução) como desalienantes. É nas hierarquias pressupostas pela divisão de funções e tarefas que as marcas dessa dissociação aparecem com força, porque, aqui, o 169 lugar do pensar mais amplo (no sentido de decidir) se afasta do lugar do professor; seu pensar passa a ser vinculado com a aprendizagem (lugar de aluno) e execução da tarefa pedagógica (lugar de professor). O discurso explicita as funções do coordenador e do formador de grupo em termos de distribuição de tarefas e sugere uma determinada hierarquia. O primeiro deve “divulgar o programa para os professores”, “ajudar na organização dos grupos de estudo”, “providenciar os recursos materiais”, orientar as reuniões de estudo e trabalho dos formadores de grupo, “assessorar e avaliar o desenvolvimento dos cursos de capacitação” (C1, p.11). As funções de coordenador, portanto, podem ser resumidas em termos de divulgação, ajuda, orientação, assessoria, avaliação. Faz relatórios diretamente para a SEESP/MEC. Silêncio interessante: o texto não cogita relatórios para a secretaria (municipal ou estadual) que indica o coordenador. É como se ele estivesse diretamente subordinado à SEESP/MEC: é fundamental que cada secretaria indique um coordenador que fará a articulação entre SEESP/MEC e os professores formadores de grupo[..] (C1,p10. grifos meus). Surpreende-se aqui uma estrutura hierárquica construída para o curso, que passa ao largo daquela já existente nas secretarias: SEESP›coordenador›formador de grupo›professores. Os formadores de grupo devem “coordenar as reuniões dos grupos”, “ler previamente os textos indicados”, “elaborar atividades complementares”; “incentivar os professores a analisar a própria experiência”, “planejar e controlar o tempo destinado a cada atividade, bem como o uso do espaço físico e do equipamento necessário”, “criar espaços para os professores comunicarem suas experiências”, “estimular a participação”, “ajudar na sistematização do trabalho, “enriquecer, ampliar ou modificar as propostas de encaminhamento”, avaliar o desenvolvimento de cada tema, o desempenho dos participantes e a própria atuação” (C1, p.13). Suas funções, portanto, podem ser 170 resumidas em termos de coordenação, elaboração, planejamento, controle, estímulo, ajuda, avaliação. Interessante observar que, ainda que o formador de grupo preste contas ao coordenador, as funções executivas cabem àquele, enquanto que as funções do coordenador parecem mais de acompanhamento e assessoria (aquelas mesmas a que o MEC se propõe, como evidenciado em 5.1.). Nessa distribuição de tarefas, as marcas de hierarquia são vagas, a não ser no que se refere à avaliação: o coordenador avalia “todo o desenvolvimento dos cursos de capacitação” (C1, p.11), enquanto que o formador “avalia o desenvolvimento de cada tema, o desempenho dos participantes e apropria atuação” (C1, p.13). Tanto o orientador quanto o formador deverão ser indicados pelas secretarias de educação. O Coordenador deverá ser escolhido entre pessoas da localidade comprometidas de fato com a promoção do desenvolvimento profissional dos educadores e, de preferência, vinculadas ao setor ou departamento da secretaria responsável pela Educação Especial no estado ou município (C1,p.10). Os formadores de grupo poderão ser escolhidos entre Professores das universidades, integrantes de ONG’s, especialistas em educação especial e técnicos da equipe pedagógica da secretaria [...] os formadores de grupo precisam ser pessoas que gozem do reconhecimento dos professores(C1,p.12). Dada a quantidade de trabalho envolvido (como demonstrei em 5.1.), permito-me imaginar que esses profissionais não serão voluntários, mas pertencerão ao quadro das secretarias, o que os situa também em outra estrutura hierárquica, diferenciada daquela prevista para o curso. Quanto às funções dos professores, elas não aparecem num título específico. Na qualidade de alunos, eles estão contemplados no cabeçalho clássico dos objetivos didáticos definidos a cada início de encontro: “ao final de [...] o professor deverá ser capaz de [...]”. A naturalidade do uso dessa fórmula didática parece colocá-la no domínio do 171 não-discutível; não diz o bom senso que ao final de um trabalho pedagógico, devam-se apresentar resultados? E que esses resultados se expressam em novas capacidades (aprendizagem), cuja avaliação dirá do bom ou mau andamento do trabalho? O exercício da análise da prática discursiva remete para além desse senso comum pedagógico: situar no professor (aqui no lugar de aluno) o desenvolvimento das capacidades dadas pelo enunciador como necessárias para uma escola inclusiva e silenciar quanto aos outros lugares (o do coordenador, o do formador, o do próprio enunciador) implica em supor essas capacidades já desenvolvidas nesses lugares, ou em sua não-necessidade ali. A pergunta que aquele cabeçalho cria _ se, ao final do processo, o professor for capaz de todas aquelas coisas, tiver desenvolvido todas aquelas competências, teremos então uma escola inclusiva?_ só pode ser respondida remetendo à admissão ou não de outras instâncias responsáveis pela inclusividade. Se respondida afirmativamente, será o professor (ou no máximo a escola) a instância a responder pelas mudanças sociais. Se respondida negativamente, gerará algumas perguntas incômodas: As demais instâncias já estão capacitadas? Quem as capacitará? Por que se escolheu a escola como instância inicial a ser capacitada? Quem a escolheu? O fato das tarefas atribuídas aos professores não estarem descritas num texto específico não impede que elas estejam descritas no interior do texto, como objeto das funções de coordenador e formador. De fato, tais tarefas podem ser pinçadas ao longo do texto: os professores devem “fazer anotações pessoais, escrever conclusões de atividades, documentar as sínteses das discussões, formular perguntas e reflexões” (C1, p.10);“ fazer uso do que aprenderam” (C1, p.12); organizar um caderno de registro” (C1, p.13); expressar/analisar/comunicar (C1,p. 1213) suas experiências; participar (C1, p.13); , sistematizar o trabalho (C1, p.13); ser avaliados com relação às expectativas de aprendizagem e aos 172 conteúdos propostos (C1, p.13); fazer auto-avaliação (C1, p.14); relacionar o que sabem com o que está sendo apresentado (C1, p.14); “[...] posicionar-se criticamente, visualizar soluções criativas, descobrir novos caminhos [...]” (C1.p.14). São tarefas vinculadas à aprendizagem que deve ocorrer “neles”, na qualidade de alunos. Como o caderno em análise é “do orientador e do formador”, e como, ao final de cada encontro, “ o professor deverá ser capaz de”(C7, p7 e todos os demais), é lícito imaginar, pelo silêncio discursivo a respeito, uma pressuposição de que tais tarefas exigem capacidades que já estão desenvolvidas, ou não precisam ser desenvolvidas, ou não é o momento de desenvolvê-las, nos demais membros do processo. Surpreendo aqui três hierarquias em que o lugar atribuído ao destinatário pelo enunciador se desdobra. Uma hierarquia que desloca o lugar do professor: na distribuição do conhecimento (quem ensina, quem aprende) num primeiro momento ele é situado do segundo lado, na qualidade de aluno, num segundo momento (o da prática pedagógica) ele volta para o lado inicial (volta a ser professor). Na questão da avaliação se flagra outra hierarquia clara; o coordenador avalia o conjunto das ações (C1, p.11) o formador avalia os professores e a si próprio (C1, p.13), os professores avaliam a si próprios (C1, p.15). Tal avaliação pode ter relação com conhecimento, mas tem principalmente com controle: é através dela que o MEC/SEESP recebe, filtrados por relatórios entre os quais se estabelece uma relação de subordinação, os resultados daquilo que foi executado. Uma terceira hierarquia, a qual o texto trata como relações entre interlocutores (C7, p.87), é aquela derivada das estruturas de poder nas secretarias de educação (professor> diretor>secretário de educação) e das relações de governo (prefeitura>estado>governo federal). Nessas, o lugar do professor é o de funcionário, mas a vaguidão descritiva de tal hierarquia no discurso faz com que esse lugar se manifeste como o do interlocutor. Considerando-o interlocutor, atenuam-se as possibilidades de 173 discussões a respeito de carreira, salário, e outras, que seriam concernentes àquele terceiro lugar do destinatário do discurso e teriam função num debate acerca de uma sociedade cujos professores sofrem processos excludentes. A análise dos desdobramentos do papel que o enunciador atribui ao destinatário (aqui aluno, ali professor, acolá interlocutor) exigiria muito mais do que é possível fazer nesta tese (exigiria, quem sabe, uma outra tese a respeito dos lugares do professor nos discursos oficiais). Para efeito deste trabalho, basta dizer que tais desdobramentos não escapam das hierarquias: em seus efeitos discursivos, também se organizam segundo uma ordem determinada, na qual o lugar de interlocutor é absorvido pelo lugar de professor e este é absorvido pelo lugar de aluno. É somente se se demonstrar “capaz de” (no lugar de aluno) que ele será julgado adequado para o lugar de professor, condição na qual ele poderá se configurar como interlocutor adequado: um professor “inclusivo”. Além disso, como uma hierarquia não substitui a outra (elas se sobrepõem), além dos conflitos inerentes a cada uma internamente, podese imaginar outros, decorrentes dessa sobreposição. Como o interlocutor aparece como um lugar subordinado ao de professor e este como subordinado ao de aluno, não é difícil imaginar que o lugar dos educadores seja o mais afetado por tais conflitos. Por fim, um comentário sobre o lugar do enunciador: as secretarias de estado e municipal não se mostram, no caso desse discurso, como desdobramentos do enunciador. Configuram-se, no máximo, se me é permitido usar uma gíria militante, como “correia de transmissão” do discurso. Sua função, caso estejam interessadas numa educação inclusiva e de qualidade para todos (C1, p.7) é criar condições para que o discurso chegue ao seu destinatário: o professor. Ainda que eu já tenha tratado das hierarquias na sistemática de avaliação, vale a pena voltar a esse tema para acessar outra rede de sentidos referentes ao lugar do professor, aqui com referência a certo 174 perfil que vai sendo desenhado conforme o discurso vai caracterizando seu destinatário. [...] considerando-se que os professores, em sua maioria, não têm acesso garantido à literatura sobre avaliação e às questões que o tema tem suscitado, é de compreender que avaliem de forma inadequada, ainda que desejando fazer o melhor (C7, p.20; grifos meus). Na frase acima, é dito nas entrelinhas que nenhum professor deseja medir seus alunos, e se o faz é por falta de informação. Se isso pudesse ser dito de forma coloquial, teria o seguinte formato: “O professor é bonzinho, mas tonto, pobrezinho”. No que não é dito, o lugar de onde fala o enunciador se fragiliza: pondo em ação a crença de que o acesso à literatura e ao debate pode fazer avaliar de forma adequada, não cita uma única experiência em que somente tal acesso tenha feito avaliar de forma adequada (aquela minoria que o texto deixa entrever). Ao mesmo tempo, postula a criação desse acesso como forma de adequar as práticas avaliativas e pedagógicas como um todo. É àquele mesmo professor que cabe corrigir em suas preocupações inadequadas e em suas falsas suposições, dando-lhe oportunidade de refletir sobre isso num curso de formação continuada: Inicialmente cabe destacar sua importância [das habilidades pessoais-sociais dos alunos], nem sempre tão valorizada como elementos (sic) de análise pelos professores, mais preocupados com o rendimento escolar e na falsa suposição de que aspectos sociais e afetivos são mais pertinentes nos processos de avaliação clínica (C7, p.67; grifos meus). Entre o perfil desenhado para o professor do “agora” num pólo, e o projeto de um professor bem-formado, inclusivo, inovador (no pólo contrário), situa-se a formação. Evidencia-se então a contradição a que já me referi: é à comunidade escolar (da qual esse professor é membro importante) que cabe decidir e encaminhar todo o projeto pedagógico, como dito a seguir: “a identificação dessas necessidades deve impulsionar a comunidade escolar às providências cabíveis para satisfazê-las” (C.7, p.23). Essa contradição se atenua quando é levada em conta a questão da 175 temporalidade: O “formar-se” e o “tomar decisões a respeito da inclusão” ocorrem num mesmo tempo (no próprio interior do curso de formação continuada): as reflexões sobre a prática produzem efeitos imediatos, não exigem um tempo maior de elaboração. O efeito discursivo produzido por essa contradição entre o perfil que o enunciador desenha para o destinatário e as expectativas que tem em relação ao seu papel numa sociedade inclusiva, efeito esse que afeta a auto-estima do professor ao mesmo tempo em que lhe impõe desafios imensos, põem em ação a velha crença de que venho falando: basta a educação para que o mundo se modifique para melhor. Junte-se a essa crença as propaladas premências do mundo contemporâneo (essa educação tem que ser “para ontem” e por isso não pode esperar por projetos mais gerais) e teremos o lugar do destinatário como um lugaralvo: nele se situam todas as falhas que é preciso corrigir para a construção de uma escola inclusiva e a ele se dirigem todas as ações de correção. As flutuações do lugar proposto ao professor no discurso, aparecendo como subordinado, passivo, em certos momentos, para emergir como agente, cidadão participativo em outros; capaz de tomar providências e encaminhar o processo inclusivo em certos trechos, em outros, portador do atraso (que ele precisa superar pela formação adequada), ganha sentido numa formação discursiva em que fazer e pensar aparecem como dimensões recortadas do humano, novo e velho são dimensões opostas da vida e o poder se disfarça de interlocução. 5.5. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO GOVERNAMENTAL: TEMÁTICAS E MODOS DE OPERAR Enfeixei, então, quatro conjuntos de efeitos discursivos no discurso oficial: os disfarces e ocultamentos das relações de poder, a 176 subordinação do fazer ao pensar, a busca de ruptura, as flutuações do lugar do professor. O desafio metodológico, agora, é cruzar esses conjuntos de efeitos, caracterizando a configuração discursiva que toma forma nessa articulação. Para estabelecer tais relações, é importante retomar suas relações interdiscursivas internas. O primeiro conjunto de efeitos discursivos, que denominei “os disfarces e ocultamentos das relações de poder”, envolve um embate que, no interior do próprio discurso, se estabelece com as vozes contrárias: exige certos ocultamentos (omissão de pontos de vista contrários, o ocultamento de projetos em conflito, do processo de produção das desigualdades, o ocultamento do próprio projeto), a desqualificação do pensar diferente, a atenuação das relações de mando sob a representação de relações de colaboração e diálogo (harmonização do conflito), certos mecanismos de antecipação da voz do outro e de enfraquecimento dessa voz (a intenção individual aparece como definidora tanto do lugar do enunciador quanto do lugar do destinatário). O segundo conjunto, “a subordinação do fazer ao pensar”, inclui operações discursivas que buscam deslocar o pensar do destinatário na direção de si próprio e de sua prática (cindida de outras práticas e estabelecida como objeto privilegiado de reflexão), ocultam a possibilidade dessa prática de produzir pensamento e remetem tal produção para o campo do conhecimento, aqui transformado em formação (conscientização). Cindir a voz do outro na sua possibilidade de se contrapor é o projeto discursivo: ele falará ou do campo do pensamento ou do campo da prática; essa cisão desqualifica a própria possibilidade da contrapalavra, por causa da posição em que o professor é colocado: no campo do pensamento não teria autoridade, no campo da prática seria atrasado e tradicional. No terceiro conjunto, aqui chamado “a proposta de inclusão como busca de ruptura”, o discurso evoca para si a responsabilidade da mudança: se apresenta como arena na qual que o “velho” é combativo e o 177 “novo” começa a se estabelecer. Enfrenta a contradição posta entre propor a inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais na escola pública (o novo) e o processo de deterioração dessa mesma escola situando nos modos de pensar e de saber dos professores as razões dessa deterioração: autoriza-se assim a propor novas formas de conscientização, dessa vez acerca de como atender as necessidades educacionais especiais. No quarto conjunto de efeitos discursivos, o lugar do destinatário, o professor, se organiza por flutuações nas quais ora aparece como ser subordinado, passivo ora como agente, como cidadão participativo; ser portador do atraso e ser agente de mudanças ganham articulação quando se pensa que é aí que faz sentido um projeto de formação: é ele que faz a ponte entre velho e o novo, entre a heteronomia diagnosticada e a autonomia almejada. Considerando com Orlandi (2005, p.43), que “a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada _ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada _determina o que pode e o que deve ser dito”, esses conjuntos de relações entre efeitos discursivos se configuram em formações discursivas diferentes e em enfrentamento quando relacionados entre si. O modo de funcionamento do discurso oficial, então, no discurso analisado, estabelece um embate entre formações discursivas que chamarei de dominantes e recessivas (o que pode e deve ser dito, como discurso de frente e como “discurso de suporte”). A formação discursiva dominante, então, abrange a superação do atraso, o aprender a fazer, a predominância das idéias sobre a prática, a busca do consenso, a democracia em que todos os interlocutores têm o mesmo peso, a existência de uma sociedade inclusiva, pelo menos na intenção (e nesse discurso, intenção significa muito, já que as idéias predominam sobre a prática). 178 Uma certa ordem, uma certa regularidade pode ser encontrada: o lugar do professor flutua em consonância com o projeto de formação (que pretende, pela via das mudanças no saber, mudar o fazer); tal projeto se organiza num projeto mais amplo, para o qual a ocultação das relações de poder é vital, já que sua desocultação explicitaria características das práticas sociais nas as quais fazer e saber se imbricam estreitamente. Esse projeto mais amplo é chamado de sociedade inclusiva, o qual aparece ora como projeto a ser construído (por instâncias que se complementam) ora como realidade que tem suas disfunções mais gritantes na prática pedagógica, a qual necessita de ajustes. A inclusão se situa no pólo do consenso, não no do conflito (e as possibilidades de conflito aparecem relacionadas com intenções individuais, tradicionalismo, formação insuficiente, carências diversas). Os saberes da inclusão aparecem como saberes já constituídos, enquanto que as práticas da inclusão dependem do professor repensar sua prática, com base naqueles saberes (já constituídos) e no conhecimento técnico (o como lidar com cada especificidade). Não são relacionadas as práticas que excluem com a intenção ou a necessidade de excluir, mas com o preconceito, a desinformação, o atraso, a formação inadequada. Essas práticas têm geralmente o professor como sujeito. Não aparece nenhuma referência a práticas excludentes do sistema (mesmo quando se refere ao sistema escolar, aprovação e reprovação aparecem como decisões que dizem respeito ao professor). Tal discurso tem ênfase na produtividade, e não na criatividade (ORLANDI, 2005, p.38): a produção de idéias novas por parte dos professores se perde na falta de interlocutores (e apenas passam a constar dos relatórios). O projeto de transformação se fecha na ação pedagógica. A criação de coisas novas se situa no campo das idéias, que deverão reformar a prática; no entanto, as novas práticas têm a ver com a aplicação das idéias aprendidas (formas não-excludentes de lidar com a 179 deficiência). As práticas já existentes (atuais) não são descritas como passiveis de não só abranger aquilo que é descrito na Declaração de Salamanca e nas diretrizes, mas avançar para além dela. A formação discursiva recessiva, nesta relação configurada como de suporte da formação dominante, inclui a idéia da transformação social, da ruptura, da ação coletiva, da formação do agente social crítico e reflexivo, da participação no poder, da necessidade de construção de uma sociedade não-excludente pela superação dos mecanismos de exclusão. Digo que são “de suporte” porque tais vozes se entrecruzam de tal forma no discurso, que as segundas, ao invés de se colocarem em contraposição, dão suporte e estabilidade às primeiras. Os ocultamentos, os deslizamentos de sentido, as reificações contribuem para que a transformação se reduza a ajustes na prática pedagógica, a crítica ocorra nos momentos pedagogicamente corretos, a participação se limite à participação permitida, a construção da inclusão se reduza à aprendizagem de que inclusão é possível, dentro de uma realidade à qual todos tem que se submeter. Considero que é possível, com Verón, chamar tais relações de coerções de engendramento do discurso, as quais “deixam rastros no texto” (2004, p.52); tais rastros são os traços das condições sociohistóricas em que ele é produzido, as quais permitem a construção de diversas gramáticas de reconhecimento; a que serve de base a esta tese é apenas uma dessas possibilidades. 6. A INCLUSÃO NO DISCURSO ESCOLAR: CONVERSAS INTERFACE ENTRE EDUCAÇÃO COMUM E ESPECIAL NA Neste capítulo, apresento a análise e interpretação de um gênero de discurso escolar, representado pelas falas transcritas de professores do ensino público de Marabá, Pará, que atuam na interface entre educação especial e comum (na qualidade de professores responsáveis por um atendimento denominada pedagógico de inclusão especializado), escolar73. Foram dentro da transcritas experiência e analisadas entrevistas/conversas com sete professores, em quatro sessões (num total de 2:58’:17” h de gravação); tais textos foram tratadas inicialmente como conversações, como descrevi no capítulo 4, e depois submetidos ao dispositivo de análise de discurso construído a partir das contribuições de Orlandi (2005) e Verón (1980; 2004). Tal forma de lidar com o texto produzido pela transcrição das falas se ancora numa compreensão de que o falar se estrutura diferentemente do escrito; tem uma lógica interna própria e isso repercute sobre suas possibilidades de análise e interpretação. É por isso que usei normas de transcrição que procuram, na medida do possível, preservar características do falado, evitando tratar o texto que foi produzido com origem nas falas da mesma maneira que seria tratado um texto escrito. Em todas as entrevistas, os entrevistados tiveram mais tempo de fala do que eu, a entrevistadora, como de praxe nesse tipo de diálogo. No entanto, sou eu quem está numa posição considerada superior (pela minha função de professora universitária e pesquisadora); a assimetria conversacional, nesse caso, se opõe à assimetria social (GALENBECK, in PRETI, 1997, p.61). Essa assimetria conversacional aparece também nas 73 As iniciais que representam os nomes dos entrevistados não correspondem a suas iniciais de fato; foram substituídas para garantir o anonimato, considerando que é um grupo conhecido na comunidade educacional local. 181 características dos turnos de conversação: os turnos em que eu intervenho são, em sua maioria, turnos inseridos, ou seja, turnos que indicam que continuo acompanhando a conversa (GALENBECK, in PRETI, 1997, p.61). Os turnos nucleares em que intervenho, isto é, turnos que veiculam informação (idem, ibidem), são geralmente aqueles em que procurei inserir um novo tópico, uma mudança de orientação no tópico discursivo, ou entrei nas polêmicas propostas por meus interlocutores. É preciso que diga que nem sempre tive sucesso nessas tentativas de direcionamento; muitas vezes a importância que o interlocutor dá ao tópico se expressou em retomadas, em exemplificações dentro de outros tópicos, em proposição de novas temáticas no interior da conversa. O processo de replanejamento acontecido durante o diálogo, numa reelaboração coletiva, não deixou de imprimir marcas na estrutura de tópicos dos textos (RODRIGUES, in PRETI, 1997, p.31). Os operadores destacados com mais importantes têm origem tanto em minhas falas como nas de meus entrevistados: o que lhes confere destaque porém, é a forma como que os entrevistados operam, em seu discurso, com tais termos. Certos operadores inspiram longas histórias, outros são quase que ignorados; uns são recontextualizados, outros irrompem dentro de tópicos que sequer lhes dizem respeito e assumem o centro da conversação. Creio que em nenhum momento a afirmação vigotskiana de que a palavra é viva ganha tanta clareza quanto na análise de textos conversacionais. Agrupados em torno dos operadores mais enfatizados no discurso, seis feixes de efeitos de sentido foram configurados: a aprendizagem, a prática e o outro; o outro-governo e suas oscilações de sentido; o lugar que o professor de atendimento especializado propõe para si mesmo no discurso; o lugar do outro-professor; o lugar do aluno incluso e a formação. O enfeixamento dos efeitos de sentido produzidos se traduziu neste relato na organização dos subtítulos deste capítulo, conforme pode ser visto na seqüência. 182 6.1. A APRENDIZAGEM, A PRÁTICA E O OUTRO Durante as sessões, emerge muitas vezes o conceito de aprendizagem, às vezes proposto por mim, às vezes pelos meus interlocutores. O professor (tanto eu quanto eles) fala, evidentemente, em seu lugar de membro de uma comunidade que lida constantemente com o aprender. Esse operador (aprender) aparece com certa flexibilidade; ora remete a estratégias de lidar com os pares (geralmente os professores de sala comum), ora de lidar com os pais, era de lidar com os alunos, ora de lidar com as exigências profissionais, de dominar as formas de comunicação com os alunos com surdez, cegueira ou baixa visão, assim como as técnicas adequadas ao ensino desses alunos. A principal aprendizagem citada por T. na experiência de trabalhar com inclusão é a aprendizagem da negociação: T. Ent. T. Ent. T. Ent. primeiro você aprende.. como liDAR ...não é... com as pessoas, hum...porque... porque você vai ter que entenDER... pessoas... vai ter que as vezes concordar com elas... até naquilo que não tá muito correto... porque? porque às vezes... se você...eh... de repente você... NÃO concordar eles sentem que você está aprontando. então muitas vezes você tem que CONcordar com aquilo, mas FRI-SAR um outro lado, o correto... para poder se aproximar... para poder se aproximar...tá?... tem vez que a gente tem que chegar e dizer NÃO... tem vez que chegar e dizer e dizer SIM... MAS... nós vamos fazer por aqui...certo?...então tem que ter muita precaução pra gente trabalhar com o pessoal... saber COMO... entrar e sair pra não se ferir... e pra não ferir a outra pessoa... (A, p.1, ls.11-30) Essa aprendizagem da negociação, na qual é importante “saber entrar e sair... pra não se ferir”, cuidar para que os outros não sintam que se “está aprontando” de inicio foi interpretada por mim como aprendida 183 na relação com os alunos com necessidades educacionais especiais, mas logo ficou claro que ela se referia aos demais professores, como se evidencia na história que serve de exemplo (A, p. 2-4, ls. 72-195). T. é professora itinerante, isto é, acompanha os trabalhos dos professores de ensino médio que têm em suas turmas alunos cegos e com baixa visão: não tem funções supervisoras, funciona mais como uma professora de apoio (reproduz material _ampliações e transcrições em Braille _ para os alunos com baixa visão e cegos (A, p.4-5, ls. 196-275). Sua relação com os colegas ganha ênfase no discurso, ao descrever como aprendizagem principal a negociação com eles (de certa forma uma relação de poder, já que os colegas podem ou não aceitar sua intervenção). O respeito à diferença aparece, nessa relação com os colegas, como uma via de mão única: é ela que tem que mudar, já que, segundo T., não pode mudar o outro; precisa aprender a lidar com aquela pessoa, mas não é dito que a outra pessoa também tem que lidar com suas singularidades como pessoa. Ent. T. você acaba aprendendo a conquistar outras pessoas... com certeza... com certeza porque...eh....eh... de repente você aprende a lidar com todas... com as pessoas da maneira que elas são.... --primeiro você não pode mudar ninguém... você tem que chegar e..eh-eh... conVIVER com aquela pessoa do jeito que ela é...agora que você é que tem que mudar...é VOCÊ que tem que mudar-- você tem que aPRENder a lidar com aquela pessoa (A, p.1, ls.39-49) D. (sessão C) descreve, como importante na sua vida, uma outra situação de aprendizagem: a sua própria como professora, ao descobrir um novo tipo de aluno (o surdo) e uma nova linguagem (LIBRAS). Ocorreu nessa relação um outro tipo de conflito, não entre F. e o outro, mas entre seus conhecimentos anteriores e a nova situação. Enfrentamento que a professora descreve como produzido a partir de uma situação repentina (“... dei de CAra... assim... com os alunos surdos na sala”). Aparentemente, não houve nenhuma discussão anterior sobre a presença dos alunos surdos e da necessidade de lidar com eles de modo 184 especifico; isso vai ocorrer depois, no curso de LIBRAS e na experiência de sala de aula: D. Ent: D. eu...comecei ter contato com essa ação social... com aluno incluso, em 2002, quando eu vim trabalhar nesta escola... na escola J. que tem um trabalho bem... bem antigo já...com a inclusão... né... né...e assim.... fui professora da sala comum...e de repente, entrei em contato... dei de CA::ra... assim... com os alunos surdos na sala...fiquei sem saber como:::... levou um susto...((risos)) foi um susto..né... sem saber como me comunicar... com eles... sem... sem saber/perdida mesmo né... e daí a gente... com o tempo com a experiência fui acostumando né... trabalhar com eles... a escola me possibilitou entrar em contato com a LIBRAS que é a linguagem... do aluno surdo e aí a gente foi... a partir da experiência com os cursos de LIBRAS... da experiência diária com eles... colocando em prática o que a gente viu no curso... aprendendo com eles... Chama a atenção o nomear da inclusão como “ação social”, pela professora; isso remete ao assistencialismo histórico com relação à deficiência. Isso, no entanto, aparece mais como um lapso: no restante, o discurso da professora D. não descreve o aluno surdo como coitadinho, e sim como alguém capaz de aprender (às vezes mais rápido) e ajudar os ouvintes. D. aqui a gente tem a questão da aceitação que é muito bOA... então acabam:: se ajudando... e:::a gente percebe que às vezes o aluno SURdo também ele ajuda o colega que é ouvinte... ele percebeu meLHOR... né... rápido... primeiro que o aluno ouvinte e acaba às vezes ajudando...(C, p.9, ls. 475481). Na citação anterior, o “aprender com eles” desloca o papel do professor como “aquele que ensina”; a professora assume sua inexperiência e se dispõe a se modificar; na seguinte, os alunos se ensinam mutuamente. 185 Para L., a aprendizagem é também pessoal, e se refere ao domínio do conhecimento necessário para assessorar os alunos cegos no domínio do Braille, conhecimento que é adquirido na prática cotidiana : L. Ent, Z.. Ent. L. e aí... eu tou... me sentindo melhor com dv (os alunos cegos) e:: a dificuldade (...) bom... a coisa assim num... num depende só de mim... né [ hunrum... as dificuldades no caso eh:: [ em geral... conta sua experiência depois... o que for faltando eu vou perguntando... é uma coisa assim que a gente... que a gente tá aprendendo no dia a dia... a gente vai adquirindo a gente vai assim adquirindo mais conhecimento... a gente tá sempre adquirindo mais conhecimento... a dificuldade vai superando... a cada () da gente... de repente você vê que é uma coisa tão simples... você tem uma dificuldade é uma coisa simples... (D, p. 01, ls. 29-46 Z., que participa da mesma sessão com L., considera que tem responsabilidade sobre a aprendizagem dos colegas, a aprendizagem é construída num processo de ajuda mútua. Z. L. Z. que ela já foi fazer o curso mas só que o tempo foi muito curto... e o curso de soroban é mui::to exten::so... porque você tem que trabalhar todas as... as contas... e:: até mesmo assim... ... em sala de aula... eh:: nós colegas que ficamos aqui... às vezes... ela até já me pediu... eu me sinto até culpada também por causa disso porque ela fica assim... “Js. ... vamos fazer... Js... vamos tentar...” e a gente vai enrolando vai enrolando vai enrolando... e faz uma coisa e faz outra... a gente tem tanta tarefa... que passa... e aí vai pasSANdo... sabe... porque a gente vai se preocupando mais com a história dos alunos... e dos próprios colegas até a gente vai (descuidando) e::: nesse caso aí eu tava até falando... tava até conversando com E. que nós vamos tirar um DIA pra nós mesmos do CAP ficar aqui dentro mesmo... prá NÓS mesmos trocar umas experiências por que::: senão... se nós não acharmos essa/esse esPAço... nós não vamos conseguir... (D, p.02, ls. 68-89) 186 Nesses três excertos o conceito de aprender tem certa flexibilidade, com relação aos tradicionais papéis de quem ensina e quem aprende: aprende-se na prática, com os colegas, com os alunos. A aprendizagem da inclusão, nas falas de P., outro professor, vai além da relação professor-aluno. Numa situação utilizada como exemplo na conversa, em que determinado pai humilhou a professora porque ela tinha saído com os alunos e se atrasou no horário de chegada74, E. lamenta a perda da chance de se promover aprendizagem também nas relações entre pais e professores: P. Ent. P. Ent. P. ai a professora falou que o pai agiu daquele jeito.. que ela ficou muito magoada... falou que o pai agiu daquele jeito porque ele era muito ignorante... BOM... se ele e:::ra... ou é muito ignorante...era uma BE:::la oportunidade pra educar... si:::m...chamar (...) é..(...) perderam uma bela oportunidade de educar o pai....e se ele não quisesse ouvir... fosse/ registrasse um BO ((boletim de ocorrência))...né.. que ele ia ser.. é/é/é intimado.. ele ia ter que depor... é um processo educativo também... é um processo eduCATIvo... se ela/se ela/ se ela::... entrasse com um processo contra ele.. é:::... um processo educativo porque lá::: ele ia ouvir... e a professora não foi em moMENto algum irresponsável... em momento algum... ela levo::u o menino.. trouxe pra escola... a gente assiste documentário na TV escola ou em qualquer canal educativo...e o que mais a gente vê... é o professor tomando atitude de SAIR com seus alunos...(B, p.24, ls. 1321-1343) Para P. o conflito, o enfrentamento das contradições, é uma situação educativa, servem para que se olhe as coisas de outros pontos de vista. O cuidado que T. expressa para “não se ferir” não aparece aqui, da mesma forma como não aparecem papéis sacralizados, intocáveis (o pai agressor poderia inclusive ser intimado pela policia, na descrição dele). Na seqüência, E. explicita sua concepção a respeito: P. 74 . e/e/ eu....uma coisa que eu.. que eu .. carrego/vou carregar durante toda a vida...que a professora M. me falou na faculdade é o seguinte... não existe Essa história aparece inteira no item 6.4: O professor que faz inclusão e os outros professores. 