UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
HILDETE PEREIRA DOS ANJOS
O ESPELHO EM CACOS:
análise dos discursos imbricados na questão da
inclusão
Salvador
2006
HILDETE PEREIRA DOS ANJOS
O ESPELHO EM CACOS:
análise dos discursos imbricados na questão da
inclusão
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção
do grau de doutora em Educação.
Orientadora:
Miranda.
Profa.
Dra.
Theresinha
Guimarães
Trabalho parcialmente financiado pelo CNPq –Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Brasil
Salvador
2006
Biblioteca Anísio Teixeira – Faculdade de Educação/ UFBA
A599
Anjos, Hildete Pereira dos.
O espelho em cacos : análise dos discursos imbricados na questão da
inclusão / Hildete Pereira dos Anjos. – 2006.
327 f.
Orientadora: Profa. Dra. Theresinha Guimarães Miranda.
Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Educação, 2006.
1. Educação especial. 2. Inclusão em educação. 3. Análise do discurso. 4.
Sentido (Filosofia). I. Miranda, Theresinha Guimarães. II. Universidade
Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título
CDD - 371.9 22.ed.
TERMO DE APROVAÇAO
HILDETE PEREIRA DOS ANJOS
O ESPELHO EM CACOS:
análise dos discursos imbricados na questão da
inclusão
Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de doutor em
Educação, Universidade Federal da Bahia,pela seguinte banca
examinadora:
Alessandra Barros_Doutora/UFBA
Bernard Charlot _ Doutor/Paris VIII, França
Miguel Ángel Garcia Bordas _ Doutor/Universidade Complutense, Madrid
Robinson Moreira Tenório _ Doutor/UFBA
Theresinha Guimarães Miranda _Orientadora _Doutora/USP
Salvador, 12 de dezembro de 2006
AGRADECIMENTOS
À banca, especialmente àqueles presentes na qualificação, por ajudar a
situar o meu discurso no campo em que ele se propunha fazer sentido,
fazendo a critica cuidadosa e necessária.
Aos professores, por possibilitar discussões coletivas sobre os projetos de
pesquisa e intervenções fundamentais nos trabalhos uns dos outros, que
trouxeram maior clareza sobre o que cada um se propunha
Aos colegas do doutorado que se dispuseram, nos momentos iniciais do
curso, a ler com seriedade este projeto, apontar vácuos, sugerir leituras,
ajudar a palavra a tomar forma.
A Miguel, Mariângela e Novoa, interlocutores amorosos sempre.
A Verônica, Iara, Danilo, Suzana, José Antonio, Diana, Desirée, Bob,
Thereza, Eliane, Nelma, Theresinha e a todo o Grupo de Estudos em
Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais - GEINEE), sem
o qual a gestação deste trabalho teria sido muito mais doloroso.
Ao Campus Universitário do Sul e Sudeste da Universidade Federal do
Pará, que me propiciou a oportunidade de formação superior, desde a
graduação até este momento de doutorado.
À comunidade escolar de Marabá, Pará, especialmente à equipe do CAP
(Centro de Apoio Pedagógico) da Escola Municipal Jônathas Athias Pereira,
cuja boa-vontade em participar do trabalho empírico e disposição para
debater as temáticas da inclusão me permitiu um intenso aprendizado.
A minha mãe, Delza Rocha (in memoriam), cuja
coragem e gosto pelo aprender me abriram os
caminhos da vida;
A meus filhos Thayná, Mariana e Jairo, cúmplices
nesse gosto pelo duvidar e pelo aprender;
A minha neta, Lívia, pequeno-grande desafio;
A Carlos Henrique Lopes de Sousa (in memoriam)
companheiro, professor, patrono das ousadias de nós
todos;
Aos estudantes e professores de hoje e de sempre do
Campus do Sul e Sudeste do Pará, cujo intenso
desejo de contribuir para a transformação da
sociedade e da educação força todos os dias meus
limites de professora e pesquisadora.
Não
não tenho o sol escondido,
no meu bolso de palavras...
(Thiago de Melo)
RESUMO
ANJOS, Hildete Pereira dos. O espelho em cacos: análise dos discursos imbricados na
questão da inclusão. Tese de doutorado. Faculdade de Educação/Universidade Federal da
Bahia. Salvador, BA, 2006.
Este trabalho se organizou em torno das seguintes questões: Como se configuram
os modos de funcionamento dos discursos governamental, escolar e acadêmico no campo da
inclusão? Que efeitos de sentido podem ser produzidos, em reconhecimento, a partir das
relações entre esses modos de funcionamento? Para chegar à noção de práticas discursivas, o
trabalho partiu da concepção vigotskiana de mediação pelo signo, relacionada com a idéia de
mediação pelo habitus em Bourdieu: a mediação semiótica entendida como inserida em um
habitus. O conceito vigotskiano de internalização foi articulado com a idéia de que as pessoas
internalizam modos de operar em suas praticas sociais, de que essas práticas se constituem
(também) ideologicamente, especialmente pelo fato de que a prática discursiva permeia todas
as demais práticas. Dessa forma, analisou-se os enfeixamentos discursivos dos discursos
governamental, acadêmico e escolar (com base nas propostas metodológicas de análise de
discurso de Orlandi e Verón, complementadas pela análise conversacional no caso do discurso
escolar), fazendo emergir as vozes em debate no interior dessas práticas, e fazendo dialogar os
textos produzidos a partir delas. Foram analisados três conjuntos de textos: a coleção “Saberes
e práticas da inclusão”, como texto oficial que subsidia a formação de professores para a
criação de escolas inclusivas, recortes de textos acadêmicos que se organizam em torno da
definição de inclusão, apresentados em congressos relacionados com a área e quatro sessões
de entrevistas realizadas com professores que atuam na interface entre educação especial e
comum, no município de Marabá, Pará; o texto produzido a partir da análise interna de cada
conjunto de textos e das relações estabelecidas entre eles, ainda que se situando no pólo de
reconhecimento dos discursos, não deixou de remeter ao de produção na medida em que
evidenciou formações discursivas próprias de um determinado habitus, de uma determinada
configuração ideológica. A pesquisa indicou que as formações discursivas dominantes se
organizam em torno de certos elementos: flutuações do lugar do professor nos discursos,
oscilando entre um lugar de passividade, militante da inclusão e de agente da cidadania; cisão
desse lugar do professor em dois, polarizando professores da educação especial/inclusiva com
professores da educação comum; flutuações do lugar do governo, o qual desliza entre
autoridade opressora, provedor, educador, ajudante; disfarces e ocultamentos das relações de
poder e das hierarquias funcionais; e ênfase na formação técnica especifica das necessidades
educacionais especiais. Num processo de enfrentamento e complementaridade com essas
formações, outras que se configuraram como recessivas entretecem as noções de
transformação social, de participação no poder e construção de uma sociedade nãoexcludente, deslocando da escola as tarefas da inclusão, subordinando-as a um projeto de
transformação social e/ou denunciando certos aspectos da inclusão como reprodutores do
status quo. No entanto, nos dois tipos de formação discursiva, se entrecruzaram a
subordinação do fazer ao pensar, da prática ao discurso, os saberes sendo dados como
estabelecidos e a prática como passível de transformação a partir deles, elementos
interpretados como reforçadores das formações discursivas dominantes e debilitadores das
formações recessivas.
Palavras-chave: inclusão; educação especial; análise de discurso; sentido
ABSTRACT
ANJOS, Hildete Pereira dos. The mirror rubbish: analysis of the overlapping discourses
on inclusion question. Doctoral thesis. Faculdade de Educação/Universidade Federal da
Bahia. Salvador, BA, 2006.
The work is organized around the following questions: How are configured the
functioning manners of governmental, educational and academic discourses in inclusion area?
What effects of sense may be produced and recognized from the relations among these
functioning manners? To reach the discursive practice notion, the work starts from Vygotsky
conception of mediation by the sign related to the Bourdieu idea of mediation by the habitus:
the semiotical mediation understood as insert in one habitus. The Vygotsky’s concept of
internalization was articulated with the idea that people make internal work manners in their
social practices and that these practices are (also) ideological specially because the discursive
practices permeate all the other ones. That way, it analyzes the discursive bundling up of
governmental, academic and educational discourses (using the Orlandi and Verón
methodological proposals of discourse analysis, complemented by the conversation analysis
for the educational discourse) to make arise the voices in contest into these practices, and
dialogize the texts produced from them. There were analyzed three kits of texts: the collection
“Knowledges and Practices of Inclusion” as the standard text for the teachers formation for
the inclusive schools foundation; clipping of academic texts organized around the inclusion
definition, presented in congress in the area, and four interview sessions with teachers that act
in the interface among common and special education in the Marabá municipality, Pará state,
Brazil. The text produced from the internal analyzes of the text kits and the relations between
them, even though placed in the discourse recognition polo, also remits to the production polo
since it evidenced discursive formations pertaining to a determinate habitus, to a determinate
ideological configuration. The search showed that the dominant discursive formations are
organized around certain elements: the fluctuation of teacher place in the discourse from the
passivity to the inclusion militant and citizen agent; the scission of this teacher place in two,
one of the special/inclusive education teachers and other of common education teachers; the
fluctuation of government place between the oppressing, purveyor, educational or assistant
authority; the disguise and occultation of power relations and hierarchy; and the emphasis in
specific technical formation of special education necessities. In a process of face and
complement these formations there were other recessive ones with the notion of social
transformation, power participation and the construction of a no-excludent society with
displace the inclusion work from the school for the society subordinate to a social
transformation project and also with the denunciation of certain inclusion aspects as status
quo reproducing. However, there are the intercrossing of making submit to thinking, practice
submit to discourse, the knowledge regarded as established and the transformation of practice
as possible from them, the elements seen as reinforcement for the dominant discursive
formation and debilitating for recessive formations.
Descriptors: inclusion; special education; discourse analysis; sense.
RESÚMEN
ANJOS, Hildete Pereira dos. Los pedazos del espejo: análisis de los discursos imbricados en la
cuestión de la inclusión. Tesis doctoral. Faculdade de Educação/Universidade Federal da Bahia.
Salvador, BA, 2006.
Este trabajo se organizó acerca de las siguientes cuestiones: ¿Como se configuran los
modos de funcionamiento de los discursos gubernamental, escolar y académico en el campo de la
inclusión? ¿Que efectos de sentido pueden ser producidos, en reconocimiento, a partir de las
relaciones entre esos modos de funcionamiento? Para llegar a la noción de prácticas discursivas, el
trabajo partió de la concepción vigotskiana de mediación por el signo, relacionada con la idea de
mediación por el habitus en Bourdieu: la mediación semiótica entendida como inserida en un habitus.
El concepto vigotskiano de internalización fue articulado con la idea de que las personas se apropian
de modos de operar en sus practicas socias, de que esas prácticas si constituyen (también)
ideológicamente, especialmente por el hecho de que la práctica discursiva atraviesa todas las demás
prácticas. De esa forma, se analizó los agrupamientos discursivos en los discursos gubernamental,
académico y escolar (con base en las propuestas metodológicas de análisis de discurso de Orlandi y
Verón, complementadas por la análisis conversacional en el caso del discurso escolar), haciendo
emerger las voces en debate en el interior de las prácticas, y haciendo dialogar los textos producidos a
partir de ellas. Fueran analizados tres conjuntos de textos: la colección “Conocimientos y prácticas de
la inclusión”, como texto oficial que subsidia la formación de maestros para la creación de escuelas
inclusivas, recortes de textos académicos que se organizan en torno a la definición de inclusión,
presentados en congresos relacionados con la área y cuatro sesiones de entrevistas realizadas con
maestros que actúan en la interfase entre educación especial y común, en la municipalidad de Marabá,
Pará, Brasil; el texto producido a partir de la análisis interna de cada conjunto de textos y de las
relaciones establecidas entre ellos, aun que si situando en el polo de reconocimiento de los discursos,
no dejó de remeter a lo de producción en la medida en que evidenció formaciones discursivas propias
de un determinado habitus, de una determinada configuración ideológica. A pesquisa indicó que las
formaciones discursivas dominantes si organizan en torno de ciertos elementos: fluctuaciones del lugar
del maestro en los discursos, oscilando entre un lugar de pasividad, militante de la inclusión y de
agente de la ciudadanía; cisión del lugar del maestro en dos, polarizando los maestros de la educación
especial/inclusiva con los de la educación común; fluctuaciones del lugar del gobierno, lo cual desliza
entre autoridad opresora, proveedor, educador, ayudante; disfraces y ocultamientos de las relaciones
de poder y de las jerarquías funcionales; destaque para la formación técnica especifica de las
necesidades educacionales especiales. En un proceso de enfrentamiento y complementariedad con esas
formaciones, otras que se configuraran como recesivas articulan las nociones de transformación social,
de participación en el poder y construcción de una sociedad non-excluyente, dislocando de la escuela
as tareas de la inclusión, subordinándolas a un proyecto de transformación social e/o denunciando
ciertos aspectos de la inclusión como reproductores del status quo. Sin embargo, en los dos tipos de
formación discursiva, se entrecruzarán la subordinación del hacer al pensar, de la práctica al discurso,
los conocimientos siendo dados como establecidos y la práctica como pasible de transformación a
partir de ellos, elementos interpretados como reforzadores de las formaciones discursivas dominantes
y debilitadores de las formaciones recesivas.
Palabras llave: inclusión; educación especial; análisis de discurso; sentido
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO..............................................................................12
2.
A CONSTRUÇÃO DE UMA ESCOLA PARA UM MUNDO EM
TRANSFORMAÇÃO .......................................................................22
2.1. UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO? .............................................................