187 situação melhor pra se aprender do que a situação complicada... exatamente.. concordo ple::namente.. não existe...quando você contradiz as coisas... (...) quando não há conflito não é pedagógico... quando você analisa as coisas antagonicamente.. contrárias... assim.. você constrói um poder de reflexão critica muito grande .. por que você tá acabando de provar pra você mesmo...que você não vê as coisas só de uma ótica...só de um ponto de vista... e ai a situação da pessoa com deficiência...na sala é um momento de confli::to...a situação de um pai que chega numa reação desse tipo.. bons momentos pra escola reunir e debater.. né... debater....no momento que o pai chega... como é que se faz isso... no momento que o pai chega é:::...curioso na sala de aula.. e o momento bom.. do/do ... e o momento de o professor perceber que ele tá com a mente aberta pra ouvir... (B, p.25, ls. 1374-1397) Ent. P. Ent. P. Ent. P. Ent. P. Na fala de P. o aprender pode ocorrer também com o pai, e também é tarefa da escola: o aprender é um modificar do outro ainda que ele não esteja no papel de aluno; na de D. e de L. é enfatizado o aprender “interno”, o modificar-se internamente para enfrentar a nova situação; na de Z, ajudar a colega nos domínios das técnicas e aprender juntos, com as trocas de experiências; na de T. também o aprender interno, o modificar-se já que ela não crê que possa modificar o outro. Dois aspectos organizam o enfeixamento dos efeitos de sentido produzidos nessas descrições das experiências do aprender/ensinar: a) Em nenhum caso trata-se de domínio de conteúdos: os processos de modificação descritos são sempre a aprendizagem do lidar, do prático: Lidar com as técnicas e dominá-las (como no caso do Braille...), tornar-se afiado no uso de instrumentos (o soroban é dado como exemplo), dominar estratégias de lidar com o outro (o colega que dificulta o diálogo, o pai que desrespeita a professora) b) em nenhuma das situações aprender/ensinar aparece como ato individual: é sempre descrito como situação coletiva, sempre com o outro (pai, colega, aluno), em contexto, nas relações. Os papéis tradicionalmente vinculados a aprender e ao ensinar também são 188 flexibilizados: os professores não se envergonham de dizer que mesmo as coisas simples têm que ser aprendidas ali, na prática cotidiana, que se aprende com os alunos e colegas, que se pode educar o pai de aluno cuja atitude com relação à professora foi tida como excludente. Noto, portanto, a importância da prática e do outro nos trechos em que os professores falam de ensinar e aprender. 6.2. O OSCILAR DOS SENTIDOS DO OUTRO-GOVERNO Quando dirijo minha atenção, na análise da conversação e do discurso, para os “outros” que emergem nas falas dos professores, aparece um outro a quem eles se referem constantemente, que é o outrogoverno. Esse outro emerge dentro de várias nuances de sentido, em cada fala é descrito como pertencendo a lugares diferenciados e em posições diferenciadas com relação ao falante. Cuidei, na análise, de tentar situar esses lugares e posições, para agrupar, no final, os efeitos de sentido produzidos no diálogo entre os professores e o governo que vai sendo elaborado na situação conversacional. Nas falas de A., as alusões à política são feitas em termos vagos, rodeados de pausas e metáforas. A política aparece nas falas como “o outro lado”. “as pessoas”... Essa vaguidão ganha sentido quando T. relata sua demissão numa gestão anterior (“fui JOGADA FORA do Estado como qualquer um...um lixo”) é essa demissão é compreendida como causada pela política (“a política... ela faz isso com as pessoas”). Dessa forma política aparece com conotação negativa. O processo de readmissão, no entanto, já não é descrito como política, mas como relação pessoal (“precisaram de alguém... procuraram a mim”). Ent. T. do ponto de vista da sua vida profissional... você sente que... É valorizada por causa dessa atuação que você tem? NÃO... não... 189 Ent. T. Ent. T. Ent. T.: Ent. T. fale um pouco sobre isso... eu faço por amor--não só por amor porque eu preciso do meu salário-lógico... ((risos)) se eu tivesse uma condição de trabalhar só por amor... eu sei que também faria isso... sabe? eu amo de uma maneira assim fora de série... a ponto de depois de dizer que não voltava NUNCA MAIS... estar aqui novamente, ta?...porque em dois mil fui JOGADA FORA do Estado como qualquer um..um lixo... então... eu sofri muito.. e as vezes...eu... agora mesmo eu já tive até pensando que... é por ca/ isso é..depende.. eh... muito, não é/a política... política ela faz isso com as pessoas... não é? porque você... quando entrou outra pessoa que foi ((outro governo)) que preciSARAM de alguém... procuraram a mim... procuraram você? então...quando eu retornei... né/hoje nós tamos trabalhando... as pessoas não... não dão muito valor... a esse trabalho... uhn rum... agora...eu posso também te dizer que entre aspas... em termos de professores... diretores que...já chegaram até pra mim a dizer “olha... pelo amor de Deus”... que talvez eu não fosse ficar por causa do meu contrato, né?... já teve diretor ((que disse))/ “não... pelo amor de Deus... você não pode nem pensar em sair... tá muito bem... a gente tá trabalhando... tamos conseguindo... então... não pode nem pensar”... aí você se sente bem... quando você chega os professores chega... senta na mesa com você... aí pergunta uma coisa... pergunta outra... QUER saber de uma coisa... QUER saber de outra... então é MUITO gratificante PRA VOCÊ... sabe... saber que aquelas pessoas estão eh...eh::.. querendo aprender de ti.... querendo aprender aquilo que eles estão colocando em prática, né? e aí a gente se sente valoriZAda...agora, olhar pra o OUTRO lado... entendeu... assim.. as pessoas... é muito difícil... (A, p.6,ls.276-322) As pessoas a que T. se refere no oitavo turno desse trecho (“as pessoas não... não dão muito valor... a esse trabalho...”) e no final do ultimo turno (agora...olhar para o OUTRO lado...entendeu...assim...as pessoas ..é difícil) não são, evidentemente, as pessoas de modo geral, mas as pessoas do mundo da política. Ela admite que está usando pessoas “entre aspas”, tanto que logo depois destaca a valorização que sente junto a professores e diretores. O mundo da política, das estruturas de poder é designado de forma metonímica, em que “pessoas”, substantivo comum e genérico, adquire novo peso semântico, estratégia 190 que faz emergir perguntas a respeito das razões de A. para essa forma de designar as relações de poder. A. se refere com muitas hesitações a esse “outro lado”; não apenas não percebe valorização para o que faz nessa dimensão, mas tem dificuldade inclusive em referir-se a ela: considera difícil “olhar para o outro lado”. A valorização profissional é descrita como o apoio de profissionais do mesmo nível (professores, diretores de escola) e não como política. A. diz que “aí você se sente bem” (quando os colegas valorizam e reivindicam sua continuidade no trabalho), o que denuncia seu mal-estar diante do poder político, desse outro que pode descartá-la “como um lixo”. O outro-governo, na fala de P., aparece como um outro que impõe o processo de inclusão. Em seu discurso, contrapõem-se imposição legal e consciência: a inclusão desejada deveria ser estabelecida pela consciência e pela formação da sociedade; os dois termos vêm juntos, um surgindo como paráfrase do outro, mas a entonação mostra uma ênfase em formação. P. (...)essa política de inclusão ela não está acontecendo da forma que a gente queri::a assim que ela acontecesse... que fosse realmente de forma espontânea assim pela consciência... pela FOR-MAÇÃO da sociedade de modo geral... ela... tá acontecendo assim meia decretada né... porque::... é...nos últimos anos o governo por exemplo deu muita ênfase a essa questão de política de inclusão... mas... em forma de decreto...né?... por que antes... a gente percebia que NEM as universidades/as próprias universidades não...não abordava muito isso... e o próprio atendimento do aluno lá dentro também era...era difícil... (B, p.1, ls.37-53) Insinua-se na fala de P. uma critica ao governo pela decretação da inclusão, mas a continuidade da fala traz um outro elemento: as escolas básicas são analisadas como mais avançadas em relação à universidade, o que traz uma leitura do decreto como benéfico: o outrogoverno é justificado em sua necessidade de impor determinadas coisas. 191 P. Ent. P. Ent. [ P. o próprio atendimento do aluno lá dentro também era...era difícil... era? (...) né?ou...é/é difícil porque não existia não é::? não existia na verdade não existia...então não é só a escola HOJE não é só a escola que tem a dificuldade de atender esse aluno... não é só a escola/não é só a escola de educação básica... mas também a de ensino superior..né... e:: pelo que a gente vê HOje a gente:: percebe que:::... em alguns casos... as escolas de educação BÁsica tá à frente das---no atendimento a esses alunos---...tá à frente das universidades né porque--- como:: a gente:: sabe-- existe sala de recurso...existe centros de apoio pedagógico pra... pra atender os aluno com deficiência e na universidade não se vê muito disso não...(B, p.1, ls. 52-70) Reforça essa justificativa o desejo que o falante expressa, mais adiante, de que o decreto da inclusão se ampliasse para a universidade, o que enfraquece sua (velada) critica anterior. P. pois é.. e::: falando da questão do prejuízo e:::u.... outro prejuízo que eu vejo ...é porque as universidades/por exemplo...as licenciaturas ..deveria... já há muito tempo... ter enquadrado esses currículos nessa política de inclusã::o (B, p.9, ls 506-510) Por outro lado, a conscientização (e, portanto, aquela formação geral a que ele se referia inicialmente), é cobrada mais adiante como uma tarefa também governamental: P. quando a gente fala em investimento... quando o sistema investe... infelizmente ele só investe mais é na infraestrutu::ra... e/e/e também só na formação do profissional em si... que trabalha ali dentro do centro.. né...então investe na infraestrutura... e no profissional né... mas essa conscientização da comunidade escolar.. e da comunidade de um modo geral ...ela não há.. (B, p.16,ls.901-908) Ocorre aqui uma contradição, de que P. parece não se dar conta: o que justifica que o governo imponha o processo de inclusão é a falta de 192 consciência da sociedade, no entanto, também a conscientização e a formação são dadas como tarefa governamental. O vinculo entre os sentidos de formação e consciência retornou nesse ultimo trecho, no qual a critica foi redirecionada: não basta o investimento nos profissionais e na infra-estrutura, é necessário investir na conscientização da comunidade (é de se supor que assim não houvesse mais necessidade de decretos, já que havendo consciência, a própria comunidade assumiria a inclusão, a qual, de qualquer forma, teria que acontecer, e é melhor que seja antes): P. o prejuízo né ... é que a gente vê a política de inclusão decretada.. a gente vê/é...é um mal mas é um mal necessário ... por que de qualquer maneira ela teria que acontecer.. sabe se ela acontecesse naturalmente sabe... através da formação cultural... de todas as pessoas ia demorar muito mais... (B, p.8, ls. 416-421) O outro-governo aparece então como um ator que, pela imposição, reorganiza processos que não estão ocorrendo como deviam; a imposição, inicialmente descrita como negativa (não deveria haver necessidade dela) é atenuada pela situação (naturalizada) de uma comunidade não-consciente e de uma universidade inadequada; num outro momento, o Estado é responsabilizado também pela conscientização, mas não aparece no discurso alguma força responsável pela produção da “falta de consciência ou de formação”; estas aparecem de forma naturalizada. Já no discurso de O., é o papel do Estado nos processos de inclusão que é atenuado: a necessidade de mais profissionais é descrita como falta de “apoio”, e não como efeito de uma desobrigação pelo Estado de seus deveres. A palavra apoio, utilizada para expressar o contrato de mais profissionais, implica numa compreensão dos deveres do Estado como subsidiários aos deveres dos professores. O que é dito nas entrelinhas é que são os professores, no fim e ao cabo, os responsáveis pela política de inclusão. 193 O. Ent. O. Ent. O. nós temos aqui em Marabá.. o que? dois intérpretes...aonde esses dois intérpretes ... é:: por exemplo/eu sou uma intérprete... é:: atuando em sala de aula? atuando em sala de aula...mais ensino fundamental... hanrAN o outro colega meu já foi pro ensino médio..mas não conseguiu ir pra frente POrque:::..---.ele diz que não deu conta né...--então quer dizer a/o nosso TRAbalho aqui...acaba sendo pouco... em termos de/tem poucos profissionais na nossa área ainda.. então nós precisamos de mais apoio... precisamos de/de mais gente pra tá trabalhando na nossa área... (B, p.2, ls. 86-100) O discurso do “precisamos de apoio” lembra aqueles das instituições que assumem as obrigações do Estado, lembrança forte na história da educação especial. Ainda que tais instituições, com exceção da APAE, praticamente não existam em Marabá, o discurso sobrevive. O lugar do governo é expresso, nas várias falas, nas exigências de investimento em material e infra-estrutura; na fala de P., são valorizados os investimentos nessa área, a existência de verbas especificas, como “um grande passo”. P. Ent. P. (...) porque o sistema tá tendo uma preocupação sim... né...o sistema ele tá:::... libera verba.. né... produz material né... não sei se essa verba é bem administrada...em fim... mas que existe os recursos existe... as verbas destinada pra educação especial né... então i::sso é um grande passo... É um grande passo...com certeza... porque quando você fala que o aluno da educação especial...quando o aluno portador de necessidades... além dele freqüentar o ensino regular... ele também tem que ter a co::mplementação curricular dele... e essa complementação curricular... é/é o tipo de aprendizagem que exige muito recurso... porque ela é adaptada para ele... ela é diversificada... né.. e é ESsa complementação curricular também que vai ser FUNdamental né.. além dos conteúdos que ele aprende na educação básica... mas é a complementação curricular que vai reabilitá-lo pra vida...não só pro trabalho... não só pros estudos mas pra vida... né... e::: pra trabalhar com essa complementação curricular né... aí é que tá...porque aí o/... exige muito essa questão de material diversifica:::do... no caso lá dos deficientes visuais por exemplo.. a gente tem uma grande preocupação ainda porque o material é muito caro...né...o material é muito caro... então mesmo que seja colocado em 194 Ent. P. Ent. P. Ent. P. Ent. P. Ent. disponibilidade assim.. é/é nas escolas.. nos centros né... pra toda a comunidade... mas a/a quantidade não é suficiente é pequena né... é pequena... então a gente atende a clientela de maneira .. é:::: deficitária (...) quer dizer... se aumentasse a consciência social ..e o pessoal começasse a cobrar e viesse pra cá ((para o CAP))... não ia ter como atender... né... claro... não ia ter como atender porque::::... pouca gente e pouco material quer dizer ...a:::: a curto prazo nã::o ia ter como atender a curto prazo... não ia ter como atender de jeito nenhum...porque::: é uma coisa assim que exige tempo... né... exige tempo... pra você/até pra você investir a própria verba você tem que saber como investir... a gente tem que fazer pesqui::sa.. ver a necessidade do alu::no... a FORmaçã::o do professor pra trabalhar..nessas salas de recursos...nesse centros... é demorado também...né...entã:::o é uma coisa...que:: ..eu vejo assim que...o sistema falha no seguinte...quando é pra implantar um centro de atendimento a um portador de necessidade especial...implanta-se bonitinho mas o problema é a manutenção depois de feito... hanran… (B, p.14-15, ls. 767-825) A tomada de decisões acerca do investimento das verbas, para suprir a insuficiência de material e de pessoal (insuficiência que eu tento enfatizar no sexto turno deste trecho), é justificada por P. como um processo que em si é demorado. Chama a atenção o fato de que o outrogoverno, tratado como “o sistema” no turno inicial (uma terceira pessoa), chega a se confundir com P. nesse ultimo turno, (“a gente tem que fazer pesquisa... ver a necessidade do aluno... a FORmação do professor”). No final do turno, no entanto, quando ele diz que ocorre a implantação dos centros, mas não necessariamente a manutenção, volta a se afastar e a denominar como “sistema” esse outro. Na falas de P. os sentidos atribuídos ao outro-governo se agrupam em três “pontos”: um outro que, de fora, impõe mudanças e corrige desajustes sociais; um outro no qual ele se inclui, ao descrever as exigências para a aplicação adequada das verbas; um outro que executa mas não dá continuidade às próprias propostas. Ao contrario de T. cuja 195 relação com esse outro parece vaga e assustada, na fala de P. parece uma relação clara (ainda que oscilante em seus sentidos) e até, em certos momentos, participante. Na fala de J. (sessão C) aparece uma reivindicação com relação às políticas de formação, não apenas dos professores, mas de todo o pessoal envolvido na escola e inclusive da sociedade. A formação aqui ganha uma amplitude maior de sentido e se aproxima da idéia de consciência, como na fala de P.: também aqui a educação da sociedade (no sentido de conscientização) aparece como tarefa governamental. Iniciando afastado, referindo-se aos responsáveis pelas políticas públicas como uma terceira pessoa (“política que... fazem... da inclusão”) também J. se inclui, no final do turno, enquanto ator de tais políticas (“acho que a gente tá caminhando pro... pro sentido certo”). J. o que tem que ser mudado... acho que..que muita coisa (...) política que...fazem...da inclusão (...)sabe... eu falo política pública MESmo... de::: de investimento mesmo... estrutura mesmo...acho que os professores eles tão aqui pra ... pra aprender uma coisa nova...o pessoal que tá dentro de sala de aula...o profissional que tá dentro de sala de aula...e precisa mesmo de políticas PÚblicas... sabe... dentro da escola... de formação... não só de... professor.. mas de funcionários de alunos de pais de sociedade...acho que a gente tá caminhando pro...pro sentido certo (C, p. 10, ls. 524-537) A cobrança de investimentos, na fala de D., se transforma em reivindicação tanto de capacitação quanto de recursos pedagógicos e didáticos: ela explica a rejeição que o professor sente em relação à questão da inclusão pela falta de formação do professor, e coloca a capacitação (como a resposta possível para a falta de formação) como responsabilidade das políticas públicas. D. essa rejeição é pela FAL::ta de formação que ele tem na área (...) não tem uma formação pra ah:: trabalhar com o aluno surdo... ele então vai ficar assustado... né... ele vai ficar sem saber como fazer... como trabalhar... e aí.... deve ser desesperador mesmo porque EU já tive essa experiência...(acho que só com o tempo como n. falou... faltam políticas 196 públicas pra... tar colocando TOdos os profissionais capacitados pra trabalhar com a inclusão...que a gente vê que ainda::: são são POUcos os profissionais que estão... capacitados pra trabalhar com a inclusão...com os cegos...com os surdos (..) (C, p.11, ls. 577-589) (...) D. eh::quando N. fala da questão dos recursos... né... é uma coisa bem real pra gente... o aluno surdo por exemplo ele precisa MUIto de recursos visuais...onde é que estão esses recursos na sala de aula... na sala de aula comum...pra trabalhar com os alunos? ... veja bem... a gente sabe que::: a questão visual ela é importante até pro aluno ouvinte... né... porque VER:: é muito melhor do que só ouvir... Nessas falas o outro-governo aparece como provedor (ou aparece um desejo de que esse outro se configure como provedor, já que os verbos mais utilizados são faltam e precisa); é, no discurso dos professores, o responsável pela capacitação, conscientização, recursos materiais, estrutura... Em certo momento da fala de O., esse outro ganha maior proximidade. Seu falar evidencia que ela acompanha os processos de liberação de verbas para a área (entre o MEC e o governo local), e ela denuncia o desencontro entre a gestão local e a gestão federal, que incide em seu trabalho cotidiano e impede sua ação de ser eficaz: O. Ent. P. O. Ent. O. e qua::ndo te::m recu::rsos... chega e não usa... né...como é que fica?... igual a minha sala... é mais complicado ainda ainda existe esse caso... já TEM a ve:::rba... o MEC já mando::u.. tá na conta desde dezembro...quer dizer... minha sala está aí...ganhei uma sala grande... pra serem colocados os recursos... e até agora... a questão de informática...? a questão de tudo.. eh... tanto de informática... recursos... de livros né.., eh:::.. filmadora... televisão... tudo tem que ter... ter os recursos completos pra que a gente possa trabalhar melhor... porque como todo o trabalho dele ((o aluno surdo)) é visual...eu vou só escrever no quadro?... eu vou só usar a linguagem de sinais?... e o resto?... eu vou tá recortando ((gravuras de revistas)) né... tá recortando e mostrando... nem tudo a gente pode mostrar pra eles.. (B, p.15-16, ls.850-868). 197 Uma outra história de sala para atendimento especial emerge na sessão D, em que Z. e L. discutem a montagem da sala para atendimento das crianças com déficit cognitivo num local que consideram inadequado (um bairro de centro, distante dos bairros populares onde mora a maioria da clientela). Segundo elas, a mudança de local seria uma questão simples, mas “o poder público não quer ter gastos”. L. Z. L. Z. Ent. L. Z. Ent. Z. e ó..ficaria ótima aquela sala lá... ficaria porque ali ficava um local bem centralizado pra todos os... pra atender todo mundo... mas é tão difícil assim mudar a sala? tem alguma estrutura especial que::: não num tem nada NÃ:::O não tem NA-DA de estrutura o problema é que as pessoas não querem... sabe..o poder público ele NÃO quer ter gastos... não teria gastos de ..deslocamento... NÃO teria na::da... o que é que tem lá... aterramento dos computadores.. é tomada... é um buraco pra botar um ar condicionado...sabe... (D, p.26,ls. 14491464) Essa visão do poder público como indisposto a fazer gastos para corrigir a falta de planejamento é, no entanto , modificada mais adiante: o poder público não demonstra problemas em deixar duas professores desocupadas, já que os alunos não têm recursos pra se deslocar para tão longe. Aparentemente, portanto, a questão não são os gastos, mas a própria disposição de usar adequadamente os recursos: Z. Ent. Z. do jeito que eles são crianças assim...loucas pra utilizar um computador ... que veio TANtos jogos..tanta coisa na/de:: de programas pra se..ah..trabalhar como DC..sabe..e ela diz “a gente taí parado... porque eu num tenho com quem usar ... eu tou usando pra mim mesmo...” e é desesperador... pra quem quer fazer alguma coisa.... agora ela é uma professora muito irrequieta... a outra não... mas ela do jeito que ela é ...ela diz que ela num vai ficar muito tempo ali não que ela diz que qualquer dia desses ela vai entrar de atestado...((risos)) porque se for pra ela ficar daquele jeito ela vai ficar na casa dela... porque ela diz “ eu num agüento 198 Ent. L. Ent. porque o professor passa na porta e diz ‘ê mas tu é folgada né.. eu também queria’...” todo mundo trabalhando e ela lá á toa né... [ pra num se estressar... [ daqui a pouco tá com má fama...((risos)) (D, p.27, ls. 1481-1502) Percebo, nas falas de Z. e L., o acompanhamento atento das ações políticas no que se refere às necessidades da educação especial; a relação entre esse outro governo e o professor de educação especial ganha muito mais concretude quando se trata do governo local. Também na fala de P. a relação entre comunidade e governo ganha concretude. Ele lembra a necessidade de participação, de fiscalização, para que as políticas públicas tenham sucesso. O outro governamental, aqui chamado de “sistema”, só pode ter uma atuação eficaz com a participação local. P. então eu vejo o seguinte.. o sistema ele tá... é::: manifestando uma boa vontade de investir...na educação especial... mas o que eu já pude perceber o pouco tempo que eu to trabalhando na educação especial eu pude perceber isso que...se a comunidade não fiscalizar ... não anda...não anda porque só dá o primeiro passo...que é a inauguração do centro... a inauguração da sala de recursos... mas pra ela funcionar bem sem a fiscalização...da comunidade... não tem como andar porque o sistema ele investe...mas se não tiver ninguém pra fiscalizar... o trabalho não vai... (B, p.16, ls. 876-889). Essa distinção entre o sistema (governo federal), descrito como tendo uma disposição de investir, e o local, descrito em suas dificuldades ou incapacidade de corresponder aos investimentos, também já havia aparecido nas falas de Z., quando conta a situação já descrita pela colega em outra sessão. A professora toma para si a responsabilidade de justificar o fato do dinheiro não ter sido utilizado, na tentativa de não perder as verbas, e nesse processo, sua ação se confunde com a do poder público. 199 Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent., Z. em de-ZEM-bro de dois mil e CINCO:: entrou dinheiro na conta da prefeitura...do ME::C pr fazer a sala da I. e os equipamentos... né.... ah::: eu lembro dela ter comentado sobre isso... pois é... MAS até hoje eles nunca pregaram um prego... a sala continua sem cadeira sem NAda... os alunos () como é que o dinheiro tá disponível ainda se já fechou o ano... o ano fiscal... como o pessoal diz... nã::o o que acontece... quando tava para fechar o ano fiscal eles correram aqui comigo pra fazer um::um... como é o nome que eles dão? uma justificativa... ta hum... pra poder rolar pro ano seguinte... pro ano seguinte... aí eu inda caí na besteira de fazer por causa da I. eu pensei eu vou fazer essa justificativa... [ pra não perder... [ por que senão a colega é que vai perder... e aí () até agora... vai ter que fazer uma segunda justificativa quando chegar dezembro deste ano ((risos)) porque eles têm que prestar conta... ou presta ou devolve... tá... e tem mais uma... como eu falei pro L. eu digo “L...se esse dinheiro volTAR... aí que vai ser dificuldade pra VIR diNHEIro... aí vai ser dificuldade pra conseguir dinheiro retornando pra... pra alguma coisa da educação especial... então vocês têm que pensar nisso”... tá (D, p. 11-12, ls. 604-635) Agrupei os efeitos de sentido em torno do outro-governo que aparecem no discurso em quatro feixes, não necessariamente excludentes entre si, nem necessariamente vinculados as falas de cada entrevistado separadamente; muitas vezes no interior das falas de uma mesma pessoa, aparece um e outro feixe de sentidos, mesmo quando eles parecem contraditórios entre si. Os sentidos referentes ao outro-governo se articulam com os sentidos agrupados em torno da própria definição como educador. a) outro-opressor, desvinculado dos compromissos da inclusão, embora precisando contar com profissionais que atuem nesse sentido. Nesse caso, a inclusão é tida como tarefa do educador, aparece como missão que ele desenvolve inclusive à revelia dos desígnios estatais. 200 b) outro-“ajudante”, cuja ação poderia complementar a do educador e sua comunidade. Também nesse caso, o professor é o principal responsável pela inclusão, sendo a ação estatal um apoio para o melhor desempenho dessa tarefa. c) outro-educador, responsável pela formação e pela consciência das pessoas. A inclusão seria tarefa da comunidade se ela tivesse consciência para tanto; isso não ocorrendo, cabe ao Estado impô-la e garantir que ela ocorra. O professor se coloca no papel de partícipe do processo, assumindo como seus os princípios defendidos pelo Estado. d) outro-provedor, responsável pela estrutura, pelos recursos, pela capacitação. Essa definição não se separa das anteriores: em todos os efeitos discursivos descritos anteriormente, sendo o Estado opressor, ajudante, ou educador, a garantia dos recursos é vista, descrita e esperada como sua função. Descrito como provedor e ajudante, muitas vezes tais descrições do outro governo se fazem pela falta (deveria ter mais carga horária... deveria haver mais intérpretes... o poder público não quer ter gastos... a outra professora já devia ter sido contratada... a sala já devia ter sido montada...). Isso configura um outro descomprometido, que exige a vigilância e o acompanhamento constante para poder cumprir suas obrigações. Nesse caso, a descrição é geralmente do poder local, e o educador se coloca como interlocutor, como participante do processo de acompanhamento e cobrança das ações necessárias para o desenvolvimento da educação especial. Essas elaborações remetem a relações entre o falante e esse outro que vão do distanciamento/descolamento entre ele e o sujeito falante a uma aproximação-imbricação das ações de Estado, comunidade e educador. Quanto mais distanciado, mais as referências a esse outro são vagas (“o sistema”... “os outros”... “as pessoas”... “eles”...) quanto mais próximo/imbricado, mais vão ganhando concretude no discurso (“a 201 gente”, “a prefeitura”, “a secretaria”... e inclusive a referência às pessoas pelo primeiro nome). 6.3. O LUGAR DO PROFESSOR DO ATENDIMENTO ESPECIALIZADO: A MILITÂNCIA O lugar que o professor de atendimento especializado reserva para si no próprio discurso de algum modo já tinha sido sinalizado na análise das referências ao outro-governante. Há, no entanto, outros elementos que ajudam a situar esse lugar, e têm relação com os operadores que são utilizados quando a temática é relações de trabalho. Entre esses operadores, destacam-se demissão e readmissão, carga horária, sobrecarga de trabalho, exigências quanto às competências profissionais e à formação exigida, remuneração, quantidade de profissionais disponíveis, entre outros. A análise dos sentidos produzidos em torno de tais operadores mostra que a temática das relações de trabalho, se não deixa de atravessar o discurso (inclusive porque o trabalho pedagógico com a inclusão não pode deixar de ser trabalho), não é central nele. Na maior parte das vezes, se atenua e se esconde sob uma compreensão de atuação para a inclusão como militância, como luta. Na topicalização da sessão A, por exemplo, ocorre um esforço de minha parte de remeter à questão das relações de trabalho, enquanto a entrevistada resiste a entrar no tema, remetendo sempre às relações pessoais no espaço de trabalho, rede de relações na qual ela diz se sentir valorizada, onde o seu trabalho parece ser bem recebido. As relações com o Estado, do qual é funcionária, são esboçadas, quando T. fala da necessidade de maior carga horária para desempenhar sua função, mas a reivindicação é suavizada pelo uso do futuro do pretérito (“seria bom”) e o 202 modo subjuntivo (“que houvesse”),os quais podem ser lidos como marcadores conversacionais que indicam abrandamento75. Ent. T. Ent. T. Ent. T. Ent. T. digo assim... não tem nenhum outro profissional que faça a mesma coisa que você?... no estado... aqui em Marabá não... trabalhando itinerante com deficientes VISUAIS... no ensino médio só tem eu... mas é muito serviço... nós temos sete alunos... nos temos cinco escolas... e esses alunos todos eles precisam de materiais ampliados... né... ou transcritos... nesse momento estou trabalhando com cem horas... esse contrato de que você falou agora é de cem horas... é...esse contrato é de cem horas... é o que eu já falei... que seria bom que houvesse uma ampliação dessas horas... duzentas horas pelo menos... pra que eu tivesse um tempo melhor para fazer o material... Na sessão B, é um dos próprios entrevistados (P.) que remete para o tópico condições de trabalho; depois de uma fala em que defende que os professores de educação especial são vistos de forma preconceituosa pelos das salas comuns, o tema da superlotação das salas de aula emerge. No entanto, na descrição de P. parece tratar-se mais de uma querela entre categorias de professores (os das salas comuns que acham que trabalham mais do que os da educação especial) e não de uma discussão que afeta igualmente os dois. A referência ao discurso oficial (“toda criança na escola”), feita por mim de forma irônica, parece não atingir meu interlocutor: P. retoma o turno atribuindo a reação do professores com classes superlotadas à falta de uma compreensão da política de inclusão. P. O. P. Ent. O. 75 até::PO::rque:: um dos problemas da educação básica hoje é a questão da superlotação.. é:::: em sala de aula.. toda criança na escola né... caiba ou não caiba é:::toda criança na escola né.. superlotaçã::o das crianças.. eh... das escolas.. então quando um professor que não tem uma dimensã:::o.. uma Os sinais de abrandamento “resolvem problemas específicos, como a comunicação de más notícias e informações desagradáveis. (...). A rigor, realizam atos indiretos com a função de minimizar riscos” (MARCUSCHI, 2005, p. 73). 203 Ent. P. Ent. O. concepção é/é da política de inclusão vê:: um professor trabalhando com três alunos...separadamente acaba sendo discriminado .. é verdade ele vai achA::r... que aquele cara realmente... “porque eu tenho que trabalhar com quarenta e você com dois” né.. ele vai achar que o outro não tá trabalhando... ele é que trabalha porque ele tá com trinta e cinco... né.. ele é que trabalha porque ele tá com trinta e cinco...o outro lá que tá se desdobrando pra trabalhar com três alunos de TRÊS patologias diferentes.. digamos assi:::m... né... porque dentro de cada deficiência a patologia MUda.. né... muda... então é:::.. o professor ali...no momento ele tem que trabalhar de três formas assim.. mas pra quem tá vendo de fora.. “ não ali/ali::: tá bom porque:::... nem/nem trabalha porque só tem três alunos”... (B, p.11, ls.545-602) Também O., quando reivindica mais apoio governamental, remete à temática mencionada. Fala das dificuldades que a inclusão enfrenta, e relata que, em Marabá, são necessários mais intérpretes de LIBRAS (há dois interpretes para um universo de 58 alunos surdos). O. Ent. O. Ent. O. nós temos aqui em Marabá.. o que? dois intérpretes...aonde esses dois intérpretes ... é:: por exemplo/eu sou uma intérprete... é:: atuando em sala de aula? atuando em sala de aula...mais ensino fundamental... hanrAN o outro colega meu já foi pro ensino médio..mas não conseguiu ir pra frente POrque:::..---.ele diz que não deu conta né...--então quer dizer a/o nosso TRAbalho aqui...acaba sendo pouco... em termos de/tem poucos profissionais na nossa área ainda.. então nós precisamos de mais apoio.. precisamos de/de mais gente pra tá trabalhando na nossa área.. (B, p.2, ls. 86-99) O. se inclui quando afirma que “precisamos de mais gente”; a política de inclusão não é externa a ela, já que é ela que reivindica apoio; o papel do governo aqui é acessório. Nesse caso, assim como em vários trechos, nos quais ocorrem referencias ou criticas às condições de trabalho (necessidade de maior carga horária, mais capacitações, mais profissionais capacitados) não aparecem como uma reivindicação de direitos do profissional, mas como uma necessidade da inclusão. Assim, 204 não aparecem reivindicações de que as turmas sejam menores, ou o trabalho melhor remunerado. Em vários momentos o profissional se confunde com o agente das políticas públicas, através de expressões como “a gente”, “precisamos”, “estamos indo no sentido certo”, etc. Também evidencia esse posicionamento a própria organização tópica da conversação. Na maioria das vezes, o tópico “condições de trabalho” é inserido por mim, e em duas delas preciso insistir pra que ele se mantenha; a tendência dos entrevistados é concentrar suas criticas na falta ou insuficiência de recursos e investimentos na inclusão em geral. A exceção se revela na fala de P. quando este descreve as dificuldades criadas pela sobrecarga de trabalho, as exigências do processo inclusivo e a baixa remuneração. P. Ent. P. Ent. P. Ent. P. Ent. P. Ent. P. ...o professor que tá trabalhando na educação especial.. ele não pode se limitar a se aprofundar só na patologia dos alunos dele... nã:::o….ele tem mais alunos... ele tem que entender.. né... [ tem conteúdo pra estudar ele tem que entende:::r... que tá inserido no contexto político...social ...econômico.. ele tem que entender que... se ele tá trabalhando com crianças.. que::... embora ela tenha uma patologia... mas ela É:: uma criança...mas ele tem que ter um conhecimento sobre educação infantil... ludicidade… alfabetização… né… socio/sociologia da educação...filosofia da educação...