2.2. EDUCAR PARA A DIVERSIDADE: DESNATURALIZAÇÃO DE UM CONCEITO .........
2.3. UMA ESCOLA PARA TODOS/UMA ESCOLA PARA POUCOS................................
2.4. O ESPECIAL NA EDUCAÇÃO: UM RECORTE DA ESCOLA PARA TODOS ...............
23
28
38
43
3. MEDIAÇÃO SEMIÓTICA, HABITUS E PRÁTICA DISCURSIVA ...............55
3.1. VIGOTSKI COMO PONTO DE PARTIDA PARA UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS .... 56
3.2. A MEDIAÇÃO SEMIÓTICA COMO DIMENSÃO DA MEDIAÇÃO PELO TRABALHO .... 60
3.3. MEDIAÇÃO PELO HABITUS: POTENCIALIDADES DE UM OPERADOR ................. 71
3.4. INTERNALIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADE MEDIADA PELO
HABITUS ....................................................................................................... 82
3.4.1. Internalização: a apropriação de modos discursivos de operar .................... 83
3.4.2. Articulando internalização, habitus e subjetividade .................................... 86
3.5. O DISCURSO: DA MEDIAÇÃO SEMIÓTICA À NOÇÃO DE PRÁTICA DISCURSIVA .. 91
3.6. AS PRÁTICAS DISCURSIVAS E SEUS MODOS DE OPERAR ............................... 98
3.6.1. Conceito como operador ou como representação de uma realidade............. 107
3.6.2. O esquecimento/desvelamento das condições de produção e dos modos de
operar da prática discursiva ............................................................................109
4. A PRÁTICA DISCURSIVA COMO FERRAMENTA E PRODUTO: UM
EXERCICIO DE CONSTRUÇÃO DE DISPOSITIVOS DE TRABALHO ..... 113
4.1. APLICAÇÃO DO DISPOSITIVO DE ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO AO DISCURSO
GOVERNAMENTAL.......................................................................................... 121
4.2. ANÁLISE CONVERSACIONAL E ANÁLISE DE DISCURSO: CRIANDO UM DIÁLOGO
METODOLÓGICO ...........................................................................................125
4.3. O DISCURSO ACADÊMICO: ANALISANDO UM CORPUS FRAGMENTADO........... 132
5.
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES PARA A ESCOLA
INCLUSIVA: UMA MANIFESTAÇÃO DO DISCURSO OFICIAL ............. 135
5.1. OS DISFARCES E OCULTAMENTOS DAS RELAÇÕES DE PODER ....................... 135
5.2. A SUBORDINAÇÃO DO FAZER AO PENSAR...................................................146
5.3. A PROPOSTA DE INCLUSÃO COMO BUSCA DE RUPTURA ............................... 152
5.4. O LUGAR DO PROFESSOR NOS ENUNCIADOS OFICIAIS ................................163
5.5. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO GOVERNAMENTAL: TEMÁTICAS E
MODOS DE OPERAR ....................................................................................... 175
6. A INCLUSÃO NO DISCURSO ESCOLAR: CONVERSAS NA INTERFACE
ENTRE EDUCAÇÃO COMUM E ESPECIAL ....................................... 180
6.1. A APRENDIZAGEM, A PRÁTICA E O OUTRO .................................................182
6.2. O OSCILAR DOS SENTIDOS DO OUTRO-GOVERNO .......................................188
6.3. O LUGAR DO PROFESSOR DO ATENDIMENTO ESPECIALIZADO: A MILITÂNCIA . 201
6.4. O PROFESSOR QUE FAZ INCLUSÃO E OS “OUTROS PROFESSORES”................ 209
6.5. O LUGAR DO ALUNO DITO “INCLUSO” ........................................................231
6.6. FORMAÇÃO SUPERIOR E FORMAÇÃO EM SERVIÇO .......................................242
6.7. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO ESCOLAR: TEMÁTICAS E MODOS DE
OPERAR........................................................................................................ 249
7. A INCLUSÃO NO DISCURSO ACADÊMICO DO CAMPO DA EDUCAÇÃO
ESPECIAL ................................................................................. 254
7.1. INCLUSÃO COMO OPERADOR QUE INDICA MOVIMENTO E SUA CAPACIDADE DE
DESLIZAMENTO ............................................................................................ 255
7.2. NUANCES DO FAZER INCLUSIVO: OS LIMITES DA INCLUSÃO NOS MUROS DA
ESCOLA........................................................................................................ 263
7.3. A INCLUSÃO EM SUA DIMENSÃO DISCURSIVA: DA AUTONOMIA DO DISCURSO À
PRÁTICA DISCURSIVA .................................................................................... 273
7.4. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO ACADÊMICO: TEMÁTICAS E MODOS
DE OPERAR. ..................................................................................................278
8.
INTERDISCURSIVIDADE E HABITUS: AS IMBRICAÇÕES DOS
DISCURSOS NO CAMPO DA INCLUSÃO.........................................289
8.1. O “LUGAR” DE CADA ENUNCIADOR NO DISCURSO DO OUTRO ....................... 291
8.2. A PRÁTICA COMO UMA INSTÂNCIA (SUBORDINADA) DO REAL ....................... 295
8.3. CRENÇAS POSTAS EM AÇÃO NOS DISCURSOS............................................. 297
8.4. INTERDISCURSIVIDADE: FORMAÇÕES DISCURSIVAS DOMINANTES
E
RECESSIVAS ................................................................................................. 301
8.5.A INCLUSÃO, A PRÁTICA DISCURSIVA NA ESCOLA E OS CACOS DO ESPELHO ... 303
REFERÊNCIAS ...............................................................................311
ANEXO - Normas para transcrição de textos orais ............................325
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho de pesquisa tem em suas origens um incômodo
antigo, gerado pela minha1 vivência de professora e militante da educação
pública. A escola pública, meu espaço de trabalho, militância e pesquisa,
foi nos últimos tempos arena dos mais diversos conflitos envolvendo a
aplicação
de
projetos
inovadores,
projetos-piloto
e
experiências
semelhantes. A cada nova proposta e a cada novo fracasso, parece se
confirmar que a escola é que é impermeável a mudanças, o professor é
que não quer mudar, etc., etc. Aplica-se o pensamento mais avançado,
mais progressista,
mais isso
e
mais aquilo
e
a escola está lá,
aparentemente último reduto do atraso. Por seu lado, os governos,
entidades, intelectuais não se cansam de elaborar e divulgar novos
conceitos, forjar novas propostas, todas elas aparentemente ancoradas
nas necessidades reais da educação, a maior parte delas sensata e
interessante. Esse fosso entre a rica produção acadêmica nacional em
educação e o fazer educativo propriamente dito me incomoda, me
incomodou sempre, a mim que estive a maior parte da vida dentro da
escola
pública
de
ensino
fundamental
(como
professora
e
como
sindicalista) e os últimos dez anos na universidade pública, como
professora e pesquisadora do campo da educação.
Boaventura
de
Sousa
Santos
(2005)
afirmava2
que
essa
distância entre prática pedagógica na educação básica e a produção
científica do saber pedagógico faz com que a universidade perca
legitimidade social:
1
Escrevo este trabalho na primeira pessoa do singular por que creio que este é o discurso possível de ser
elaborado, neste momento, por um individuo que é social em sua definição. Portanto, é perpassado por vários
discursos, mas a forma como se entrecruzam, mudam de rumo, se confrontam, entram em relações de
subordinação, é única: depende das regras de formação discursiva, mas tais regras também estão vinculadas às
escolhas que eu faço, entre um leque culturalmente (portanto ideologicamente) limitado.
2
Em debate sobre a reforma universitária brasileira (05/04/2004), depois publicado (2005).
13
Ao tratar o tema do acesso referi a necessidade de vincular a
universidade à educação básica e secundária. Esta vinculação
merece um tratamento separado por se me afigurar ser uma área
fundamental na reconquista da legitimidade da universidade. É
uma área muito vasta pelo que neste texto me concentro num
tema específico: o saber pedagógico. Este tema abrange três subtemas: produção e difusão de saber pedagógico; pesquisa
educacional; e formação dos docentes da escola pública. É um
tema de importância crescente, avidamente cobiçado pelo
mercado educacional, onde a universidade já teve uma
intervenção hegemónica que entretanto perdeu. Este facto é hoje
responsável pelo afastamento da universidade em relação à escola
pública – a separação entre o mundo académico e o mundo da
escola – um afastamento que, a manter-se, minará qualquer
esforço sério no sentido de relegitimar socialmente a universidade.
(SANTOS, 2005, p.81)
Essa
afirmação
está
no
contexto
da
discussão
sobre
a
reconquista da legitimidade da universidade pública, um dos princípios
orientadores, na visão de Santos, de uma “reforma criativa, democrática e
emancipatória” dessa universidade.
Se
a
universidade
perde
legitimidade
(ou
não
consegue
relegitimar-se) ao não alcançar responder às demandas da escola pública,
a escola pública se perde na impossibilidade de pensar sozinha as próprias
práticas, mas também de reformulá-las baseada num pensar elaborado
fora dela, assim como na dificuldade de lutar contra o preconceito e a
desvalorização, e isso se torna um círculo vicioso.
Decorrente desse incômodo, um outro tornou-se também
importante no processo de forjar o problema da pesquisa: o discurso
oficial não parece se angustiar com tal fosso, e mesmo os vários discursos
acadêmicos apresentam pouca condição de superá-lo, preocupando-se
mais com a coerência interna de suas teorias do que com as nuances e
paradoxos que apresenta a prática educativa. Tenho a dolorosa sensação
de que o pouco glamour da escola de verdade afasta a nós, acadêmicos, e
gastamos parte significativa de nosso tempo e de nossa energia
inventando uma escola a nosso gosto e propondo-a à escola realmente
existente. Os gestores adotam, uns mais a sério, outros menos, nossas
invenções, e quando vão dar o remédio milagroso ao menino doente, ele
geralmente o cospe. A pergunta que isso suscita é: porque a escola rejeita
14
tais projetos? Mera teimosia, puro atraso, má formação dos professores?
Tenho cá minhas dúvidas. Mais ainda: estou certa de que certos
“anticorpos” vão sendo fortalecidos no embate entre projetos impostos e
prática
pedagógica
recalcitrante,
de
forma
que,
a
cada
inovação
educacional, a escola resiste mais eficientemente.
Disso vem minha descrença nos projetos a curto prazo de
transformação da educação, mesmo aqueles cujos princípios compartilho.
Existe qualquer coisa anterior a isso, ou que permeia tudo isso, que não
está bem clara. Suspeito que a educação de que estamos falando não seja
a mesma de que falam os pais de alunos e a escola pública. Suspeito que
falamos demais e ouvimos, olhamos, sentimos de menos. Suspeito que
não se construiu, nas relações entre escola, governo e universidade um
espaço comunicativo/comunicante que permita a vivência de projetos
possíveis, em que o conflito, a crise, as contradições sejam fatores de
crescimento, em que não se negue e recuse a vida escolar concreta, no
afã de propor o novo.
Todos esses são incômodos gerais com relação à questão, mas
são eles que dão o contorno à lacuna que decidi explorar. De todas as
propostas de mudança já implementados na educação das regiões sul e
sudeste do Pará (e foram muitas), de longe a mais polêmica é a de
inclusão nas escolas públicas dos alunos com necessidades educativas
especiais. Ela aguça todos os questionamentos já feitos em relação à
possibilidade de se educar, aos modelos educacionais, à formação dos
profissionais da educação, ao financiamento, ao papel social do educador,
à relação sociedade/escola, entre outros.
É por isso que, passados os primeiros cinco anos da implantação
da experiência de inclusão das crianças com necessidades especiais nas
escolas públicas do município em que atuo (Marabá, Pará), como
pesquisadora e professora universitária, me propus a acompanhar e
analisar o discurso provocado por/nessa
situação (e provocador dela).
Desejei acompanhar as caretas do menino no próprio esforço/resistência
15
de
beber
o
remédio,
e
apresento
aqui
os
resultados
desse
acompanhamento, dentro dos limites criados pelas condições concretas da
pesquisa, que incluem os meus limites como pesquisadora.
A elaboração do problema, de inicio, ganhou a seguinte
formulação: “como os profissionais da educação e alunos significam a
presença da diferença em seu cotidiano escolar, explicitada pela inclusão
das referidas crianças nas salas de aula comuns?”. Esse modo de formular
remeteu a leituras e discussões, tanto no que se refere às teorias
subjacentes quanto aos limites do recorte que ele pressupunha. Ao
elaborar
o
problema
considerava
que,
com
nos
base na
discursos
questão
produzidos
da
em
significação,
suas
eu
interações
e
produtores delas, profissionais da educação e alunos evidenciassem sua
compreensão do processo de inclusão, sua forma de vivenciar os conflitos
produzidos nesse processo, seus sentimentos e crenças com relação a ele.
Ou seja, eu situava no sujeito falante a produção e a origem do discurso,
e
imaginava
poder
me
ancorar
no
pensamento
vigotskiano
para
desenvolver tal proposta.
No
decorrer
do
doutorado,
e
especialmente
depois
da
qualificação, as leituras e discussões me fizeram perceber que, em
Vigotski3, o discurso não tem origem no sujeito, embora tome forma
concreta em sua prática discursiva: os discursos se constituem no
diálogo/debate
com
outros
discursos,
cultural
e
historicamente
produzidos.
Os estudos no campo da análise de discurso trouxeram mais
clareza a essa questão: não me interessava o discurso que eu pudesse
encontrar na escola em si e por si, mas em suas relações com outros
discursos: os discursos da universidade e do governo. A idéia de que a
produção discursiva é um debate, um diálogo, ainda quando realizada
solitariamente, ajudou a compreender a questão da intersubjetividade em
Optei por grafar o nome Vigotski, seguindo o critério fonético proposto por Blanck na introdução de Psicologia
Pedagógica (VIGOTSKI, 2003, p.27). Em citações e nas referências, foram respeitadas as formas como o autor
citado grafou o nome (as edições inglesas e americanas trazem a grafia “Vygotsky”).
3
16
Vigotski e me fez perceber que havia uma outra tese a ser defendida,
previa à minha: a de que é possível traçar uma linha que vai da noção de
mediação
pela
linguagem
em
Vigotski
à
análise
de
discurso
contemporânea (à de linha francesa, mais especificamente).
Isso me colocou diante de um problema para o qual eu via três
saídas: adiar meu projeto de pesquisa e desenvolver um outro, buscando
realizar essa discussão das relações entre Vigotski e a análise de discurso;
deixar Vigotski de lado e simplesmente analisar os discursos com os
instrumentais propostos pela análise de discurso, de resto suficientemente
ricos; fazer as duas coisas, de forma imbricada, assumindo os riscos de
não conseguir aprofundar o suficiente nenhuma das duas. Foi a última
opção
a
que
assumi,
considerando
que
o fantasma
da
primeira
assombraria todo o meu trabalho, se optasse pela segunda e que a
necessidade
e
contemporaneidade
da
segunda
criaria
tensões
insuportáveis para a realização da primeira.