é:::.. a gente fala por exemplo.. a maneira como a resistência da comunidade de aceitar o deficiente.. a gente te::m que entenDER que isso tem uma herança...cultura... que antigamente todo tipo de pessoa portadora de necessidades especiais era tido como lo:::uco...era colocado de forma isolada... e é por isso que hoje ainda há esse isolamento... então a gente tem que compreender muita coisa... não é pedir muito dos professores...eu fico me perguntando..se não tá exigindo mais do que cada pessoa pode dar... é pedir muito porque:::... em termos da própria remuneração... como a remuneração é baixa...ele não tem nem o direito de administrar a própria formação continuada dele... né.. ele fica restrito só ao curso que é ofertado pelo sistema... ele próprio ir atrás... ele próprio ir atrá::s é quase inviável...porque um professor/é poucos que têm uma oportunidade por exemplo... de ter uma tevê a cabo em ca::sa... ter a 205 Ent. O. P. O. assinatura de uma boa revista... de um bom jornal...ter assinatura de internet... é poucos... né... poder se loco/poder ter um veiculo próprio pra se locomover rápido pra não perder tempo em ônibus... tudo isso...se for colocar na ponta do lápis é..é muita coisa... camarada que ganha pouco... e a::nda de ônibus... em fim... não é fácil... que não tem o direito de administrar nem sua própria formação... né.. e nem o próprio lazer...porque domingos e sábados vão embora todos... [ lazer não existe... [ nem existe...porque... nem existe... o professor geralmente não tem lazer.. (B,p.17, ls.996-1022) Chama a atenção, na fala de P., a questão da dependência com relação à formação, causada pela baixa remuneração. Impossibilitado de buscar opções outras de formação (e de informação, já que P. se refere a TV a cabo, revistas, jornais e internet), o professor é descrito como obrigado a se submeter à formação oferecida pelo sistema. Essa subordinação implica numa naturalização das razões pelas quais ele não tem a formação necessária, e/ou numa responsabilização do próprio professor por isso. O fato de que tal situação emerge na fala de um professor faz perceber que tais processos de naturalização e responsabilização não deixam de ser notados, como não deixa de ser notada a apropriação do tempo do professor, quase totalmente engolido pela sua profissão. Os efeitos discursivos que dão o tom, na maioria das falas, têm relação com um lugar do professor distanciado das relações propriamente trabalhistas: o abrandamento das reivindicações, a substituição de relações de trabalho por relações pessoais, a querela entre professores substituindo a reivindicação de melhores condições de trabalho, a concepção de governo como apoio, os professores assumindo como responsáveis pela inclusão são efeitos que mostram uma concepção localizada e individualizada do trabalho educativo. O professor aparece pouco como trabalhador. O trecho em que o professor relata a submissão 206 (inclusive ao processo de formação) causada pela dependência financeira se constitui em contraponto a essa tendência. Tanto os efeitos de sentido produzidos dentro da temática “relações de trabalho”, quanto aqueles produzidos na configuração do outro governamental, se encaixam de certo modo com uma temática que aparece em certos momentos nas falas desses professores: a temática da luta. Descrever como luta a atividade na inclusão dos alunos surdos cegos e com baixa visão cria uma idéia do papel do professor como militante; sua atuação extrapola, portanto, as atribuições profissionais, e ajudam a configurar um determinado tipo de relação com o empregador, no caso, o Estado, e com os outros de modo geral. Z. e L. conversam acerca da luta para a formação de professores em Braille Z. L. então nosso foco... além de atender aqui os alu::nos... nós esta::mos lutando aí com ESsa formação de professores pra ver se a gente enxerga ah... um:: algum lugar... porque senão... do jeito que tava num... num e feito não...tem que cuidar também da preparação também do professor que tá na sala de aula... (D, p.05, ls. 248-255) No trecho abaixo, T. dá como exemplo de sucesso da inclusão uma escola onde as pessoas assumiram a inclusão como luta (“lutar com a gente ombro a ombro”): T. Ent. T.: mas é bom... muito bom... inclusive tem escolas... tá... como...realmente eu tenho que frisar o Gabriel Pimenta... né... uma escola que... fica onde...o Gabriel Pimenta? na Morada Nova... uma escola que ABRAÇOU... sabe... assim a idéia de fazer um curso... aprender e tal... lutar com a gente ombro a ombro... e entregar o material todo com antecedência... ta... sabe... uma coisa assim é muito.. é uma maravilha. foi... chegou ali parou...(A, p.7, ls.381-392). No entanto, as paráfrases seguintes simplificam bastante a idéia de luta: trata-se de preparar os cursos, realizá-los, no caso do professor 207 de educação especial; dispor-se a aprender o que nele é ensinado, entregar o material para ser adaptado a tempo, no caso do professor que tem aluno incluso... Isso ajuda a suavizar a reivindicação acerca do aumento de carga horária (“seria bom que houvesse uma ampliação dessas horas”) feita anteriormente. Tal reivindicação, assim, não aparece como objeto de luta, mas é deixado por conta do acaso (se acontecesse, seria bom). A inclusão, no entanto é assumida como tarefa pela professora, e independe desse aumento de carga horária. T. Ent. T. Ent. T. é esse o trabalho que a gente faz... eu não tou trabalhando só na escola... por onde eu passo eu faço um trabalho de inclusão dos alunos com deficiências visuais.... independente de... independente de sala de aula ou não... de professor ou não... aonde eu chego que alguém toca no assunto... eu estou fazendo a inclusão de meu aluno...meu aluno ele pode trabalhar... ele tem que trabalhar... ele tem que estar no meio social... ele é não é diferente dos outros... certo?...(...)... ele tem toda uma habilidade pra colocar em prática... ta... então eu faço inclusão direto... você é militante... ((risos)) ((risos))em todos os momentos eu tô fazendo inclusão...(A, p.8, ls. 429-445) A mesma disposição militante se vê em O. quando discute a possibilidade do aluno surdo chegar à universidade. O avanço do aluno na carreira escolar se torna uma questão de dedicação pessoal do professor de educação especial, o que faz suspeitar uma desobrigação das outras instâncias sociais, ao mesmo tempo em que enfraquece toda a discussão acerca das possibilidades de autonomia da pessoa surda. O. é como a gente vê por exemplo (...) que tá lá na sala que tem trinta alunos... que vê a gente com um aluno...é::: vê... pelo menos na minha área né.. que que acontece.. em relação esse aluno surdo né...ele vai chegar até onde? ele vai até a universidade porque EU vou estar junto dele.. eu tou com aluno desde 96.. tá... (B, p. 12, ls.630-636) 208 A militância extrapola, como T. já tinha mostrado em suas falas, os limites do estritamente pedagógico; exemplifica isso a luta pelo passe livre para os alunos com déficit cognitivo, cujas condições Z. e L. acompanham de perto e conhecem com detalhes. Essa luta tem relações com o fato da sala de acompanhamento para esses alunos ter sido localizada, como já foi descrito anteriormente, numa escola central, distante dos bairros populares onde mora a maioria desses alunos: Z. L. Z. L. Z. Ent. Z. ...tá..os alunos de DC eles NÃO conseguiram passe livre...porque PAra conseguir o passe livre tem que ter um LAUdo...do::: do médico de cabeça... o neurologista o neurologista... .Marabá não tem neurologista... tá...então essa mãe pra ela sair da Liberdade da Laranjeira... ela vai chegar até o Novo Horiz/até a praça da Cidade Nova tem que pegar um ônibus... do Novo Horizonte...da:: da Cidade Nova pro Novo Horizonte... da Cidade Nova pro Novo Horizonte ela tem que pegar outro ônibus... são dois ônibus... então pra ela ir e voltar ela tem que pagar quatro ônibus... tá... se for uma criança mais... pra ela e pra criança... quatro passagens no dia... como é que essa pessoa tem condições? poder aquisitivo? (D, p. 24-25, ls. 1348-1365) Chamo a atenção para o fato de que a Escola Jônathas Athias, onde se situa o CAP, também ser centralizada. A professora remete a uma luta anterior, a busca do passe livre para os alunos cegos, na qual ela se inclui e inclui os colegas. Ent. Z. Ent. Z. aqui também tem algo parecido né..este bairro::..a demanda não é tão grande..o pessoal já vem de longe pra cá... é..mas só o que acontece... nossos alunos nós conseguimos passe livre... porque a deficiência deles é uma deficiência visível... vocês têm médico local que dá o laudo... tem médico local pra fazer o laudo... né... já o DC não... é a família que tem que pagar mesmo... quando ele não é aposentado tem que pagar... (D, p.25, ls. 1369-1378) Como afirmei de inicio, os enfeixamentos de sentido produzidos no meu diálogo com as falas dos professores se organizam muito mais em torno da idéia de professor militante, que assume a inclusão para si, a 209 despeito das condições de trabalho e de suas relações com o empregador, do que em torno da idéia de um professor-trabalhador, cuja possibilidade de produção se ancora nas condições concretas de vida. A palavra salário não aparece uma única vez nas sessões; seu sinônimo, remuneração, aparece somente na fala de P., na sessão B. A necessidade de aumento de carga horária não toma a forma de reivindicação. Não aparece nenhuma referência à carreira; embora muitas, as referências a formação têm mais a ver com tornar-se capaz de atuar eficientemente na inclusão do que com ascensão profissional. A necessidade de mais profissionais aparece como uma necessidade do projeto de inclusão, do que como reclamação a respeito da sobrecarga de trabalho. A questão da valorização profissional aparece muito mais como vinculada às relações pessoais, ao desenvolvimento da consciência, aprofundamento da formação, e inclusive como reivindicação do direito de trabalhar (de não ficar à toa, no caso em que a sala de acompanhamento foi localizada numa escola onde os alunos não podem ir). 6.4. O PROFESSOR QUE FAZ INCLUSÃO E OS “OUTROS PROFESSORES” Um outro que aparece constantemente nas falas dos professores de atendimento especializado é o “professor de sala comum”, ou “os outros professores”. As relações com esse outro são descritas geralmente como estabelecendo certo nível de tensão; o professor de educação especial descreve a si mesmo em contraposição a esse outro, e vice- versa. As circunstâncias em que esse outro emerge na fala são diferentes: dentro de histórias, na descrição da prática cotidiana. Na maior parte das vezes se distinguem claramente os dois sujeitos (o 210 professor de educação especial e o de sala comum), geralmente dentro de avaliações das suas posturas com relação à inclusão. Há momentos, menos comuns, em que esse professor e o da educação especial se fundem (nas descrições dos processos excludentes porque passam, por exemplo). Duas situações emocionalmente intensas, nas sessões A e B, acontecem quando os entrevistados recorrem a histórias do cotidiano para exemplificar certos tópicos propostos na entrevista, e essas duas situações têm com esse outro professor como personagem principal. O uso de histórias é recurso importante para a interação entre os interlocutores. “Contar histórias, especialmente de caráter pessoal, implica a experiência de vida” (BRAIT, in PRETI, 1997, p.210), e faz com que tópicos importantes para essa experiência ganhem destaque no discurso. O tópico reação dos professores aos cursos de formação, por exemplo, surge (na sessão A) dentro do tópico aprendizagens com a inclusão: a entrevistada insere na conversação, para exemplificar a flexibilidade aprendida na experiência da inclusão, uma história referente à reação de certo professor à proposta de um curso de formação para o trabalho com alunos cegos. T. Ent. T. Ent. T. Ent. T. Ent. eu sou assim... eu vejo dessa maneira... só que... também... eu tenho que em muitas ocasiões eu tenho... eh eh eh... flexível...eu tenho que ser flexível em certos casos, né...e às vezes o meu colega...ele não é... ele vê de uma outra maneira... eh...no caso... esse rapaz que... ele achou... falou que... o:: a:: educação especial não vai pra frente... porque? ele falou isso pra mim... ele também chegou pra mim e perguntou se eu queria ensinar ele... ensina::r...? porque ele foi meu professor... ele foi meu professor... no primário... quando comecei a estudar com vinte anos, ele foi meu professor... e hoje ele não ACEIta que ele possa aprender algo comigo...tá... na educação especial. mas ele pediu isso pra você? NÃO... ele ele veio...quando colocamos a intenção de fazer um curso... de capacitação-- um curso básico -ele perguntou pra mim se eu queRIA ensinar ele. ah... ele perguntou... mas de uma maneira... 211 T. de uma maneira, como é que chama... não é crítica... é uma...aquela...me fugiu agora... ele achava que você não estava à altura de ensinar pra ele... foi essa a idéia mais ou menos dessa...da frase? ele quis dizer que porque ele me ensinou... há tantos anos atrás... hoje eu não teria capacidade de... ensinar ele não porque de lá pra cá ele já aprendeu ... tá?... mais do que eu porque ele já sabia mais do que eu...(A, p.2, ls.67-99) Ent. T. A professora suspende por instantes o diálogo comigo para dialogar (de forma tensa e enfática) com esse colega que resistiu à formação e que coloca sua (dela) capacidade de aprendizagem e sua própria competência como profissional em dúvida. Um colega cuja presença no diálogo é tão forte que ocupa o meu lugar como interlocutora. Lutando para ocupar de volta meu lugar no diálogo, tento várias vezes sair da história e ampliar para uma compreensão geral da questão, mas A. resiste e se mantém na digressão76. Tento fazer com que ela conte outras situações, contrárias; para tanto, emito sinais de armação do quadro tópico (MARCUSCHI, 2005, p.73) como “inda bem que essa posição não é geral”, ou, logo adiante, “mas, no geral...”, mas ela passa rapidamente sobre o primeiro sinal e ignora o segundo: retoma, a cada turno, a história contada, o que mostra a importância, para a entrevistada de manter a temática em primeiro plano na conversação. T. Ent. T. 76 é aquilo que eu te falei... ele não quer, ele não VAI.... falou isso pra mim...ele NÃO VAI participar dos cursos... ele não quer participar, e:::.. pouco se interessa, POUCO se interessa... ele não quer nem ficar sabendo... inda bem que essa posição não é geral... GRAÇAS a Deus em toda a jornada encontrei dois... que chegaram com esse ponto... essa posição... não é que eles não tenham conhecimento... eles têm o Segundo Fávero (in PRETI, 1997, p.51-52), uma digressão pode se basear no enunciado, na interação ou em seqüências inseridas. Nesse caso, temos uma digressão baseada no enunciado, em que A. conta uma história para exemplificar a aprendizagem da flexibilidade que ela diz ter adquirido na vivência com a educação especial. 212 Ent. T. Ent. T. conhecimento... ta? eh.... EU DIGO que eles NÃO QUEREM ter res-pon-sabilidade com aquilo ali... mas no geral o professorado assume a responsabilidade de ter aquela criança em sala e... eu disse pra ele que ele...ele.. assumindo ou não a responsabilidade, ELE É responsável NA DIS-CI-PLINA DE-LE por aquele aluno... com certeza... se o aluno ficar reprovado na disciplina dele, ELE É o responsável pelo aluno...NÃO sou eu... eu estou indo na sala... eu estou indo fazer um acompanhamento, mas....pra tirar as dúvidas do professor com o aluno... do aluno com o professor e interAGIR naquilo que o professor não...não tiver condições, né?... Só que... ele não quer não, NÃO... tudo bem... só que ele é responsável pelo aluno...eu vou procurar trabalhar o aluno que/e trabalhar ele à distância... não posso chegar perto dele eu vou trabalhar ele à distância através do aluno... (A, p.3-4, ls.160-190) No mesmo trecho, chama a atenção a ênfase que T. dá para questão da responsabilidade do professor para com o aluno, retirando de si a culpa no caso do aluno reprovar. Uma contradição se evidencia: os cursos são técnicos (o ensino do Braille para os professores de alunos cegos), têm o objetivo de prover certo tipo de conhecimento; no entanto, tais professores são descritos como tendo conhecimento, mas não querendo a responsabilidade. Nesse caso, fazer o curso evidenciaria mais o desejo de assumir a responsabilidade com a inclusão do que a necessidade daquele conhecimento específico (aparece como uma questão de intenção individual o assumir a inclusão; o curso, como um quaseritual de iniciação). A flexibilidade que T. reivindica como aprendizado próprio tem relação com o fato de que ela “aceita” a recusa do professor e passa a tentar influenciá-lo de longe, através dos alunos. Não desiste dele, apenas cria uma outra forma de acesso: T. se o aluno ficar reprovado na disciplina dele, ELE É o responsável pelo aluno...NÃO sou eu... eu estou indo na sala... eu estou indo fazer um acompanhamento, mas....pra tirar as dúvidas do professor com o aluno... do aluno com o professor e interAGIR naquilo que o professor não...não tiver condições, né?... Só que... ele não quer não, NÃO... tudo bem... só que ele é responsável pelo aluno...eu vou procurar trabalhar o aluno que/e trabalhar ele à distância... não 213 Ent. T. posso chegar perto dele eu vou trabalhar ele à distância através do aluno... através do aluno... é a única solução que eu encontrei pra trabalhar ele... então é que nem eu te falei: agora eu tenho que ser o que... flexível... eu tenho que trabalhar o aluno/o professor através do aluno...(A, p.4, ls. 179-195) Há, no entanto, uma contradição entre essa forma de acesso e a responsabilização do professor pelo que possa ocorrer, caso ele não aceite participar da inclusão; é como se tal participação aliviasse essa responsabilidade (se ele aceita a responsabilidade é partilhada, ou continua com ele?). T. se coloca na posição de poder cobrar do professor de sala comum a aprovação do aluno, já que imagina estar oferecendo as condições para que ele tenha sucesso. Por outro lado, o fato de o professor se recusar a fazer o curso e colocada como algo que impossibilita ao professor de apoio se aproximar do outro: “não posso chegar perto dele”. Assim, parece que a única forma de chegar perto do professor é através do curso de formação. Mais uma vez, aparece uma ênfase no curso como acesso ao mundo da educação especial, ou da inclusão. A vívida descrição do outro por T. evidencia alguns atributos desse outro em sua fala: é alguém que se recusa à responsabilidade para com os alunos com necessidades educacionais especiais, que desvaloriza o trabalho de apoio nessa área, que precisa aceitar outras aprendizagens que não aquelas as quais domina, alguém a quem é difícil acessar diretamente. Faz parte de sua luta, então acessar esse professor, e ela passa a fazê-lo através do aluno. A outra história é contada na sessão B; nela, partindo de uma provocação minha acerca da passividade com que eu imagino que são aceitas as imposições legais, os falantes trazem como exemplo uma situação acontecida recentemente na escola; nesse exemplo, o tópico passividade, inserido por mim, ganha novas nuances em sua relação 214 com o que os falantes consideram uma agressão à autonomia do professor. A história de S., professora do ensino fundamental da mesma escola, é contada a duas vozes e de forma indignada. P. e O. escolhem-na como um exemplo da exclusão do professor, uma vez que, em sua compreensão, a autonomia dessa professora foi desrespeitada,: Ent. O. Ent. O. P. O. P. O. Ent. P. O. A temática da nessa questão assim... “não...tem que incluir... vamos incluir... tem que fazer vamos fazer”...mas não é com o coração... não é com empe::nho assim... a lei tá ai... a lei tem que ser cumprida... vamos cumprir... e se amanhã vier uma lei que disser ao contrário... também tá bom?... né... você não vê uma reivindicação... tem que fazer porque é certo... tem que fazer porque.... (...) aquela questão da S. ontem/hoje... ---que ela falou... né..---(...) ali foi muito pesado... quer dizer o:::.. se cobra tanto a autonomia do professor... que ele tem que ter... e quando o professor vai ter autonomia... não tem... a primeira atitude que o professor toma ...advinda da autonomia dele... que ele possa ter... ele é e excomungado por um pai porque acha que ele tirou o filho da escola sem autorização... mas a direção da escola autorizo:::u... a criança foi com a autorização da escola... mas o pai não:::... né.. a ignorância pega ele que ele não consegue entender... eu sinceramente...eu numa/numa ocasião dessas... eu saía do salto... ela é muito passiva... eu não iria... (...) no mini::no... deixar um pai te esculhambar... te dizer que você não presta... que você não vale nada...a:::que você... ah:::... na escola?? DENtro da escola... dentro da escola... (B, p.22, ls 1211-1234) passsividade, que eu inseri como um não- questionamento das imposições legais, ganha outro sentido nas falas de meus interlocutores: o novo tópico, inserido por eles por meio da história de S., não trata desse tipo de passividade, mas da passividade da colega diante do pai de aluno que a tratou mal em público, dentro da escola, passividade contra a qual O. se indigna; para P., isso indica que o professor realmente não tem autonomia. É no desdobramento da história que vão surgindo novos elementos em que o outro professor é situado: 215 P. aconteceu foi que... os alunos da turma tinham recentemente perdido um colega... que tinha morrido afogado...e tava tendo aula bem na hora do velório... e como tinha pouca gente pediram pra professora liberar e não tinha autonomia pra liberar...e ai eu já acho um erro... eu acho um erro... porque se fosse comigo.. .eu co-mu-ni-cava a direÇÃO que eu estava indo...mas eu não deixaria os alunos pedir pra ir...eu ia fazer diferente... eu tomaria a iniciativa...então ... já com receio de tomar essas decisões... ela pediu pros alunos irem e comunicar a direção.. a direção concordou desde que a professora fosse...ela não fez corpo mole… ela foi... aí chegaram do bendito veló:::rio... que nem era tão tarde assim que o horário de saída é seis horas eles chegaram sei::s e meia... o pai tava aqui pronto... né de arma na mão pra detonar na professora... e excomungou a professora... ficou por ISSO MESmo... ficou por isso mesmo... ela foi agredida verbalmente... dentro da escola e não foi registrada nenhuma ocorrência... nada... é um ato de exclusão.... então hoje quando ela tava colocando a situação pra gente... ela chorou muito... desabafou... o único direito que ela teve foi desabafar com os colegas dela... de trabalho... viu... mas eu acho que a:::... a direção foi omissa... (B, p.23, ls. 1267-1296) Ent. E.. P. questiona não apenas o fato da professora ter sido desrespeitada, mas a postura dela que permitiu isso: deixou para os alunos tomarem a iniciativa de ir ao velório, colocando-se numa postura de submissão; o receio de tomar decisões parece ter deixado a professora já numa situação de desvantagem. Indigna-se por tudo ter ficado “por isso mesmo”, assim como O. Tanto o fato de ter emergido essa história como exemplo de passividade quanto as reações que P. e O. têm com relação a ela criam efeitos de sentido com relação ao lugar do professor em seu discurso: não admitem a submissão, a falta de iniciativa como atitudes de professor; atribuem a direção da escola um papel na defesa do professor; não descrevem uma atitude deles próprios com relação ao que aconteceu, mas ao que teriam feito no lugar dela; os direitos do professor se relacionam parte à própria atitude e iniciativa, parte à proteção que deve ser dada pela hierarquia. 216 Uma e outra história trazem dois perfis diferentes desse outro que aparece no discurso dos professores. Na história contada por T., temos um outro arredio, inacessível, indisposto a aprender coisas novas. Na história contada por P. e O., esse outro é passivo, inseguro, pouco capaz de iniciativas próprias e de defender os próprios direitos. Contrapõe-se e complementa a descrição do outro, naturalmente, uma descrição de si próprios como professores: no primeiro caso, alguém comprometido, preocupado com o sucesso dos alunos, capaz de continuar tentando mesmo quando os outros se recusam. No segundo caso, alguém capaz de tomar a iniciativa, se impor diante dos pais e da direção, defender-se. Seriam apenas histórias, se características que reforçam o perfil não fossem aparecendo ao longo das falas, em todas as sessões, e mostrando que o discurso propõe uma diferenciação entre o professor de sala comum e aquele envolvido nas tarefas da inclusão. O atributo de passividade vinculado ao professor de sala comum aparece na fala de Z., quando conto que um aluno cego tinha me dito que procurava não incomodar em sala de aula, uma vez que ele percebia a superlotação e a insegurança da professora. Ela reage expressivamente, descrevendo o papel do aluno (de educação especial) como uma “pedra no sapato”: Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. o A. ((aluno cego)) me disse um dia que procura não incomodar... a professora porque são quarenta alunos... [ pois é... [ na sala e ele sente que ela fica pressionada.... ele se sente... e:: não é o caso... ele TEM que incomoDAR MESmo porque se ele não incomodar os professores não vão... é... tem que incomodar... como todo aluno né? é::: tem que incomodar porque se não incomodar ((a professora)) não vai sentir aquela pedrinha no sapato ali né... porque olha... ela foi uma das professoras que eu insisti pra que ela fosse pro ... pro NAEJA... pra fazer esse treinamento... é pouco? é... mas se desde cedo o professor tá dentro... já saiu LENdo... já saiu escreVENdo... ( D, p. 5-6, ls 270-288) 217 Aquela disposição de que T. falava, de acessar o outro professor através do aluno, aparece também aqui: o aluno deve incomodar, deve chamar a atenção para sua existência, para que o professor saia de sua passividade. O. se coloca numa posição também diferenciada com relação ao professor da sala comum, quando descreve uma estratégia para fazer com que ele utilize os conhecimentos dados no curso de LIBRAS. Ela diferencia os que trabalham na mesma escola que ela (“esses eu vejo (...) porque eu acompanho”) e os que trabalham em outras escolas. Como os alunos vêem ao CAP para acompanhamento das tarefas, é através deles que ela tem acesso aos professores: sua estratégia é fazê-los usar a linguagem de sinais incentivando o aluno a exigir isso do professor. O. Ent. O. Ent. O. Ent. O. só... por exemplo.. aqui na nossa escola nós já tivemo:::s...dois cursos de linguagem de sinais.. Mas foi para os profissionAI:::s que estão atua::ndo na escola hanran estes sim.. eu prefiro trabalhar [ precisam desse curso mesmo né... ta? ...e esses eu vejo trabalhar em sala de aula.. principalmente pessoas de quinta à oitava .. porque eu acompanho.. e aquele professor que fez o curso de linguagem de sinais.. né.. e que está na sala de aula... com aluno incluso.. surdo... hanran e que ele não utiliza lá... o aluno surdo vai comigo... eu digo “ não... é você quem tem que dizer... porque ele fez o curso... você preci::sa de comunicação... é você... num é eu não” ai ele vai lá... (...) professor né... ele vai lá...e diz “ cadê a linguagem de sinais? eu não conheço... eu sou surdo”... ai o professor vai pede desculpa pra ele e começa... (B, p.4, ls.159181) A valorização da experiência mais próxima (“esses eu prefiro trabalhar”) em detrimento da que ocorre nas demais escolas, sugere uma necessidade de controle (“esses eu vejo...”), por parte do professor de educação especial, daquilo que acontece com a inclusão, necessidade de controle que também aparece na fala de Z.: 218 Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. todo contato do professor do ensino fundamental com vocês então é só através do aluno.. NÃO... é atravé/ nosso mesmo...porque nós... nós... vocês estão lá também... nos também fazemos esse... esse contato... o pouco tempo que nós temos que é na sexta-feira que teria a sexta-feira prá NOS... né... nós vamos fazer visita... junto aos professores... só que... na própria sala de aula... é... só que () tem trinta e dois alunos... nós temos o que... trinta e dois alunos... quer diZER que mesmo que eu... eu faça três visitas no dia... e ela faça três visitas são seis... mesmo assim...? leva um mês... um mês e quinze dias ... pra você retornar... tá... então quer dizer que toda aquela/aquele trabalho que você fez... mesmo que você oriente... /porque você sabe que o professor do ensino regular se você não tiver junto ali com ele... pra contar... pra... “vamo fazer isso... vamo fazer aquilo... vamo ter uma idéia...” num adianta que ele num faz... tem que contar que a rotina dele também é...é estafante num é... é... é aquela coisa de... resolver todo dia o problema daquele dia... é... então... é esse o contato... por exemplo..nós temos alunos... ele tem que... o professor na sala... eh:: sala regular..ele tem que entregar a apostila... uma semana... pra que no dia que ele pegar aquela matéria...o aluno vai tar sabendo ... né... só que nos.. com essa dificuldade... a copiadora que/ ah:: a máquina Braille ... foi pra Porto Alegre ((pra consertar)) (D, p.04, ls. 170-206) Assim como na conversa com P., tento contrabalançar a descrição do professor em minha tomada de turno, lembrando sua rotina estafante. Z. aparentemente concorda comigo, repetindo “é” depois de cada fala minha, mas volta à sua fala sobre seu contato com esse professor sem demonstrar ter registrado minha observação. A participação dos outros professores nos curso de LIBRAS é descrita por O., mais como uma busca de certificação do que uma formação para contribuir no processo de incluir os alunos com necessidades educacionais especiais na escola comum. A busca de certificação é colocada como se estivesse em contraposição com a 219 militância inclusiva (evidenciada no verbo “contribuir”, que P. insere na fala). O. Ent. O. Ent. O. P. O. P. O. (...).. então nós precisamos de mais apoio.. precisamos de/de mais gente pra tá trabalhando na nossa área.. então quer dizer...as pessoas que faze::m curso né...eles fazem curso geralmente pelo/pelo diploma... pelo certificado...não pelo trabalho em si...de estar junto com a gente trabalhando...então é difícil...no NOsso:: município (...)... [ não/não entendi essa parte ai de fazer curso.... as pessoas que fazem curso de/de atendimento.. curso de preparação? [ não... por exemplo...a/eu tou precisando de curso de linguage::em de sinais isso...sim… né.. a maioria dos profissionais que estão na/ na área..né...da/da educação especial...né::... que estão (...) na atividade de ensino.. eles/ a maioria deles foram fazer esse curso NÃ:::o pra trabalhar com aluno surdo... [ não pra contribuir né... mas SIM pra estar apresentando na universidade que FEZ... [ pra engrossar currículo É:::.. só pra engrossar currículo... (B, p2, ls. 98-125) A exigência da universidade e da secretaria de educação com relação a fazer tais cursos não é colocada em pauta, mas o fato do professor não se interessar suficientemente por eles, sim. A maioria não demonstra vocação pra trabalhar com o aluno surdo, mas quer e precisa fazer o curso, o que coloca a educação especial diante de um dilema, o qual emerge nas aflições de O: a questão da vocação. Como encontrar os vocacionados? Ou melhor, como não desperdiçar esforços com quem não é vocacionado? Parece incomodar a O. que o esforço que faz, realizando cursos de LIBRAS, não faça surgir mais intérpretes, mais pessoas atuando na área. Também P. descreve uma resistência do professor ao Braille (e uma desistência maior do que no caso de LIBRAS) por causa do que ele 220 descreve como uma maior dificuldade do próprio Braille e uma falta de interesse dos professores: P. Ent. P. olha:::...o/a questão do Braille...é até mais complexa.... porque:::..em Marabá por exemplo não houve tantos cursos assim como já houve no/com o LIBRAS... né...e muitos têm uma resistência quando tem um primeiro conTAto com o aprendizado do Braille... muitos professores da sala regular de ensino.. eles têm uma resistência.. eles acham que... é:::...que não vai consegui:::r...aprender a linguagem.. porque REALmente a pessoa que::...lê em tinta...o:: chamado vidente... esse/ esse... eu fiquei tentando.. (...) pois é...esse.. as pessoas que enxergam eles acham que não vai precisar e que não tem tanta necessidade assim... né.. mas eu vejo assim... eles nu::m/eles tem uma resistência até maior.. eles tem resistência maior de aprender... né.. e não tem muito interesse.. LIBRAS... eu não sei se eles têm essa compreensão ... mas eu percebo um pouco disso... que...eles querem engrossar currículo... e::: é:::... querem fazer o curso .. como a professora falou pra... ter o diploma... enfim... e o Braille até tem esse desejo...mas quando começa um primeiro contato assim eles vê que o negocio... é dife::rente...que a dedicação tem que ser grande mesmo...e ai acabam abandonando... muitas pessoas manifestam pouco interesse por isso porque ... ---só pra você ter uma idéia. ..o/o próprio professor de Braille que enxerga ele não lê usando o tato né... a gente teve em Belém agora...a gente pode perceber isso... ele lê:::... olhando pro pontos... né.. olhando pros pontos né.. só quem realme:::nte utiliza o tato pra fazer a leitura...do Braille é::: o CEgo.. é o aluno cego esse/então é uma linguagem que... embora ela seja conhecida em todos os paises.. mas ela num.. em termos de comunidade... ela não se universalizou ainda porque...as pessoas... é:: não tem necessidade...então é muito difícil é::: difundir esse tipo de escrita... é muito difícil mesmo... né.. (...) só partindo da vontade das pessoas por que... é difícil ter um vidente que vá querer ter uma dedicação .. excluSIva ... gRANde...pra ler assi::m como um cego lê... é complicado... (B, p.5, ls.204-251) Aparece na fala de P., no final do turno, uma exigência de identificação do professor com o aluno cego (uma dedicação exclusiva), como se tal identificação fosse condição para o trabalho pedagógico. O fato de que o professor vidente lê o Braille usando a visão diminui essa identificação, e esse fato é descrito como uma das complicações do ensino 221 do Braille para professores. Anteriormente, há também a afirmação de que os professores acham que não vão conseguir aprender, o que mostra que, na visão de P., esses professores têm uma baixa expectativa com relação à própria capacidade de aprendizagem. A mesma exigência de identificação com a educação especial aparece nas falas de Z., quando descreve o sucesso do curso de Braille que tinha realizado há pouco tempo: Z. ... Z. É::: se identificaram muito... MUIto MESmo... sabe....é tão/tanto que nós saímos de lá... “professora nós vamos sair daqui mas nos já vamos sair já... com a data marcada... do segundo encontro”... que vai ser do dia vinte e seis ao dia vinte e nove de setembro... tá... que eles já iam colocar no planejamento deles que essa semana eles estariam fora da escola... que eles iam... fazer esse trabalho... quando eles dizem assim “nós (D, p.06. ls 288-297) não..e:sse curso/esse treinamento foi o seguinte... foram trinta e seis participantes...desses trinta e seis eu te digo que trinta...trinta participaram assim do inicio ao fim... horário cumprido assim aquela coisa toda..e:: se identificaram... mas porque...porque eles sentiram a necessidade na própria sala de aula... eles tavam com aluno incluso porque nós só pegamos os professores que esTAvam atuANdo com aluno...(D, p. 08, ls. 447-456) Quando pergunto por vantagens e desvantagens da inclusão, do ponto de vista pedagógico, a desvantagem que O. relata não vem do processo inclusivo em si, mas das disposições do professor em atuar com alunos cujas especificidades ele não conhece, e que vai lhe dar mais trabalho. Ent. O. (...) assim ainda nessa questão de vantagens e desvantagens do/do/ a gente podia tratar do pedagógico também.. em sala de aula assim... a desvantagem do ponto de vista pedagógico no caso né... é até de interesse mesmo né...que a gente vê ...do professor não querer.. é:::.. estar com aquele aluno em sala de aula.. quer dizer ...ainda há essa discriminação... “ ai eu não sei trabalha:r.. eu não sou forma:da... e::u não sei .. eu não sei pra onde va:i .. e come que eu vou ensinar.. e isso...” né ...então.. coisas...que realmente aconTEce em tO:das as escolas aonde o professor realmente ele não/ não conhece.. né.. aquele aluno.. ele não 222 Ent. O.. conhece...aquela/aquela... deficiência em si.. ele não tem o conhecimento daquilo ali.. então pra ele é difícil.. É... né.. mas.. é por exemplo... aqui como nos trabalhamos com esse professor ...estamos junto com ele... apesar de nos estarmos na sala de recursos trabalhando...mas a gente tÁ tendo ai.. tá dando orientação pra ele de como --- não como ele deve trabalhar..--- mas sim dando uma orientação básica.. né.. e orientações estas.. que servem pra ele trabalhar com aquele aluno em sala de aula.. que está com ele todo o tempo...por mais que ele esteja em outra escola está presente com ele..outro dia eu ouvi assim mesmo ó.. “ a:::::...meu deus do céu.. eu peguei um aluno e agora.. quem que vai me apoiar...” porque há um me::do...até de que a/ de que o professor.. por essa aflição... por esse pânico que ele entra.. ele deixe de fazer o que ele fazia bem.. ou seja o atendimento às demais crianças.. e ele sabe... que ele vai ter que/ o plano dele .. vai ter que ter uma modificação.. né.. ele vai ter que trabalha::r .. não... por conta daquele aluno que chegou.. ele vai ter que adaptar o conteúdo dele e ver...que ele tem um aluno com uma deficiência em sala de a::ula...e que ele vai ter que ter uma aDAptação pra aquele aluno.. dependendo da limitaçÃo dele...(B, p. 8-9, ls. 450-492) Minha justificativa do pânico do professor não encontra eco nas falas de O.: ela retoma a palavra no turno seguinte evocando o trabalho que o professor vai ter com essa criança (mudança nos planos, adaptação de conteúdo). O que era descrito primeiro como um não-querer, depois se transforma em desconhecimento e desorientação e finalmente, em falta de vontade em modificar a rotina (adaptar-se). A discussão das condições de trabalho traz um elemento, ao qual já me referi: o conflito entre professores das classes comuns e professores da educação especial; O. descreve o preconceito contra o professor da classe especial por trabalhar com menos alunos como algo que sobrevive nos processos de inclusão: O. (...) não é esse nã:::o porque no momento que você tem...na universidade como ( eu fiz né). E::: educação especial.. quer dizer.. quando a gente começava a debater educação especial sobre trabalhos feitos nO município...né... o pessoas diziam... “que na:::da...o professor de educação especial com dois alunos não trabalha nã:::o” né... “ as pessoas de educação especial não faz nada” ...“ as 223 Ent. P. pessoas de educação especial ou a/a o departamento de educação especial..não traba:::lha... não dá suporte pra professor...isso e aquilo”... então quer dizer nÓs que estamos dentro da educação especial.. que trabalhei... a gente entende... quer dizer ... há/há ...aquela né /aquele DEBAte né.. porque eu defendo...eu defendo porque eu to de:::ntro...eu trabalho e vejo meu trabalho né.. (...) então há um preconceito já antigo... [ HÁ um preconceito antigo... com a educação especial que também aparece agora na inclusão também né..(B, p. 10, ls. 544-572) O lugar do professor oriundo da educação especial e diferente, no discurso deste, do lugar do professor de sala comum, e isso é explicitado o tempo todo, mas aparece também em estratégias conversacionais. Por exemplo, sob a forma de desvio temático, como se pode ver abaixo, num momento em que eu tento, inspirada em uma fala de P. sobre as dificuldades de difundir o Braille entre os professores, chamar a atenção para a quantidade de tarefas a que o professor seria submetido: Ent. P. Ent. P. porque tem a ver com necessidade pessoal também né...vo/você é forçado ... é colocado na situação que tem que usar... quando você não é colocado na situação...---mas é/é engraçado isso porque professO:::res.. pelo menos na teoria né.. . que a gente tá lendo sobre a inclusão né.. ele/ ele teria .. teria que ter uma rede de recursos pra poder lidar com todas as diferenças na sua sala de aula.. quer dizer ..teria que conhecer o Braille e minimamente...ver se os trabalhos estão sendo fei::tos.. as tare:::fas... teria que conhecer LIBRAS pra comunicar.. teria que ajudar no deslocamento da criança com/com deficiência física...--é porque...você vê uma criança por exemplo.. a/a criança...ela começa a se alfabetizar mesmo antes de ir pra escola... hanran né…porque a gente/ nossa cultura ela é:::...uma cultura orAL... e é uma cultura escrita também... né ...tem paLA:::vras... tem carTA:::zes... e a criança começa a ler aquilo... ela começa a treinar escrita também... logo muito cedo.. ma::s .. é:: tratando-se de alunos cegos...ele vai começar a se alfabetizar realmente só na escola... por que é só lá que ele vai ter o contado com o Braille...e mesmo depois que tenha esse contato... né... é restrito porque ele não tem ni:nguém lá fora que estimule ele.. né...porque 224 as pessoas lá fora não conhecem essa linguagem...(B, p.5, ls.252-283) O preconceito a que P. se referia entre professores da educação especial e da sala comum é descrito por ele em uma outra situação. Em que o tema é a desinformação geral, emerge na discussão a desobrigação que outras pessoas sentem com relação à inclusão. Para P. o fato de haver profissionais que são pagos para atuar na educação especial (os professores que ficam na interface entre uma e outra, no processo inclusivo) faz com que os outros se considerem desobrigados dessa tarefa. P. Ent. P. ...a desinformação é muito grande e isso prejudica... prejudica a socialização... que muitas pessoas ainda não se deram conta... acham que:: só quem tem a obrigação de:: se relacionar com o portador de necessidades especiais só é realmente quem trabalha com ele... quem ganha pra isso... quem tá habilitado... quem ganha... quem tá habilitado.. e quem ganha pra isso...muita gente trata dessa maneira ainda...(B, p.8, ls. 416443) Esse perfil em vários momentos desenhados tem, é claro, suas exceções. Na fala de D., por exemplo, já não parece haver essa distinção tão marcada entre os dois tipos de professor. Para ela, a rejeição por parte do professor de sala comum é apenas uma reação inicial, relacionada com sua pouca experiência e pelo medo de não conseguir ensinar, pela falta de formação: D. Ent.. D. Ent. D.. a gente vê a diferença/o trabalho aqui né... que..eh:: quando chega o professor NOvo que depara com o aluno incluso..ele tem essa tendência de assim... eh ... da... da... questão da rejeição o professor novo ele::... ele tá assustado com tudo... diga-se a verdade ((risos))... é... mas assim...NOvo na questão da inclusão... [ ah sim...mesmo já sendo (...) profissional de longa data(...) MESmo já sendo um profissional experiENte...mas quando ele chega e se depara com o aluno com necessidade especial na sala de aula dele ali...junto com os outros...ele acaba... sem saber como fazer...acaba assustado... num primeiro momento... essa é a experiência que a gente tem visto..tem 225 J.. D. Ent. D. percebido aqui... então... eh... nesse caso... nesse primeiro momento... a gente pode até dizer que é ... uma rejeição... mas eu diria que..é uma rejeição eh:: eh:: por MEdo de não conseGUIR::.. [ cumprir o conteúdo (...) de não conseguir comunicar... de não conseguir ensinar o conteúdo dele da mesma forma que ele tá ensinando... ele fica sem saber como que ele vai ensinar da mesma forma que ele tá ensinado pros ouvintes pra’quele aluno surdo... por exemplo...né..então...essa::: [ eu ficaria apavorada... essa rejeição é pela FAL::ta de formação que ele tem na área (...) não tem uma formação pra ah:: trabalhar com o aluno surdo... ele então vai ficar assustado... né... ele vai ficar sem saber como fazer... como trabalhar... e aí.... deve ser desesperador mesmo porque EU já tive essa experiência...(acho que só com o tempo como J. falou... faltam políticas públicas pra... tar colocando TOdos os profissionais capacitados pra trabalhar com a inclusão...que a gente vê que ainda::: são são POUcos os profissionais que estão... capacitados pra trabalhar com a inclusão...com os cegos...com os surdos (..) Um elemento da fala de D. justifica essa insegurança. Ela diz que o professor “se depara” com o aluno incluso, e invoca a própria experiência inicial; isso quer dizer que o professor não foi preparado anteriormente para essa situação. A rejeição e a insegurança, descritas em outros discursos como definidora do lugar do professor, na fala de D. é historicizada: tem a ver com os modos de se fazer a inclusão e o lugar que se atribui ao professor nela. A resistência dos professores de sala comum, nas falas de Z. e L., têm a ver com o tipo de aluno incluso e com sua capacidade de se adaptarem às exigências de disciplina e silêncio, constitutivas da norma escolar. Isso explica, segundo ela, que os alunos cegos e surdos sofram muito menos resistência por parte dos professores do que os alunos com déficit cognitivo: Z. Ent. diminuído... com certeza... a resistência maior... a resistência maior NÃO É com os alunos de DA e NEM com os alunos de DV... a resistência maior que existe é com os alunos DC... mas porque será... 226 Z. Ent. Z. L. Z. porque os alunos com déficit cognitivo eles são irrequietos... né... eles pu::lam...eles fa/eles não sosSEgam... porque... porque não têm o atrativo pra eles que aquele negócio só de escrever escrever aquilo ali não é pra eles ((risos)) nem pra nós né....a gente cansa muito [ pois e´... pro::pro dito normal já é...já é chato agora imagina então com ESsa::/com essa categoria... é uma reclamação só... se você juntar os professores de/ que têm aluno incluso DC tá... aí você vai ver aber/aberração... (D, p. 09-10, ls.498-516) A relação com esse outro se organiza então em torno de um esforço para conscientizá-lo e despertá-lo. Ambos os verbos criam a idéia de um professor pouco consciente, adormecido; essa situação será superada com os cursos, os quais provendo conhecimento ao professor, o tirarão dessa letargia. A crença no poder do curso se vincula a uma idéia de conhecimento como mobilizador. Z. Ent. Z. Ent. L. Z. Ent. Z. é como eu tava te falando... a gente fala assim por exemplo que o professor tem essas dificuldades... eu tenho visto muito de assim....num ter o apoio necessário... e devia ter mais... sabe... uma coisa assim que..essa questão de ter... você tá vendo... ela acabou de falar... essa questão de curso... exige... que ele tem que ter conhecimento... tem que se preparar.. tem que parar as aulas pra fazer isso... é ESsa a dificuldade...que eu vejo..então..é uma coisa assim que:: ((risos e vozes concomitantes)) porque é muita coisa que se fala sobre a inclusão como se fosse uma questão só de boa vontade..e num é..claro que exige boa vontade... mas só ela num resolve.... é... por exemplo... a conscientização...isso que a gente acabou de fazer... é um pouco assim... ele se interessar mais... a questão da boa vontade assim... mais boa vontade... e o conhecimento que eles podem se aprofundar mais um pouco no.. teve um que disse assim... “professora... agora/ o ano que vem eu pego com fé em Deus”... eles aumentaram a::a vontade de participar... com certeza... tá… enquanto eles tão vendo lá de longe só no papel ali... pra eles é alheio... mas no momento que eles começa a conhecer..né.. aí já começa a despertar... (D, p.8, ls. 409-437) Desse modo, a tarefa de despertar o outro (e assim, conseguir novos militantes, novos vocacionados para a educação especial) é 227 assumida pelo educador, ainda que esse despertar signifique mais trabalho. Z. Ent. Z. ...já que existe o estágio... no ensino regular... dos professores... acadêmicos... por que que esses professores...esses acadêmicos também não vêm fazer estágio::: na educação especial? pra ter que... não se esqueçam que isso vai sobrecarregar vocês também... é..mas aquela coisa também...é aí que estamos querendo chegar porque eu acho que quanto mais despertar eu acho que nós vamos ter mais profissionais...tá... que não é possível que em vinte... em trinta... num..num aponte UM...(D,p. 20, ls. 11041116) Esse outro professor se interessa, segundo as falas de Z. quando a prática exige que ele aprenda coisas novas; nesse caso, ele inclusive investe pessoalmente na formação, comprando o material necessário para aprender o Braille. Insinuo que isso deveria ser obrigação municipal, uma vez que é material de trabalho, mas Z. está entusiasmada exatamente com esse desapego do professor. A disposição de comprar o material é dada como um indício do interesse do professor pela educação dos alunos cegos, e é tão valorizada, que ela própria se encarrega de fazer o levantamento de preços e intermediar a compra. Z. Ent. Z. Ent. Z. não..e:sse curso/esse treinamento foi o seguinte... foram trinta e seis participantes...desses trinta e seis eu te digo que trinta...trinta participaram assim do inicio ao fim... horário cumprido assim aquela coisa toda..e:: se identificaram..mas porque...porque eles sentiram a necessidade na própria sala de aula... eles tavam com aluno incluso porque nós só pegamos os professores que esTAvam atuANdo com aluno... que a prática tava exigindo esse conhecimento... que a Prática tava exigindo... então por isso que teve esse rendiment ---eu acho que foi um rendimento muito bom...---que era o que..oito horas podia chegar que eles tavam tudinho... nove horas só se escutava esse barulhinho tec tec ((risos))... quinze pras duas... eles iam almoçar assim correndo... então o interesse deles foi tão grande que eles tão querendo assim adquirir o materIAL... o material em si... que eles dizem “se a gente não praticar nós vamos esquecer”... é verdade... tá... então nós vamos tentar ligar lá pra Bengala Branca pra ver qual é o preço que custa o material... né...pra:: eles comprarem:: e::: continuar o trabalho... 228 Ent. Z. Ent Z. comprariam individualmente ou a prefeitura compraria pra eles? individualmente... né... hunrum cada um quer adquirir o material pra si mesmo... (D, p.08-09, ls. 447-479) Outro momento em que esse outro-professor ganha valorização, as falas de Z., é quando é confrontado com o perfil do supervisor. Nesse caso, a valorização tem a ver com a proximidade do professor com a prática, da qual, segundo Z., está distante o supervisor. O fato de que os supervisores são enviados para os cursos no lugar dos professores incomoda Z., que não vê neles interesse de fato pelas questões da inclusão. Minha tentativa de amenizar a situação, lembrando que os supervisores também têm que compreender o processo faz com que ambas as professoras envolvidas na conversa reajam, exemplificando esse desinteresse com o fato das supervisoras sequer se fazerem presentes durante todo o tempo do curso; em contraposição a isso, e por causa da necessidade prática, o professor teria aproveitado melhor. Z. Ent Z. L. Ent. Z. Ent. Z. agora mesmo por exemplo () foi quinze dias de curso... era para os professores da Sala regular...que estão atendendo os alunos... o que que acontece... a diretoria de ensino () mandou os supervisores... mas num é nessa preocupação de fazer eles entenderem um pouco também como é que funciona...? MAS o que que acontece eles não passam o que vêem... não... que num passam eu sei... mas esse entender já num é meio caminho andado pra ele saber do que que tá falando? pode ser até que seja... se eles ficassem realmente no local... mas é tão desinteressado... se eles ficassem as oito horas do curso... assim... aí eles vão... eles vão fazer... ele vão pro dentista eles vão tratar da saúde eles vão num sei o que ((risos)) resultado... quando dão três horas da tarde a sala tá vazia... porque pra eles num tem... ocuparam o espaço daquele professor que tinha o direito... se fosse o professor que está atuando com o aluno de forma... dentro da necessidade... ele iria aproveitar o momento (D, p,. 16, ls. 875-900) 229 Outro elemento que complementa a compreensão dessa relação da professora de educação especial com as supervisoras, o que faz aquela se deslocar de sua posição com relação ao professor de sala comum aparece na continuidade da conversa: é a resistência das supervisoras por causa da fama de “briguentas” das professoras de educação especial. São professoras que, segundo Z.. reagem e não deixam por menos quando os alunos são discriminados Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. L. Z. Ent. Z. Ent. Z. não até que não... porque nós temos assim.. nós temos assim () professoras doidas ((risos)) ... como assim... que é doida...? nós temos uma que eu vou te dizer...a L. ...gente a L. eu num sei como é uma dupla daquela..a L e a supervisora dela... briga muito..? mi::nha mãe....porque ela... ela diz logo ... “olha L. tu vem cuidar de teus doidinhos... “de teus doidinhos não... de nossos doidinhos”...((risos)) como é... isso é lá palavreado que uma supervisora use.... pois é... é... e ela diz assim “meu não... nosso... e outra coisa... não é doido... tu respeita... porque eu vou te colocar na cadeia...”((risos)) tá certa... a gente se educa uns aos outros é assim... né... então assim...são essas professoras assim que tem aquele empaque né... e tu sabe que uma supervisora ela vai passando pra outra quando tem reunião...então eu acho que também por isso ... tá havendo essa resistência ... que vai haver... discussão... e:: vai haver discussão... aquela coisa toda...mas eu te digo o seguinte que a/nas escolas que a gente tem ido... né L..?... que a gente tem feito esse trabalho... sabe... tem sido bem...tem sido bem aceito...(D, p. 18, ls.976-1005) Sugerida essa capacidade de enfrentamento como própria dos professores de educação especial, fica mais uma vez reforçada a caracterização, feita anteriormente, dos professores de sala comum como passivos. Por outro lado, o enfrentamento das supervisoras coloca do mesmo lado esse professor e o de educação especial: com relação á formação, e em contraposição com a postura dos supervisores, esse professor aparece como interessado, pelo fato de estar imerso em 230 necessidades práticas que o fazem aproveitar melhor a contribuição da educação especial para sua atividade pedagógica. Para enfeixar os efeitos discursivos produzidos no esboço do perfil do outro-professor, que emerge em muitos momentos das várias sessões, criei três linhas gerais: a) aparece, na maior parte das falas e ao longo delas, uma distinção entre o professor que faz inclusão, que é o professor oriundo da educação especial, e o professor de sala comum. O lugar deste último no discurso se configura geralmente por atributos como desinteressado, inseguro, preconceituoso quanto às possibilidades desse tipo de educação, incapaz do desprendimento que se verifica naqueles de educação especial. Este se desenha, em contraposição, como um profissional que precisa estar no controle do processo inclusivo e na defesa dos alunos com necessidades especiais. b) uma outra distinção entre os dois perfis de professor se esboça a parir da possibilidade que a ação dos professores de educação especial ajuda a conscientizar e a despertar aquele outro professor. Nesse caso, este é descrito como interessado, capaz de investir e de participar da própria formação. c) a elaboração desses perfis têm um antecedente histórico: o preconceito de que se sentiam vítimas os professores de educação especial, antes da inclusão. A inclusão os coloca numa situação de poder diferenciada: agora eles são uma espécie de assessoria, à qual os demais professores têm que se submeter, de uma forma ou de outra,. As tensões remanescentes da antiga relação se reconfiguram nas relações atuais, mas não deixam de desenhar posições, de certa forma, em enfrentamento. Num momento ou noutro, as condições históricas em que tais atributos foram sendo construídos são levadas em conta, mas eu diria que esses perfis, desenhado pelos profissionais cuja função é criar uma relação entre a sala comum e a educação especial, tendem a se estabelecer no imaginário dos professores de educação especial como 231 definição identitária dos demais colegas. Isso certamente influirá em sua interação, e, por conseqüência no trabalho educativo a ser realizado por ambos. Fica em aberto, já que a pesquisa não permitiu fazê-lo ainda, um estudo do perfil que os professores de sala comum esboçam de seus colegas de educação especial, os quais, na situação da inclusão, ocupam um lugar privilegiado com relação a eles. 6.5. O LUGAR DO ALUNO DITO “INCLUSO” Um terceiro outro, sempre presente nas falas dos entrevistados, é o aluno que passou a ser denominado “incluso”: aquele que, ou sendo oriundo da educação especial, ou tendo começado sua escolarização na sala comum sob os cuidados do atendimento especializado, por conta de necessidades educacionais especiais, é objeto da atuação tanto de professores de sala comum quanto dos de educação especial. Operadores que aparecem bastante, nas falas com relação a esses alunos, quando os entrevistados são indagados das vantagens da convivência, são sensibilização e ajuda. Esses termos são encontrados na fala de P. que destaca a importância de aluno cego e vidente se sensibilizarem mutuamente; ao exemplificar, no entanto, ele destaca a aprendizagem do aluno vidente no lidar com a deficiência do outro, movido pela curiosidade. O contrário não é dito, da possibilidade de o aluno cego ser movido pela curiosidade de saber das especificidades de um vidente, e das aprendizagens daí decorrentes. A história que O. conta em seguida, para exemplificar essa convivência, mostra um aluno ouvinte tentando ajudar a colega surda na apresentação do trabalho; ela passa para esse aluno a tarefa de ajudar, 232 mais uma vez explicitando quem está em condições de ajudar e quem tem necessidade de ser ajudado: Ent. P. Ent. P. Ent. P. O. P. O. Ent. O. fala/fala muito na literatura assim.. das vantagens que é pra criança comum.. pra criança (da escola regular) ter contato com essas pessoas.. cês vêem/ tem visto vantagens.. assim...no desenvolvimento...DESsas crianças com relação ao contato com a pessoa...cega... é... digamos que é de grande valia... o contato é de grande valia... é fundamental... eu diria que é fundamental... porque::... sensibiliza as duas partes... né... hanran sensibiliza tanto::: o aluno que tem a deficiência... né.. como também...sensibiliza o aluno que não tem a deficiência mas aprende a lidar com ela... a/porque vai é::: vai criando gosto de maneira natural... isso que eu queria perguntar... assim:: tem um/um incentivo... um desejo de... [ é... tem a curiosidade .. tem até curiosidade por parte do aluno que não tem deficiência.. tem o contato/ ele quer ter o contato... né...e é:: I::Sso que:::... a legislação prevê por exemplo... [ nós temos exemplo.. né:::.. E... por exemplo aqui na escola... nós temos alunos inclusos... eu tou colocando de quinta a oitava né.. [ exatamente aonde a NECEssidade do coleguinha dele... de fazer um trabalho com ele... apreSENtar um trabalho... que o trabalho deles são visuais... né.. hanran ou... gestos...as vezes eu digo pra eles.. “se o professor não conhece a linguagem use um gesto... a mímica...aonde o professor... ele vai conseguir é:: entender o que você tá falando” e geralmente --incrível--- tem na escola nossa aqui... tem na escola um aluno.. aonde lÁ na igreja de::le...Testemunha de Jeová... lá eles conhecem a linguagem de sinais.. tá... e LÁ ele aprendeu um pouquinho...e a necessidade dele...porque tem um aluno e ele quer ajudar...ai ele vai comigo.. “ professora eu pOsso ajudar....à/à aluna Márcia” a/ “ pO:::de.. graças a Deus que chegou você ... vem aqui” aí eu passo... quer dizer.. há todo aque:::le trabalho de interpretação...(B, p.5, ls. 304-353) Também na sessão C, nas falas de D., aparecem os operadores sensibilização e ajuda, dessa vez associados a socialização. Os benefícios da inclusão são relacionados ao aluno que tem necessidade especial e não 233 ao outro. O fato de o aluno surdo “as vezes...ajudar o ouvinte” não deixa de reforçar o que tinha sido sito pelo outro colega: via de regra, é o surdo, o cego, a pessoa que necessita de ajuda. No último turno D. faz um fechamento para o raciocínio que mostra o que para ela seria sim um problema difícil de contornar: uma diminuição da capacidade cognitiva. Ou seja , a possibilidade de ajudar, na escola, aos alunos surdos e cegos, assim como sua aceitação, tem a ver com o fato de que sua capacidade cognitiva não foi afetada. Ent. D. Ent. D. (...) na verdade a grande tese da inclusão é essa... né... que::: todo MUNdo ganha com a inclusão... ganha o chamado incluso... ganham os demais colegas... vocês acham...que isso se evidencia... dá pra ver isso na...sala de aula... eu acredito que sim...eu acredito que sim.. a gente tem... eu acredito que...de forma alguma ia ser diferente... eh:::...com certeza vai ser diferente... se esse aluno surdo que hoje tá lá... co::m trinta... trinta e cinco alunos... dois alunos surdos e trinta ouvintes na sala de aula...se eles estivessem exclUÍdos desse grupo com certeza o aprendizado deles seria diferente... eu acho que a inclusão ela... beneficia sim... esse aluno que tem uma necessidade especial... né... de aprendizagem... por que a gente que trabalha... eles estão lá socializando com os outros..os colegas ajudam... eh... aqui a gente tem a questão da aceitação que é muito bOA... então acabam:: se ajudando... e:::a gente percebe que ás vezes o aluno SURdo também ele ajuda o colega que é ouvinte... ele percebeu meLHOR... né... rápido... primeiro que o aluno ouvinte e acaba às vezes ajudando... hunrum então a gente vê que não é. eh::: não é questão..não é nenhuma questão cogniTIva que ele tem... né... e a questão da surdez não... não o atrapalha...na questão da aprendizagem né..não diminUI a capacidade cognitiva dele...né...(C,p.9, ls 457-488) Essa condição colocada para que a convivência seja benéfica remete ao dizia Z. na sessão D: os problemas da inclusão têm a ver com certos tipos de deficiência: aquelas que colocam em xeque a norma da escola. Para esta, a mudança de visão dos alunos com relação aos colegas com necessidades educacionais especiais levam a tentativas de ajuda. 234 Ent. L. e você acham que a sala de aula... os outros alunos eh:: no contato com os que tem necessidades especiais... vocês acham que... que isso melhorou...as condições sala de aula... ou criou mais dificuldades pra funcionamento... em termos de aprendizagem... relações... pessoais:::... disciplina... eu acho... eu vejo assim que...que desenvolVEU essa parte...até porque eles não são tão... tão assim... discriminados... tem aqueles que (sentem) até... se vê ... iGUAL... apesar de/aí depende... depende da escola... do professor... essa questão de aceitar a sensibilização ... então na medida que o professor vai adquirindo conhecimento até os próprios aLUnos... os próprio colegas vão vendo eles de outra forma... a gente vê que eles tentam ajudar não é... colegas que tem mais dificuldade... no caso dos alunos que têm déficit cognitivo...enfim... eles se ajudam... (D, p.18-19, ls 1015-1034) Tais palavras trazem uma carga relacionada à própria história da deficiência: esse aluno é sempre alguém que precisa da sensibilidade e da ajuda dos outros, tidos como normais. Por outro lado, a tarefa da inclusão, ao juntar diferentes na mesma sala de aula, precisa ir além de tornar as pessoas sensíveis à presença do aluno com necessidades educacionais especiais: precisa garantir que o aluno aprenda, ao mesmo tempo em que possa ensinar algo (e esse algo precisaria ter a ver com o específico da escola, e não com o específico da deficiência). A quantidade de alunos em classe, descrita por Z. como uma tentativa do poder público de aumentar as verbas recebidas para a educação (que são calculadas por quantidade de alunos), traz uma informação que coloca em dúvida a possibilidade real do atendimento pedagógico desse aluno incluso: cada aluno com déficit cognitivo é contado por dois para efeitos desse cálculo. A redução não é grande coisa, considerando-se que não são colocados muitos alunos com necessidades educacionais especiais em cada sala de aula. Assim, uma sala que teria quarenta e recebe três alunos DC, por exemplo, ainda fica com trinta e sete alunos. Ent. eu fico pensando nesses professores assim... porque ao mesmo tempo que eles têm que ter a formação em 235 Braille... sabe... e... e em outras sabe porque não vão ter só alunos cegos em sala... eles tem tam-bém toda a preocupação com os alunos videntes videntes com os que têm déficit cognitivo... com os que têm problemas com... com a escola...com disciplina... enfim vocês conhecem a realidade da sala de aula... é por isso que eu bato na tecla que eu acho que a sala de aula deveria TER SIM... só vinte e cinco alunos... e se tiver alguém com DV talvez até menos... até menos...não...vinte e cinco alunos seria com... já incluído... com esse incluso... com o aluno... por exemplo... a cada...DC ---deficit cognitivo--- é menos dois alunos... é menos dois alunos aí o que acontece... inchaço... a turma com quarenta alunos... é... é... aquela história... não vamos tapar o sol com a peneira... tá... porque é aquela coisa assim.. é menos...menos dinheiro pra pra... pagamento de professor... é menos professor... né... porque eles ganham... aumentar a quantidade de gente na sala... né é... em vez deles pagarem dois paga só um... tá... aí o que é que acontece... num aumenta renda da escola... porque o alunos que eles ganham... a verba vem por aluno...(D, p.06 ls 305-336) L. Ent. Z. Ent. Z. L. Z. Ent. Z. O aluno, descrito aqui a partir da posição do poder público, ganha atributos de valor contábil. Mesmo aquela possibilidade de ajudálos (numa visão médico-assistencialista) fica extremamente comprometida se se pensar nas limitações de um professor para atender a tanta gente, ainda que com a ajuda esporádica dos professores que fazem o atendimento especializado. É de se concluir, portanto, que o especificamente pedagógico perca muito, mantidas essas condições. Isso faz com que a preocupação com a aprendizagem dos conteúdos apareça nas falas dos professores de atendimento especializado: Z. Ent. Z. (...) eu tou muito preocupada com os alunos do NAEJA ((Núcleo Avançado de Educação de Jovens e Adultos))em termos de... de... matemática... por que:: eles tem que fazer os cálculos matemáticos porque o ano que vem eles TÊM... por o-bri-gação... eles tão o que... na quarta etapa? eles tão na quarta etapa... o ano que vem eles ingressam no ensino MÉdio... então VAI exigir..(D, p.04-05, Ls. 214-221) 236 D. J. D. nesse primeiro momento... a gente pode até dizer que é ..uma rejeição..mas eu diria que..é uma rejeição eh:: eh:: por MEdo de não conseGUIR::.. [ cumprir o conteúdo (...) de não conseguir comunicar... de não conseguir ensinar o conteúdo dele da mesma forma que ele tá ensinando ..ele fica sem saber como que ele vai ensinar da mesma forma que ele tá ensinado pros ouvintes pra’quele aluno surdo...(C, p. 10-11,ls. 563573) A sessão C, da qual foi extraído o ultimo excerto, da qual participaram um professor de exatas (J.) e uma professora de língua estrangeira (D.)_ os únicos que não são oriundos dos quadros da educação especial_ girou, quase que completamente, em torno da discussão das possibilidades de aprendizagem de determinados conteúdos, dos métodos adequados, dos recursos. J. vislumbra inclusive a possibilidade de produção de novos métodos: J. Ent J. ...mas aqui o CAP eu vi que tem uma oportunidade de criAR material...sabe... principalmente na área de eXAtas... que você tem que peGAR você tem que VER..sabe...(...) interessante... pra você estuDAR... pesquiSAR (...) principalmente o cego... o baixa visão... então eu entrei com esse propósito de fazer um estudo profundo disso aí... (...) é....de produzir métodos... de ensino...sabe?... de criar material... de... fazer um esTUdo MESmo... científico... em cima dessa área... então... meu objetivo era passar este a::no estudando o cego e o baixa visão..aí eu entrei(...) com esse objetivo..aí eu vi que não é só:: o baixa visão que tem essa necessidade ..que as pessoas de DA ((deficiente auditivo)) que tem uma necessidade muito grande... C, p.03, ls 135-153) Retornando às condições que são vinculadas à aceitação ou não desse aluno, na fala de Z. a rejeição tem a ver com a incapacidade que o aluno mostra de adaptar-se à norma escolar. Nesse caso, os alunos com déficit cognitivo se diferenciam dos cegos, com baixa visão e surdos: Z. Ent. Z. a resistência maior que existe é com os alunos DC... mas porque será... porque os alunos com déficit cognitivo eles são irrequietos... né... eles pu::lam...eles fa/eles não 237 Ent. Z. L. Z. sosSEgam... porque... porque não têm o atrativo pra eles que aquele negócio só de escrever escrever aquilo ali não é pra eles ((risos)) nem pra nós né....a gente cansa muito [ pois e´... pro::pro dito normal já é...já é chato agora imagina então com ESsa::/com essa categoria... é uma reclamação só... se você juntar os professores de/ que têm aluno incluso DC tá... aí você var ver aber/aberração... (D, p. 09-10, ls. 498-516) O aluno ideal é aquele que agarra as oportunidades que a escola lhe oferece, o que não acontece com aqueles classificados como DC. A inclusibilidade, então se ancora não nas necessidades reais do aluno, mas no quanto ele se aproxima das características do aluno ideal prevista as pela escola. Z. L. Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. é porque é aquela coisa também...os alunos DV... os alunos DA...qualquer oportunidade que eles dão... eles seguram... tá... com unhas e dentes... o DC ele já num tem essa conscientização pra eles... pra eles/eles tanto faz com tanto fez... e eles não são trabalhados nisso... mas também é questão do ritmo de aprendizagem... questão do ritmo::: questão do ritmo do tipo de coisa que eles possam aprender..do limite que eles têm...até onde vão aprender... Isso... tá...então eles se tornam assim crianças muito irrequietas...com elas são chamadas () doidinhas... são considerados como os doidinhos da escola... e a escola lida muito com a coisa da disciplina... [ da disciPLIna... quanto mais o aluno é quietinho mais ele é bem aceito... mais ele é bem aceito...quer dizer que quando/eh::: na escola aqui mesmo a gente vê... um aluno aprontou... “vai pra casa só volta quando seu pai vier” ... (D, p. 10, ls. 539-564) O outro-aluno é, geralmente, adulto, segundo Z. (“hoje nós temos alunos... nossos alunos... é mais na fase adulta... (D, p. 22, ls. 1199-1201)77 , e esse dado traz uma nova especificidade que não pode deixar de ser levada em conta: um adulto que decide estudar é movido 77 Os relatórios gentilmente colocados á disposição pelo Departamento de Educação Especial da Secretaria municipal de Educação não trazem dados relativos a faixa etária. Pude verificar na convivência de vários meses no CAP que os alunos que o freqüentam são geralmente adultos. 238 por interesses diferentes dos de uma criança que é mandada à escola, independentemente de suas necessidades especiais. Sua capacidade de intervir também é muito maior, e essa informação modifica o entendimento do quanto o aluno pode “incomodar” a suposta passividade do professor, já destacada na fala de Z. “é::: tem que incomodar porque se não incomodar ((a professora)) não vai sentir aquela pedrinha no sapato ali né...”. A capacidade de pressionar desses alunos, de ser uma “pedra no sapato”, foi exemplificada numa ação em que eles acionaram o Ministério Público contra a secretaria, tentando garantir seus direitos. Isso mostra que sua capacidade de intervenção vai além da sala de aula: Z. Ent. Z (...) Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. Ent. Z. agora os alunos de DV peGOU no calo deles eles tão.. ((risos)) reagindo... os meninos tava falando até aqui que:: “é...eu duvido que se isso fosse comigo se essa sala não já tava pronta”...