Desse modo, a formulação do problema sofreu um processo de
amadurecimento
no
trajeto,
e
nesse
amadurecer
se
modificou
profundamente. Passei a lidar com a idéia de significação, entendendo-a
não como expressão e representação do real, mas como expressão de um
modo de funcionamento (ORLANDI, 2005) das práticas discursivas, o
qual estabelece relações entre escolhas temáticas e modos de operar
(VERÓN, 1980, 2004). Sendo o discurso produção humana, tais modos de
funcionamento se relacionam com suas condições de produção e de
reconhecimento. A questão da diferença também perdeu ênfase, nesse
processo, já que impunha de entrada uma escolha temática aos discursos,
e eu desejava ver que efeitos de sentido produziam as escolhas temáticas
que apareciam nos discursos. O problema de pesquisa tomou então tomou
a
seguinte
forma
final:
Como
se
configuram
os
modos
de
funcionamento dos discursos governamental, escolar e acadêmico
no campo da inclusão? Que efeitos de sentido podem ser
17
produzidos, em reconhecimento, a partir das relações entre esses
modos de funcionamento?
Considerando
que
tais
modos
de
funcionamento
não
se
configuram em torno de características intrínsecas do discurso, mas de
questões como o lugar do falante, sua posição em seu campo de atuação
e a posição desse campo de atuação dentro das relações
de poder
(BOURDIEU,1994) incorporei ao trabalho o conceito de habitus, para
poder analisar as tendências dominantes e recessivas, relacionadas às
coerções a que o discurso é submetido nas configurações discursivas
elaboradas,
atravessadas
pelo
ideológico.
Considerei
que
forças
coercitivas configuram os discursos interna e externamente, assim como
as reações a essas forças (ou forças de resistência): isso define os
discursos e as relações interdiscursivas como arenas de disputa. Portanto,
não está dada, pela mera existência das forças de coerção, a reprodução
social: os indivíduos e grupos também se utilizam de estratégias
discursivas para administrar e minar as coerções.
No processo de operacionalização da pesquisa, a delimitação de
um corpus para análise exigiu um recorte de cada tipo de discurso,
considerando que o discurso é inesgotável (ORLANDI, 2005, p.62) e não
pode ser apreendido em sua totalidade, mas apenas em sua expressão
concreta: neste caso especifico, a fala e o texto. Recorri então à noção de
gênero do discurso em Bakhtin (2003)4 para realizar esse recorte: no
discurso governamental, optei por analisar os textos fornecidos como
subsídios para a formação do professor inclusivo, na coleção Saberes da
inclusão (BRASIL, 2005), tomando-o como um manual, um documento de
tipo prescritivo; no discurso escolar, preferi analisar as falas produzidas
em entrevista/conversação com professores que atuam como formadores
4
“Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos), nos quais
devemos incluir as breves réplicas do diálogo do cotidiano, [...} o relato do dia-a-dia, a carta (em todas as suas
diversas formas) o comando militar lacônico padronizado, a ordem desdobrada e detalhada, o repertório bastante
vário (padronizado na maioria dos casos) dos documentos oficiais e o diversificado universo das manifestações
publicísticas (no amplo sentido do termo: sociais, políticas); mas aí também devemos incluir as variadas formas
das manifestações científicas e todos os gêneros literários (do provérbio ao romance de muitos volumes)”
(BAKHTIN, 2003, p262; grifos meus).
18
na inclusão, atuando numa espécie de interface entre a educação especial
e a comum, por sua relação privilegiada com o debate e a prática da
inclusão; do discurso acadêmico, dentro do gênero “artigo de divulgação
científica”, recortei as definições referentes a inclusão escolar (e suas
derivações: movimento inclusivo, escola inclusiva, ensino inclusivo,
prática inclusiva e discurso inclusivo) publicadas em textos apresentados
em congressos da área.
O objeto sobre o qual me debrucei, portanto, são as relações
entre os discursos dos professores, governo e universidade,
discursos que são produzidos no campo de sentidos denominado inclusão
e participam da constituição de tal campus , e que se concretizam nos
textos e falas referidos. Tais relações não “estão” nos textos (embora
estejam lá os traços delas) mas se produzem “em reconhecimento”
(VERÓN,1980), ou seja, foi na produção de um outro texto (esta tese),
que pretende fazer uma leitura daqueles traços, que tais relações
ganharam uma forma (entre as muitas que poderiam ter adquirido). Como
objetivo
geral
do
trabalho,
então,
busquei
analisar
o
modo
de
funcionamento dos discursos escolar, acadêmico e governamental sobre o
campo de sentidos denominado inclusão, considerando relações possíveis
entre os efeitos de sentido investidos em tais discursos.
Delimitado o corpus, tornou-se necessária a construção de
dispositivos de análise que pudessem ajudar a responder às questões
colocadas. Do estudo de Vigotski eu trazia o desejo de utilizar um método
que entendesse a análise como “aplicação do
método empregado e
avaliação do significado dos fenômenos obtidos” (VIGOTSKI, 1996, p.
375),
e não como redução de algo dado como realidade a seus
componentes básicos; que percebesse transitividade entre as polarizações
encontradas, ao invés de oposições insolúveis; que entendesse as
“totalidades”
vivas
(homem,
mundo,
sociedade,
história)
como
19
provisórias, abertas e entrelaçadas, tratando-as como configurações5 ao
invés de coisas. Tomando esses pressupostos como princípios gerais,
incorporei as contribuições de Orlandi (2005) e Verón (1980, 2004).
Seguindo este último, postulei operações discursivas, partindo de marcas
no texto e relacionei tais operações com as escolhas temáticas de que
tratavam; seguindo Orlandi, busquei elaborar, baseada nessas marcas, o
não-dito, o dito de outro modo, o dito nas entrelinhas. Nos dois autores, o
intento metodológico é o
de lidar com o duplo esquecimento que fala
Pêcheux: o esquecimento ideológico, que faz esquecer as condições
sociais de produção dos discursos e
imaginar que ele tem origem no
sujeito, e o esquecimento enunciativo, que cria a impressão de que o que
é dito só poderia ser dito daquela maneira (ORLANDI, op.cit., p.35).
Para a análise das falas dos professores considerei importante
lidar também com as marcas conversacionais, considerando que tais
marcas refletem a produção do discurso no que se refere às negociações
com o interlocutor e com toda a situação de diálogo; e mesmo levando em
conta os desencontros entre essa linha metodológica e as demais,
incorporei
uma
quarta
contribuição,
a
análise
conversacional
(MARCUSCHI, 2005; PRETI, 1997). Dessa forma, as marcas do processo
conversacional não são analisadas apenas em si e em suas relações
internas, mas também em suas relações no interior das redes discursivas
nas quais adquirem sentido.
A tese foi estruturada em oito capítulos, dos quais o segundo
(“A construção de uma escola para um mundo em transformação) traz um
rápido
esboço
das
exigências
que
se
faz
à
escola
no
mundo
contemporâneo, relacionando essas exigências com a questão da escola
para todos, da diversidade e da educação especial. O terceiro capítulo
(“Mediação semiótica, habitus e prática discursiva”) traça uma linha entre
a noção vigotskiana de mediação semiótica e a noção de prática discursiva
5
A noção de configuração, aqui, se aproxima daquela da Gestalt, “conjunto organizado de dados perceptivos,
apreendido como tal graças ao seu contorno ou traços essenciais” ou, “de maneira geral, conjunto organizado
que se impõe como tal por ocasião da apreensão dos dados, ainda que não perceptivos”(DORON e PAROT,
1998, p. 170).
20
na chamada linha francesa de análise de discurso, tentando incorporar
também o conceito de habitus. O dispositivo teórico reconstruído a partir
das relações entre esses conceitos dá suporte ao dispositivo analítico,
explicitado no quarto capitulo, “A prática discursiva como ferramenta e
produto: um exercício de construção de dispositivos de trabalho”.
Os capítulos seguintes tratam da análise propriamente dita: o
capítulo cinco analisa o discurso oficial, mostrando as relações entre os
efeitos de sentido criados pelo modo como são entretecidas temáticas e
modos
de
operar;
o
capítulo
seis
faz
o
mesmo
com
as
entrevistas/conversações extraídas do discurso escolar, incorporando
também o modo como tais conversações se organizam internamente e o
capítulo sete mostra os enfeixamentos produzidos no estudo das
definições de inclusão que o discurso acadêmico do campo da educação
especial assume. Em cada um dos capítulos, os enfeixamentos realizados
são configurados em formações discursivas.
O
oitavo
enfeixamentos
capítulo
produzidos
foi
ao
dedicado
longo
da
a
relacionar
análise,
os
diversos
evidenciando
as
imbricações entre temáticas e modos de operar não mais dentro de cada
discurso, mas na interdiscursividade que se estabelece entre eles. É o
capitulo que busca fechar, para os limites desta tese, a resposta (já
esboçada nos capítulos anteriores) à questão que moveu o trabalho,
mostrando como os modos de funcionamentos dos três gêneros de
discurso e articulam, se complementam e se enfrentam.
Por fim, um comentário acerca do título; o “espelho em cacos”
me parecia ser uma metáfora adequada para o meu trabalho de juntar
marcas, pedaços, cacos do que é dito aqui, ali e acolá, tentando achar
nesses cacos pontos de conexão com os outros. Só depois li o comentário
de GREGOLIN (2004, p.172-173) sobre a metáfora do espelho em
Pêcheux: decepcionado com a política do PCF e com a prática da análise
de discursos feita até o final dos anos 70, Pêcheux
chama de um
“estranho espelho” o reflexo entre o fazer ciência (tomando como objeto
21
a política) e o fazer política; afirma que “é chegado o tempo de começar a
partir os espelhos”. Não sei como me ocorreu essa metáfora antes de ter
lido Pêcheux e Gregolin, mas creio que é chegado o tempo de recolher os
cacos do espelho... Não necessariamente para fazer análise do discurso a
serviço desta ou daquela política (ainda que eu não descarte essa
possibilidade), mas para, compreendendo que pensar, dizer e fazer são
processos interconstituintes, entendê-los como atividade transformadora
e portanto, política.
2. A CONSTRUÇÃO
TRANSFORMAÇÃO
DE UMA
ESCOLA
PARA
UM
MUNDO
EM
Um trabalho de investigação que pretenda estudar os discursos
constituídos pela/constituintes da questão da inclusão precisa referir-se às
transformações sociais que, no final do século passado, possibilitaram a
elaboração
desse
conceito.
Neste
trabalho, ainda
que
não
tenha
conseguido aprofundar muito tais questões, levanto alguns pontos que
considero essenciais para a discussão da inclusão, relacionando-os com as
premências que foram sendo construídas no sentido tanto da “escola para
todos”
quanto
do
“educar
para a
diversidade”. Essas premências
ganharam ênfase no campo da educação denominado educação especial,
campo que se constituiu nas lutas por educação para os alunos
considerados com deficiência, mais tarde chamados de alunos com
necessidades educacionais especiais.
Dessa forma, este primeiro capítulo procura esboçar o contexto
no qual a discussão da inclusão ganha sentido, no qual as
chamadas
práticas inclusivas se inserem como interconstituintes dessa discussão.
Dividi o texto em quatro partes: na primeira, destaco aspectos das
transformações do mundo recente que se relacionam com a idéia de
inclusão, na segunda recupero aspectos do debate acerca da noção de
diversidade; na quarta, levanto questões que as exigências sociais de uma
escola para todos tornaram relevantes e, na última, entendendo as lutas
pela inserção e participação efetiva dos alunos com necessidades
educacionais especiais na escola como recorte dessas lutas por educação
para todos, faço um breve relato histórico da educação especial e dos
principais enfrentamentos dentro desse campo.
23
2.1. UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO?
Para começar a discutir a questão da inclusão escolar, é
interessante revisitar rapidamente algumas leituras das mudanças no final
do século XX que tornaram tal conceituação possível e, mais do que isso,
reconhecida e autorizada como representativa de certas dimensões do
real.
Dessas
mudanças,
especificamente:
a
quero
questão
do
chamar
a
atenção
enfraquecimento
do
para
Estado
duas,
e
da
reorganização das relações entre capital e trabalho.
Hobsbawn chamava a atenção, no final de seu livro “Era dos
extremos: o breve século XX” (1995), para uma das características do
panorama político global no final do milênio: o duplo enfraquecimento do
Estado-nação, nas relações internas e externas. O Estado-nação, segundo
o historiador, “perdia rapidamente poder e função para várias entidades
supranacionais”, por um lado, e, por outro “perdia seu monopólio de
poder efetivo e seus privilégios históricos dentro de suas fronteiras”.
No final do século, o Estado–nação se achava na defensiva contra
uma economia mundial que não podia controlar, contra as
instituições que construíra para remediar suas próprias fraquezas
internacionais, como a União Européia; contra sua aparente
incapacidade fiscal de manter os serviços para seus cidadãos, tão
confiantemente empreendidos algumas décadas atrás, contra sua
incapacidade real de manter o que, pelos seus próprios critérios,
era a sua maior função: a manutenção da lei e da ordem
(HOBSBAWN, op. cit., p.554).
Contraditoriamente a isso, afirma Hobsbawn, nunca o Estado foi
tão necessário para garantir alguma realocação de renda para a parcela
cada vez maior da sociedade que ficava de fora do mundo produtivo (op.
cit., p.555).
Tais padrões de concentração de riqueza chegaram a tal ponto
que a velha polarização explorados/exploradores, durante muito tempo
tida como explicativa das relações entre capital e trabalho, passou a ser
24
substituída, em alguns estudos, pela nova polarização excluídos/incluídos,
polarização
essa
decorrente,
segundo
Tedesco
(2002)
da
nova
organização do trabalho:
A exclusão tende, dessa maneira, a substituir a relação de
exploração. A comparação entre ambos os modelos de relações
permite notar que os vínculos entre exploradores e explorados são
completamente diferentes dos que se estabelecem entre incluídos
e excluídos.
Exploradores e explorados pertencem à mesma esfera econômica
e social, já que os explorados são necessários para manter o
sistema. A tomada de consciência da exploração pode provocar,
além disso, uma reação de mobilização coletiva e de conflito
organizado pelas instituições representativas dos explorados, como
os sindicatos, os partidos políticos etc.
A exclusão, em compensação, não implica relação, mas sim
divórcio. A tomada de consciência da exclusão não gera uma
reação organizada de mobilização. Na exclusão não há grupo
contestador, nem objeto preciso de reivindicação, nem
instrumentos concretos para impô-la (TEDESCO, op. cit., p.17).
O conceito de inclusão se constitui, assim, no bojo de um
suposto esvaziamento da polarização entre explorados e exploradores,
agora reduzida ao centro do capitalismo e sem grandes conseqüências
para uma maioria excluída de tal polarização, “situada” na chamada
sociedade horizontal, definida pela distância em relação a esse centro e
cujos padrões de mobilidade estariam limitados dentro do mesmo espaço
_ e na qual o movimento mais importante é aquele que garante não
perder o lugar conquistado: mover-se o bastante para não sair do lugar
(SENETTI, apud TEDESCO, op. cit., p.18).