( D, p.12, ls.591-597) com DA...só que aquela coisa..os alunos... os alunos de DA eles são mais... num é nem porque/é porque a professora SE ela for falar o que os alunos..falam.. ((traduzir da LIBRAS)) num é... na frente do Ministério Público/na frente da secretária de educação..é porque é ela... é a opinião da professora... é... então que que vão dizer... vão dizer que é ela que tá... incentiVANdo...igual () então eles vão ter que arranjar outro intérprete... de outra maneira... agora a voz deles tem que aparecer num é... tem que aparecer... eu disse pra eles “então leva na escrita” documenta... documenta...”você senta vocês faz o documento” abaixo-assinado... se não vai verbalmente vai no ((escrito)) (D, p.12, ls. 647-666) O outro-aluno tem também como característica importante ser geralmente um migrante, geralmente vindo de outras experiências de educação especial. Isso explica também a preocupação de Z. com a atualização diferenciada: constante: a cobrança desse tipo de aluno pode ser 239 Z. então as duas estão inscritas pra fazer... atualização... no caso eu vou fazer atualização e ela já vai pegar o outro método porque na verdade o soroban tem qua/três métodos... ele tem um método lá do sul... que é da::: da Cleonice... né... ele tem um método da/da Bahia... na Bahia eles já usam um outro... outro método pra...pra ensinar o soroban... e temos um mé::todo aí que/que foi o primeiro que...que surgiu... né... então:: tem esses três... então o PROfessor da... da... da sala de recurso... do CAP... ele tem que estar afiado nos três... porque se não tiver... vai ver que vem alguém lá do sul... vem de lá do nordeste... e aí como é que nós vamos fazer... né? (D, p.02, ls. 123-137) Por outro lado, ainda que sendo adultos, os alunos com deficiência podem ter um histórico de super-proteção familiar, o que tem o efeito de lhes reduzir o estatuto de maioridade. A história de A., aluno cego do ensino médio, é contada como exemplo tanto de relações de super-proteção na família quanto do processo de superação disso pela ação dos colegas e professores: Z. Ent. Z. Z. Ent. Z. acho que é onde tem menos resistência é dentro da própria sala de aula... é entre os próprios alunos... principalmente assim...nessa fase inicial.. porque sabe que quando eles já são adolesCEN::tes...já pode então... eles mesmos se isolam... eles mês mos... já faz o mundinho deles... e aí eles acham que todo mundo tá contra eles... eh:: tipo assim...um aluno que nós temos no Acy Barros... então... eles/começa por eles..ele não aceita a própria deficiência que ele tem... a família superprotege... os meninos tavam até rindo aí um outro dia que ele caiu e se machucou – um rapagão já... sabe--- aí ele ficou preocupado com a mãe dele ver aquele machucado ((risos)) que quando chegar em casa a mãe dele ia brigar por causa daquele... que ele caiu... aí () mancando... fez a maior coisa daquele::: maior drama é maior já... faz o primeiro ano do ensino médio...e com essa familia sabe... preocupada aquela coisa.... ((vozes concomitantes)) A mãe... a familia em si é que::não facilita não facilita... e... na sala de aula ele tava numa situação que ele não queria participar com o::: o grupo... né... mesmo porque os outros alunos disseram que não iam fazer trabalho pra ele... e ele muito mimado... a irmã era que fazia todo o trabalho... então com o trabalho/depois desse curso que houve... né... que os 240 professores começaram a (conversar) com ele... começaram a falar pra ele do curso... ele não aceitava o Braille agora já tá aceitando... porque como eu disse pra ele /eu digo “agora até os seus professores que são videntes... eles tão aprendendo o Braille... porque que você que TEM necessidade num vai fazer?”...né então foi um toque assim:: que ele já/hoje já vem... tá... no horário dele de Braille ele já vem...então foi uma mudança assim muito boa... os próprios alunos... foi feita a sensibilização na escola pros alunos na sala de aula...então houve uma aceitação melhor... então hoje já tá bem... sabe... houve um bom desempenho na turma... (D, p. 19-20, ls. 1035-1080) Esse trabalho com a afetividade, tornado necessário no exemplo dado por conta de uma atuação da família, deve ser expandido para todos os alunos, na opinião de O.. Ela aproveita para fazer a crítica do tradicionalismo, utilizando uma expressão típica: a professora “carrasca”. O. eh: eu tinha falado com a direção aqui né.. porque a gente tem que trabalhar... todos esses pontos... né...não só o deficiente... mas também de indivíduos norma:::is... porque nós precisamos de afetividade... nós precisamos ter carinho... nós precisamos de atenção... então é... quando eu não tou na sala de aula... eu tou lá na sala regular de cima... ali com os meninos... do lado de cima... então eu vejo a carência deles em relação a... a/o profissional tá ali... aquela professora carrasca... aquela professora que só manda... não passa a mão... entendeu... não tem uma/uma palavra de cari:::nho... entendeu... não tem... então quando eles encontram uma professora... que vai assim... eles se apegam... todos nós...(B, p.13, ls. 693-708) A experiência com os alunos surdos e com os demais alunos da sala regular mostra a O. que a carência afetiva não é própria apenas daqueles que sofrem uma discriminação específica, mas é comum a todos; ela a atribui isso a posturas tradicionais em que o professor se coloca física e emocionalmente distanciado dos alunos (“não passa a mão”... “não tem uma palavra de carinho”...). A ampliação de um trabalho com os aspectos afetivos para todos os alunos, baseado na experiência com a inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais, é um dos aspectos em que se pode dizer que a aprendizagem específica da inclusão se coloca a serviço de todos. 241 Se no exemplo dado por Z. tratava-se de ajudar o aluno a superar o excesso de proteção, ganhando mais autonomia ( e aparece aí uma noção do aluno como capaz de e tornar emocionalmente forte autônomo), na fala de O. trata-se de fazer o movimento contrário, mas complementar àquele: ajudar a aproximar professores e alunos em laços afetivos, superando a distância física e emocional estabelecida num modelo de ensino tradicional _ emerge aí uma noção do professor e do aluno como capazes (e necessitados) de se doar também emocionalmente. Os efeitos discursivos elaborados em torno do esboço desse outro-aluno nas falas dos professores que atuam na inclusão entrelaçam então aspectos remanescentes da tradição assistencialista da educação especial como alguém que necessita de ajuda (e para tanto é preciso sensibilizar os outros), que desperta a curiosidade, alguém que de acordo com a sua deficiência pode se inserir melhor ou pior na escola (por conta da características da própria escola). Outros aspectos se confrontam com aqueles, às vezes no discurso da mesma pessoa: esse outro também é alguém em cuja aprendizagem e desenvolvimento eles investem; um outro adulto, que reivindica sua cidadania e seu espaço no mundo; um outro cuja experiência de migração faz com que tenha exigências de acompanhamento diferentes; um outro cujas carências emocionais têm que ser trabalhadas, e nisso não é diferente dos demais e dos próprios professores. Durante todo o tempo em que acompanhei o trabalho no CAP, os professores, sem exceção, falam apaixonadamente de seus alunos; conhecem-nos em detalhes, acompanham cada passo de suas vidas (as lutas por passe livre, pela aplicação correta dos recursos, as aflições em tempo de avaliação escolar, as tentativas de aprendizagem dos conteúdos, a relação com os outro professores, com a família). É verdade que também se definem com relação ao outro-governo e ao outro professor de sala comum, mas creio que a relação com o aluno é a que 242 mais o define como professor, é a relação emocionalmente mais consistente; com relação a este ele se desdobra em militante, psicólogo, pesquisador, especialista em determinados conteúdos, e evidentemente, não deixa de ter um característica paternal/maternal, na medida quem que sobrevive um certo assistencialismo na relação. 6.6. FORMAÇÃO SUPERIOR E FORMAÇÃO EM SERVIÇO O aspecto da formação é uma constante nas preocupações que aparecem nas falas dos professores. Emerge em todas as sessões, a propósito dos mais diversos temas. Quando T. reage à descrença do outro professor em sua capacidade, por exemplo, é à formação que ela recorre: T. tenho que dizer o quê... eu disse...como eu falei pra ele, eu digo não, você não vai/eu não vou ensinar você...você vai aprender comigo o que você não conhece... e você não conhece a educação especial... porque você nunca fez um curso de aperfeiçoamento... nunca fez um curso de capacitação... então você não sabe... nunca viveu ...() de trabalhar com alguém... ou seja... porque você nunca fez um curso de capacitação... nunca fez um curso de aperfeiçoamento... e eu tenho uma espECIA-LI-ZAÇÃO... um adicional de quase oito meses...(A, p.2-3, ls. 105-117) Ent. T. Tento inserir na discussão o aspecto da experiência com educação especial, mas ela se mantém no tópico que lhe aprece importante: é o fato de ter-se capacitado que lhe dá autoridade para dizer que tem algo a ensinar ao outro, ainda que esse outro seja mais velho e mais experiente. 243 Em outros momentos, o operador aparece nas referências ao professor de sala comum; nesse caso a falta de formação é geralmente evocada para explicar as dificuldades que o professor tem em lidar com as especificidades dos alunos surdos, cegos, com baixa visão, com déficit cognitivo. No excerto abaixo, por exemplo, o professor recorre à explicação da própria falta de formação, segundo O., para justificar a recusa do aluno surdo, e ela própria reconhece que sem essa formação e o conhecimento necessário, fica difícil o trabalho daquele professor: O. a desvantagem do ponto de vista pedagógico no caso né... é até de interesse mesmo né...que a gente vê ...do professor não querer.. é:::.. estar com aquele aluno em sala de aula.. quer dizer ...ainda há essa discriminação... “ ai eu não sei trabalha:r.. eu não sou forma:da... e::u não sei .. eu não sei pra onde va:i .. e comé que eu vou ensinar.. e isso...” né ...então.. coisas...que realmente aconTEce em tO:das as escolas aonde o professor realmente ele não/ não conhece.. né.. aquele aluno.. ele não conhece...aquela/aquela... deficiência em si.. ele não tem o conhecimento daquilo ali.. então pra ele é difícil... (B,p.8-9, ls,453-466) O operador formação surge no discurso com dois sentidos principais: ou se refere aos cursos de treinamento que os educadores especializados oferecem aos professores em geral, ou aos cursos de formação superior. O primeiro sentido aparece com uma ênfase maior no discurso da maioria dos entrevistados. Nesse caso, geralmente significa cursos técnicos ( Braille, LIBRAS, Soroban, etc.). Não me deterei nesse aspecto, nem apresentarei muitas citações porque elas aparecem abundantemente ao longo de todo o texto. Gostaria de chamar a atenção, no entanto, para o entusiasmo e a importância que esses educadores atribuem a esse trabalho: T., quando fala da recusa do professor em fazer o curso; Z. e L. descrevendo o curso que ministraram, em que os professores quiseram até comprar o próprio material; O. quando descreve a grande necessidade que os professores novatos têm de aprender LIBRAS e seu esforço em 244 fazer com que ele usem. A citação abaixo é apenas um dos muitos momentos em que essa valorização se evidencia: Z. É::: se identificaram muito... MUIto MESmo... sabe....é tão/tanto que nós saímos de lá... “professora nós vamos sair daqui mas nos já vamos sair já... com a data marcada... do segundo encontro”... que vai ser do dia vinte e seis ao dia vinte e nove de setembro... tá... que eles já iam colocar no planejamento deles que essa semana eles estariam fora da escola... que eles iam... fazer esse trabalho... quando eles dizem assim “nós num tamos fora da escola... nós tamos é dentro da escola fazendo fazendo:: nós tamos fazendo a formação... então foi muito bom por que:: teve professor que foi até em casa de aluno(D, p. 06. ls. 288-303) Ent. Z. À valorização do fato de estar capacitado soma-se uma certa ânsia de capacitação. Elas se referem com entusiasmo aos curso em andamento, tanto que realizarão com os professores quanto aos que elas próprias participarão na qualidade de alunas, como nos dois excerto abaixo: O. (…) Z. Ent. Js. Ent. Js. dizer...esse ano...é pra começar agora... dia quatorze de agosto... o terceiro curso de linguagem de sinais na escola.. só não vou começar .. porque eu vou adiar...por::que eu vou ter que viajar... mas no moMENto que eu chegar.. eu já vou fazer meu cronograma pra /nesses profissionais que estão/principalmente nos novatos que entraram agora... a necessidade é muito grande...(B, p.4, ls 191-199) é...eu tive assim experiência --- e foi uma experiência muito boa porque eh:: devido estar... há mais tempo no Braille... a área mesmo pra que eu fiz... então como... né... porque como eu sou registrada no MEC todos os curso que vem já vem:: é sempre assim... o município... ele já tem os professores que vão indicar... né... hum então LÁ mesmo eles já têm os::os nomes dos professores... então... como:: por exemplo nós temos:: duas etapas ainda de curso fornecido pelo MEC... que no caso é AVD, né que eu falei?... AVD e o soroban... AVD... né... soroban... então como eu tava falando pra N. ((coordenadora de educação especial)) já que a 245 Ent. Js. demanda tá grande... quando eu fi/ quando eu fui me inscrever eu já inscrevi o nome dela (L.) também... hunrum... então as duas estão inscritas pra fazer... atualização... no caso eu vou fazer atualização e ela já vai pegar o outro método porque na verdade o soroban tem qua/três métodos... (D,p. 2-3, ls. 102-126) Por outro lado, é perceptível uma diferença entre os entusiastas da formação técnica em serviço e os da formação superior. Nas falas dos entrevistados que deram ênfase maior aos treinamentos, poucas referências aparecem ao curso superior (apesar de que todas são alunas de Pedagogia em fase de conclusão do curso). Quando Z. se refere à universidade, por exemplo, é mais como instituição de apoio, da qual ela reivindica o envio de estagiários para atuar no atendimento especializado e assim,quem sabe, despertar vocações. O. se refere a ela como o futuro do aluno que ela acompanha, mas não com relação à própria formação. A referência que O. faz à própria formação superior traz a lembrança do preconceito dos colegas com relação a educação especial, traz as marcas de seu confronto com esse preconceito: O. (...) não é esse nã:::o porque no momento que você tem...na universidade como ( eu fiz né). E::: educação especial.. quer dizer.. quando a gente começava a debater educação especial sobre trabalhos feitos nO município...né... o pessoas diziam... “que na:::da...o professor de educação especial com dois alunos não trabalha nã:::o” né... “ as pessoas de educação especial não faz nada” ...“ as pessoas de educação especial ou a/a o departamento de educação especial..não traba:::lha... não dá suporte pra professor...isso e aquilo”... então quer dizer nÓs que estamos dentro da educação especial.. que trabalhei... a gente entende... quer dizer ... há/há ...aquela né /aquele DEBAte né.. porque eu defendo...eu defendo porque eu to de:::ntro...eu trabalho e vejo meu trabalho né.. eu defendo aqueles também ... o profissional ...que realmente na educação especial ele faz o trabalho... (B,p. 10, ls.544-563) É nas falas de P. (pedagogo) e J.(licenciado em matemática) que o termo formação aparece mais no sentido de um curso superior. Nesse 246 sentido, formação geralmente tem a ver com a formação dos próprios educadores do atendimento especializado e dos professores de modo geral Quando P. faz a crítica da inadequação da universidade, referese basicamente a duas questões. A primeira: como instituição de ensino, ela própria não tem estrutura para adequadamente os alunos com necessidades educacionais especiais (P. é pedagogo e tem baixa visão; fala, portanto da própria experiência): P. (...) P. ...então não é só a escola HOJE não é só a escola que tem a dificuldade de atender esse aluno... não é só a escola/não é só a escola de educação básica... mas também a de ensino superior... né... e:: pelo que a gente vê HOje a gente:: percebe que:::... em alguns casos... as escolas de educação BÀsica tá à frente das---no atendimento a esses alunos---...tá à frente das universidades né porque--- como:: a gente:: sabe--- existe sala de recurso...existe centros de apoio pedagógico pra... pra atender os aluno com deficiência e na universidade não se vê muito disso não...(B, p.02, ls. 58-70) eu acho que é por isso que a gente falou no começo que as universidades não se adequaram... porque realmente... custo::u mu:::ito dar atenção pra educação da/do portador de necessidades especiais... então são poucos que chegaram ao curso superior... então a quantidade que chega é tão insignificante... que eles acham que não tem que se adequar... o que chega lá vai se virar...(B, p. 11, ls.617-625) A segunda questão que aparece no discurso de P. acerca da universidade é que ela também não fornece aos alunos de licenciatura uma formação adequada para atuar na inclusão. Isso justifica talvez a ênfase que os outros entrevistados dão aos treinamentos em Braille e LIBRAS,os quais funcionam como um preenchimento dos vácuos deixados pelo curso superior no que se refere à educação especial. P. pois é.. e::: falando da questão do prejuízo e:::u.... outro prejuízo que eu vejo... é porque as universidades/por exemplo... as licenciaturas ..deveria... já há muito tempo... ter enquadrado esses currículos nessa política de inclusã::o porque é como um professor de história tava me falando.. “ po::xa eu aprendi a dar aula de historia... mas nunca me disseRAM... que ia ter que falar em LIBRAS pra me comunicar... 247 Ent. P. não disseram nem pra mim .. nem pra você.. não disseram pra ninguE::m... quer dizer.. forma-se por exemplo... pedago::go... licenciado pleno pra dar aula de primeira a quarta série por exemplo... educação infantil...mas sobre política de inclusão... a universidade não faz nada... então a pessoa sai licenciada... né .. pleno que::... nÃ::o é pleno.. porque quando se fala em atender o aluno ce::go... em atender o aluno sur::do... em atender o aluno deficiente cognitivo... ai ele tá realmente despreparado... então há esse/essa divida social na universidade... (B, p. 9, ls. 506-527) Para J., que vem de uma outra experiência, o começo das relações com os alunos cegos aconteceu no próprio estágio do curso universitário: J. Ent. J. Ent. J. Ent. J. eh...minha história como...com deficiente::: visual...principalmente... começou em São Paulo...né...que eu tive uma aluna...que era escola particular...era a Escola do Sagrado Coração de Jesus..e tinha uma aluna que era cega...ne...e aí... eu fazia faculdade ainda... tava no terceiro, quarto ano... e eu tive a oportunidade de fazer estágio nessa escola....como estagiário...aí ela tava no segundo ano...né ...eu estagiei um ano lá, ai no terceiro ano fui professor dela...ne´...no ano seguinte eu virei professor da escola e... tinha muitos recursos assim...ela:: tinha grana... tinha condições de carregar sua máquina ((de Braille)) lá dentro então era mais FÁcil pra ela hunrum muito mais fácil ..e mais fácil pra nós também... professores... lá... não tinha sala de apoio... ela:: era auto/auto- suficiente... aí eu vim pra cá... e o ano PASsado, eu...ah:: N.H. me procurou que tinha uma aluna... tinha uns problemas de... umas questões de matemática... química () num conseguia resolver... ai eu saí da sala de aula e fui ver o que que era... se conseguia resolver pra ela... eu achava que era uma aluna::... né... com dificuldades de compreensão... depois fui ver que era uma aluna cega... cega não...de baixa visão... hunrum que era a T. ...então a partir daí eu comecei::...(C, p.02, 75-105) Dentro do CAP, J. já enxerga possibilidades que vão além do mero treinamento (ao qual aliás ele se dedica com a maior seriedade: estuda Braille e LIBRAS na horas vagas, para poder acompanhar os alunos nas disciplinas da área de exatas) ele se vê como professor-pesquisador, 248 criando métodos e produzindo recursos para melhorar a aprendizagem de alunos surdos e cegos: J. Ent J. mas aqui o CAP eu vi que tem uma oportunidade de criAR material...sabe... principalmente na área de eXAtas... que você tem que peGAR você tem que VER..sabe...(...) interessante... pra você estuDAR... pesquiSAR (...) principalmente o cego... o baixa visão... então eu entrei com esse propósito de fazer um estudo profundo disso aí... (...) é....de produzir métodos... de ensino...sabe?... de criar material... de... fazer um esTUdo MESmo... científico... em cima dessa área... então... meu objetivo era passar este a::no estudando o cego e o baixa visão..aí eu entrei(...) com esse objetivo..aí eu vi que não é só:: o baixa visão que tem essa necessidade ..que as pessoas de DA ((deficiência auditiva)) que tem uma necessidade muito grande... só (C, p. 3, ls 135-152) A formação universitária aparece, no discurso da ausência que faz P., como capaz de prover os licenciados dos conhecimentos (inclusive técnicos) necessários para lidar com a inclusão. Nas falas de J., ela se entremostra em sua disposição de atuar na produção científica. Um distinção que me ocorre entre os dois tipos de formação propostos nas falas analisadas é que no primeiro (o treinamento em serviço) o professor, pela própria falta de tempo e recursos, se subordina muito mais à formação que lhe é proposta pelo governo, não podendo ser sujeito de sua própria formação, como bem lembra P.: P. ... camarada que ganha pouco... e a::nda de ônibus... em fim... não é fácil... que não tem o direito de administrar nem sua própria formação... né..(B, p.20, ls. 1012-1014). No segundo caso, a própria amplitude da formação permite maior leque de escolha. Por outro lado, deixa de fornecer o específico de que necessitam os professores envolvidos na inclusão. Aquele entusiasmo pelo saber fazer que demonstram T., Z. L. e O. pode ter inclusive relação com o fato de que os cursos de formação superior, voltados mais para o refletir, deixam um vácuo na formação profissional. 249 Os sentidos referentes ao operador formação, então, na fala dos entrevistados, podem ser enfeixados em dois grupos: os sentidos referentes a formação em serviço, técnica, voltada para as habilidades que permitem melhor comunicação com os alunos (nesse caso, surdos e cegos; não houve nenhuma referência a cursos para os professores que lidam com déficit cognitivo, cuja responsabilidade é de outra equipe); e os sentidos referentes à formação universitária, a qual aparece de duas formas: como ausência e possibilidade, quando é descrita sua inadequação à inclusão, e como base para o professor ir além do mero ensino e tornar pesquisador e produtor de métodos e material. Parece haver uma linha que separa os dois grupos de sentido: quando um é enfatizado, o outro praticamente desaparece: não surgiram relações entre um e outro grupo de sentidos nas falas analisadas. Pode ter relação com isso o fato dos falantes que enfatizam a formação em serviço virem da educação especial e terem começado o curso superior depois, enquanto que os outros dois concluíram o curso superior para depois começarem a atuar na inclusão, sem ter passado pela educação especial. 6.7. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO ESCOLAR: TEMÁTICAS E MODOS DE OPERAR O modo de funcionamento que capto no discurso dos entrevistados pode ser configurado com base nas relações entre os enfeixamentos de efeitos discursivos anteriormente analisados: os relativos a aprendizagem, aos outros (governo, professor e aluno), ao próprio professor que atua na inclusão e à formação. Para relacionar esses conjuntos de efeitos discursivos (os quais englobam tanto as temáticas quanto os modos como o discurso opera com 250 elas), organizei algumas configurações discursivas que buscam cruzar os conjuntos de efeitos. O fato dos entrevistados não se referirem, na temática da aprendizagem, aos conteúdos, e sim ao domínio de técnicas, ganha sentido quando aparece a ênfase nos cursos de treinamento; do mesmo modo, o destaque para o domínio de estratégias relacionais faz mais sentido quando aparecem as tensões entre professores e pais, professores de sala comum e professores do atendimento especializado, professores e supervisores... O aprender se refere àquilo que é vivido, e o que é vivido mais intensamente enfrentamento é a imersão constante em cursos de decorrente dos dilemas treinamento que a e o inclusão acrescenta aos muitos dilemas da educação. Nesse vinculo entre atividade concreta e aprendizagem se apresenta um movimento em que aprender e ensinar se interconstituem, diluindo os papéis tradicionalmente estabelecidos de professor e aluno no habitus escolar. As disposições do aprender, comumente articuladas ao lugar do aluno, ganham espaço no lugar do professor. A flexibilização dos papeis de quem aprende e quem ensina e o aprender como um ato coletivo também têm estreito vinculo com essa situação vivida, de enfrentamento e negociação: as relações com os outros são constituintes da identidade em processo do professor de atendimento especializado, em duas dimensões imbricadas: a) A relação com o outro-governo (considerado principalmente em seus atributos de provedor, educador e ajudante) desenha um professor militante, envolvido nas discussões da inclusão, que intervém e exige condições para que a inclusão aconteça. b) As relações com um outro-professor tido como passivo, carente de formação, inseguro reforçam o esboço anterior, na medida em que o lugar em que os entrevistados propõem para esse outro em seu discurso justificam uma atuação agressiva, que inclusive tenta suprir o vácuo governamental, nos aspectos em que as funções de educador e provedor são descritas mais pela ausência do que pela presença. 251 A configuração dos lugares do enunciador se faz em polarização e complementaridade com os desse outro professor, e o mesmo processo acontece relativamente aos lugares do outro-governo. As relações entre os falantes e os outros com os quais dialoga em seu discurso, que vão do distanciamento/descolamento à aproximação-imbricação, também podem ser lidas nessa mesma linha: o lugar de professor se confunde com o lugar de governo, quando o discurso daquele circunscreve para ele um lugar de ator do processo inclusivo, e no mesmo movimento se distancia do lugar do outro-professor, que é descrito muito mais em sua resistência do que em seu envolvimento; esse outro precisa ser despertado, conscientizado, formado, e esses são os propósitos do profissional de atendimento especializado, que se coloca no controle do processo inclusivo. Por outro lado, se distancia do lugar do outro-governo na medida em que considera que este não cumpre suas funções com relação à inclusão e com relação á educação como um todo _ movimento pelo qual se aproxima dos professores da educação pública em geral. É preciso dizer que essa aproximação é relativa; mesmo considerando-se professor, a familiaridade com os órgãos de gestão faz com que as formas de pressão e reivindicação daquilo que é específico da inclusão se diferencie das lutas em geral dos professores. O fato dos professores que atuam no atendimento especializado se constituírem numa espécie de assessoria da inclusão os coloca numa situação de poder diferenciada, e isso não deixa de fortalecer as tensões remanescentes da antiga relação, em que se consideravam discriminados pela educação em geral. As coerções que o discurso sofre por conta dessas tensões se evidenciam, entre outras coisas, no deslizamento semântico dos lugares dos outros e do próprio lugar do enunciador nessas relações. A diferenciação entre os dois lugares de professor e as relações de assimetria entre um lugar e outro entre remetem a uma valoração positiva do tipo de aluno que está mais próximo do professor de 252 atendimento especializado (o aluno com necessidades educacionais especiais). Ainda que descrito em termos de alguém que precisa de ajuda, também é alguém em cujo desenvolvimento é preciso investir; é um adulto que reivindica cidadania; um outro que, tendo necessidades emocionais mais evidentes, pode servir de referência para a superação de uma escola fria e distanciada. Se a relação com outro professor e com o outro-governo pode ser descrita pela tensão, a relação com o outro-aluno se configura mais pela admiração e amorosidade. Tanto essa tensão quanto essa amorosidade podem ser lidas como constituintes dos lugares de um e de outro no discurso, e portanto das subjetividades que se interconstituem nesse processo. Assim, sendo que o outro cuja referência é mais forte no processo de definição identitária que aparece na prática discursiva desse professor é o aluno; sendo a tensão com o outro-professor justificada pela sua pretensa falta de formação, vocação ou conhecimento para lidar com a inclusão, a temática da formação ganha novos efeitos discursivos: faz muito sentido que os cursos de treinamento em serviço (os quais proverão uma proximidade maior com o aluno na medida em que garantem um canal de comunicação) sejam muito valorizados, provavelmente mais do que a formação superior. O movimento semântico de uma temática para outra se inscreve numa configuração em que o lugar do falante e o lugar do outro são determinantes na valoração que é feita do processo formativo. O modo de funcionamento do discurso escolar no espaço específico do atendimento pedagógico especializado se configura em formações discursivas em que os pontos de dispersão se articulam tanto tematicamente numa rede de sentidos (aprender/ensinar, lugar do aluno, lugar do outro-professor, lugar do governo, formação profissional) quanto operatoriamente numa rede de estratégias (deslizamento, polarização, interconstituição). No esforço de não perceber um modo de pensar único, 253 mas formações discursivas em debate, articulei esse modo de funcionamento em duas configurações principais: a) numa delas, configurada quando se coloca em destaque a complementaridade de sentidos, desenha-se a predominância da prática sobre o discurso, a suavização das relações de poder ou o seu deslocamento para as relações pessoais, a vinculação da idéia de inclusão à de prática escolar (prática dividida nos processos de formação técnica e de atividade escolar propriamente dita, divisão em que esta última se subordina àquela). b) numa outra, cujo esboço se constrói com ênfase nos enfrentamentos, emergem a noção de aprendizagem fazendo diluir os papéis clássicos de professor e aluno; uma valorização da formação se contrapondo às limitações da formação possível: a formação técnica em serviço; valorações positivas para o aluno cidadão, capaz de intervir, mas também para a necessidade de ajuda e assistência desse aluno; descrição de si próprios como militantes e do outro como passivo, o que configura um lugar contraditório para o professor; e, por fim, o lugar do governo se confundindo com do militante em certos momentos e se distanciando em outros. Essas duas configurações esboçam a arena em que se elabora o discurso escolar, em que a lógica dominante se afirma e se esboroa num batimento marcado pela história dos enfrentamentos e das subordinações. As contradições nos efeitos criados pela análise das marcas no discurso são rastros das coerções contraditórias da vida cotidiana. O que permite que a produtividade _ a repetição de discursos já estabelecidos _ tenha que se confrontar com a criatividade _ a crítica desses discursos e a abertura ao que vai se instituir (ORLANDI, 2005, p.37-38). 7. A INCLUSÃO NO EDUCAÇÃO ESPECIAL DISCURSO ACADÊMICO DO CAMPO DA Este capítulo tem como finalidade apresentar a análise e interpretação dos excertos (definições de inclusão escolar e suas derivações) recortados do discurso acadêmico. O dispositivo de análise e interpretação utilizado, como já mostrei no terceiro capítulo, é basicamente o mesmo daquele utilizado para a análise do texto governamental. No entanto, a constituição do corpus de análise e o tratamento do material foi diferenciado. Considerei que a especificidade do campo acadêmico, no qual as relações entre as muitas vozes em debate/enfrentamento são mais próximas do simétrico do que em outros gêneros, exigiria uma leitura de vários autores. Pela amplitude do campo da inclusão, foram escolhidos três publicações que se configuram como resultado de congresso importantes na área e de seus artigos foram extraídos trechos nos quais definições do operador inclusão e seus derivados se faziam presentes. A estruturação do capítulo tem relação com os próprios resultados das análises; cada subtítulo busca enfeixar efeitos discursivos decorrentes das operações discursivas percebidas a partir da análise de certos traços de produção do discurso, entendidos como operadores. Dessa forma, nos discursos acadêmicos que perpassam os trechos recortados, foram analisados os operadores movimento, prática e discurso. Para fechar, procurei agrupar os feixes discursivos produzidos em/por cada análise, criando uma configuração que caracteriza certos aspectos dos discursos acadêmicos, nos limites do material analisado, do dispositivo analítico e interpretativo interpretativa da pesquisadora. utilizado e da capacidade 255 7.1. INCLUSÃO COMO OPERADOR QUE INDICA MOVIMENTO E SUA CAPACIDADE DE DESLIZAMENTO O primeiro grupo de definições de inclusão tem como unificador o tema do movimento. A idéia de movimento, que aparece em cada excerto teria, no entanto, o mesmo sentido? O Houaiss (2002) apresenta uma diversidade de sentidos para o verbete. Pode-se falar de movimento no sentido de “conjunto de ações de um grupo de pessoas mobilizadas por um mesmo fim”, mas também no sentido de “partido, agrupamento, organização que vise a mudanças políticas ou sociais” (HOUAISS, op. cit.). Na rubrica filosofia, no mesmo Houaiss, movimento é definido como sendo um “processo de mudança ou alteração das relações internas ou externas de um sistema”. Tais possibilidades de sentido permitem que uma análise do operador movimento busque quais as ações que ele supõe, que grupos de pessoas, partido, organização envolve, que mudanças (e em que âmbito) ele supõe, que relações altera ou propõe alterar. Em cada excerto, a idéia de movimento agrega novas possibilidades polissêmicas; ao mesmo tempo, vão se estabelecendo os limites e contradições do discurso. Senão vejamos: No final do século XX, a realização de uma escola transformadora, a escola proclamada pela Declaração de Salamanca, com qualidade e a “apta a incluir todas as crianças independentemente de suas diferenças ou dificuldades individuais” continua sendo uma utopia necessária, mas difícil de ser alcançada. Vários estudos e experiências tem demonstrado a importância dessa escola inclusiva, na qual as estruturas se modificam tendo como paradigma assegurar o direito a uma escola de qualidade a todos, isto é, uma escola que respeita as diferenças de cada um de seus alunos e que não é reprodutora das desigualdades sociais” (KRUPPA, apud SILVA e VIZIM, 2001, p.25). No primeiro excerto, a idéia de movimento aparece na expressão “as estruturas se modificam”. As mudanças que pressupõe tal modificação 256 são a garantia de uma escola de qualidade para todos, que respeite as diferenças e que não reproduza as desigualdades sociais. O excerto traz a idéia de inclusão como utopia, a qual é definida no dicionário como “qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade” (HOUAISS, 2002). Portanto, as relações passiveis de alteração parecem ser as relações sociais mais amplas. Na paráfrase, surgem como equivalentes, já que ligadas por um “isto é”, duas orações: “as estruturas se modificam tendo como paradigma assegurar o direito a uma escola de qualidade a todos”, e “uma escola que respeita as diferenças de cada um de seus alunos e que não é reprodutora das desigualdades sociais”. Para a escola não reproduzir as desigualdades sociais, posso pensar duas possibilidades: ou ela é refratária a essas desigualdades, ou tais desigualdades já estão sendo superadas. No primeiro caso, um elemento da totalidade social ganharia tal autonomia que poderia deixar de apresentar as características dessa totalidade; no segundo, a inclusão seria remetida para um momento superior de desenvolvimento social. Parece ser este o caso, pela definição desse movimento como uma “utopia necessária”. Isso faz com que o movimento da inclusão possa ser compreendido como fazendo parte de um movimento emancipatório, de um movimento de transformação social. Preocupa-nos o fato de a Educação Inclusiva ser encarada como um movimento reducionista, limitado à inserção de alunos com deficiência no contexto comum da educação. É preciso ter cautela e insistir, repetidamente, no caráter mobilizador e transformador dos fundamentos e princípios inclusionistas. Indiscutivelmente, ao falar de inclusão estamos, justamente, demarcando, mais uma vez, o caráter segregativo, discriminatório e opressor da escola, uma vez que ela deveria ser “digna, sem adjetivações, porque deveria ser de qualidade e inclusiva em sua essência” [...] (OLIVEIRA, in OMOTE, 2004, p.108). 