As novas desigualdades, segundo este último autor, tenderiam a
ser percebidas muito mais como um fenômeno pessoal do que econômico,
o que levaria a novas formas de reorganizar e pensar os campos da
comportamento, da genética, da cognição, das relações sociais.
Enquanto no modelo capitalista tradicional a pobreza ou a condição
assalariada podiam ser percebidas como conseqüências de uma
ordem social injusta, no novo capitalismo tendem a ser associadas
à natureza das coisas e, em última instância, à responsabilidade
pessoal. Não é casual, por isso, observar o ressurgimento de idéias
que tendem a explicar a vigência de determinados padrões de
conduta, dos níveis de desenvolvimento cognitivo pessoal e do
lugar na estrutura social por fatores genéticos (TEDESCO, op. cit.,
p. 19-20) .
25
Aquela necessidade do Estado-nação como mecanismo de
redução das desigualdades extremas na distribuição de riquezas de que
falava Hobsbawn, pode ser situada nessa dimensão da horizontalidade, já
que nessa reorganização, fica por conta dos enfrentamentos entre o
mercado e as organizações de trabalhadores a regulação das relações
entre explorados e exploradores.
As conseqüências dessas mudanças para a educação parecem
ser, para Tedesco (2002), a necessidade de adaptar a escola à situação,
ou seja, sua função passaria a ser preparar as pessoas para as relações
em uma sociedade horizontal (criando maiores potenciais de flexibilização,
os quais possibilitariam ao educando mover-se sempre para ficar no
mesmo lugar), já que parece ter ficado fora do interesse da maioria a
discussão das relações entre explorados/exploradores, relações das quais
estão excluídos.
Dessa leitura das relações entre relações de trabalho no mundo
contemporâneo e educação, algumas outras conseqüências podem ser
visualizadas: o incentivo à autonomia da escola pode ser um espaço para
uma espécie de “tribalização”, na medida em que ela não reconhecer mais
qualquer possibilidade do Estado assumir suas responsabilidades e se
fechar cada vez mais em suas fronteiras; a ascensão social, da qual
durante muito tempo se imaginou ser a escola um instrumento, passa a
ser traduzida como inclusão (no mercado de trabalho, no lazer, na
educação,etc.): “acesso” passa a ser palavra-chave nas discussões
educacionais; os paradigmas educacionais passam a ser
buscados não
nas elaborações produzidas pelas várias contribuições da academia (nas
quais o conflito ainda é tido como produtor de conhecimento), mas
daquelas legitimadas pelos organismos internacionais, articuladas muito
mais em torno da idéia do consenso; da desigualdade compreendida como
fenômeno de origem pessoal, decorrem compreensões de que as
transformações no indivíduo são fundamentais para deflagrar mudanças
na sociedade (mudanças que implicam na máxima redução possível _
26
dentro do modo capitalista de organização _ das possibilidades de
exclusão).
As mudanças também no campo da produção do conhecimento,
definidas por Gatti (2005, p.596) como um processo de problematização
das “grandes utopias e modelos de análise” (o chamado pensamento pósmoderno), trazem para esse quadro certos elementos, dos quais destaco:
ruptura com uma visão de mundo homogeneizante, a reposição do sujeito
e a fragmentação e individualização das ações humanas.
Quanto ao primeiro elemento, o fim do século XX traz a busca do
heterogêneo,
do
diverso,
do
diferente
como
referência,
numa
contraposição às leituras homogeneizantes de homem e sociedade,
próprias dos paradigmas dos séculos anteriores.
[...] instala-se na modernidade uma crise, uma contradição
histórica que se traduz nas rupturas trazidas quer pelas formas
cotidianas do existir, fazendo emergir a necessidade de
consideração das heterogeneidades, das
diferenças, das
desigualdades gritantes, quer pelas fissuras lógicas nas ciências
(GATTI, op.cit., p. 597)
A reposição do sujeito, que teria sido expulso inclusive das
ciências sociais sob a ação dos determinismos, faz com que a variabilidade
e a singularidade no campo do humano voltem a ser levadas em conta
(GATTI, op. cit., p.600).
Como um terceiro elemento desse novo paradigma, destaco a
minimização das possibilidades da ação humana como construtora da
própria história, de uma crença no sentido emancipador desse processo,
como terceiro elemento (GATTI, op. cit., p.601).
Considerando a relação entre os novos modos do capital se
relacionar com o trabalho, produzindo massas de excluídos, e as
transições na direção de um paradigma de produção do conhecimento que
descreve certas rupturas do mundo contemporâneo, mas não se dedica
mais a forjar nenhuma narrativa de superação, ocorrem mudanças
também nos modos de se configurar a educação, e em tais mudanças às
27
vezes é possível antever um alinhamento, às vezes um confronto com as
expectativas dominantes.
Se a polarização entre incluídos /excluídos traz para a discussão
da escola pública (a escola das massas populares) elementos como
acesso, autonomia, mudanças nas capacidades do indivíduo, reacende
também as questões da qualidade de ensino, da responsabilização do
Estado e da construção coletiva do conhecimento. Às exigências de que a
escola “se alinhe” aos novos tempos, que pressuporiam uma escola “fora
do tempo”, território de sobrevivência da modernidade superada, se
opõem exigências de se considerar o que-fazer humano que ocorre na
escola
como
uma
atividade
complexa,
que
exige
projetos
de
transformação do atual estado de coisas, mas que não supõe que tais
projetos se esgotem na escola, nos agrupamentos fragmentados, nas
tribos da pós-modernidade. Nessa posição, o agir pedagógico continua
pressupondo objetivos. No dizer de Libâneo (2005), continua vinculado a
relações entre leituras globais e locais, continua precisando se apoiar no
conhecimento produzido anteriormente:
Três coisas são, portanto necessárias de serem ditas para quem
quiser ajudar e não dificultar as condições do agir pedagógico. A
primeira é que práticas pedagógicas implicam necessariamente
decisões e ações que envolvem o destino humano das pessoas,
requerendo projetos que explicitem direção de sentido da ação
educativa e formas explícitas do agir pedagógico. Quem se
dispuser ao agir pedagógico estará ciente de que não se pode
suprimir da pedagogia o fato de que ela lida com valores, com
objetivos políticos, morais e ideológicos. A segunda é que não é
suficiente, quando falamos em práticas escolares, a análise
globalizante do problema educativo. Aos aspectos externos que
explicitam fatores determinantes da realidade escolar é necessário
agregar os meios educativos, os instrumentos de mediação que
são os dispositivos e métodos de educação e ensino, ou seja, a
didática. E terceira; dada a natureza dialética da pedagogia,
ocupando-se ao mesmo tempo da subjetivação e da socialização,
da individuação e da diferenciação, cumpre compreender as
práticas educativas como atividade complexa, uma vez que se
encontram determinadas por múltiplas relações e necessitam, para
o seu estudo do aporte de outros campos de saberes (LIBÂNEO,
2005, p.22).
Considerar apenas o diverso, o heterogêneo como valores
positivos em si, o sujeito e as possibilidades de subjetivação como
28
explicativas
do
humano,
a
fragmentação
das
ações
como
única
possibilidade do fazer humano pode empurrar a escola para a negação de
tudo o que já foi feito em educação. Como diz a própria Gatti, há uma
“corrida mundial em busca de novos currículos e de uma formação ao
mesmo tempo polivalente e diversificada de professores” (2005, p. 603).
Na melhor das hipóteses, isso empurra aos professores a obrigação de
serem bons em tudo (porque, no mundo fragmentado, tudo pode ser útil,
a qualquer momento) e à escola a busca de ensinar para a flexibilidade,
para caber no mundo como ele se apresenta.
Essa brevíssima introdução, que não apresenta senão pontos de
uma leitura deste momento histórico, tem, neste texto, a função de
remeter para uma leitura da diversidade, tema em voga neste início de
século XXI por conta das questões já assinaladas. A chamada escola
inclusiva tem sido considerada como um modelo adequado para os novos
tempos
exatamente
por
se
configurar
como
uma
escola
para
a
diversidade. Vale a pena, portanto, deter-me em alguns estudos acerca
desse conceito.
2.2. EDUCAR PARA A DIVERSIDADE: DESNATURALIZAÇÃO DE UM
CONCEITO
Ao tratar do tema da diversidade, SKLIAR (2001), FERRE,
(2001), E SKLIAR E DUSCHATSKY (2001) procuram distinguir tal conceito
do conceito de diferença; na análise de certas diferenças, outros autores
apontam algumas questões importantes, como a distinção entre diferença
e patologia (BUENO, 1998) a questão da integrabilidade de certas
diferenças (FERRE, 2001; BARROS, 2005), as relações entre diferença,
identidade e estereótipo, em que identidade e diferença podem ser lidas
29
como realidades estáticas ou num movimento de interconstituição (SILVA,
T. 2000; SOUZA, 1998).
O primeiro movimento que escolhi para uma leitura do conceito
de diversidade foi estabelecer um confronto com o de diferença.
Os autores analisados para este trabalho (SKLIAR, 2001; FERRE,
2001; SKLIAR E DUSCHATSKY,2001) chamam a atenção para que não se
confunda diferença com diversidade, assim como alertam para que se
considera que as muitas diferenças se constituem diferentemente, não
podendo por isso ser agrupadas numa mesma categoria, sem que cada
especificidade sofra perdas em sua definição.
Assim, ao contrário das aparências, diversidade e diferença não
teriam uma relação de sinonímia, mas o uso do primeiro termo pode
inclusive servir para ocultar ou minimizar o segundo. Em outras palavras:
na medida em que é aceito que todas as formas de ser e viver têm valor
semelhante, perde-se a riqueza que cada forma específica de ser e viver
significa, assim como são ocultos os conflitos entre os interesses que
geram essas formas específicas.
Para Skliar (op. cit.), o conceito de diversidade pode servir para
evitar, nos discursos oficiais, justamente o enfrentamento da existência da
diferença. Do ponto de vista desse autor, “autorizar” a existência do
diverso pode significar uma homogeneização desse diverso: sob o adjetivo
“plural”, esconder-se-ia um desejo de tornar inócuos os conflitos entre as
diversas diferenças.
Nos documentos oficiais e nos discursos das instituições de
educação especial, encontra-se hoje uma preferência no uso do
termo diversidade; neste e em outros contextos mais amplos,
retrata uma estratégia conservadora que contém, obscurece o
significado político das diferenças culturais. A ambigüidade _ e a
hipocrisia _ com que se pensa e constrói a diversidade gera como
conseqüência, no melhor dos casos, a aceitação de um certo
pluralismo que se refere a uma norma ideal (SKLIAR, op. cit.,
p.96).
30
Tal estratégia conservadora, no mesmo movimento em que
permite que o diverso se explicite, iguala as diferenças sob o mesmo
manto. A norma ideal, nesse caso, pode ser exatamente o direito à
pluralidade desde que essa pluralidade não signifique confronto entre as
diferenças. Para Skliar (2001, p.95), o conceito de diversidade, autorizado
pelo discurso hegemônico, é entendido “quase sempre como a variante
aceitável e respeitável do projeto hegemônico da normalidade”. O mesmo
autor, em texto escrito em parceria com Duschatsky (2001, p.119),
lembra que “os discursos sociais se revestem com novas palavras, se
disfarçam com véus democráticos e se acomodam sem conflito às
intenções dos enunciadores do momento”.
Ferre (2001, p.195) recorda que, nos dicionários, diversidade e
diferença costumam se explicar uma à outra: “Vemos assim que o
significado de ‘diferença’ e ‘diversidade’ permite-nos distinguir o outro do
um, o outro do mesmo. Quer dizer que o diferente ou diverso é o
contrário do idêntico”. No entanto, uma vez aceita a possibilidade da
diversidade, parece acabar a necessidade de lidar com a diferença. Como
na análise de Skliar (op. cit.), essa autora mostra que o diferente só e
considerado como componente da diversidade geral, mas é preciso ir
além, buscando entender a constituição histórica e social de cada
diferença.
A análise de tal constituição histórica e social pode levar a ver
entre as diferenças certas especificidades, entre as quais aquelas
historicamente
definidas,
na
história
do
campo
clínico,
como
anormalidade, excepcionalidade, deficiência, e, no campo pedagógico mais
recente, como necessidades educacionais especiais. Nesse segundo
movimento, duas distinções são feitas: uma primeira, entre características
da chamada “necessidade especial” que, do ponto de vista da norma,
tornam o aluno “ integrável” ou “não-integrável”, e uma segunda, entre
patologia e característica cultural.
31
A primeira distinção remete para a questão de que o discurso da
inclusão,
ao
tratar
com
o
conceito
abrangente
de
necessidades
educacionais especiais todas as exigências decorrentes de todos os tipos
de limitação (cognitivas, motrizes, neurológicas, sensoriais, psíquicas)
oculta o fato de que muitas delas são suficientemente perturbadoras para
não serem utilizadas como exemplos de inclusão. Há diferenças que, por
perturbadoras, por evidentes, não podem ser simplesmente engolidas pelo
discurso da diversidade. Ferre (2001) diz que o discurso da diversidade se
esvazia ao remeter para diferentes enfoques conforme a deficiência se
revele “integrável ou não”. O enfoque do pedagógico só seria aplicado nos
casos das deficiências consideradas “integráveis”, enquanto às outras se
destinariam um enfoque clínico.
As abordagens sobre a diversidade mantêm, para a educação
especial, enfoques tecnicistas biomédicos agora encobertos com
as últimas descobertas neurológicas para novas entidades
nosológicas (...) enfoques psicologizantes comportamentalistas,
para as deficiências psíquicas profundas ou transtornos (...) ao
mesmo tempo, um acabamento pedagogista da disciplina para
todas aquelas deficiências – hoje necessidades educativas
especiais –‘integráveis’, um enfoque que nega seus antecedentes
biomédicos e psicológicos, jogando fora, com a água da banheira,
a transdisciplinaridade que um olhar complexo a partir da
Pedagogia da diversidade pudesse propor (FERRE, op. cit. p. 202203)
Essas diferenças de enfoque revelam que, sob o conceito geral
de
diversidade,
escondem-se
especificidades
que,
para
serem
minimizadas, obrigam a certas operações discursivas. Uma delas é a
escolha, descrita por Barros (2005, p.122;127) da criança com síndrome
de Down como símbolo para propaganda da inclusão:
Pois, tendo em vista ser a síndrome de Down aquela condição
mais imediatamente associada à deficiência no imaginário popular
– nem tanto pela incidência numérica, mas muito pela qualidade
organizativa de entidades assistenciais próprias que lhe deram
evidência –, as diretrizes da política educacional de inclusão de
deficientes pareceram se aplicar mais especificamente a esta
síndrome (BARROS, op. cit., 122).