257 Aparentemente a mesma relação se encontra no segundo excerto, que, ao parafrasear a idéia de inclusão como movimento mais amplo que a mera inserção de alunos antes excluídos da educação comum, acrescenta um elemento: a denúncia do caráter “segregativo, discriminatório e opressor da escola”. As ações que se realizam nesse movimento são de denúncia, de mobilização e de transformação. Um outro elemento, no entanto, distingue esse excerto da anterior. Ao contrapor o que a escola “é” ao que “deveria ser [...] em sua essência”, o discurso aponta para um movimento de mudança, mas supõe uma essência educacional alheia às práticas educativas de fato existentes. É negado àquilo que a escola é, no presente, uma essência educativa, sendo essa essência remetida a um dever ser. Desse modo, a escola como se apresenta parece não servir à inclusão; é a inclusão enquanto movimento que serve à escola, uma vez que tem uma função de denúncia de tais práticas segregativas. Também aparece como um movimento a serviço de um movimento mais abrangente, o qual se dirige para a realização de uma essência da educação que é positiva em si (de qualidade e inclusiva, qualidades que podem ser relacionadas, partindo daquelas apresentadas como negativas, como uma escola que não discrimina, não segrega e não oprime). Além disso, o movimento aponta para algo que precisa ser implementado; a escola deveria ser digna, sem adjetivações, de qualidade em sua essência. O verbo dever, segundo o Houaiss (2002), quando usado em conjugação perifrástica com verbo no infinitivo, frequentemente, assinala uma lei inelutável à qual o sujeito está submisso, independentemente de sua vontade ou uma obrigação à qual o sujeito se submete geralmente em razão de um preceito moral ou de um saber prático (op.cit.; grifos do autor). A inelutabilidade do dever ser, quando pensada junto com uma concepção essencialista de educação, distancia-se da idéia de uma 258 educação que se constitui nos enfrentamentos reais de uma sociedade desigual, em que é preciso partir do real como ele se apresenta e projetar o futuro a partir dele. Portanto, a amplitude do movimento transformador se restringe, uma vez que este se prende à busca (imperativa) de uma essência da educação. Reforça essa restrição a idealização dos princípios e fundamentos da inclusão como transformadores em si, fazendo a transitividade entre a escola opressora, num pólo, e a inclusiva, no outro. O ensino para alguns é ideal para gerar indisciplina, competição, discriminação, preconceitos e para categorizar os bons e maus alunos, por critérios que são, no geral, infundados. O ensino para todos desafia o sistema educacional, a comunidade escolar e toda uma rede de pessoas, que se incluem em um movimento vivo e dinâmico de fazer uma Educação que assume o “presente” como tempo que concretiza a mudança do “alguns” em “todos”, da “discriminação e preconceito” em “reconhecimento e respeito às diferenças”. É um ensino que coloca o aluno como foco de toda a ação educativa e possibilita a todos a descoberta contínua de si e do outro, dando sentido ao saber/sabor de educar (MANTOAN, in OMOTE, 2004, p.141). O terceiro excerto, em que inclusão aparece como movimento, traz, como reescrita dessa noção de movimento, as contraposições entre “um ensino para alguns” e um “ensino para todos”78, no tempo presente. Não remete, pois, inclusão a uma utopia, a uma possível sociedade sem desigualdades, mas a própria prática da convivência entre os diferentes como parte do movimento inclusivo. Trazer todas as diferenças para o interior da escola aparece como um desafio à mudança: “O ensino para todos desafia o sistema educacional, a comunidade escolar e toda uma rede de pessoas, que se incluem em um movimento vivo e dinâmico”. Não é dito da possibilidade da convivência reafirmar os preconceitos e discriminações; ao ser colocado na situação de lidar com o diferente, o sistema educacional, a escola deverá responder ao desafio de forma a superar as discriminações. Para tanto, o aluno deve ser tomado como “foco de toda a ação educativa”. 78 Segundo Sassaki (1997, p.164-167), as expressões. “para todos” e “inclusivo” se equivalem nos documentos da ONU. São usadas uma ou outra, indiferentemente, em vários textos. 259 Dois efeitos discursivos podem ser destacados nessa definição: o primeiro, no dinamismo como positivo em si; o segundo, na criação de situações concretas como detonadoras de mudanças. Quanto ao segundo efeito, o movimento é a própria colocação de elementos novos na situação, forçando as práticas a lidarem com tais elementos, portanto a se modificarem. Que essa modificação seja para melhor (se dirija no sentido da superação das discriminações) já é algo que pode ser situado no plano do primeiro efeito. Lido nessa perspectiva, o movimento tem como ponto de partida, num extremo, a situação de segregação das pessoas com necessidades educacionais especiais, e como ponto de chegada, no outro extremo, o dinamismo da convivência entre diferentes e a “descoberta contínua de si e do outro”. O conceito de inclusão pode ser entendido, então, como ponto de inflexão do movimento da educação especial, por um lado, e por outro lado, da educação comum. Sua convergência cria um movimento novo na educação, cujas relações internas são alteradas, no presente, pela convivência entre os diferentes. O quarto trecho remete ao mesmo movimento de possibilitar a convivência entre diferentes no interior da escola, mas o analisa não como deve ser e sim como o que tem sido (uma resposta negativa ao desafio da inclusão): [...] o movimento de incluir tem se resumido à inserção física, no mesmo espaço escolar, de pessoas com deficiência junto das não-deficientes. Tal situação não altera, no cotidiano da escola, a existência de práticas excludentes, o que produz um ambiente tão danoso quanto a segregação explícita feita às pessoas com deficiência (VIZIM, in SILVA e VIZIM, 2001, p.163). As ações supostas pelo movimento de inclusão se reduzem, nessa descrição, à inserção física, ao acesso à escola, e outras ações são relacionadas a esse movimento: aquelas vinculadas a práticas excludentes, que não são alteradas pela presença de novos sujeitos. Aquela crença evidenciada no excerto anterior, de que tal inserção provocaria mudanças na prática, não é aqui partilhada. As práticas 260 excludentes vão além da ausência da criança com necessidades educacionais especiais no interior da escola, e não são corrigidas com sua presença. Tal movimento, então faria parte não de um movimento maior de transformação, mas de manutenção da realidade excludente. Ao fazer isso sem remeter a situações ideais, aponta para a produção de um ambiente excludente, cujos danos não seriam menores do que a segregação explicita (essa última expressão pressupõe a existência de uma segregação implícita, criada pelas práticas excludentes). No ultimo excerto em que inclusão aparece como movimento, ele é descrito como um movimento reivindicatório da educação especial com relação aos poderes públicos, como um movimento por acesso aos serviços públicos: O movimento integrador alia a critica ao trabalho desenvolvido, o descaso dos poderes públicos ao atendimento a essa clientela e à falta de políticas públicas específicas que dêem prioridade a esta área. A partir disso, defende uma política de escola para todos, política defendida inclusive pela Secretaria de Educação Especial do MEC. A política anteriormente mencionada de Educação para Todos, incorporada pela educação especial faz, no seu discurso, uma relação dos projetos de integração com os possíveis atendimentos em contextos educacionais regulares. Vê-se, assim que, na verdade, o discurso da integração no Brasil está diretamente associado ao acesso a uma escola pública ou a serviços públicos (SILVA, (in SILVA E VIZIM, 2001, p.184-5). Pensando o operador inclusão como movimento, sou levada a buscar que relações tal movimento pretende alterar. Os excertos apontam para três níveis de mudanças: nas relações sociais mais amplas (superação das desigualdades, da opressão, da reprodução do status quo); nas relações entre educação especial e educação comum, no âmbito do sistema educacional; e nas relações entre aluno e professor e demais profissionais, no âmbito da escola. O primeiro nível de mudanças, ainda que amplo, é geralmente referido ao interior da escola: tem a ver com mudanças no modo de ser dos sujeitos que ali atuam. São destacados o caráter mobilizador e transformador dos princípios inclusionistas e a modificação das estruturas 261 escolares para assegurar uma escola de qualidade para todos, que não reproduza as desigualdades sociais. Aparecem então três possibilidades de relação entre a parte e o todo, no que se refere à dimensão de movimento do processo denominado inclusão: a) Mudanças gerais criam mudanças no localizado: a superação das relações de desigualdade social é a utopia para a qual remetem as ações de inclusão; a escola será inclusiva quando as demais relações sociais forem inclusivas. b) Mudanças locais deflagram mudanças gerais: a criação de situações inclusivas deflagrará mudanças na estrutura da sociedade como um todo. c) Mudanças locais pressupõem manutenção da totalidade: a criação de situações inclusivas no espaço escolar e sua restrição a esse espaço faz disfarçar as relações excludentes da sociedade como um todo. Não distinguir, em cada discurso, essas possibilidades semânticas pode levar a certos deslizamentos de sentido, dos quais posso entrever alguns. O primeiro diz respeito aos atores do movimento e às posições que eles ocupam: afirmar que a inclusão é um movimento que busca manter todas as crianças dentro da escola cria o efeito discursivo de que o conceito pressupõe a existência de um movimento contrário, contra o qual se coloca: o de manter certas crianças fora da escola, o que vem a ser uma das características de uma escola que historicamente foi destinada às classes dirigentes. Esse efeito situaria todos os atores daquele primeiro movimento numa luta contra a forma histórica como a educação se constituiu e contra os processos que produziram e produzem essa desigualdade, o que escamoteia parte da realidade. Muitos atores desses movimentos lutam por manter todas as crianças dentro da escola, mas 262 não se propõem a enfrentar o processo de produção das desigualdades, para além de seu reflexo na escola. Outra possibilidade de deslizamento tem a ver com a adoção de um único sentido para inclusão, definindo-a, com base na idéia de movimento, como um leque que agrega dos militantes da educação especial (em sua luta por superação dos resquícios de segregação e de uma concepção militantes da de desenvolvimento transformação social centrada (no esforço na de deficiência) aos denunciando a reprodução, superá-la). A confusão criada por essa interpenetração de sentidos pode ser bastante útil para se criar a ilusão de que ocorre um movimento generalizado de transformação nas estruturas da sociedade, nomeando como revolucionárias ações que não tocam no cerne do processo de exclusão social. Tanto as possibilidades de relações nomeadas pelo operador inclusão quanto seu potencial de deslizamento demonstram a capacidade que tem tal operador de designar igualmente processos distintos e inclusive contraditórios, assim como distintos níveis de relação; isso denota uma elasticidade e flexibilidade do operador, um grande potencial polissêmico. Poder-se-ia dizer então, como Gentili, que “nenhum conceito é bom quando se usa para definir tantas coisas ao mesmo tempo” (in SILVA e VIZIM, 2001, p.52). Mas eu creio que essa elasticidade é exatamente o que torna “bom” o conceito, num certo sentido: ela ganha utilidade no interior de um discurso em cujo funcionamento tem muita serventia essa capacidade polissêmica de escorregar de um sentido para outro, de criar efeitos discursivos contraditórios, conforme a situação, os sujeitos, os grupos e as relações de poder que entre eles se estabelecem. Para o momento, basta a clareza de que inclusão, ao se configurar como movimento, ganha múltiplas possibilidades de sentido. A análise dos próximos excertos mostrará como nesse movimento é possível surpreender certas práticas e certos discursos. 263 7.2. NUANCES DO FAZER INCLUSIVO: OS LIMITES DA INCLUSÃO NOS MUROS DA ESCOLA Um outro aspecto que aparece no discurso acadêmico acerca da inclusão escolar é a dimensão da prática, que, nos excertos analisados, se desdobra em três aspectos: a prática no interior da escola (pedagógica, burocrática) a prática de formação de professores e a prática política, ou seja, a prática das instituições que pensam e dirigem a escola. Prática aqui é entendida como atividade, que-fazer humano (no sentido de ação, execução, realização, exercício): implica, em termos de análise, em buscar as ações que, nos excertos, são descritas como “fazer inclusão”. Organizei os excertos partindo das práticas realizadas no interior da escola para as práticas mais gerais, mas isso não quer dizer que nos textos apareçam mais umas e menos outras, ou primeiro umas depois outras; trata-se de uma opção de organização textual (a análise das razões subjacentes a tais processos de escolha fica por conta do exercício discursivo do leitor). No excerto abaixo, a ação de incluir ganha substância nos verbos inserir e exigir. A prática, resumida nas relações entre esses dois verbos, aparece como modificadora dos modos de ser; o discurso faz equivaler a inserção dos alunos com deficiência mental na escola comum e a exigência de novos posicionamentos e procedimentos de ensino. [...]a inclusão escolar não é de interesse apenas para os alunos com deficiência mental, uma vez que ao inserirmos esses educandos na escola regular estamos exigindo da instituição novos posicionamentos e procedimentos de ensino baseados e concepções e práticas pedagógicas mais evoluídas, além de mudanças na atitude dos professores, modos de avaliação e promoção dos alunos para séries e níveis de ensino mais avançados (MANTOAN, 1998, p.104). 264 No enunciado, as expressões “ao inserirmos” e “estamos exigindo” descrevem fatos de uma mesma ordem temporal: a inserção de um sujeito novo na escola implica numa exigência de novas formas de fazer na educação, no presente. Supõe aqui uma crença de que o fazer com relação ao aluno com deficiência necessariamente será mais evoluído do que o fazer com relação ao aluno “sem-deficiência”. Coloca-se a instituição na situação de ter que evoluir, para responder àquelas exigências. Isso faz surgir um questionamento: quem é o sujeito da ação? Certamente não é a escola, já que a expressão “estamos exigindo” a coloca como objeto. Isso faz supor um sujeito externo à escola que exige dela novos posicionamentos, novos procedimentos, novas práticas. A mesma inserção aparece como prática que mascara a segregação, no excerto seguinte. O ato de matricular esse novo sujeito na escola não implica necessariamente em novas formas de fazer; pode significar manter as velhas formas. Claro que inserir é diferente de matricular: a matrícula é o ato legal pelo qual se insere a criança na escola. E a escolha do verbo matricular já evidencia a postura defendida: muitas vezes a inserção não passa de um ato legal. A crença subjacente é outra: a de que é necessário um envolvimento da coletividade no processo de transformação da educação, aqui descrito como deixado por conta da atuação do professor: A transformação do processo educacional é tarefa e competência a ser realizada coletivamente, não cabendo exclusivamente ao professor promovê-la, no interior de uma sala de aula, como tem com freqüência acontecido. Matricular um aluno com deficiência em classe regular e deixar somente por conta do professor a administração de seu processo educativo é manter as condições de segregação do aluno com necessidades especiais e do fracasso do ensino, mascarados pelo índice quantitativo da matricula (ARANHA, in OMOTE, 2004, P. 56). A presença de novos sujeitos, com novas exigências, no ambiente escolar, não terá a força de modificar as práticas existentes se a segregação não for enfrentada em outras dimensões: a dimensão do trabalho do professor e do projeto coletivo de sociedade. No entanto, 265 outra possibilidade de sentido se entremostra no processo: essa denúncia do que tem acontecido com a matrícula dos alunos com necessidades educacionais especiais na escola comum pode ser vista como uma conseqüência da inserção referida no excerto anterior; assim, a prática se confirmaria como capaz de deflagrar mudanças (ainda que essa mudança seja uma denúncia): a prática que faz a critica só pode se dar sobre uma prática já existente, a de matricular na escola comum as crianças com necessidades educacionais especiais. Num outro excerto, a inclusão é ela própria descrita como algo a ser praticado. Praticar a inclusão modifica o olhar, a visão que se tem tanto da educação comum quanto da Especial (e nesse caso, temos um fazer que modifica o pensar (são os que praticam a inclusão, e não os que apenas a pensam, que revolucionam a educação). Tal revolução é explicada na paráfrase do final do trecho: significa a passagem de um modelo médico para um modelo social da deficiência, visando agora o sujeito e não mais sua deficiência. Praticar a inclusão então significaria pensar o sujeito e não o estereótipo baseado numa característica (no caso a deficiência visual). Como um foco de luz, ela [a educação inclusiva] atrai todos os olhares, levando as pessoas a ficarem fascinados por ela, pois, para os que a praticam, não dá mais pra olhar da mesma forma nem a Educação Comum nem a Especial. Em suma, há um lado da educação inclusiva no qual ela apresenta a emergência de um aspecto do real que revoluciona a educação contemporânea. [...] É por tudo isso que acreditamos que a base da Educação tenha de ser repensada. Não dá mais para o professor e o especialista permanecerem no modelo antigo. O que se introduz agora é um novo circuito de relações, no qual aquilo que se visa é o sujeito com suas necessidades educativas especiais, e não mais a sua deficiência visual e os olhos que não vêem (MRECH, in SILVA E VIZIM, 2001, p.118). Essa passagem parece mesmo ser entendida como o ponto de ruptura da educação, tanto que o ensino regular, que não viveu tal ruptura, é descrito em outro excerto como um abandono do desejo e da capacidade de decidir: 266 Será que nós acabamos cegando nossos alunos, com nossas práticas pedagógicas, levando-os a deixar de desejar, de estabelecer aquilo que acham importante para eles mesmos? [...] Pela nossa vivência no Ensino Regular percebemos que esse tem sido o relato de grande parte dos professores. Em relação à Educação Inclusiva o circuito tem sido outro, os professores reportam uma vontade muito grande de aprender, o mesmo acontecendo com seus alunos (MRECH, in SILVA E VIZIM, 2001,p.123). De que posição fala o enunciador? “Nós”, no início, parece se referir a professores, como esclarece a expressão “com nossas práticas pedagógicas”. Logo adiante, o enunciador aparece também como pessoa a quem os professores relatam suas impressões, provavelmente pesquisador/a. É como pesquisador/a que ele/ela compara duas práticas coexistentes (definidos como ensino regular e educação inclusiva) e contraditórias. A escola inclusiva é dada como existente no presente, e se contrapõe a uma outra, não inclusiva, mas também atual. São práticas se contrapondo, no interior do sistema educacional. Concluímos em nossos estudos que mudar a escola não é justapor os serviços da Educação Especial às salas de aula de ensino regular, como o apoio de professores itinerantes, os currículos, atividades e avaliações adaptadas. Trata-se de adotar novas medidas para atender às diferenças de todos, medidas essas que não sejam excludentes, tais como as provas e outras avaliações de caráter classificatório, o ensino disciplinar, a fragmentação dos temos escolares em séries, entre outras, sobejamente conhecidas e praticadas em nossas escolas, ainda! Não há com acolher todos os alunos em escolas que selecionam, reprovam, marginalizam o ensino de alguns alunos em classes e programas à parte dos demais colegas (MANTOAN, in OMOTE, 2004, p.135) No excerto acima, a definição da prática escolar inclusiva é realizada pela negação das características de uma escola não-inclusiva: a escola inclusiva não reprova, não seleciona, não marginaliza, não classifica, não trabalha com base em disciplinas, não fragmenta o tempo escolar em séries. Tais negações descrevem a escola como é (ainda), o que coloca a educação inclusiva como projeto (o de mudar a escola). Nesses excertos, as práticas escolares referentes à inclusão aparecem então em duas dimensões: num, as práticas inclusivas, começando pela inserção do aluno com necessidades educacionais 267 especiais, deflagram mudanças, porque obrigam a novas práticas que possam lidar com essas necessidades, a mudanças gerais na escola e no sistema educacional; noutro, a prática de inserção, por si só, escamoteia a manutenção do status quo, uma vez que ao ser colocada como sinônimo de inclusão, desobriga de outras mudanças necessárias. As posições evidenciadas pelas dimensões descritas nos excertos mostram uma luta entre pontos de vista, mas não em supostas oposições entre “precisa matricular/não basta matricular”; “precisa de novos procedimentos de ensino/não basta deixar por conta do professor”. Não seriam oposições; alguém que defende que precisa matricular todas as crianças na escola pública não necessariamente defenderia que basta isso; alguém que defende que são necessários novos procedimentos de ensino não precisa defender que isso basta para a inclusão... Não é no campo da defesa da inserção/não-inserção então que se situam as oposições, mas nos silêncios acerca da existência de processos de exclusão (de segregação mais ampla do que aquela criada pela presença da limitação), que aparecem em certos excertos e não em outros. O novo pensar criado pelo deslocamento da ênfase (da deficiência para o sujeito) pode ser novo com relação a um âmbito especifico (o da educação especial), mas não toca na questão da manutenção do status quo. A educação especial como âmbito específico, num outro excerto, é descrita como também produtora da bipolaridade inclusão/exclusão, apresentada como uma falsa oposição. A educação especial, como disciplina formal, em seu discurso e em suas práticas hegemônicas, é descontinua em seus paradigmas teóricos, anacrônica em seus princípios e finalidades, relacionada mais com a caridade, a benemerência e a medicalização do que com a pedagogia, determinada por técnicas discriminatórias e segregacionistas, distanciada do debate educacional geral e produtora/reprodutora, também ela de uma falsa oposição entre inclusão e exclusão (SKLIAR, in SILVA E VIZIM, 2001, p.104) A oposição inclusão/exclusão, quando aparece nas posições expressas na primeira das dimensões (a da prática inclusiva como 268 deflagradora de mudanças), geralmente tem a ver com o acesso ou não à escola pública, a novos métodos e técnicas de ensino, a novas relações e novos valores no interior da escola. Os processos sociais excludentes são tratados naquilo que é específico da educação, e as propostas de enfrentamento desses processos também se limitam ao interior da escola. Na segunda dimensão, em que a prática da inclusão aparece como disfarce de processos excludentes, o enfrentamento de tais processos é remetido para além da escola. Nesse caso, não há oposição entre inclusão e exclusão: o incluído (na escola pública) não deixa de ser excluído (por ser pobre, desempregado ou subempregado, etc., etc.). Um outro aspecto da prática denominada inclusiva, a formação de professores, pode ser encontrado nos excertos a seguir. No primeiro excerto, a formação de professores é mostrada como forma de incluir também o professor, possibilitando-lhe o privilégio de conviver com a diferença. Dois aspectos podem ser destacados aqui; a primeira é a caracterização da convivência com os alunos com necessidades educacionais especiais como um privilégio, e não como um dever moral. A segunda é a extensão da idéia de integração também ao professor da escola especial, o qual, tendo uma formação geral, pode transitar também na rede comum de ensino. A formação deve ser inclusiva, ou seja, não deve ser diferenciada (diferenciada aparece como contrario de inclusiva e é associada ao modelo capitalista de produção). A crítica remete aos cursos de formação de professores da educação especial separados da formação comum. Nesse sentido, a formação diferenciada para professores de uns e de outros [“normais” e “deficientes”] vem somente reforçar o modelo capitalista de produção baseado na eficiência, na seleção dos melhores e na exclusão social de muitos e fundado em uma visão ‘desfocada’ da realidade e do indivíduo; estamos, assim, correndo o risco de estar institucionalizando a discriminação já no ponto de partida da formação dos professores e negando, portanto, o princípio da ‘integração’, não só do deficiente na rede regular de ensino, como também do profissional da educação na 269 realidade educacional existente _não só escolas, mas também classes especiais, instituições especializadas, etc. Estamos negando a esses profissionais o privilégio e o desafio de conviver com a diferença. (CARTOLANO, 1998, p.30, grifos da autora). Essa critica parece assimilada no excerto seguinte, onde é defendido que a formação de professores deva superar qualquer diferenciação. As ações de inclusão previstas na formação de professores devem possibilitar, na ação cotidiana dos professores, o apoio pedagógico necessário aos alunos com necessidades educacionais especiais e aos alunos em situação comum ao mesmo tempo. Considerando, pois, a política de inclusão que garante acesso e permanência a todos os alunos com necessidades educativas especiais no ensino comum, na formação do professor seria importante prever: 1. preparo de qualidade para lidar com a diversidade. 2. Formação específica em Educação Especial para prover os apoios pedagógicos previsto na legislação (DENARI, in OMOTE, 2004. p.75). Chama a atenção que a formação para lidar com a diversidade tenha relação com a inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais, como se a idéia de diverso se referisse apenas a eles (como se antes de sua entrada no ensino comum ali não houvesse diversidade). A formação (aprender os postulados da educação inclusiva) pode ser, no entanto, recusada pelos professores, é o que aponta o terceiro excerto, cujo texto trata também de adiantar as razões dessa recusa: [...] acreditamos que quando os sujeitos se vêem perante o registro do real, muitas vezes optam por não querer saber. Uma atitude denegatória, uma atitude de recusa de saber. Uma postura bastante próxima à que temos encontrado em muitos professores em relação à Educação Inclusiva. Como se sua recusa em aprender os postulados referentes à Educação Inclusiva os levasse a não terem mais que conviver com estes sujeitos. É a crença na preexistência de um olhar prévio, de um olhar mágico. Aquilo que eu não vejo não existe, não está ali (MRECH, in SILVA E VIZIM, 2001, p.116). Essa recusa é traduzida por uma recusa em ver o diferente. A aceitação da aprendizagem dos postulados é dada como sinônimo da aceitação da convivência com o diferente; sua recusa, dada como a recusa de tal convivência. Só se consideram aceitos esses sujeitos se forem 270 aceitos também os postulados a respeito deles. Não é dito que a recusa dos postulados possa ter relação com a crença em outros postulados; ou com a forma como os postulados são apresentados, ou com a possibilidade/impossibilidade de participar das decisões do processo. Esse não dizer cria uma possibilidade de culpabilização do professor, assim como de colocar como condição para ser um bom professor aceitar os postulados da educação inclusiva. Destaco o artigo definido para chamar a atenção para o efeito discursivo que coloca fora de discussão tais postulados. O discurso a respeito das práticas de formação de professores aqui evidencia três aspectos: num, a reivindicação do privilégio de o professor poder conviver com as diferenças e aprender com elas, e a denúncia da discriminação que significa excluir o professor dessas possibilidades; noutro, a intenção de querer fornecer as competências necessárias para lidar com a clientela egressa da educação especial, ao mesmo tempo em que preparo para lidar com a diversidade de modo geral; a culpabilização do professor por eventuais recusas desse conhecimento e dessas competências. Em outro grupo de trechos, a prática inclusiva é mostrada como prática das instituições que dirigem a escola; prática aqui chamada de política: Quanto às necessidades educacionais especiais, avaliando os impactos específicos da Declaração de Salamanca (UNESCO,1994) Underwood, Richmond e McGee (2001) reconhecem que a inclusão se tornou um padrão internacional, mas argumentam que a imposição de políticas que não refletem os valores das nações que as recebem acabam por comprometer o próprio conceito de inclusão; e que essas políticas aparentemente universais têm reflexos diferentes nas políticas das diferentes nações, inclusive pelas diferenças culturais e educacionais (FERREIRA, in OMOTE, 2004, p.14). Chama a atenção, nesse excerto, a conotação positiva dada para padrão internacional (através do verbo reconhecer), colocada em relação adversativa com imposição de políticas (imposição que acaba 271 por comprometer a inclusão). Subordina a razoabilidade da inclusão ás recomendações internacionais, por um lado. Por outro, deixa o que pensar sobre como se chegou a esse padrão, se as políticas de inclusão (universalizadas) precisam ser impostas aos países. Estão supostas aí relações de subordinação inclusive nas definições de padrões inclusivos. Isso também levanta questões sobre se a possibilidade de chegar a um padrão internacional preservando os valores das nações que recebem certas políticas. Se a política é recebida de fora, como poderia refletir os valores locais? As políticas locais são o reflexo da política maior? A prática da inclusão se associa então, nesse excerto, a um padrão externo e a imposição de políticas. A ultima oração, unida por “e que” à anterior, dá continuidade à relação adversativa: a universalidade das políticas de inclusão (padronização) é questionada pelos diferentes reflexos que elas têm nas políticas de diferentes nações. Essa prática imposta aos paises em situação de menor poder nas relações internacionais se reflete na prática dos gestores educacionais, como aparece no excerto abaixo, onde eles têm que ser alertados para a inclusão: Os gestores educacionais (profissionais da educação que trabalham exercendo cargos político-administrativos) pelo acumulo de tarefas burocráticas, podem ser considerados como os educadores que mais recentemente, têm sido alertados para as propostas de inclusão. As idéias sobre a educação para todos e a elaboração de um projeto político pedagógico para a escola em muito têm contribuído para que eles se interessem pelos assuntos do “especial” da educação, embora, nem sempre, suas intenções sejam concretizadas na prática (CARVALHO, in SILVA e VIZIM, 2001, p.62). A oposição expressa entre intenção e prática, expressa no final do trecho, é contraditória com o verbo usado anteriormente (alertar). Se alguém precisa ser alertado para determinada proposta, isso significa que ela não tem sentido vital para essa pessoa, não se insere significativamente nem em suas intenções nem em sua prática. Portanto, a relação adversativa estabelecida pelo uso de “embora” não faria sentido. O interesse pelas questões da inclusão, despertado nos gestores 272 alertados, provavelmente tem mais a ver com a obediência aos padrões estabelecidos de forma impositiva do que propriamente com intenções e práticas localizadas. Algumas relações é possível entrever entre as várias nuances que a prática da inclusão apresenta no discurso acadêmico: no que se refere às práticas escolares, a dimensão da prática como transformadora, mas recortada do todo, pode remeter a responsabilidade pela mudança muito mais fortemente aos sujeitos da escola: diretores, professores, alunos (especialmente ao professor, por sua relação direta com o aluno, tomado como foco da educação). Nesse caso, a prática de formação de professores tenderá a querer dar a esse professor todas as competências para uma transformação no interior da sala de aula (saber lidar com toda a diversidade, dominar as técnicas da educação especial, além das outras atribuições de praxe). Ao dimensionar a prática no interior da escola como forma de escamotear a exclusão, o discurso remete à coletividade a responsabilização pelas mudanças. Nesse caso, não cabe apenas à comunidade escolar mudar a escola, mas a todos, na medida em que percebemos processos de exclusão e tomam posição com relação a eles. Nesse caso, o professor saber mais e poder fazer mais pela educação dos alunos com deficiência é importante e necessário, já que a educação de qualidade é direito de todos; no entanto, não se coloca na escola, nem nessa formação, a tarefa central de transformação da realidade. Quando essas duas dimensões são relacionadas com as práticas de gestão, onde a obediência a padrões impostos de fora faz supor relações de submissão, percebe-se que as relações de poder, nas quais a escola se situa na periferia, faz com que a inclusividade exigida da prática escolar (especialmente a pedagógica) não seja, na primeira dimensão, exigida da prática política, a não ser naquilo que diz respeito diretamente à escola e à educação. A prática dos gestores se dá no sentido de tentar viabilizar a inclusão na escola, mas não inclui a escola no processo 273 decisório. A segunda dimensão se centra na denúncia dos processos excludentes, portanto também na prática dos gestores e de seus reflexos na escola; talvez, no entanto, apareça de forma frágil a crença na transformação pela prática, também no interior da escola, muito mais evidente naquela dimensão anterior. 