32
Essa possibilidade de aplicação das políticas à síndrome de Down
tem a ver
com sua configuração
como
a mais “integrável”
das
necessidades especiais (a que causa menos transtornos à forma como
tanto escola como o sistema educacional estão organizados).
Tal
distinção
entre
os
graus
de
comprometimento
das
capacidades que teriam função na forma como se estrutura o sistema
educacional
também
pode
ser
complementada
com
uma
segunda
distinção, aquela que deve ser feita entre patologia e diferença cultural
Bueno (1998), em estudo sobre as relações entre surdez,
linguagem e cultura, traz uma outra distinção importante: afirma que é
importante distinguir diferença de deficiência, e caracteriza deficiência
como a situação em que ocorre necessidade de promover a prevenção e a
cura daquela característica. Também nesse autor se evidencia o cuidado
em não homogeneizar, sob um discurso geral, especificidades que geram,
inclusive, necessidades educacionais diferentes.
Considerar o surdo como um grupo minoritário pode ser
importante do ponto de vista das diferenças culturais, mas
confundi-lo com outros grupos minoritários é, a meu ver,
esconder uma distinção entre o patológico e a mera diferença. Em
outras palavras, qualquer iniciativa de intervenção para
homogeneizar
diferenças,
como,
por
exemplo,
o
embranquecimento das populações negras, ou a eliminação de
características como a homossexualidade ou os ‘olhos puxados’
das etnias orientais, no meu modo de entender, devem ser
combatidas, pois representam uma visão ‘arianis’ incompatível
com as diferenças e com a construção da democracia. Isso,
entretanto, não se estende a outros casos, como os patológicos,
porque se houver possibilidade de evitar o seu advento, isto é, se
houver formas de prevenir sua incidência ou de solucionar este
mal isso deve ser feito (BUENO, op.cit., p. 52; grifo do autor).
Bueno chama a atenção, então, para que não se considere a
surdez
como
uma
doença,
caracterizando-a
como
“condição
intrinsecamente adversa” (BUENO, op.cit., p. 53). Se, num discurso geral
sobre diversidade, tais especificidades não são esclarecidas, corre-se o
risco de denominar diferenças (que devem ser respeitadas) com condições
que devem ser objeto de prevenção e cura. Cometido esse equívoco, é
enorme a possibilidade de serem valorizados, como traços de identidade
33
aspectos que são característicos da patologia, risco tão sério como o de
considerar patológico aquilo é característica cultural de um grupo.
O discurso da diversidade, quando assume as muitas diferenças
como equivalentes, sem levar em conta as várias distinções que é preciso
operar no interior de cada diferença e em suas relações com as demais,
trabalha com uma idéia de identidade como fixa, estável. O terceiro
movimento que considero necessário, então, na análise do conceito de
diversidade, é perceber suas relações com a noção de identidade.
Considerada a identidade como algo dado, estático, repete-se o
discurso de respeitar as diversas identidades, sem a discussão de como
elas se constituem. Daí o discurso vazio que denuncia Ferre:
Educar na diversidade respeitando a identidade de cada um,
aceitar e respeitar as diferenças a partir da igualdade entre os
seres humanos, poderiam ser frases de manual não por repetidas
menos vazias, eufemísticas e adaptáveis a qualquer enfoque que
se queira dar à educação hoje (2001, p.197)
Afirma a mesma autora (op.cit., p.195) que, quando se recorre
aos dicionários, identidade e diferença se explicam uma à outra: “o
diferente ou diverso é o contrário do idêntico”. Dessa forma, será preciso
definir o idêntico, para poder definir o diferente, e vice-versa. Nosso
mundo tem certa facilidade para definir o que é e o que não é; nesse
raciocínio linear, a identidade é “concebida como um fato autônomo.
Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é
auto-contida e auto-suficiente” (SILVA,T., 2000, p.74). Essa forma
afirmativa de definir a identidade esconde, diz Silva, toda uma cadeia de
negações. Sou isso, porque não sou aquilo, nem aquilo... Também coloca
a diferença como derivada da identidade, de forma que há uma “tendência
a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou
avaliamos aquilo que não somos” (SILVA,T., op.cit., p.75-76).
Essa concepção de identidade aparece fortemente na história da
deficiência: sua definição geralmente acaba sendo caracterizada pela falta
(eles representam a diferença, não a identidade, já que a identidade se
34
faz pela norma, e a norma é um suposto ser humano sem deficiências). O
conceito de limitação é elaborado na comparação com seu contrário, o de
ilimitação, de completude, que só pode ser abstrato, uma vez que o ser
humano completo é uma idealização.
Também Bueno (1998, p.43), nos seus estudos sobre a surdez,
critica essa noção de identidade fixa, estável, auto-suficiente e baseada
numa única característica: “O surdo [...] passa a ter como única
característica determinante de sua identidade a surdez. Não conta o fato
de ser branco ou negro, rico ou pobre, homem ou mulher” (grifos do
autor) Nesse texto, o autor faz uma crítica aos teóricos da surdez, que, ao
se apropriarem da concepção multiculturalista, “transformam diversidade
cultural em homogeneidade cultural (cultura ouvinte) reduzindo [...] a
riqueza teórica dessa abordagem”.
Garcia (1998) analisa os limites de uma abordagem centrada no
indivíduo para a educação do aluno portador de seqüela motora,
afirmando que tais limites desencadeiam relações de perpetuação das
dificuldades dessa pessoa. Considerando a identidade como algo que se
forma em torno da falta, da deficiência,
[...] esse aluno vai aprender de que maneira se comportar como
deficiente e que é preciso esperar o momento em que vai estar
maduro, após muita estimulação do ambiente, para realizar um
repertório mínimo de atividades condizentes com sua lesão e seu
grau de deficiência. Nessa abordagem há uma cristalização do
papel de portador de seqüela motora que se generaliza para
outros aspectos de sua vida, em que a tônica é o ‘limite’, o ‘não
ser capaz de’ (GARCIA, op.cit., p.82).
Ao se cristalizarem os papéis, e ao se situar no indivíduo os seus
limites, se ignora e se atrapalha o desenvolvimento; ao se considerar a
identidade como estável e individualizada, desconsidera-se o potencial das
relações com o outro na construção do sujeito. No entanto, mesmo
quando se situa em fatores considerado externos ao indivíduo os limites,
num modelo social de deficiência, não se está isento da compreensão de
identidade como fixa. Os limites podem continuar sendo entendidos
35
dentro de um padrão idealizado de relações e não entre as relações que
se dão de fato entre os homens concretos.
Dessa forma, no interior do imenso caldeirão que acolhe as
muitas diversidades, há que se considerar as relações de poder e saber
que fazem com que uns aspectos apareçam como referência e símbolo e
outros sejam omitidos, uns sejam mais objeto do campo do clínico e
outros do pedagógico, certas diferenças mais naturalizados e outras
menos... Enfim, há que se considerar os movimentos históricos de
interconstituição de identidades e diferença.
De acordo com Garcia,
o indivíduo considerado portador de deficiência convive com
limitações porque a sociedade atribuiu aos homens um caráter
idealizado, com base no qual distingue como limitações tudo o
que foge ao seu padrão. O que é chamado de limite corporal,
sensorial ou cinestésico seria primordial se os homens não
vivessem em coletividade (1998, p.86).
Ao homem considerado isoladamente, a falta de visão, ou de
possibilidades de locomoção, ou qualquer outra falta, de fato podem
impossibilitar a existência. Mas o homem isolado também é uma
abstração. As fronteiras do ser humano, ser geneticamente social não
podem estar no indivíduo: a identidade individual é, portanto, produto
mutante e flexível do processo de relações coletivas.
Souza (1998), ao analisar a constituição do sujeito nas relações
com o outro, mediadas pela linguagem, também considera que a
identidade não pode ser vista como estática, porque cada sujeito se
constitui de forma multifacetada, na dinâmica das relações com os
demais. Para esta autora,
O sujeito se constitui com o outro pela linguagem (...) o outro é
marcado pelas vozes de muitos outros; ecos que fazem ressoar
visões de mundo contraditórias porque contraditórios são os
interesses das classes sociais e os conhecimentos sobre o mundo
que constroem. O outro é um ser em conflito, em permanente
tensão com todas as vozes que o constituíram. O eu está imerso
no fluxo dessas contradições e se constitui com elas (...). É pela
pluridimensionalidade
desse
processo,
pela
presença
36
simbolicamente marcada de todas as vozes alheias que o tecem,
que o sujeito se constitui como ser multifacetado ou possuidor de
várias máscaras. É na/pela ebulição das vozes que essas
máscaras fazem ecoar – ao longo da história do sujeito –que elas,
transformadas, se monologizam. ...(SOUZA, 1998, p.63).
Essa compreensão de identidade como algo cristalizado vinculase àquela do desenvolvimento como prévio à aprendizagem, já tão
debatida por Vigotski (1993) para quem é a aprendizagem, pelo contrário,
que
impulsiona
o
desenvolvimento.
Quando
se
considera
o
desenvolvimento com um caráter mais biológico do que cultural,
há um predomínio do entendimento de que é preciso primeiro
amadurecer para depois se desenvolver, desenvolver-se para
depois aprender, assimilar os conteúdos para depois responder às
questões apresentados pelo professor, estudar para depois de
anos de escola adquirir qualificação profissional com capacidades,
habilidades e destrezas (GARCIA, 1998, p.82).
Como Souza (1998), Silva (2000, p.77-78) considera que
identidade e diferença só podem ser compreendidas no interior dos
“sistemas de significação nos quais adquirem sentido”. Tais sistemas, no
entanto, só aparentemente são seguros: o significado depende sempre da
indeterminação e da instabilidade da linguagem. Está vinculado a relações
de poder, a disputas entre grupos sociais que se situam assimetricamente
uns com relação aos outros.
Podemos dizer que onde existe diferenciação _ ou seja, identidade
e diferença _ aí estão presente o poder. A diferenciação é o
processo central pelo qual a identidade e a diferença são
produzidas. Há, entretanto, uma série de outros processos que
traduzem essa diferenciação ou que com ela guardam uma
estreita relação. São outras tantas marcas da presença do poder:
incluir/excluir (“estes pertencem, aqueles não”); demarcar
fronteiras (“nós” e “eles”); classificar (“bons e maus”; “puros e
impuros”; “desenvolvidos e primitivos”, “racionais e irracionais”);
normalizar (“nós somos normais; eles são anormais”). (SILVA ,T.,
op.cit., p.81),
Os processos pelos quais se produz a identidade não são
unidirecionais. Para Silva (op.cit., p.84-89), oscilam entre os movimentos
“que tendem a fixar e a estabilizar a identidade” e os que “tendem a
subvertê-la e a desestabilizá-la”. Pode-se afirmar o mesmo com relação às
37
diferenças: haverá oscilação entre esforços para torná-las estáveis e para
subvertê-las, conforme as correlações de forças entre os grupos de
interesse em que se agreguem. Historicamente, os efeitos de se chamar
alguém “negro”, “surdo”, “mulher”, por exemplo, vão se modificando,
ganhando valorações distintas. A própria existência de expressões como
“poder negro”, “orgulho surdo”, “pensamento feminista”, impensáveis em
certas épocas, expressam essas mudanças históricas.
Compreender cada diferença como interconstituída em sua
relação com as outras, cada identidade como processo baseado nas
relações culturais e históricas, como busca de normatividade e de escapar
da norma ao mesmo tempo, enfim, desnaturalizar o termo diversidade,
pode ser importante para uma leitura da escola como espaço onde essas
relações são trabalhadas.
Tal conceito de diversidade se apresenta, na análise dos autores
aqui utilizados, como um tanto escorregadio: tanto pode ser útil para
expressar uma homogeneização das diferenças, com a conseqüente
esquiva da discussão das relações de poder constitutivas de certas
diferenças, quanto pode criar um esvaziamento das especificidades,
abrangendo de cultura a patologia; se considerar a identidade como algo
dado, estático, auto-referenciado, pode conceber o heterogêneo como
ajuntamento das diferenças, ao invés de perceber as relações entre elas.
Pensar a temática da diversidade na configuração de um lugar da
escola no mundo contemporâneo exige, portanto, que consideremos o
conceito em sua capacidade de mostrar e esconder: mostrar as diferenças
que se apresentam como reais, mas esconder a forma como elas se
interconstituem.
Diferenças
entre
ricos
e
pobres,
empregados,
subempregados e desempregados, favelados e moradores de bairros
nobres; entre grupos étnicos; entre a clientela da educação especial e a
da educação comum, só para citar alguns exemplos; diferenças que não
se constituem pelos mesmos processos nem pelas mesmas razões.
38
2.3. UMA ESCOLA PARA TODOS/UMA ESCOLA PARA POUCOS
A critica aos aspectos reprodutores da escola, exercitada mais
enfaticamente nas décadas de 60 e 70 e aqui analisada, principalmente,
com base nos
escritos de Bourdieu (1998), destacava sua dualidade:
tanto na relação entre estabelecimentos, entre sistemas, como no interior
da
mesma
escola,
ocorriam
processos
diferentes
de
formação,
expectativas diferentes de futuro, para os filhos de classes sociais
diferentes. Assim, ainda que não assumida oficialmente, havia de fato
uma escola para favorecidos e uma escola para desfavorecidos.
Tal situação se reforçava pelas exigências de eqüidade (dentro
da escola) entre desiguais por força das estruturas sociais, das quais a
escola parecia não tomar conhecimento. “Com efeito”, diz Bourdieu,
[...] para que sejam favorecidos os mais favorecidos e
desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente
que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que
transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios
de avaliação, as desigualdades sociais entre crianças das
diferentes classes sociais (BOURDIEU, 1998, p.53).
Essa crítica, entre outras, está na base de muitos movimentos
por uma escola para todos; a ampliação do direito a uma educação de
qualidade para os filhos de trabalhadores pressupunha que não bastava o
acesso a escola, ainda que esse fosse pré-condição para tal educação: era
preciso que tais crianças recebessem na escola o capital cultural6 que sua
classe não tinha condições de lhe fornecer. Nesse caso, a expressão
“escola para todos” significa que aqueles a quem as diferenças de classe
mantinham fora da escola tinham direito a ela, e mais do que isso, tinham
o direito a escapar, por força da atuação da escola, das injunções de seu
pertencimento a uma classe desfavorecida.