7.3. A INCLUSÃO EM SUA DIMENSÃO DISCURSIVA: DA AUTONOMIA DO DISCURSO À PRÁTICA DISCURSIVA Em oito dos trechos em estudo, há referências à dimensão discursiva da inclusão. Busquei analisar, nesses trechos, o que aparece, deixa transparecer ou é silenciado da interconfiguração discurso-prática, quais são os termos que definem e qualificam inclusão enquanto discurso e que operações são realizadas com o uso de tais termos (operadores) no enunciado. Os efeitos discursivos produzidos nesse esforço analítico trazem elementos para esboçar diversas configurações da noção de discurso no discurso acadêmico sobre/na inclusão. A análise de alguns discursos sobre a inclusão e de algumas práticas pedagógicas declaradas como inclusivas levanta a nossa inquietação com relação à possibilidade de estar ocorrendo: (1) uma mera inserção do aluno deficiente em classes comuns a título de inclusão, (2) a migração de alunos deficientes no sentido inverso do que ocorria no passado recente (3) a institucionalização da normificação e (4) o desvirtuamento de objetivos precípuos da educação escolar (OMOTE, in OMOTE, 2004, p. 5). No primeiro excerto, aparecem dois objetos da análise científica: os “discursos sobre a inclusão” e as práticas “declaradas como inclusivas”. O fato de aparecerem como objetos distintos de análise faz pensar numa tentativa de estabelecer relações ente objetos dados como separados. Isso leva a uma segunda questão: o discurso é dado como autônomo com relação à prática: fala sobre. As práticas, por sua vez são objeto de 274 desconfiança: declaradas inclusivas, podem não o ser, dada a possibilidade de estarem ocorrendo fatos entendidos como não-inclusivos: “mera inserção”, migração inversa, “institucionalização da normificação” e “desvirtuamento de objetivos” (OMOTE, in OMOTE, 2004, p. 5). Surpreende-se no texto ao mesmo tempo uma separação entre discurso e prática, assim como uma distinção entre discursos e práticas inclusivos e aqueles que se dizem inclusivos ou tratam da inclusão. Os eventos não inclusivos aparecem como sendo do campo da prática, mas também do discurso, e se pode pensar, como efeito discursivo, numa exigência de coerência entre eles. Os discursos da educação para todos e da escola inclusiva ocorrem num contexto de exclusão social ampliada, o que aumenta os desafios para assegurar os direitos das pessoas denominadas portadoras de necessidades especiais (FERREIRA, 1998, p.14). No terceiro excerto, os discursos “da educação para todos” e da “escola inclusiva” são descritos como contraditórios com relação ao contexto socialmente excludente onde ocorrem. O verbo ocorrer faz pensar num determinado entendimento da noção de discurso e de sua relação com o contexto, na medida em que ocorrência é acontecimento, acaso, sucesso (HOUAISS, 2002). O contexto não aparece como condição de produção do discurso, e sim como cenário. O discurso, por sua vez, não sendo autonomia. compreendido O desafio como “para produzido assegurar os nesse “cenário”, direitos das ganha pessoas denominadas portadoras de necessidades especiais” (FERREIRA, 1998, p.14) parece ser estabelecer uma coerência entre contexto e discurso, portanto, discurso aparece, aqui, como autônomo em relação ao contexto. No afã de desmontar alguns mitos, crendices e estereótipos, vêm sendo empregados nos discursos de inclusão alguns conceitos que rapidamente se tornaram lugares-comuns. Destaca-se, por exemplo, a idéia de que (1) todas as pessoas apresentam diferenças umas em relação às outras, fazendo crer que mesmo as mais graves patologias são apenas diferenças quaisquer; (2) a ocorrência de anomalias faz parte da vida normal das pessoas (“ser diferente é normal”); e (3) a convivência entre o deficiente e o não-deficiente, com ênfase no ato de aprenderem juntos, 275 fazendo crer que o simples fato de estarem juntos é bom para todos. Evidentemente, essas afirmações têm toda a sustentação dentro de um contexto apropriado. Torna-se, entretanto, motivo de preocupação quando esses conceitos passam a ser utilizados de maneira descontextualizada e como se encerrassem verdade incontestável. E aponte-se que alguns dogmas da inclusão vêm sendo construídos (OMOTE, in OMOTE, 2004, p. 7). No excerto acima, o discurso é qualificado como “de inclusão” e não “acerca da inclusão”. Essa qualificação faz pensar numa concepção de discurso como prática: o discurso não apenas “fala sobre”, mas faz parte do movimento de inclusão; no entanto, quando é descrito como podendo ser utilizado com a função de “desmontar mitos, crendices e estereótipos”, a noção de discurso como prática ganha autonomia com relação às práticas sociais como um todo: a prática discursiva, empregando determinados conceitos, tenta modificar as demais práticas. O discurso é entendido como ato consciente. Nesse esforço de modificação das práticas, a prática discursiva da inclusão torna-se dogmática, utiliza conceitos importantes do ideário inclusivista (diferença, convivência) fora de contexto e como verdade inconteste. Pressupõe uma crença (efeito discursivo) de que um discurso possa ser “empregado”, por um lado, e que tal emprego possa se dar fora de contexto. O novo contexto em que os conceitos são utilizados parece ser o da militância da inclusão, já que isso é feito na diligência de desmontar mitos e estereótipos. Aparece um conflito entre produção cientifica e militância ideológica, em que aquela é instância autorizada, contexto adequado, e esta, tendendo a generalizar e a dogmatizar, aparece como ilegítima. O discurso, então, é visto como prática, aqui descrita em sua dimensão consciente. Tal prática discursiva se desqualifica e é desautorizada, no entanto, quando é referida apenas à sua dimensão dogmática. Falar em uma educação inclusiva é, exatamente, tocar nesses aspectos nevrálgicos da organização, estrutura e funcionamento de todo o sistema educacional; portanto, é a busca de superação de uma educação reprodutora para uma educação emancipadora, capaz de viver com toda a intensidade o respeito à participação e à autonomia humana. Não preparar para a autonomia, mas viver a autonomia de forma responsável no 276 interior de uma coletividade, representada pela comunidade escolar (OLIVEIRA, in OMOTE, 2004, P. 80). Neste excerto, o “falar em uma educação inclusiva” é descrito como sinônimo de “tocar nesses aspectos nevrálgicos da organização, estrutura e funcionamento de todo o sistema educacional”. O verbo ser acompanhado do advérbio de modo “exatamente” não deixa margem a dúvidas: o discurso é descrito como prática, falar é fazer. Percebo aqui pelo menos três possibilidades de sentido: numa delas, o falar implicaria em agir sobre a realidade, ou seja, a prática discursiva é empenho de modificar certas estruturas; noutra, teria o sentido de que, por falar, o sujeito se sentiria agindo sobre essa realidade, modificando as estruturas pelo simples fato de falar sobre tais modificações (o falar seria um fazer em substituição a outros fazeres). O terceiro sentido se obtém invertendo a ordem dos fatores: agir é falar. Nesse caso, as ações concretas de transformação do sistema educacional seriam elas próprias o falar sobre a inclusão. A paráfrase seguinte, (“é busca de superação de uma educação reprodutora para uma educação emancipadora”) reforça o primeiro e o terceiro sentido articulados: falar/fazer aparecem como ferramentas da luta por inclusão escolar e esta é apresentada como parte de uma luta por uma educação emancipadora, descrita como “capaz de viver com toda a intensidade o respeito à participação e à autonomia humana”, o que, pelos termos gerais, poderia remeter a um movimento de transformação social. No entanto, a paráfrase a seguir restringe tais limites: “[...] viver a autonomia de forma responsável no interior de uma coletividade, representada pela comunidade escolar”. (OLIVEIRA, in OMOTE, 2004, P. 80). O discurso/prática, então, tem função transformadora, mas nesse movimento restrito: o de modificar a educação nos limites da comunidade escolar. Reforça ainda essa compreensão a crença em que é possível viver a autonomia dentro desses limites, como se eles não fossem atingidos pelas forças sociais que restringem tal autonomia e se empenham na própria reprodução. A 277 possibilidade de ser responsável pela própria autonomia, então, encontra seus limites na produção de heteronomia que não se restringe ao interior do indivíduo nem da escola. Enfeixando os efeitos discursivos produzidos nas compreensões de discurso, encontro, por um lado, uma noção de discurso como autônomo, quer em relação à prática, quer em relação ao contexto; por outro lado, nos momentos em que o discurso aparece como prática, aparece apenas na dimensão de prática consciente e dogmática; quando surge com função transformadora, tem seus limites na escola. Algumas conseqüências podem emergir dessas compreensões das relações possíveis entre discurso e prática, em cada feixe de efeitos: 1) Os efeitos apontam que as práticas (ou o contexto) precisam se sintonizar com o discurso: nesse caso, as ações de inclusão estarão voltadas para os conflitos entre prática e discurso, buscando adequar um ao outro: geralmente, denunciar a prática inadequada e o contexto excludente. A idéia do anacronismo entre políticas e prática, na qual as práticas são antiquadas e a legislação atual, tem vinculação com esse modo de pensar/agir. 2) O discurso é mostrado como origem da prática: assim, há que aprender os conceitos adequados como preparação para uma ação inclusiva. Isso remete para formação de professores, estudos e debates na intenção de convencendo as pessoas envolvidas, modificar sua prática. 3) O discurso parece coincidir com a prática: nesse caso, há pelo menos duas possibilidades: investir no discurso inclusivo, porque fazê-lo tem efeitos sobre a totalidade das ações humanas (falar é fazer) ou porque tal discurso faz crer na existência de processos inclusivos, (falar substitui o fazer) ou colocar em prática os princípios da inclusão (fazer é falar). Decorrentes dessa crença podem surgir 278 atividades de conscientização, propaganda e informação, cuidado com o falar politicamente correto, por um lado, ou ações concretas de lidar com as diferenças nas relações humanas, entre indivíduos e grupos, por outro. 7.4. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO ACADÊMICO: TEMÁTICAS E MODOS DE OPERAR. Para fechar provisoriamente essa análise dos discursos que se entrecruzam no âmbito acadêmico, cumpre retomar algumas questões já levantadas nos enfeixamentos de efeitos discursivos referentes aos operadores “movimento”, “prática” e “discurso”, no que se refere a seus modos de operar. A primeira delas diz respeito à oscilação polissêmica do conceito de movimento inclusivo, o qual pode significar em certo momento um movimento no interior da educação especial, em outro um movimento no interior da escola, um movimento que integra educação especial e educação comum, chegando em alguns extremos a parecer um movimento de busca da superação das estruturas capitalistas de produção de exclusão. Foi dito que tal capacidade de deslizamento pode ser de grande utilidade num operador, em circunstâncias nas quais o discurso precisa exatamente ser camaleônico para responder ou parecer que responde às muitas coerções a que se submete. A segunda questão é que a materialização desse deslizamento do operador movimento sobre os operadores prática e discurso faz emergir uma pergunta importante: quando os limites do movimento são deslocados para outro limite (quer dizer, quando descreve uma prática, 279 um discurso, uma política que se inscreve num movimento restrito como se se inscrevesse em outro, mais amplo, ou o contrário) que efeitos discursivos isso pode criar? Num esboço de resposta (porque tal questão, por si, já demandaria um projeto de pesquisa), eu diria que se trata de uma operação de deslocamento cujos efeitos discursivos parecem ser: a) A mobilização de crenças de um domínio para o outro. A superação do modelo médico no campo da educação especial aparece como revolução no campo da educação em geral; a possibilidade de convivência entre diferentes na escola regular se transforma em ícone da superação da discriminação na sociedade como um todo, para citar só dois exemplos. Nos dois casos tais mobilizações podem estar a serviço tanto de processos de manutenção do status quo quanto de resistência, podem estar na base de processos de mudança no interior do novo domínio ou pelo contrário, apresentar-se como a mudança (já realizada). b) A polarização de conceitos em âmbito restrito como polarização geral: quando se opõe inclusão (escolar) a exclusão (social) e esta última aparece como a exclusão de todas as minorias de seus direitos, por exemplo, isso cria o efeito de modificar o primeiro termo da polarização, travestindo-se a inclusão escolar de superação dos processos sociais excludentes. No outro extremo, tal polarização cria um efeito de desqualificação da inclusão escolar, a qual, não significando superação da exclusão, também não deixa de implicar em avanço com relação a um certo âmbito da realidade. É como se fora dessa polarização não houvesse posição possível: só se pode aceitar a inclusão se ela implicar em mudanças gerais; ou não se pode aceitar a inclusão porque ela serve para escamotear um aspecto da realidade; ou ainda: quem não 280 aceita a inclusão é contra as mudanças na escola (porque só podem ser aceitas mudanças se couberem no conceito de inclusão)... e assim por diante. c) Os deslizamentos de um operador são associados à reificação de outros, podendo inclusive se alimentar de certas reificações. O potencial polissêmico do operador movimento se ancora nas limitações dos operadores prática e discurso. Por exemplo, prática precisa se referir ao especificamente pedagógico ou escolar, excluindo desse território (lugar do professor e do aluno) a possibilidade de produção discursiva, para que movimento possa significar tanto mudanças amplas como específicas (é como se o território da escola fosse o ultimo refúgio do atraso e precisasse ser atingido pelos discursos das mudanças gerais que estão ocorrendo – e a escola não se dá conta). Nesse caso, também o operador discurso ganha fixidez em determinados territórios: ele geralmente se refere ao falar acadêmico ou oficial, e é como se nesse âmbito não fossem produzidas práticas (ou nada houvesse a ser transformado nas práticas referentes a esses campos), como se a prática discursiva produzida nesses campos fosse pura, desligada das disputas de poder. Essa fixidez permite, por exemplo, que a noção de movimento se limite às tentativas de “aplicação” de certos discursos a certas práticas. d) Movimentos localizados, ao serem tomados como gerais, podem se colocar em polarização com supostas inércias. Como exemplo, posso recordar a questão de que a educação comum parece ser tomada como estática, quando a ela são opostas as mudanças trazidas pela educação especial. Assim, são propostas alterações na 281 educação como um todo, por via das mudanças trazidas pelo processo de inclusão, mas não se pressupõe no processo histórico da educação contribuições e elaborações que possam favorecer o processo inclusivo. Considerandose a educação como em estado de inércia, não são também levadas em conta as possibilidades de tensões, de disputa de espaços entre os dois campos. e) Por outro movimentos lado, como o próprio gerais, fato obriga de à descrever tais polarização com movimentos que sejam de fato gerais. Desse modo, a produção da resistência se dá com base nessa polarização. O fato da educação em geral (através de seus movimentos) não se reconhecer nessa descrição inerte, reagir a tais rotulações faz com que as tensões ganhem de novo espaço na produção discursiva, no enfrentamento dos discursos. Evidentemente, o enfeixamento realizado quanto aos modos de operar é efeito de reconhecimento, obra de meu esforço de analisar os traços de produção dos discursos nos excertos; não precisa corresponder aquilo que cada autor assume como sua prática discursiva. Não quer dizer que eu, como pesquisadora, tenha acesso ao inconsciente dos autores através do texto: quer dizer que o texto se mostra e se esconde, e a análise é um esforço de evidenciar e interpretar certos aspectos desse movimento. Diferentes modos de conhecimento terão com diferentes modos de operar, mas isso não tem necessariamente relação com o referente de que tratam. Não se trata de analisar apenas aquilo que o discurso defende, mas também como o faz. A terceira questão que eu gostaria de levantar tem relação com as temáticas tratadas. Os discursos em embate no campo acadêmico também são multifacetados quanto ao modo de lidar com as temáticas: neles as posições são mais claramente assumidas (inclusive porque cada 282 autor assina seu texto, defende-o em congressos, submete-o ao crivo de seus pares e à opinião pública na medida em que o publica), e os pontos de vista em confronto se expressam com maior liberdade (espera-se que nesse gênero de discurso as contraposições entre vozes sejam autorizadas, bem-vistas, desejadas até). Nos excertos analisados, considerei possível agregar as vozes que emergem nos discursos com relação a três temáticas centrais: A presença ou ausência dos processos de exclusão como referente para o discurso _ Se determinadas vozes silenciam a respeito de tais processos, outras os assumem como elemento do “real”, mas os colocam como pano de fundo, cenário no qual se desenrolam, à sua revelia, os processos inclusivos. Outras vozes os assumem como ponto de partida para pensar-fazer a inclusão (argumentando que exatamente porque existem processos de produção de exclusão é que é necessário criar situações inclusivas). Outras ainda assumem os processos de exclusão como ponto de partida para analisar os processos inclusivos como componentes do próprio processo excludente (a criação do discurso da inclusão no interior de tais processos teria uma função alienante, escamoteadora da realidade). As crenças acerca do lugar da escola nos processos de reprodução e transformação do real_ É possível enfeixar em três grandes linhas os discursos que têm essa questão como temática. A primeira localiza na escola e nas práticas do professor da possibilidade de ações inclusivas, de onde se “espalharão” para o todo social. Nessa concepção, centram-se na formação do professor, na estruturação da escola e na aceitação e promoção da aprendizagem do aluno “diferente” as linhas de ação da inclusividade. A educação aparece como redentora, capaz de abrir, para todos, territórios de bem estar social. 283 Uma segunda linha amplia para além da escola a possibilidade de ações inclusivas. A escola é apenas um dos territórios da inclusividade, mas tal inclusividade se refere à aceitação e abertura de espaço para os diferentes. Nesse caso, a expressão “para todos” geralmente se refere a uma polarização: “deficientes”X”normais”, “especiais”X”não-especiais”, ou quaisquer outras denominações; o que interessa aqui é que são pressupostos dois pólos, os quais, estando representados na educação e em todos os espaços sociais, caracterizarão a sociedade para todos. Uma terceira grande linha agrega as vozes que defendem a inocuidade de ações inclusivas numa rede de relações de poder assimétricas e excludentes por definição. Desse último ponto de vista, tais ações se manifestam como disfarce, como escamoteio; criam a ilusão de que, por serem criados acessos a representantes de certos grupos, excluídos de certas relações, em certas instâncias sociais, estaria havendo uma superação da exclusão (entendida esta como momento atual das relações capitalistas, em que ocorre uma busca por “ingressar” nas relações capitalistas de exploração). Quando tais processos se localizam na escola, funcionam como mecanismos de reprodução do modo de pensar/agir dominante, segundo esta última linha. As relações entre discurso e prática _ Tratar da temática “relações entre discurso e prática” é diferente de tratar dos modos de operar com discurso e prática; como temática, tomarei estes últimos como conceitos e não como operadores. Os discursos acadêmicos, nos excertos analisados, apresentam duas posições distintas: a) tratam discurso e prática como conceitos referentes a instâncias distintas do real e buscam formas de fazer tais instâncias convergirem ou estabelecerem uma coerência entre si. Evidenciam essas posições as discussões a respeito da prática preconceituosa, discriminadora ou opressora da escola; dos discursos separados da realidade, dogmáticos, incoerentes; da necessidade de mudança nas 284 práticas dos professores; dos postulados inclusivos que precisam ser aceitos, aprendidos e postos em prática. Nessa forma de lidar com a temática, prática é quase sempre entendida como a “ação dos professores em sala de aula”. Levando em conta aquela compreensão de que o discurso é de uma ordem distinta da ordem da prática, a conclusão a que sou levada é que em tais posições a ação pedagógica não aparece como uma prática discursiva, mas como puro fazer (no extremo, poderia ser encarada como pura técnica). Reforçam esta minha posição a ausência de certas perguntas na literatura, como: Porque os professores deveriam buscar ser coerentes, em seu fazer, com discursos nos quais não se reconhecem? Por um dever ser, ou por um reconhecimento de autoridade em certos discursos e de ilegitimidade em certos outros? Esse “não se reconhecer” se explica por falta de formação, por desconhecimento, ou por um tipo de conhecimento que não é legítimo nem autorizado, e portanto, sequer entra como voz nos diálogos/enfrentamentos encontrados nos excertos? b) A concepção de prática e discurso como esferas distintas pode dar ênfase determinante da a um relação. ou Nesse outro conceito caso, é como geralmente discurso o pólo dominante, sendo dado como origem e produtor de práticas, e tendo como locus de produção outros espaços e práticas que não a prática pedagógica, a qual aparece como locus de aplicação. c) tratam discurso como coincidindo com a prática. Nessa situação, o discurso configura-se, ele próprio, como prática e é tratado como atividade panfletária, militante. Os debates acerca da necessidade de disseminação do 285 discurso da inclusão, a propaganda, as cartilhas de conscientização podem ser citados conseqüência desse modo de tratar a temática. Não posso deixar de pensar que tal compreensão tende a substituir a ação propriamente por um “falar sobre”, na qual oferecer a temática da inclusão em embalagens diversas (palestras, congressos, livros, manuais, cartilhas, cartazes...) serve como ”prova” de que há uma “intenção” inclusivista _ e aí aparece o discurso buscando estratégias de sobreviver...como discurso. Em qualquer dos casos, a prática não aparece como produtora de discursos (mantendo-se a distinção entre os campos), nem como interconstituinte em relação ao discurso (compreendendo-se discurso e prática como dimensões de um mesmo processo: o que fazer humano)... Há, por último, uma questão a ser colocada com relação ao discurso acadêmico. O discurso acadêmico não está, por ser acadêmico, imune à alienação. Na medida em que ele não se volta sobre si mesmo, não se analisa como prática discursiva, deixa de perceber que utiliza certos operadores como conceitos, como definições do real. Não percebendo a polissemia dos operadores que elabora e utiliza, pode colocar-se inadvertidamente a serviço de estratégias discursivas gestadas nas disputas de poder, e isso pode fazer com que se dilua, no gênero acadêmico, sua característica mais preciosa, que é exatamente poder pensar a si mesmo como prática discursiva, ideologicamente produzida, como todo discurso, mas capaz de desdobrar-se e ver-se a si própria, como propunha Verón: O “efeito de cientificidade” repousa numa espécie de desdobramento: o discurso é reconhecido como instaurador de uma relação com sua relação com o “real” que descreve. Essa relação dupla é obtida quando um discurso que, como todo discurso, está submetido a condições de produção determinadas, se mostra precisamente como estando submetido a condições de produção determinadas. Dito de outra maneira: a relação do discurso com seu referente é marcada pela relação do discurso 286 com suas condições de engendramento. O “efeito ideológico” é, em contraposição, o do discurso absoluto: aquele discurso que se mostra como o único discurso possível acerca daquilo que se fala. Mas tanto um como o outro desses efeitos de reconhecimento ocorre necessariamente no interior de discursos que são ideológicos na produção. (VERÓN, 1980, p.198 – grifos do autor). Percebo muito mais, no discurso acadêmico analisado, uma busca de lidar com conceitos (enquanto descrições do “real”) do que a percepção de que eles podem ser operadores, ferramentas para agir sobre si e os outros. Desse ponto de vista, o discurso acadêmico analisado parece pouco propenso a desdobrar-se sobre si mesmo, percebendo suas coerções internas. Assim as formações discursivas no discurso analisado articulam os operadores prática, discurso e movimento de três formas mais explicitas: a) Quando a noção de movimento significa que mudanças gerais criam mudanças no localizado: a superação das relações de desigualdade social é a utopia para a qual remetem as ações de inclusão; a escola será inclusiva quando as demais relações forem inclusivas... Nesse caso, as práticas inclusivas no interior da escola são dadas como importantes, mas não resumem todas as tarefas transformadoras, nem no interior da escola nem no contexto mais geral. Os discursos da inclusão se encaixam nos discursos mais gerais de transformação social, o que cria certas contradições características internas dos dois tipos de discurso. b) Mudanças locais deflagram mudanças gerais: a criação de situações inclusivas deflagrará mudanças na estrutura da sociedade como um todo. Esse matiz de movimento remete a uma prática escolar recortada do todo social, remetendo a responsabilidade pela mudança aos sujeitos da escola, especialmente ao professor. Nesse caso, a 287 prática de formação se centrará em modificar as atitudes e competências desse professor. a inclusividade exigida da prática escolar (especialmente a pedagógica) não seja, na primeira dimensão, exigida da prática política, a não ser naquilo que diz respeito diretamente à escola e à educação. Numa concepção de que as práticas (locais) estão atrasadas com relação a um determinado discurso, haverá um movimento na tentativa de sintonizar discurso e prática, modificando localmente estas últimas e adotando determinado discurso, externo a essas práticas, como expressão do que “deve ser”. c) Mudanças locais pressupõem manutenção da totalidade: a criação de situações inclusivas no espaço escolar e sua restrição a esse espaço disfarçam as relações excludentes da sociedade como um todo. Nessa nuance, o movimento que o discurso antevê se situa mais do lado da reprodução, da manutenção do status quo, e as práticas chamadas de inclusivas tenderão a ser analisadas em seu conjunto como parte desse processo. Englobar tais práticas na denúncia dos processos excludentes pode fragilizar a crença na transformação pela prática, e fortalecer o pensar (externo à prática) como origem e organizador do fazer. Permeando a articulação interna dessas três formações aparece uma estratégia discursiva que tende a descrever realidades ao invés de processos discursivos. Também aparece um descolamento entre prática e discurso, em que a prática não é colocada como interconstituinte em relação ao discurso, mas subalternizada em relação a este. O operar com representações de um real estático e a separação entre prática e discurso dá maior organicidade à segunda formação descrita, e fragiliza as outras duas, as quais, pela utopia da transformação e pela denúncia da manutenção do status quo, seriam fortalecidas por uma estratégia de lidar 288 com operadores e a de amalgamar pensar-e-fazer como práticas humanas interconstituintes. 8. INTERDISCURSIVIDADE E HABITUS: AS IMBRICAÇÕES DOS DISCURSOS NO CAMPO DA INCLUSÃO Neste capítulo, teço entrecruzamentos entre os três gêneros de discurso anteriormente analisados, expondo as relações interdiscursivas que construí ao elaborar uma leitura “em reconhecimento” de tais discursos. Esses entrecruzamentos se caracterizam pelas referências explicitas e implícitas que uns discursos fazem aos outros, pelas temáticas comuns ou especificas de cada tipo de discurso, pelos modos de operar que são recorrentes nos vários discursos ou próprios de cada um. Como parti da hipótese de que esses discursos dialogam entre si, e o fazem dentro de certo habitus, tento aqui esboçar os principais traços desse diálogo e os elementos do habitus no qual atuam, relacionando-os entre si. Nos três capítulos anteriores a este, dedicados à análise de cada gênero de discurso, busquei responder à primeira pergunta do problema de pesquisa: Como se configuram os modos de funcionamento dos discursos governamental, escolar e acadêmico no campo da inclusão? Aqui, à guia de capítulo conclusivo, tento organizar a resposta à segunda: que efeitos de sentido podem ser produzidos, em reconhecimento, a partir das relações entre esses modos de funcionamento? Os textos recortados para análise, dentro de cada discurso, se referem a um horizonte comum (o processo de inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais dentro da educação pública), e foram produzidos num contexto geral comum: uma mesma época histórica, uma mesma configuração sócio-econômica. No entanto, as condições de produção em que são elaborados se diferenciam: o texto oficial tem entre suas condições de produção certa normatividade, uma determinada produção acadêmica, um determinado projeto político; o texto acadêmico tem outra normatividade, outros discursos de outras academias, com os 290 quais estabelece determinados tipos de relações; um determinado tipo de relação como projetos político diversos: a falas dos professores sofrem as coerções do contexto, das posições que são atribuídas aos participantes do diálogo, de suas vinculações pessoais e de grupo com determinados projetos políticos. Tudo isso faz com que sejam textos diferentes, o que permite uma abordagem comparativa, como propõe Verón: Do ponto de vista de uma teoria da produção social de sentido, um texto não pode ser analisado “em si mesmo”, mas apenas em relação a invariantes do sistema produtivo de sentido. Ora, para mostrar que certas propriedades de uma economia discursiva estão realmente associadas a invariantes produtivas determinadas (seja na produção, seja no reconhecimento), é preciso que, sob condições diferentes, os discursos produzidos sejam diferentes. Por isso, a abordagem comparativa é o princípio de base da análise dos discursos (VERÓN, 2004, p.62; grifo do autor). Buscando realizar essa análise comparativa, produzo aqui um texto que tem como condições de produção os três textos analisados. Busco amalgamar os enfeixamentos já realizados, tanto das temáticas quanto dos modos de operar, o que só pode ser feito, como disse antes, porque alguma coisa nas configurações dos efeitos de sentido os “atrai” para uma mesma “rede semântica”. Se é possível adotar a idéia de formação discursiva como um sistema de dispersão é porque, ainda que dispersos, os elementos constituem um sistema, relacionam-se entre si. Essas relações, nesta leitura em particular, são vinculadas às coerções às quais os discursos estão submetidos, por serem produzidos nas relações humanas concretas, atravessadas pelo poder e pelo ideológico. Essa vinculação permite esboçar a configuração de certo habitus, que transparece no estudo do produto das práticas discursivas. O entrecruzamento dos discursos se organizou numa topicalização que pretende mostrar como esses discursos dialogam entre si, e que traços desse diálogo produzem efeitos de sentido que configuram um habitus. Um habitus sendo entendido como um “princípio gerador de estratégias” (BOURDIEU, 1994, p.61), sistema de disposições que gera e estrutura práticas e representações, ao se organizar discursivamente deve 291 prever um lugar para o enunciador e para o outro (e relações entre esses lugares), um lugar para o fazer/dizer /pensar (que promova ou não uma cisão entre essas instâncias do humano), deve mobilizar determinadas crenças e, por meio desses movimentos estratégicos, se configurar em determinadas formações discursivas. Por esta razão, os tópicos deste capítulo foram assim distribuídos: a) o lugar de cada enunciador no discurso do outro; b) prática como instância subordinada do real; c) crenças postas em ação nos discursos; d) formações discursivas recessivas e dominantes. 8.1. O “LUGAR” DE CADA ENUNCIADOR NO DISCURSO DO OUTRO A distinção/interdefinição entre o professor que atua na inclusão e o outro professor aparece nos vários discursos, no entanto com configurações diferentes. No discurso caracterização escolar, dominante do essa distinção se outro-professor ampara pela numa passividade, insegurança e carência de formação, assim como numa polarização, na qual se esboça um professor especializado como militante ativo, disposto a cobrar a atuação governamental e a atuar no vácuo criado pelo seu descomprometimento. Portanto, aparece um processo de interconstituição das identidades dos dois tipos de profissional, em que o professor do atendimento especializado evoca a passividade do outro para explicar a necessidade de sua intervenção, assim como evoca sua carência de formação para justificar a necessidade de mais cursos, de mais treinamento. No discurso oficial, a flutuação que o lugar do professor sofre no discurso, em que a expectativa de passividade em certos momentos se contrapõe a exigência de atuação crítica em outros, permite a auto- 292 identificação tanto de um quanto de outro profissional. Também a desqualificação das práticas anteriores à inclusão tanto pode ser referida à educação especial nos moldes chamados de segregacionistas quanto à escola denominada tradicional. No entanto, quando na prática são principalmente os ex-profissionais da educação especial que assumem as tarefas de encaminhamento da inclusão, como no caso estudado, esse processo de auto-identificação e de identificação do outro se organiza de tal forma que a flutuação mostrada no discurso governamental pode ser colocada a serviço das estratégias de desvalorização do outro-professor no discurso escolar, e portanto do fortalecimento das tensões entre os dois grupos. O tênue poder que significa dirigir o processo de treinamento dos demais professores, receber primeiro as informações que serão levadas a todo o grupo, acompanhar as dificuldades de aprendizagem e, portanto, de certa forma, avaliar a ação do outro modifica e reorganiza as elaborações identitárias e portanto as inter-relações no interior da escola. No discurso acadêmico, mais multifacetado que o oficial, essa relação aparece de modos diferentes: quando a inclusão aparece como movimento no interior da escola, disposta a modificá-la em suas velhas crenças, o professor que não tinha vínculos com as discussões da inclusão é constituído, grosso modo, como o porta-voz dessas crenças ultrapassadas, portanto clientela preferencial da formação e treinamento para a inclusão. Tanto nesse caso, como naquele em que o movimento da inclusão é definido como um movimento de superação das desigualdades sociais, o lugar do professor especializado como militante ganha reforço e destaque, assim como ganha reforço sua reivindicação e esperança de surgimento de novas vocações, de despertar mais lutadores para a causa. No caso em que tal movimento aparece como disfarce das relações excludentes, essa distinção perde sentido; tendo essa crença como pano de fundo, já não são os profissionais da educação especial os porta-vozes da mudança, não se configurando mais em grupo mais esclarecido e melhor formado do que os outros. Pelo contrário, as tensões estabelecidas 293 tenderão a desqualificá-los, caracterizando-os como porta-vozes do status quo e não da mudança. Vê-se nesse caso, que o atributo da passividade ou da militância, referido a um grupo ou a um tipo de profissional, precisaria ser contextualizado e historicizado e o discurso acadêmico teria uma função importante nesse processo, por ser o discurso onde os pontos de vista em contraposição têm maior liberdade de se expressar e cuja forma de operar permite voltar-se sobre si mesmo, reconhecendo-se como ideológico. As definições identitárias de professor através dos atributos da passividade, má formação, carência, por um lado, e da capacidade de militância, de participação, do exercício da cidadania, por outro inscrevem num certo habitus, ancorado nos processos históricos porque passaram a educação brasileira e o próprio país. Seus aspectos positivamente valorados são assumidos por um grupo que remete os atributos negativos àquele com quem polariza nas tensões criadas nas assimetrias de poder Assim, analiso que os professores do atendimento especializado não assumem para si o lugar flutuante que o texto oficial lhes propõe: em compensação remetem para esse lugar os demais professores, o que reforça ideologicamente o texto oficial. O que as falas dos professores dizem é que esse destinatário existe e portanto tal configuração discursiva tem razão de ser. Esse outro-professor passa a ocupar o lugar de aluno na situação de formação continuada, na qual deve refletir sobre a inadequação daquilo que faz e de seus modos de pensar (o tradicionalismo da escola, suas práticas excludentes). Sua caracterização anterior aqui ganha mais uma razão de ser: uma das limitações do processo inclusivo é a sua falta de formação; e é a sua falta de formação que justifica a existência de uma rede de formadores e um investimento em cursos de treinamento, num trabalho de conscientização e sensibilização. Não se assemelha nem de longe àquele lugar que os entrevistados reservam em seu discurso para os alunos com necessidades educacionais especiais: pessoas que precisam de 294 ajuda, sim, mas decididos, participativos, lutadores, capazes de pressionar e brigar por seus direitos. Assim como o discurso oficial reserva um lugar para o professor, nas falas dos professores o governo ganha também determinados contornos: seu lugar oscila entre a autoridade opressora, educadora, provedora, ajudante. Nesse deslizar, o professor especializado vai do distanciamento à identificação com o outro-governo: demonstra uma postura crítica, aponta as falhas, exige mudanças, mas também se coloca no lugar dele. Quando cobra mais formação, por exemplo, geralmente fala do lugar do formador, quando exige mais material, mais e melhores profissionais, aplicação das verbas, situa o governo como instância de ajuda numa tarefa da qual se vê como o centro (ou melhor, como parte do centro, já que sua auto-identificação se articula fortemente com o lugar do aluno com necessidades especiais). Se o professor a que o discurso oficial se refere não lida com questões salariais, com família, não tem necessidades específicas a não ser as de formação, esse esboço tem seus contornos reforçados com o potencial missionário evidenciado na militância inclusiva, elemento importante do discurso dos entrevistados. Por outro lado, o destinatário do discurso não é a militância da inclusão, é todo o professorado da rede pública. Parte das razões pela qual a discussão da inclusão enfrenta tensões no interior das escolas pode ter a ver com a pouca aproximação entre o professorado concreto e esse esboço identitário. Quando o foco é o lugar do acadêmico nos outros discursos, surgem muito mais vácuos do que nos casos anteriores, em que o lugar do outro aparece claramente, mesmo quando flutuante e escorregadio. O lugar do acadêmico aparece pouco e vagamente no discurso oficial. Aparece pelo silêncio, quando remete a formação apenas ao treinamento e não à formação superior, criando/supondo uma cisão entre formação continuada e formação básica e aparece quando é assumido como auxiliar no processo de inclusão (propõe que se busque uma interação com 295 especialistas para enriquecer os conhecimentos dos professores a respeito de inclusão). Claro, sem contar as referências a determinados autores e a omissão de outros, aspecto que não foi trabalhado nesta investigação porque demandaria uma outra tese. No discurso escolar, em que formação é uma temática recorrente, as referências à universidade não são o centro dessa temática e sim os cursos de formação em serviço. Dos momentos em que a universidade aparece, ou ela é caracterizada como precisando se adequar aos parâmetros da inclusão, ou como referência de formação pessoal, mas aparentemente a diversidade e riqueza do debate a respeito da inclusão faz pouco eco no interior do discurso escolar. 8.2. A PRÁTICA COMO UMA INSTÂNCIA (SUBORDINADA) DO REAL O lugar de destaque que a prática ocupa no interior do discurso acadêmico também se mostra nas falas dos professores e no discurso oficial. Evidentemente, que, no caso do discurso oficial, o próprio recorte feito já remete para esse ângulo: trata-se de uma proposta de curso de formação com caráter eminentemente prático, que é propiciar subsídios para a formação de professores para a escola inclusiva, fornecendo-lhes meio de lidar com os alunos cegos, surdos, com altas habilidades e com deficiência física/neuromotora. A prática se desdobra em dois sentidos principais: a prática pedagógica (que deve ser modificada pela conscientização promovida nos processos inclusivos) e a prática de formação (caracterizada pelo treinamento e aquisição de habilidades para lidar com as deficiências). O dois sentidos de prática se entrecruzam tanto no discurso escolar como no oficial, já que a prática de formação deverá ter um efeito sobre a prática pedagógica. 296 No caso das falas dos professores especializados, ocorre uma distinção entre sua própria prática (identificada com a de formação) e a prática pedagógica que é preciso modificar (identificada com a dos professores em geral). A valorização dos cursos de formação em serviço, tão evidente no discurso dos professores, encontra nessa distinção boa parte de seu sentido: não é a sua prática que está “na berlinda”, mas a dos demais professores. Os dois discursos, ao propor que um processo de conscientização, de aquisição de conhecimentos possa ter efeitos de transformação da prática fazem entrever uma subordinação do fazer do professor a um pensar que é externo a ele, e, portanto, uma cisão entre seu próprio fazer e pensar. Tudo isso, no entanto, pôde ser captado muito mais nas entrelinhas do que num discurso assumido, no que se refere ao discurso oficial e escolar. É no discurso acadêmico que as relações entre discurso e prática, no campo da inclusão, aparecem com maior clareza: ou se trata de sintonizar a prática ao discurso (caracterizando aquela como antiquada ou inadequada e este como transformador); ou de promover mudanças no discurso para assim atingir a prática (através da conscientização); ou de compreender a prática como discurso, ou viceversa (e aqui não se refere à prática pedagógica, mas à prática militante da inclusão, que até pode incluir o pedagógico, mas não se limita a ele). A exclusão do território do professor (a prática pedagógica) da possibilidade de produção discursiva relevante e o situar dessa produção nos campos do oficial e do acadêmico são outros elementos que se agregam à desvalorização daquele lugar do professor, conforme analisei anteriormente. Esse silenciar simbólico do professor se expressa claramente na denúncia feita por um dos entrevistados da submissão às práticas de formação oferecidas pelas secretarias, submissão essa garantida pela falta de condições do professor para procurar a formação que ele considera a mais adequada. Essa subordinação não é sequer aventada pelo discurso oficial (pelo contrário, a oferta desse tipo de curso 297 é caracterizada como uma demanda do professorado, uma vez que são naturalizadas as razões pelas quais ele não tem a formação necessária). A reivindicação do direito de administrar sua própria formação é uma voz absolutamente recessiva no discurso escolar, mas traz à superfície uma questão extremamente importante na desnaturalização de tais razões. Portanto, a prática pedagógica se configura, nesses discursos, como instância subordinada do real; ou não pode produzir discursos, ou os discursos que venha a produzir não são relevantes para a sua própria transformação; no máximo se alimenta dos discurso de outros, cuja legitimidade se ancora no lugar de onde emanam. É pela proximidade maior com esses lugares que a prática de formação ganha maior legitimidade, e se descola da prática pedagógica. Não é ela própria também produtora de discursos, mas, sendo porta-voz legitima dos discursos autorizados, ganha ascendência sobre a prática pedagógica. 8.3. CRENÇAS POSTAS EM AÇÃO NOS DISCURSOS Diz Verón que, para que um discurso tenha poder, deve por em ação uma crença (1980, p.198). Isso implica que um habitus é posto em ação, já que uma crença mobiliza aspectos inconscientes, voltados para a reprodução de experiências reforçadas ao longo da história do individuo e do grupo ao qual pertence. Considerando que nas relações entre os discursos, assimetrias de poder fazem com que uns se imponham sobre os outros sob determinados aspectos, importa analisar as crenças que são postas em ação nos discursos, ou seja, o que se apresenta neles como sensato, razoável, objetivo. Entre as muitas crenças mobilizadas nos vários discursos, algumas são comuns a todos eles, mesmo que com graus de relevância diferentes em cada um. Já destaquei a crença numa subordinação do 298 fazer ao pensar, a qual, posta em ação nos vários discursos, legitima e organiza as relações entre os vários enunciadores. Admitir a prática dos professores como capaz de produzir um saber relevante, ou analisar as práticas produtoras dos discursos autorizados por exemplo, seriam possibilidades de rompimento daquela lógica que poderiam estabelecer novas bases para essas relações. Uma outra crença que, mobilizada no discurso oficial mas presente também nos outros, busca garantir o envolvimento dos destinatários do discurso nos processos da inclusão é a sua caracterização como ruptura, como mudança. Não é preciso discutir a carga semântica desses operadores nos processos históricos de redemocratização do país e dos debates educacionais relacionados a isso. Colocar-se contra a mudança é geralmente caracterizado como uma atitude reacionária, ou antiquada, ou desinformada. Isso alinha todas as criticas às proposições ligadas à questão da inclusão, tenham elas ou não fundamento, nesse espaço obscuro e recessivo, o que é prejudicial ao exercício do pensamento crítico; agrega todos os interessados em estar na moda ou em ganhar financiamento para pesquisa e extensão aos educadores e pesquisadores de fato envolvidos com a questão da inclusão, o que desqualifica trabalhos de excelente qualidade; traveste de transformadoras ações que são mera manutenção da educação, o que desobriga de transformações realmente profundas; por fim, alimenta as tensões entre os professores que coordenam o processo inclusivo e os demais, ao invés de articular as diversas contribuições dos grupos num projeto de educação que transforme suas estruturas. Uma outra crença enfatizada no discurso oficial é aquela que coloca a educação como alavanca de transformações na sociedade. A idéia de transformação, naturalmente é ressituada pela leitura da polarização exclusão/inclusão. Num mundo que se organiza pela produção cada vez maior de excluídos, garantir a inclusão passa a ser tarefa prioritária da educação. Questões como debater as razões pelas quais 299 ocorre a produção de excluídos e as possibilidades de um mundo diferente se tornam recessivas, diante da urgência de se reduzir a quantidade de excluídos (ou de se demonstrar disposição de reduzir essa quantidade, uma vez que para cada aluno que a escola inclui, a sociedade produz muitas outras exclusões). A capacitação do professor se insere nessa urgência, e por isso ela precisa ser em serviço: não há mais tempo para longas formações. Os ecos dos debates produzidos dentro do discurso acadêmico acerca do papel da escola e da educação, as próprias leituras acerca dos processos excludentes ressoam pouco no discurso oficial e escolar, embriagados da urgência de mudar o que está para continuar do mesmo jeito, de movimentar-se espasmodicamente para não perder o mesmo lugar. O acesso dos alunos como necessidades educacionais especiais à escola pública, garantido por suas lutas e estabelecido como direito, o atendimento às suas especificidades e o exercício do direito de aprender são avanços inquestionáveis da educação como um todo, mas apenas anunciam o aprofundamento das exigências de uma educação de qualidade, gratuita, cidadã (exigências fortalecidas pelo acesso de uma clientela acostumada com as lutas por seus direitos). Não atingem os mecanismos de produção da exclusão social, ainda que não precisem fazê-lo para ter validade e legitimidade. Situar os processos transformadores da educação (a educação em movimento) no processo de inclusão, esboçando outros processos como em estado de inércia faz obscurecer aspectos da história recente dos educadores, alunos e pais (lutas por educação de qualidade, por exemplo); por outro lado, também desqualifica as lutas por inclusão diante dos olhos desses atores e cria polarizações que enfraquecem a educação como um todo. Ao colocar em ação tais crenças, descrevê-las como razoáveis e sensatas (colocando do lado da insensatez os que discordam delas), o discurso estabelece estratégias de envolvimento do destinatário, as quais 300 podem obter ou não sucesso, podem fazer o discurso ampliar-se para determinados campos ou ver-se limitado a outros; podem ver-se frente a estratégias que as confrontem ou que se desviem delas. É possível localizar estratégias para a proposição de outra sensatez, de outra razoabilidade, considerando a reprodução de ações de resistência construídas na história desses educadores e seus alunos, na história do pensamento oficial e acadêmico. Tais estratégias se estruturam dentro de formações discursivas recessivas, no que se refere ao discurso oficial, mas não tanto no que se refere aos outros dois discursos. No próprio discurso oficial, ainda que aparecendo como voz recessiva e como suporte da formação dominante, os temas da participação, da transformação, da mudança fazem com que as vozes articuladas a esses temas ganhem espaço, disputem os temas e suas redes de sentidos, minando a crença de que a transformação passou a se limitar aos enfrentamentos dentro da polarização inclusão-exclusão. Na falas dos professores, a descrição das condições de trabalho, ainda quando justificadas como inadequadas por não estarem a serviço da inclusão, evidencia que sua noção do razoável para a educação pode propiciar mudanças, o que vai além daquilo que está dado como necessário no discurso oficial. Da mesma foram, a exigência da superação da passividade, ainda quando referida apenas aos processos internos à escola e à inclusão, é uma crença que se contrapõe à descrição do professor em geral (na qual o professor especializado não enquadra a si mesmo). A valorização do aluno que atua, reivindica, exige, é outro elemento que coloca em questão os papéis esboçados para os atores na educação e coloca em ação a crença numa prática transformadora. 301 8.4. INTERDISCURSIVIDADE: FORMAÇÕES DISCURSIVAS DOMINANTES E RECESSIVAS Como último movimento, na análise das relações entre os discursos, estabeleço aqui algumas aproximações e distanciamentos entre as formações discursivas cujas configurações elaborei, na construção deste texto. Tanto a formação discursiva considerada dominante no discurso oficial quanto a recessiva encontram ressonâncias nas formações enfeixadas no discurso escolar e acadêmico. As flutuações do lugar do professor, presentes na primeira, encontram no discurso escolar flutuações semelhantes, no que se refere ao lugar de aluno que ele ganha no discurso oficial, que se articula com a passividade do outro-professor descrita no discurso escolar. O lugar de funcionário, de trabalhador é obscurecido nos três discursos, que tendem a destacar o lugar de professor como ator responsável pela inclusão independente de seu lugar nas relações de trabalho. O lugar de interlocutor, que aparece no discurso oficial, encontra eco nas falas dos professores no que se refere à vigilância necessária para que o Estado cumpra suas obrigações, mas não no que se refere à formação: o momento de formação é descrito como situação de aprendizagens de novas técnicas e formas de lidar com o aluno, não de elaboração de proposições para renovar o debate educacional. As ilusões que o professor evidencia a respeito de seu lugar como militante não se reproduzem em sua noção da relação com o governo: ele chega a se colocar no lugar deste, reserva-lhe no discurso um lugar de provedor, de educador, cobra dele esse papel, mas não prevê um diálogo produtivo com ele no que se refere à dimensão sócio-educacional. A ocultação das relações de poder ressoa fortemente no discurso escolar; tais relações são abrandadas pela própria descrição do 302 professor como militante de um projeto inclusivo. A concepção de sociedade inclusiva, como projeto a ser construído ou como realidade com certos desajustes, mas passível de correção, se casa tanto com a visão dos professores especializados como militantes desse projeto, como com a descrição das carências e passividade do outro-professor como os desajustes (a serem sanados com a prática de formação em serviço) O fato de os saberes da inclusão serem dados como já constituídos ganha sustentação na distinção entre saber e fazer, entre pensar e fazer, fortes nos três discursos. A formação técnica enfatizada no discurso escolar, o discurso como origem e organizador da prática presente no discurso acadêmico são elementos que garantem o pouco questionamento de tais saberes, de sua origem, de sua escolha e pertinência. Desse modo, a produção de novos saberes é pouco reivindicada pelos atores da prática de formação, que também não a apontam no outro-professor, o de sala comum. Das formações presentes no discurso acadêmico, é a segunda que se articula melhor com esse aspecto dos dois outros discursos. Considerar que a criação de situações inclusivas deflagrará mudanças na estrutura da sociedade como um todo, reforça o lugar de professor da inclusão como militante, a prática de formação centrada nas mudanças nas atitudes e competências desse professor e alivia as exigências com relação à prática política, a não ser naquilo que diz respeito ao lugar de provedor e educador reservado ao governo. A formação discursiva recessiva presente no discurso oficial, a qual inclui a idéia da transformação social, da ação coletiva, da formação do agente social crítico e reflexivo, da participação no poder, da construção de uma sociedade não-excludente encontra seus ecos na formação discursiva presente no discurso escolar, aquela elaborada com ênfase nos enfrentamentos: valorização do aluno critico e participante, na auto descrição do professor especializado, na critica da passividade do outro-professor. 303 Tanto a primeira como a terceira formações presentes no discurso acadêmico se articulam com essa formação recessiva, na medida em que ambas propõem a transformação social como horizonte (e incluem os processos inclusivos nessa transformação) e denunciam a manutenção do status quo pelo disfarce das relações de poder subjacente a discussão da inclusão. Tal articulação, como já foi dito, se enfraquece pelo discurso acadêmico não incorporar estratégias que compreendam o fazer e pensar como interconstituintes. Como o mesmo acontece com o discurso escolar, no qual os saberes e os discursos se colocam fora do domínio da escola (caracterizada como território da prática e da aplicação dos saberes), tal formação recessiva se reforça em sua recessividade. Os efeitos de sentido produzidos, neste texto, pelas relações entre os modos de funcionamento dos três gêneros de discurso, se não chegam a permitir respostas claras aos incômodos a que eu me referia na introdução, pelo menos apontam lugares onde essas respostas possam ser buscadas. Desses lugares e das considerações finais eu trato no próximo item deste capítulo, no qual teço relações entre as concepções da noção de inclusão e a prática discursiva. 8.5. A INCLUSÃO, A PRÁTICA DISCURSIVA NA ESCOLA E OS CACOS DO ESPELHO Desde o inicio do projeto que deu origem a esta investigação o termo inclusão me pareceu vago. Ora tal operador se referia a projetos oficiais, ora a experiências escolares específicas, ora a aspectos dessas experiências, ora a projetos de sociedade. Talvez tenha sido exatamente sua vaguidão que o atraiu para o centro desta experiência de análise de 304 discursos, em que três instâncias discursivas, organizando-se em torno da inclusão, dão-lhe contorno e criam-lhe uma identidade. Entendendo inclusão como representação do real, aquelas oscilações semânticas a que me referi podem fazer pensar que não é um termo adequado, na linha de reflexão de Abbagnano: “numa época em que os conceitos são frequentemente confusos e equívocos a ponto de se tornarem inutilizáveis, a exigência de uma definição rigorosa dos conceitos e de suas articulações internas adquire importância vital” (ABBAGNANO, 2003, p.V). No entanto, se inclusão for pensada como operador, seus deslizamentos de sentido ganham razão de ser: o fato de inclusão aparecer como força que faz mudar os modos de pensar, os modos de agir; como mecanismo de ocultação das relações de poder, como militância, como imposição, como prática educativa, em cada discurso, e apresentar sentidos contraditórios dentro de um mesmo discurso, o real se reconfigurando a cada novo uso do conceito, faz com que se possa dizer que inclusão, ao transitar entre diferentes campos de sentidos, assume como característica central exatamente a polissemia, a capacidade de deslizamento. Diz Bourdieu que “é a própria estrutura do campo em questão que rege a expressão, regendo então o acesso a expressão e a forma de expressão” (2001, p.110)79 . Para entender inclusão, é fundamental ir além de sua configuração como conceito. É preciso entendê-la como operador, o qual atua articulando determinados campos, eu creio, para dimensionar a complexidade das relações que estabelece. Só assim pode ser analisada a dimensão do ideológico, que é dada pelas relações de 79 Es la propia estructura del campo en cuestión la que rige la expresión, rigiendo a la vez el acceso a la expresión y la forma de expresión. 305 poder, pela capacidade de mobilização de crenças, práticas e representações. No campo sócio-econômico, dentro do estudo das relações entre capital e trabalho, que Tedesco (2002) descreve e que resumo no primeiro capítulo, inclusão se opõe a exclusão, a qual vem a substituir a relação de exploração. As lutas dos grupos oprimidos deixam de ser contra a exploração capitalista, esta restrita a um grupo reduzido da sociedade (exploração passa a ser luxo de poucos) e passam a se concentrar na redução da exclusão. Esse processo de redução da exclusão é o que se chama inclusão; o “incluso” é o que passa a ter o direito a participar das relações de exploração. Transposta para o campo educacional, e chegando a esse campo através da educação especial, o termo carrega consigo a idéia de mudança (sair de uma posição no mundo social para outra), mas tal idéia ganha dimensões outras: aplicada à situação das pessoas com necessidades educacionais especiais, vem a querer dizer o acesso à convivência com os outros, ao aprender, ao ocupar espaços sociais antes restritos; aplicada à educação em geral, passa a significar o acesso de todos os que estavam alijados aos espaços e às possibilidades educacionais. Os contornos do real que a idéia de inclusão quer configurar se modificam nessa transposição, tornando-se mais restritos por um lado, (porque a escola não deixa de ser um espaço de trabalho, também explicável pelas relações sócio-econômicas) e mais amplas por outro (porque o aspecto educacional abrange muito mais do que relações de trabalho). Como as teorias educacionais não estão descoladas dos modos de pensar a sociedade, a idéia de inclusão se expande e se contrai: em alguns discursos, representa uma mudança localizada que necessariamente se articula com as mudanças necessárias para superação do modo de vida capitalista; em outros, uma mudança no interior da educação que mostra a possibilidade de se criar consenso dentro desse 306 mesmo modo de vida, melhorando as relações gerais no mesmo processo em que são reduzidas as hostilidades e preconceito entre pessoas e grupos; em outro ainda, uma pseudo-mudança que serve para que tudo continue como está (o movimento necessário para que nada mude). Dessa forma, os contornos, as zonas de conflito e de estabilidade do conceito, nos discursos vinculados à educação, se situam nas contradições entre os efeitos de sentido que cria. Quando tais efeitos de sentido se vinculam com uma concepção dos aspectos do real como recortados e separados, as contradições sendo referidas aos modos de pensar e não às condições de produção da vida concreta, então é possível pensar na escola como espaço das contradições sociais.Vista assim, a noção de inclusão é um operador poderoso, no sentido de uma ideologia do consenso. Pode criar o efeito de mobilizar crenças contraditórias, agrupar num mesmo conceito modos de agir e pensar em conflito; pode tornar-se bandeira de projetos de sociedade que precisariam superar um ao outro para poder se concretizar. Por outro lado, certos efeitos de sentido produzidos nessa capacidade de deslizamento do operador remetem a uma ideologia da transformação. Imaginar essa inclusão como algo mais do que acesso aos mesmos padrões educacionais oferecidos às classes populares implica em querer ampliar para além da escola a responsabilidade pela inclusão. Nesse caso, a desresponsabilização governamental precisará ser combatida, os mecanismos produtores de exclusão também. A ilusão de ascensão social baseada no domínio dos saberes precisará ser contraposta a análise da distribuição social dos tipos de saber que busca adequar cada um e cada grupo ao seu lugar na sociedade, assim como um estudo da cisão entre prática e discurso, que elege determinadas instâncias como produtoras de discurso válido e outras como consumidoras desse discurso. À caracterização da desigualdade como fenômeno de origem pessoal, e às tentativas de corrigir esse fenômeno, no caso da escola, através da formação dos professores, contrapor projetos de formação que permitam 307 um pensar/fazer críticos. Implica aos professores recusar a obrigação de ser bons em tudo, de forma fragmentada, assim como a obrigação de formar pessoas para caber no mundo tal como ele se apresenta. O desencontro entre escola, projetos oficiais e universidade, que me incomodou sempre e que ajudou a criar a lacuna na qual esta investigação ganhou sentido, tem vínculos com essas crenças, práticas e representações que emergem dos discursos cujos efeitos de sentido analisei. Quero crer que as resistências da escola em aplicar projetos que são gestados externamente a ela , quando ocorrem, tem a ver com uma certa saúde do coletivo escolar. No entanto, devo dizer que, no caso presente, a parte da escola cujos discursos analisei não resiste nem se recusa ao processo, pelo contrário, coloca-se resolutamente como a responsável pela inclusão. Cobra providências, exige condições para que o projeto se concretize. Isso me faz pensar que a descrição da resistência da escola seja gestada fora dela e inclusive se antecipe à sua ação, nas caracterizações do lugar do professor e do aluno, da definição de um lugar subordinado para a prática e da escola como o lugar da prática, e não do pensar. Ou, por outra, talvez não seja aos projetos que a escola se recusa, mas a seu lugar neles. Eu desejava, afirmei, acompanhar as caretas do menino no próprio esforço/resistência de beber o remédio. Como não pude analisar a escola como um todo, mas um certo recorte dos discursos que se entrecruzam nela, não posso dar uma descrição mais consistente do processo. Só posso dizer, que, no que se refere ao discurso dos professores especializados que atuam como formadores no processo de inclusão, eu estava enganada: o menino não faz caretas, e sim reclama do pouco efeito do remédio, ou reclama do diagnóstico. O lugar da escola nos discursos acerca da inclusão, desenhado como o lugar da prática, esboça uma escola como deficiente, no sentido de que ela é negada como é para ser projetada como ideal (da mesma forma como o movimento por inclusão denuncia que é feito com o aluno 308 deficiente). É a escola que é “portadora” de métodos inadequados, de preconceito, de valores inadequados. O modelo clínico/médico é aplicado à escola no mesmo movimento em que ele é recusado com relação ao aluno. Assim, as práticas (modos de dizer, pensar e agir articulados) que já ocorrem no interior da escola são recusadas por sua deficiência, e em seu lugar são sugeridas novas práticas, inspirados em modos de dizer e pensar externos a ela. Eu diria que ocorre um deslocamento de modelos de uma instância menos abrangente (o individuo) para uma mais abrangente (escola) no processo mesmo de buscar a superação desses modelos. A visão atomizante parece ter sido superada quando ela foi apenas deslocada de um âmbito para outro mais abrangente. Considero muito ilustrativo dessa questão o trecho que AMARAL, (in SILVA E VIZIM, 2001, p. 156) extrai de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, para retratar a recusa do outro por suas diferenças: Cap XXXI: ...entrou no meu quarto uma borboleta (...) depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar de escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.(...) a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado. _Também, porque diabos não era ela azul? disse comigo. “Porque diabos a escola não é azul?” _ também parecem dizer os defensores de uma inclusão na qual a escola não se encaixa do jeito que é, mas também não parece servir como matéria-prima para à transformação . Considerar a escola como é (multicolorida, multifacetada), e descrevê-la em seus movimentos de reprodução e de transformação, de produtividade e de criatividade exige entender o pensar, o dizer e o fazer humano como processos interconstituidos e interconstituintes. Na escola 309 como na análise do discurso, creio que é tempo de juntar os cacos do espelho, lembrando a outra metáfora, que adotei como título deste trabalho: considerar o fazer pedagógico como instância válida de produção de discurso, considerar a possibilidade de se trabalhar o reconhecimento critico dos discursos alheios, ao invés do mero consumo, reconhecer a produção discursiva da escola como arena de disputa. Enfim, considerar as práticas discursivas, principal atividade do mundo pedagógico, como históricas, culturais, e o professor como agente capaz de voltar-se sobre as próprias práticas e as práticas dos outros, reconfigurando as disposições que constituem o habitus escolar. São essas as “recomendações” que faço como resultado de meu trabalho, no que se refere à atividade pedagógica. Quanto à proposição de novas pesquisas, este trabalho permitiu que eu detectasse certos vácuos, e construiu, ele próprio, outros vácuos que podem se constituir em projetos de pesquisa. Fica em aberto uma análise dos discursos dos alunos, dos professores de salas regulares. Uma análise mais abrangente dos projetos de formação nos municípios, organizados a partir de propostas locais, federais e estaduais também poderia fornecer dados que enriqueceriam este trabalho. Um estudo das concepções de educação presentes nos textos governamentais mais recentes também se faz necessário, assim como um estudo das relações entre universidade e projetos oficiais no campo da educação. Num campo mais propriamente teórico, faz falta um estudo histórico e epistemológico das releituras de Vigotski em terras brasileiras, assim como do distanciamento entre as apropriações de Bakhtin no campo das letras e da lingüística e as apropriações de Vigotski no campo da psicologia e da sociologia da educação. Concluir é tão difícil quanto começar. Mas, lembrando mestre Guimarães Rosa, o real se dispõe para nós não é na chegada nem na partida: é no meio do caminho. Assim, começar e terminar são só pontos 310 de um bordado, os quais desaparecem quando ele é dado por concluído: fica valendo o bordado. Hildete Pereira dos Anjos Salvador, 12 de dezembro de 2006. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4ª ed. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000. AMARAL, Lígia Assumpção. A diferença corporal na literatura: um convite a segundas leituras. In: SILVA, Shirley e VIZIM, Marli (orgs.). 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ANEXO - Normas para transcrição de textos orais OCORRÊNCIAS Incompreensão de palavras ou segmentos Hipótese do que se ouviu Truncamento (havendo homografia,usa-se acento indicativo da tônica e/ou timbre Entonação enfática Prolongamento de vogal e consoante Silabação SINAIS ( ) (hipótese) / MAIÚSCULA ::podendo aumentar para ::: ou mais - Interrogação Qualquer pausa ? ... Comentários descritivos do transcritor ((minúscula)) Comentários que quebram a seqüência temática da exposição; desvio temático Superposição; simultaneidade de vozes -- -- Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em determinado ponto. Não no seu início, por exemplo. Citações literais ou leitura de textos, durante as gravações Ligando as [ linhas (...) “mm” EXEMPLIFICAÇÃO do nível de renda...(...) nível de renda nominal (estou) meio preocupado (com o gravador) fomos/eles foram... porque você vai ter que entenDER fale::i...falei... e questão de res-ponsa-bi-li-da-de e assim... certo? São três motivos...ou três razões... no estado ((nas escolas estaduais))... em Marabá Essa situação- - foi o caso que te contei- -é muito difícil... e pra não ferir a outra pessoa... [ e não...não ferir alguém... quanto mais tempo de... (...) porque lá ninguém me conhece... já chegaram até pra mim a dizer “olha... pelo amor de Deus”... Observações80: Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas. 80 Normas extraídas e adaptadas de PRETI (1997, p.11-12). 326 Fáticos: ah, éh, oh, ahn, ehun, uhn, tá? (não do verbo estar, mas como finalização da frase) Números: por extenso. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa). Não se anota o cadenciamento da frase. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::... (alongamento e pausa). Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto-e-vírgula, ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa. AUTORIZAÇÃO PARA COMUTAÇÃO ANJOS, Hildete Pereira dos. O espelho em cacos: análise dos discursos imbricados na questão da inclusão. 2006. 327 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós Graduação em Educação da Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Autorizo a reprodução [parcial ou total] deste trabalho para fins de comutação bibliográfica. Salvador, 12 de dezembro de 2006 Hildete Pereira dos Anjos 328 Hildete Pereira dos Anjos, baiana de São Gabriel, foi professora de ensino fundamental e médio e supervisora de ensino na educação pública, assim como dirigente sindical, no interior do Pará (município de Xinguara). De 1995 até os dias atuais, é professora de Psicologia da Educação, Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, Psicogênese da Linguagem Oral e Escrita e Fundamentos da Educação Especial no Campus Universitário do Sul e Sudeste, da Universidade Federal do Pará. Pedagoga pela própria UFPA (1992), especializou-se em Supervisão Educacional pela PUC-MG (1995) e fez Mestrado em Psicologia da Educação pela PUC SP (1999), defendendo a dissertação intitulada A professora que trabalha/a criança que trabalha: um diálogo possível, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Laura Puglisi Barbosa Franco. Coordenou o Curso de Pedagogia do Campus Universitário do Sul e Sudeste/UFPa (2001/2003). No doutorado (2006), na FACED/UFBA, dedicou-se a analisar, dentro das concepções da análise de discurso, os discursos governamental, acadêmico e escolar acerca da inclusão, trabalho que resultou na tese O espelho em cacos: análise dos discursos imbricados na questão da inclusão, orientada pela Profa. Dra. Theresinha Guimarães Miranda. Integra o Grupo de Estudos em Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais (GEINEE), da FACED/UFBA, cadastrado no CNPq. Contato: [email protected] ou [email protected]