6
“O capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado, ou seja, sob a forma de disposições
duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais [...]e, enfim, no estado
institucionalizado, forma de objetivação que é preciso colocar à parte porque, como se observa em relação ao
certificado escolar, ela confere ao capital cultural _ de que é, supostamente, a garantia_ propriedades
inteiramente originais. (BOURDIEU, 1998, p. 74)
39
Não é preciso muito para concluir que tal escola nunca se
concretizou; ainda que as distinções entre classes e as reivindicações de
uma escola popular tenham perdido espaço e importância na literatura
educacional, as crianças pobres continuaram sendo expulsas da escola
(pública e gratuita) em certos momentos de “filtragem”: na passagem da
quarta para a quinta série, no final do ensino fundamental, no final do
ensino médio, nos vestibulares, na “escolha” do curso superior (os poucos
que conseguem chegar a tanto).
É verdade que a dualidade de escolas, em muitos casos,
continuou sendo material e explícita, conforme destaca Beyer (2005):
Para encurtar, na história da educação formal ou escolar, nunca
houve uma escola que recebesse todas as crianças, sem exceção
alguma. As escolas sempre se serviram de algum tipo de seleção.
Todas elas foram, cada uma à sua maneira, escolas especiais, isto
é, escola para crianças selecionadas. As escolas de filosofia da
Antigüidade, os mosteiros da Idade Média, as escolas burguesas
da Renascença _todas elas foram escolas especiais para crianças
especiais, selecionadas. Nesse sentido, também hoje as melhores
escolas particulares em nosso país são escolas especiais, que
acolhem não todas as crianças, porém apenas algumas delas
(obviamente, aquelas cujas famílias têm condição privilegiada
para bancar seus estudos (BEYER, op.cit., p.13)).
No entanto, mesmo no interior da escola pública e gratuita, os
processos que Bourdieu descrevia não deixaram de operar; a escola não
deixou de ser dual por ter se aberto às diferenças, aliás, talvez tal
dualidade tenha se reforçado quando se coloriu de pluralidade.
A diferença constituída pelo pertencimento de classe parece ter
se diluído nas diferenças étnicas, de gênero, de grupo, geográficas,
nacionais, relativas a necessidades educacionais especiais, entre as
muitas que a busca e a valorização da heterogeneidade ajuda a constituir
diariamente.
À exigência de que a escolar deveria contribuir para ampliar o
capital cultural daqueles excluídos desse bem foram acrescentadas muitas
outras injunções, algumas pouco relacionadas com a função da escola.
40
Não questiono que a escola seja reivindicada como o espaço
onde deve ser atendido todo o espectro da diversidade humana (e não
apenas os recortes desse espectro cultural e historicamente autorizados
como diferenças a serem consideradas) A questão é bem outra, e se
refere às contradições de uma educação para todos numa sociedade de
desiguais. Dessas contradições, eu gostaria de destacar pelo menos duas.
Uma delas tem relação com as promessas implícitas de uma
educação para todos, numa sociedade democrática, promessas que têm
relação com garantia de espaços de bem-estar social, de mudança pra
melhor na posição social que as pessoas ocupam. Desnecessário dizer que
tais promessas não se dirigem a todos: têm um destinatário específico,
que são aqueles que estão em posição desfavorecida. Segundo Charlot
(2005), o movimento de educação para todos se articula tanto ao vinculo
entre nível de escolaridade e inserção profissional quanto à exigência de
sucesso escolar, fenômeno contraditórios entre si. Diz o autor que tanto é
democrático “abrir o ensino a todos”, quanto “atribuir os empregos de
acordo com os diplomas e não em função das relações sociofamiliares”,
quanto ainda “considerar que qualquer aluno tem direito ao sucesso
escolar”, mas esses três princípios são incompatíveis:
Só se pode abrir os ensinos médio e superior a todos, com
exigência de um sucesso de todos os alunos, se não afirmarmos,
ao mesmo tempo, que todos terão cargos correspondentes a seus
diplomas _o que seria prometer a todos cargos de chefia. Pode-se
evidentemente, abrir o ensino a todos e garantir cargos que
correspondam a seus diplomas, mas contanto que nem todos
sejam bem sucedidos[...]. Pode-se igualmente visar a bom
desempenho escolar de todos os alunos e garantir cargos que
correspondam aos alunos, desde que nem todos entrem no ensino
médio ou superior (o que era a solução clássica) (CHARLOT,
op.cit, p.79).
Não
podendo
cumprir
as
promessas
de
acesso,
sucesso
educacional e sucesso no mercado, a escola contemporânea centra seus
esforços nas duas primeiras promessas. A ênfase no acesso e no sucesso
nos processos de aprendizagem (ensino centrado no aluno), creio eu, cria
um outro tipo de solução: a escola pública se desobriga das questões
41
referentes a emprego, salário e status (às quais ela não pode responder)
voltando-se para si mesma. Sua função se torna maternal: acolher,
abrigar, proteger do preconceito, fortalecer a auto-estima, contornar os
fracassos precoces da reprovação e da repetência. O desamparo social da
escola a converte em amparo dos necessitados.
Essa função de amparo traz para a discussão a segunda
contradição: uma educação para todos, ao se centrar no acesso à escola e
no sucesso no interior dela, coloca uma grande ênfase na ação
pedagógica, no ensinar; contraditoriamente, a capacidade de ensino da
escola tende a se reduzir na mesma medida em que dela são exigidas
aquelas competências maternais a que me referia, cujo exercício extrapola
o ensino e muitas vezes se choca com ele. Parece-me que uma das
reivindicações urgentes que a escola deveria fazer era justamente poder
ensinar: dispender seu tempo, energia e patrimônio físico e cultural
acumulado no esforço de fazer com que seus alunos (todos eles) se
apropriassem da capacidade de ler (eficiente e criticamente), escrever
(idem), calcular, projetar, organizar e reorganizar a vida com as
ferramentas escolares. Do contrario, o ser “para todos” pode custar o
preço de deixar de ser escola, na contemporaneidade.
Acerca das exigências feitas à pedagogia nesse mundo em
mudança,
Libâneo
(2005)
chama
a
atenção
para
essa
possível
descaracterização da escola, resultante do esforço de atender a exigências
em si contraditórias:
Destaca-se no contexto social contemporâneo a contradição entre
a pobreza de muitos e a riqueza de poucos, entre a lógica da
gestão empresarial e as lógicas da inclusão social, ampliando as
formas explicitas e ocultas de exclusão. As escolas e as salas de
aula têm contribuído pouco para a superação dessas contradições,
especialmente estão falhando em sua missão primordial de
promover o desenvolvimento cognitivo dos alunos, correndo o
risco de terem que assumir o ônus de estarem ampliando a
exclusão com medidas aparentemente bem intencionadas como a
eliminação da organização curricular em séries, a promoção
automática, a integração de alunos portadores de necessidades
especiais, a flexibilização da avaliação escolar, a transformação da
escola em mero espaço de vivência de experiências socioculturais
(LIBÂNEO, in LIBÂNEO e SANTOS, 2005, p.21).
42
Não é de admirar que as escolas estejam falhando em sua
missão de promover o desenvolvimento cognitivo, ou em ampliar o capital
cultural, ou em ser espaço de convivência democrática das diferenças.
Não pode ser missão de uma parte da sociedade resolver contradições que
são geradas nas relações que produzem o conjunto. Mas esse é, sem
dúvida, um ponto de vista que se ancora numa das narrativas geradas na
modernidade. Se for desconsiderada qualquer possibilidade de, pela ação
humana, construir formar novas (e mais justas) de ser e viver, há
também que
desconsiderar projetos de reforma da escola, projetos de
alinhá-la com o pensamento mais “recente”; afinal, também a escola é
sobra da modernidade, de um tempo em que se acreditava que o acesso
ao capital cultural era um dos fatores que possibilitavam ao homem
modificar as relações que ele próprio construía. Há que se suspeitar que a
escola também tenha feito, nos anos recentes, aquele mesmo movimento
que Sennett (apud
TEDESCO, 2002, p. 18) surpreendia na nova
organização do trabalho: não parar de se mover para não sair do lugar. A
ânsia de reformas, cujos objetivos geralmente escapam aos envolvidos,
talvez tenha a ver com isso:
Poucas vezes os sistemas escolares modernos experimentaram
um a variedade tão ampla e ambiciosa de reformas em tão pouco
tempo. Não obstante, ainda que medir a euforia e a decepção seja
um assunto sociologicamente arriscado, um sentimento parece
difundir-se: de maneira geral, são poucos os que confiam que
essas reformas sirvam para produzir a tão ansiada mudança. A
escola está mudando para continuar sendo a mesma (GENTILI,
2001, in SILVA e VIZIM, 2001, p.47).
No caso da escola, eu diria que, além disso, tal movimento tem
mais de espasmo do que de fluxo: a variedade de reformas implica
também numa desarticulação delas entre si, no melhor estilo pósmoderno: cada momento é um momento, o novo não tem nada a ver com
o velho, as condições de produção das práticas humanas parecem ser
meramente o cenário no qual a escola se retorce (e não é em dores de
parto, parece).
43
É, portanto, também de se suspeitar que quanto mais a escola
se abre para todos, mantido o processo de produção de desigualdade, e
exacerbando-se os processos de exclusão social, mais a educação se fecha
para servir a poucos (inclusive pela razão de que esses poucos, na
chamada sociedade do conhecimento, pouca necessidade têm de escola,
e, não precisando mais dela, podem graciosamente concedê-la aos
excluídos).
2.4. O ESPECIAL NA EDUCAÇÃO: UM RECORTE DA ESCOLA PARA TODOS
Como um dos recortes das muitas versões das lutas de educação
para todos, o movimento contra a segregação de crianças com deficiência
tem seus primórdios, segundo Mantoan (1998, p. 99) nos países nórdicos
e nos anos sessenta. Tais movimentos questionavam as práticas escolares
de segregação, assim como as práticas sociais em relação às pessoas com
deficiência intelectual.
Tais práticas segregacionistas, apoiadas numa concepção inatista
do desenvolvimento humano, davam pouca ênfase ao papel da educação,
e se concentravam na categorização dos distúrbios, entendidos como
inerentes àquela pessoa (MARCHESI E MARTÍN, 1995, p. 8-9). O que veio
a se chamar educação especial nasce, assim, com um cunho fortemente
assistencial. Tratava-se muito mais de oferecer atendimento a todas as
necessidades que a família e a escola regular não poderiam oferecer
(suporte médico e psicológico, principalmente) do que de assumir a
responsabilidade
pela
educação,
no
sentido
de
uma
busca
do
desenvolvimento pleno dessas pessoas.
Segundo Marchesi e Martín (1995, p.9-11), os movimentos em
favor da superação do segregacionismo estão relacionados com uma série
44
de modificações na sociedade e no interior da escola: mudou a concepção
de distúrbio do desenvolvimento, de deficiência, de aprendizagem, de
avaliação, deslocando-se a ênfase de fatores orgânicos ou individuais para
fatores sociais e ambientais. A noção de “fracasso escolar” fez com que
fossem reavaliados “os limites entre normalidade, fracasso e deficiência”
(MARCHESI E MARTÍN, op. cit, p. 10); isso ocorre dentro de uma
rediscussão do papel da escola, que agora precisava atender a uma
diversidade maior de características e de interesses, de novas exigências
de formação de professores, portanto. Mudaram também as atitudes em
relação às minorias de modo geral, o que repercutiu na luta do que os
autores chamam de “minorias dos deficientes”.
Essas transformações e outras tantas constituíram, ao mesmo
tempo em que expressaram, uma nova maneira de conceber a deficiência,
dizem Marchesi e Martín (id. ibid); essa nova maneira tinha a ver com a
transição de um modelo médico da deficiência _ no qual a limitação é
vista como “um problema do indivíduo e, por isso, o próprio individuo teria
que se adaptar à sociedade ou ele teria que ser mudando por profissionais
através da reabilitação ou cura” (FLETCHER, apud SASSAKI,1997, p.29)
para um modelo social, no qual “os problemas da pessoas com
necessidades especiais estão tanto nela quanto na sociedade (SASSAKI,
op. cit., p. 47).
Assim, a transição de um modelo médico para um modelo social
se materializava na prática da integração educacional, compreendida
como um processo em que as necessidades específicas dos alunos
deveriam ser o parâmetro para a organização do sistema educacional,
criando-se um continuum de possibilidades de atendimento que vai das
adaptações
a
classe
regular
com
ou
sem
apoio
ao
atendimento
especializado em tempo integral (MARCHESI e MARTÍN, 1995, p.17-18).
Essa forma de organização, ainda que tenha significado um
avanço com relação ao segregacionismo, não deixou de herdar certa
forma de segregação: a distinção entre educação especial (para as
45
crianças “diferentes”) e educação (para os outros, ditos normais). O que
define a educação como especial, nesse caso, vem a ser a suposta
anormalidade de sua clientela, e isso implica em que as políticas de
educação especial muitas vezes são conduzidas paralelamente às políticas
educacionais gerais, como é o caso de nosso país: “A educação especial,
no Brasil, como em outros países, tem correspondido a um campo de
trabalho delimitado por certas formas de compreensão da educação de
sua clientela, acoplada a políticas sociais públicas específicas” (SILVA, S.,
2001, p.179).
No final do século XX, tais discussões adquiriram corpo e se
inseriram na pauta da maior parte das discussões internacionais sobre
educação e deficiência, tendo na conferência de Salamanca (UNESCO,
1994) um de seus momentos mais importantes. Esta última década (final
do século XX e início do XXI), segundo Omote (2004, p.2) “se caracteriza
como aquela que definitivamente trouxe a discussão sobre as questões
relacionadas a deficiências e pessoas deficientes para o cenário da
educação de modo geral”.
Tomada como referência em boa parte dos trabalhos sobre
educação das pessoas com necessidades especiais, a Declaração de
Salamanca vem propor uma substituição do conceito de integração pelo
de inclusão, quando afirma o direito de toda criança à educação, ao
respeito às características individuais e à diversidade, ao acesso à escola
regular e a “uma pedagogia centrada na criança”, que possa satisfazer a
suas necessidades (UNESCO, 1994). O respeito a tais direitos constitui o
que a declaração chama de uma “orientação inclusiva”, capaz de combater
a discriminação e promover uma educação efetiva.
Descrito assim, o avanço de uma concepção segregacionista até
a chamada educação inclusiva parece linear e harmonioso, como se a
crítica de uma concepção possibilitasse sempre visões mais abrangentes e
a superação de determinado conceito por outro, nas práticas, nas políticas
e na produção acadêmica. Veremos a seguir que isso não ocorre dessa
46
maneira: as concepções se imbricam ao mesmo tempo em que se
combatem, tanto na prática pedagógica quanto nas políticas públicas e no
debate acadêmico; as polarizações estabelecidas nesses embates fazem
às vezes com que o movimento a ser superado seja identificado com
negatividades que tem suas raízes para além dele:
E as escolas especiais, são de fato as escolas certas para crianças
com necessidades especiais? Na opinião dos defensores da
inclusão, a resposta é não. No cruzamento da escola especial com
a proposta de educação inclusiva, as escolas especiais passam a
ser concebidas como escolas que segregam. Uma olhada na
história das escolas especiais pode nos ensinar que esta idéia, em
parte, representa um preconceito ou, no mínimo, um equívoco
(BEYER, 2005, p. 14).
Foi dito anteriormente que o movimento por uma educação
integradora tinha como objetivo superar a concepção segregacionista,
garantindo às crianças com necessidades especiais a possibilidade de
educar-se, conforme suas possibilidades.
É assim que o conceito aparece
em Marchesi e Martin, que, analisando os vários modelos propostos e
experimentados na Europa, definem integração como:
Um processo com vários níveis, através do qual se pretende que o
sistema educacional tenha os meios adequados para atender às
necessidades dos alunos. Esta gama de possibilidades de
integração deve fazer com que cada aluno seja posicionado na
mais conveniente para sua educação, podendo mudar, quando
suas condições em relação à aprendizagem mudarem (MARCHESI
e MARTIN, 1995, p.18).
Fica claro, nessa definição, que se trata de inserir no sistema
educacional os alunos com necessidades educacionais especiais, e que é
necessário que esse sistema tenha uma estrutura que permita a
mobilidade de tais alunos. Essa mobilidade supõe que a escola, além de
oferecer a esses alunos condições de aprendizagem adequadas, deve
contar com apoio específico, uma vez que muitas necessidades exigem
um atendimento que vai além daquilo que é estritamente escolar
(fonoaudiólogos, neurologistas, etc.). Isso remete à discussão do quanto a
escola pode ser integradora em si mesma, ou seja, remete à questão do
papel da escola numa sociedade excludente.
47
Em síntese, a maior parte dos posicionamentos dos autores a
respeito da questão se concentra em dois blocos: para alguns, reconhecer
o direito de todos a educação de qualidade implica em que a escola
regular pública deva oferecer vagas, equipamentos, pessoal especializado,
etc. para todas as crianças, incluindo aquelas com necessidades especiais.
Outros consideram tal direito contemplado mesmo quando boa parte das
condições de acompanhamento se concentra nas instituições particulares.
Duas
polêmicas
inter-relacionadas
emergem
dessa
questão:
o
financiamento público ou privado da educação e a sobrevivência de uma
dualidade de sistemas, ou seja, de um sistema de educação especial
paralelo ao sistema geral de educação.
A questão da dualidade de sistemas aparece na legislação
brasileira, já na lei 4024/61 (MAZZOTTA, 2006, p.68). Aí, o conceito de
integração aparece como uma integração “dentro do possível”, ou seja, o
legislador reconhece as deficiências do sistema para uma integração
completa e prevê uma continuidade dos serviços de educação especial,
para os casos em que os serviços educacionais em geral não forem
adequados a todos:
Pode-se inferir que o princípio básico aí implícito [no art.88] é o
de que a educação dos excepcionais deve ocorrer com a utilização
dos mesmos serviços educacionais organizados para a população
em geral (situação comum de ensino), podendo se realizar
através de serviços educacionais especiais (...) quando aquela
situação não for possível (MAZZOTTA, op. cit).
Tal situação
geralmente
não
era
possível,
evidentemente.
Mazzotta chama a atenção para o fato de que os casos situados fora das
possibilidades, não se enquadrando no sistema geral de educação
acabariam sendo remetidos para instituições especializadas de caráter
assistencial (geralmente particulares e subvencionadas pelo Estado), de
forma que qualquer tipo de serviço educacional (ainda que não escolar)
podia se candidatar às subvenções estatais. Kassar (1998) identifica nessa
distribuição, entre os setores público e privado, do atendimento à
educação especial, uma característica do liberalismo difuso na época. Em
48
tempos neoliberais, esse processo tende a se radicalizar, o privado
ganhando mais subvenções e o público perdendo cada vez mais
capacidade de assumir a educação de modo geral.
A
excepcionalidade
aberta
pela
preferência
expressa
na
legislação atual mantém a questão em termos semelhantes. A Resolução
CNE/CEB nº 2, de 11 de fevereiro de 2001, que institui as Diretrizes
Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, define que o
atendimento extraordinário (não preferencial) continuará ocorrendo em
escolas especiais:
Art. 10. Os alunos que apresentem necessidades educacionais
especiais e requeiram atenção individualizada nas atividades da
vida autônoma e social, recursos, ajudas e apoios intensos e
contínuos, bem como adaptações curriculares tão significativas
que a escola comum não consiga prover, podem ser atendidos,
em caráter extraordinário, em escolas especiais, públicas ou
privadas, atendimento esse complementado, sempre que
necessário e de maneira articulada, por serviços das áreas de
Saúde, Trabalho e Assistência Social (BRASIL, 2001)
As políticas posteriores mostram um incremento do investimento
publico
em
educação
especial.
Assim,
em
2005,
dos
42765
estabelecimentos com educação especial, no Brasil, 36697 eram públicos
e 5866 privados. Entre 2002 e 2005, houve um crescimento de 75,3% de
estabelecimentos públicos com educação especial. Também ocorre um
crescimento na quantidade de estabelecimentos inclusivos, ou seja,
escolas que recebem, nas classes regulares, alunos com necessidades
educacionais especiais: de 17994 em 2002 (sendo 16282 públicos e 1712
privados) saltam para 38019 em 2005 (sendo 34366 públicos e 3653
privados), num crescimento de 111%.7
Mesmo assim, o acesso à escola inclusiva não pressupõe
necessariamente a superação de toda segregação, já que os alunos que
requerem atenção especializada (que a escola chamada inclusiva não tem,
no momento, condições de oferecer) tenderão a encontrá-la no ensino
7
Dados da Secretaria de Educação Especial (SEESP) do Ministério da Educação (MEC), disponíveis em
http://portal.mec.gov.br/seesp.
49
privado, ficando excluídos os que não podem pagar por ele; na mesma
linha de raciocínio, não expressa uma mudança no sistema geral de
ensino para atender às especificidades, mas no “enquadramento” dos
“casos possíveis” dentro desse sistema, que continua a oferecer dois tipos
de educação _ regular e especial.
Para Mazzotta (2003, p.78), a vinculação necessária entre
portador de deficiência (sic) e educação especial pode representar uma
visão estática, enquanto que uma “visão por unidade (do educando e/ou
do atendimento educacional) ou dinâmica, por conter as noções de tempo,
mudança e flutuação” exigiria considerar que o educando especial se
vinculará a situações de educação comum ou especial, conforme as
necessidades de cada momento e de cada situação de aprendizagem.
É preciso não perder de vista a importante observação de que
nem todo portador de deficiência requer ou requererá serviços de
educação especial, ainda que possa necessitar de tratamento ou
intervenção terapêutica (Habilitação ou Reabilitação) em função
de suas condições físicas e mentais (MAZZOTTA, 2003, p.195).
Para esse autor, o atendimento às necessidades educativas
especiais é, sempre e antes de tudo, atividade educativa, devendo ser
compreendido como parte integrante da educação formal.
Como Mazzotta (op. cit.), Cartolano (1988) defende que a
divisão da educação em dois sistemas, um regular e outro especial
limitam as possibilidades do processo de inserção das minorias na escola,
considerando que necessitam de atendimento especial, mas também e
principalmente de educação regular, de convívio escolar e exercício da
cidadania.
Essa situação, segundo Mantoan (2004, p. 120-124), tem
relação, nos aspectos legais, com a distorção que ocorre entre o texto da
Constituição Federal e o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. O direito à igualdade, expresso no artigo 5º, e o direito de todos
à educação (a partir do art 205), estariam se chocando com a
possibilidade de substituição do ensino regular pelo especial, prevista no
50
art.58 e seguintes da LDB. Há uma confusão, diz Mantoan, entre as
expressões
“educação
especial”
e
“atendimento
educacional
especializado”, como se fossem sinônimos. Esta última aparece na
Constituição Federal, no art. 208, e na LDB, art. 58 e seguintes,
significando o atendimento complementar para “melhor atender às
especificidades dos alunos com deficiência, abrangendo principalmente
instrumentos necessários à eliminação de barreiras que as pessoas com
deficiência têm para relacionar-se com o ambiente externo [...]” Já
Educação Especial, a menos que seja reconceituada, sempre significou
uma modalidade de educação que substitui a educação regular, mesmo
quando oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, na forma
de classes especiais.
Para concluir esse percurso acerca do especial na educação,
considero importante, dentro dessa transição de integração a inclusão, e
permeando a dualidade escola comum/educação especial, apresentar
alguns aspectos das tentativas de reconceituação próprio do campo, em
que as expressões definidoras do real são substituídas de tempos em
tempo, numa possível crença de que as relações concretas se modificam
quando se modifica o discurso. Deficiente, portador de deficiência,
portador
de
necessidades
educacionais
especiais,
pessoa
com
necessidades educacionais especiais são algumas dessas expressões.
Tratarei aqui, especificamente da polarização deficiente/pessoa
com necessidades educacionais especiais, polarização que sugere a
necessidade de resposta a algumas perguntas: A expressão “necessidades
educacionais especiais” significa uma mudança de ponto de vista, com
relação ao conceito de deficiência, devendo, portanto, substituí-lo, ou uma
elaboração mais abrangente, incluindo a noção de deficiência?
Que
conseqüências tem a negação da existência da limitação como parte
constitutiva da identidade? Não seria tão incoerente quanto considerar
como identidade unicamente a característica tida como limitação?
51
A primeira pergunta tem como uma das respostas possíveis a
visão de Marchesi e Martín (1995, p.11). Conforme esses autores, a
denominação “necessidades educativas especiais” começou a ser utilizada
nos anos 60 (no Reino Unido, a partir do relatório Warnock), e pretendia
deslocar a ênfase da deficiência para a capacidade da educação em
atender às necessidades da criança.
‘“Essa mudança substancial de
enfoque”, dizem os autores, “lança luz sobre inúmeras e variadas
dificuldades de aprendizagem que afetam uma proporção muito maior de
alunos”. Ou seja, eles consideram que amplia consideravelmente a
compreensão antes centrada na terminologia da deficiência, e, portanto,
nas características do indivíduo interpretadas com base numa suposta
normalidade.
Na utilização do conceito por outros autores, ele aparece muito
mais como uma conceituação mais abrangente, que engloba várias
especificidades. Ferreira (1998), analisando o processo de elaboração da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96), afirma que
a
mudança
na
denominação
ocorre
“de
modo
a
englobar
os
superdotados”. Não parece explicitar uma mudança de ponto de vista,
mas a adoção de uma categoria capaz de incluir diversas especificidades:
A categoria das necessidades especiais aparece pela primeira vez
no texto da Câmara (relatório Amin e no projeto aprovado em
1993) de modo a englobar os portadores de deficiência e os
superdotados – estes apareciam no projeto original e foram
retirados em 1989, com a adoção da redação do Artigo 208 da
Constituição. O parecer Cid Sabóia, aprovado no Senado em
1994, incluiu os alunos com problemas de conduta nos portadores
de necessidades especiais. A versão final mantém a categoria
mais ampla mas não mais especifica quem são os educandos com
necessidades especiais ou quais são essas necessidades – apenas
mantém uma referência pontual, em um inciso, à deficiência e à
superdotação (FERREIRA, 1998, p.10 - grifos meus).
Ainda no texto de Ferreira (1998), há a informação de que até
então “o Ministério da Educação vinha trabalhando, em seus documentos,
com a indicação de que o alunado considerado especial inclui os
educandos
com
deficiência,
condutas
típicas
e
altas
habilidades”
(FERREIRA, 1998, p.10). Ainda que o autor ressalte, logo após, que a
52
referência à nova denominação acompanha a tendência internacional
fortalecida principalmente com a Declaração de Salamanca, a referência à
inclusão dos superdotados como motivo para a mudança na denominação
legal não deixa de ser um indicativo do quanto são ambíguas tais
discussões.
Em Omote também é encontrada a expressão “necessidades
educacionais especiais” como um termo de maior abrangência, que inclui
as diversas especificidades, mas não as substitui enquanto definição. Diz
ele, em nota de rodapé que explica o uso da palavra “deficiência”:
Embora a educação inclusiva se refira ao ensino de uma ampla
diversidade de condições que tornam o seu portador
suficientemente diferente para requerer adaptações e adequações
na avaliação e procedimentos de ensino, eventualmente até de
seus objetivos, neste texto trataremos particularmente da
educação de deficientes. Nesse sentido, serão empregados os
termos deficiência e deficiente, em vez de necessidades
educacionais especiais e pessoas com necessidades especiais
(OMOTE, 2004, p. 1, grifos do autor).
O adjetivo “portador” também é questionado, desta vez por
Cartolano (1998, p.37, nota 3), que compreende que
“a surdez, a
cegueira, a síndrome de Down, a paralisia cerebral, etc., são condições
que integram os seres, que são inerentes ao seu modo de ser”, portanto,
não se pode afirmar que as pessoas sejam suas “portadoras”. “A
‘diferença’, portanto, assumida por eles como tal, faz parte deles e é a
partir disso que integra também sua percepção do mundo e dos homens”.
Dessa forma, considerar alguém “portador” de algo significaria
excluir, daquilo que é considerado sua identidade, aquele aspecto. Aqui,
aparece uma negação da limitação como parte constitutiva da identidade;
mais uma vez, o idêntico se confunde com o normal e com o ideal. Desse
ponto de vista, o surdo seria um ouvinte-menos-os-ouvidos, um cego, um
vidente-menos-os-olhos, como já criticava Vygotsky (1989, p.3), nos
Fundamentos da Defectologia, escrito nos anos 20 (VALSINER e VAN DER
VEER, 1996): “Nunca obteremos pelo método da subtração a psicologia de
53
uma criança cega, se da psicologia de um vidente subtrairmos a
percepção visual e tudo o que está relacionado com esta”.
Por outro lado, há também a possibilidade de se considerar como
identidade
unicamente
a
característica
tida
como
limitação,
como
lembram Skliar (2001) e Bueno (1998), esquecendo-se dos demais
aspectos e também da mutabilidade e instabilidade do conceito, por conta
das relações de poder nas quais se constitui. Para Skliar,
a identidade dos surdos não pode ser pensada em termos de
identidade negativa –todos os surdos têm uma identidade
deficitária _ ou de identidade positiva – todos os surdos têm uma
identidade constituída a partir da identificação com outros surdos
e com a língua de sinais. [...] A construção da identidade surda
dependerá, entre outras coisas, da forma como cada sujeito é
inventado, traduzido, interpelado e interpretado no contexto no
qual vive (2001, p.100).
Por isso, a discussão da terminologia é considerada, por Skliar,
como “apenas um debate sobre melhores e piores eufemismos para
denominar a alteridade e que não caracteriza, por si mesma, nenhuma
mudança política, epistemológica e/ou pedagógica” (SKLIAR, op.cit.,
p.96). Alerta, no entanto, para os riscos que a utilização de tais conceitos
traz para a vida cotidiana. Acaba admitindo que se “trata [...] de novas e
velhas acepções que servem para traçar novas e velhas fronteiras de
exclusão/inclusão, referidas ao estar fora, ao estar do outro lado, ao
definirmo-nos em oposição”.
Ora, se assim é, então é preciso considerar que faz diferença
denominar alguém deficiente, ou diferente, ou portador de necessidades
tais ou quais, assim como faz diferença pensar nas razões de tais
denominações. E, se faz diferença na vida cotidiana, faz também
politicamente, epistemologicamente, pedagogicamente. Nossas definições
identitárias, imersas nas relações de poder (SILVA, T., 2000), não deixam
de ser campos de confronto, de redefinição. Se isso ocorre mais no
cotidiano ou mais no campo epistemológico, ou pedagógico, ou político,
isso tem a ver com a configuração atual da disputa. Afinal, sempre é
54
possível vê-los como campos em inter-relação, ao invés de campos
isolados.
Dedicar-me a essa reflexão sobre o “especial” na educação para
todos tem algumas razões: o discurso da inclusão encontra mais eco
nesse terreno do que em outros; as disputas no território da educação
especial são ressonâncias das disputas no campo educacional como um
todo; o lugar da escola, no interior de tais disputas e por força delas, vai
se deslocando de modo que os esforços de transformação podem acabar
se transformando também em esforços de manutenção (mover-se muito,
para não sair do lugar...), mas não há que se deixar esmaecer a
possibilidade de que tal mover-se acabe se deslocando de seu centro: e
produzindo, quem sabe, transformações...
Retornarei a todas essas questões nos capítulos em que tento
analisar o discurso oficial, acadêmico e escolar em torno da inclusão.
Criam-se
redes
de
sentidos
a
respeito
da
inclusão
nos
mundos
acadêmicos, oficial e escolar, e a pergunta que me faço e tento responder
é: como tais redes discursivas se configuram e se entrelaçam? Para um
esboço de resposta a essa questão, penso ser necessário interromper a
discussão
semiótica.
sobre
inclusão
para estudar
os processos de
mediação
3. MEDIAÇÃO SEMIÓTICA, HABITUS E PRÁTICA DISCURSIVA
Neste capítulo, procuro estabelecer relações entre a produção de
Vigotski, mais especialmente as noções de mediação pelo signo e
internalização, o conceito de habitus em Bourdieu e a noção de prática
discursiva. Não se trata aqui apenas de delimitar um campo teórico no
qual tomarei assento para pensar os discursos. Na verdade, é muito mais
um esforço de construir ferramentas de trabalho para lidar com a questão
dos discursos, ou seja, já é um esforço metodológico, uma vez que meu
objeto (o discurso) e minhas ferramentas são da mesma ordem.
Construo,
numa
prática
discursiva,
um
texto
acerca
de
determinados discursos, texto esse que se constitui no dialogo, imbricação
e distanciamento com relação a esses discursos que tomo como objeto de
pesquisa. Mas há discursos que se entretecem nesse meu texto: uma
descrição de homem e mundo como interconstituintes, onde se pode
encontrar a voz de Marx (1996, 1996a; 1989); uma concepção das
práticas humanas como (também) determinadas a partir de práticas
sociais mais amplas, de formas mais gerais da organização da sociedade,
e nisso me amparo em Bourdieu (1994; 1998; 2001; 2005); um
entendimento de discurso como prática, como fazer humano, e nisso me
servem de referência Vigotski (1988; 1989; 1993; 1996; 1998; 2000;
2003), Bakhtin (2003; 2004), Foucault(1995; 2006), Pêcheux(2006); e
por fim, uma disposição de colocar minha própria prática discursiva, como
pesquisadora, a serviço de uma análise de como determinados discursos
se constituem em interação dialógica e em enfrentamento ideológico com
outros discursos. Para tanto, foram de grande utilidade as elaborações
teórico-metodológicas de Orlandi (2005) e Verón (1980; 2004).
A linha que tento tecer, indo de Vigotski à análise de discurso na
tradição
de
Pêcheux
e
Foucault
e
passando
por
Bourdieu,
é
56
responsabilidade minha. Tem mais de intuição do que de pesquisa em sua
base. Pareceu-me, no entanto, quase impossível escapar dela, tal o rumo
que foi tomando, no decorrer da pesquisa e da escrita, os diálogos entre
os autores, no interior do meu discurso. Teve pouco a ver com um desejo
prévio, devo confessar, e menos ainda com o que se delineava no projeto
original de doutorado. O discurso toma rumos próprios, alguns à revelia
de quem se pensa seu autor, embora este não possa se recusar a
assumir-lhe os riscos... De qualquer modo, pareceu-me ter a coerência
necessária para amparar tanto a análise quanto a interpretação dos
discursos a que eu me propunha.
3.1. VIGOTSKI COMO PONTO DE PARTIDA PARA UMA ANÁLISE DOS
DISCURSOS
Meu campo de atuação prática é o campo pedagógico. É nos limites
permitidos pelas compreensões forjadas nessa minha atividade que serão
analisados os textos e falas produzidos no recorte desse campo
denominado “inclusão escolar”. O fato de que, ao fazê-lo, eu acabe
explorando as interfaces da pedagogia com campos teóricos diversos (a
filosofia, a psicologia, a sociologia, a lingüística...), buscando brechas e
“ganchos”
nas
fronteiras
desses
campos,
só
explicita
uma
das
características das práticas humanas, que é a de não se configurarem
dentro de limites disciplinares. Voltarei a esta questão em vários
momentos do trabalho, e mais especialmente quando discutir o conceito
de prática discursiva.
Pois bem: como a pedagogia é minha referência, o primeiro critério
que me ocorre para justificar a escolha de Vigotski como ponto de partida
para certo tipo de análise dos discursos é o volume de referências a esse
57
autor nos textos acadêmicos da área8, associado ao fato de que não é
necessário argumentar sobre a pertinência desse autor para a temática do
discurso. Não há dúvida de que Vigotski é uma autoridade no estudo da
constituição psicossocial dos processos discursivos: analisou a gênese da
interconstituição entre pensamento e palavra, o percurso da fala ao
pensamento,
apontou
para
uma
história
do
desenvolvimento
dos
conceitos, enfim, deu uma enorme contribuição, no início do século XX,
para se pensar subjetivação/objetivação e discurso. É verdade que ele o
fez no início do século passado, numa União Soviética em pleno processo
revolucionário, e estava imerso na tarefa gigantesca de construir uma
psicologia que respondesse às necessidades práticas de reconstrução do
país.
Durante esse século que nos separa de Vigotski, muita coisa
aconteceu na seara dos estudos do discurso. Há elaborações complexas a
respeito, de modo que parece estranho remeter a Vigotski para fazer
qualquer trabalho analítico nessa área.
Eu justifico: estudo Vigotski há
muito tempo, e sempre me perguntei por que os textos que tratam de sua
obra, ou que o relacionam com Bakhtin, ou que o “aplicam” às várias
situações pedagógicas, nunca colocam em questão, já que trazem Vigotski
para os tempos atuais, o uso da palavra “signo”. É como se a psicologia
da educação que trata de Vigotski, ou que se ampara em sua elaboração
teórica e a lingüística/semiologia que tratam dos discursos, nunca
tivessem se encontrado em terras brasileiras.
A lingüística se constituía num território estranho para mim. Produzi
sempre dentro da psicologia da educação, mas me parecia que as noções
vigotskianas de signo, palavra, evolução do conceito, fala interior tinham
bastante a dizer a uma análise do discurso. E certamente bastante a
”ouvir”. De modo que, partindo de Vigotski para estudar os discursos
produzidos no campo da inclusão, e não deixando de fazer minhas
8
Góes (1991), Pino (1993), Garcia (1998), Lacerda (2000), Rego (1995), Smolka (1993;), Freitas (1994), Duarte
(2004) são alguns dos trabalhos mais conhecidos, cuja presença nos cursos de formação de professores (tanto
licenciaturas quanto cursos de formação em serviço) é inegável.
58
escolhas entre as várias linhas da análise de discurso, tive que ir
construindo um percurso próprio.
Não trabalhei às cegas, porque, além de Vigotski ser um autor
conhecido, respeitado, além de minha hipótese sobre sua contribuição a
uma análise do discurso, há uma terceira razão para sua escolha: ao
procurar analisar os discursos no campo de sentidos denominado
“inclusão, proponho-me a fazê-lo compreendendo-os como produzidos em
um “fazer discursivo”, em uma prática, e isso pressupõe sua definição
como produção humana, nos termos de Marx (1996; 1996a; 1989).
Produzir discurso aqui é ação objetiva, material: não é apenas um “falar
sobre”, um “escrever sobre”. Chamo-o, com Foucault e Pecheux, de
prática discursiva9; o adjetivo ‘discursiva” não pretende dizer que há
práticas humanas não-discursivas, mas que o fazer humano que implica
em produzir-reconhecer discursos tem sua especificidade própria. O
material com que trabalhamos, as ferramentas usadas, o modo de operar
e o produto são uma mesma coisa: o discurso.
O campo teórico/metodológico em que me movo tem, portanto,
suas raízes no modo como Marx trabalhou. Pressupõe, principalmente, a
adoção de um método de trabalho que, ao invés de estudar teorias e sua
pretensas relações com uma possível verdade, ou a prática e suas
regularidades como verdades em si, entenda como noções operatórias
aquilo que se convencionou denominar “conceito”10 ; que entenda a análise
como “aplicação do
método empregado e avaliação do significado dos
fenômenos obtidos” (Vigotski, 1996, p. 375),
uma realidade a seus componentes básicos;
e não como redução de
que perceba transitividade
entre as polarizações encontradas, ao invés de oposições insolúveis; que
9
Charaudeau e Maingueneau escrevem que para fazer “convergir o vocabulário marxista da ‘práxis’ e o de
Foucault”, a análise do discurso francófona empregou a noção de prática discursiva (é assim que a usam Verón,
Pêcheux, Bourdieu). Acrescentam os autores: “Na verdade,quando se diz ‘prática discursiva’ em vez de discurso,
efetua-se um ato de posicionamento teórico: sublinha-se obrigatoriamente o discurso como uma forma de ação
sobre o mundo produzida fundamentalmente nas relações de força sociais” (2004, p 396).
10
Na prática científica, tratar um conceito como operador significa que ele não apenas representa um objeto, ou
uma relação, ou rede de relações: ele é um instrumento que permite construir certas relações entre objetividade e
subjetividade. Configuram-se como ferramentas para certas operações, dentro da ação de fazer análise, dentro da
atividade de fazer ciência (Para maior clareza, ver 3.6.1 : Conceito como operador ou como representação de
uma realidade, p.106-109).
59
entenda as “totalidades” vivas (homem, mundo, sociedade, história) como
provisórias, abertas e entrelaçadas, tratando-as como configurações ao
invés de coisas; que pressuponha processos que se entrecruzam criando
novas totalidades no desenrolar dos processos humanos, ao invés de
desenvolvimento linearizado. Tento, com isso, aproximar-me da própria
prática discursiva e científica de Vigotski (1996), o qual fazia a defesa da
utilização do método de Marx, ao invés e fazer uma colagem de citações
do marxismo11 .
Torna-se então, compreensível, como busca de coerência, a escolha
de Vigotski, desta vez pelo ângulo da filiação teórico-metodológica: talvez
seja, juntamente com Bakhtin e Wallon, os pesquisadores de base
marxista mais conhecidos/citados na produção acadêmica contemporânea
da área da Educação (ao menos aqui no Brasil).
Da intersecção desses dois campos _ a pedagogia e o pensamento
de Marx – já se produziu muito, em termos acadêmicos, mas não há como
negar que o discurso referenciado em Marx perdeu boa parte da sua
“autoridade”. Pode-se dizer que, em educação, há tempos não está mais
“na moda” referir-se a Marx. As crenças sobre o fim da história, as várias
interpretações e releituras do discurso de Marx, as diversas leituras e
releituras das experiências socialistas, a descrença pós-moderna em
quaisquer grandes narrativas, entre tantos elementos, parecem estar na
base dessa deslegitimação. Paradoxalmente, é neste momento em que
parece que Marx não é mais referência “autorizada” (ou pelo menos
interlocutor “aceitável”) para a maior parte do discurso pedagógico, que
estudiosos que assumidamente bebem em suas fontes12 passam a ser
aceitos e referendados no interior desse mesmo discurso13.
11
“Não quero receber de lambuja, pescando aqui e ali algumas citações,o que é a psique, o que desejo é
apreender na globalidade do método de Marx como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique”
(VIGOTSKI, op.cit, p.395),
12
“O pensamento de Vygotsky, portanto, não foi radical simplesmente no contexto da psicologia e da
metapsicologia dominantes de sua época, mas radical também no âmbito da própria tradição de Marx. Afinal ,
ele atacou de frente a questão da consciência e da psicologia, o que Marx não fizera – com isso, levou adiante e
própria psicologia de Marx” (NEWMAN e HOLZMANN, 2002, p.29).
13
Não estou defendendo, de modo algum, que não se possa “ler” qualquer autor de outro ângulo que não aquele
que ele assume como sua referência. É uma questão apenas de saber qual/is é/são a/s referência/s que o autor
60
Analisar a situação acima apontada exigiria muitas outras teses.
Para efeito deste trabalho, basta dizer que Vigotski me serve como ponto
de partida para uma empreitada da análise dos discursos porque nele
encontro
ferramentas, noções operatórias suficientemente poderosas
para ajudar a forjar uma compreensão do discursivo, e creio que tais
noções dão uma contribuição para as concepções e métodos de análise
dos discursos contemporâneos. Tentarei fundamentar essa afirmação nos
textos a seguir.
3.2. A MEDIAÇÃO SEMIÓTICA COMO DIMENSÃO DA MEDIAÇÃO PELO
TRABALHO
Mediação é uma noção operatória que faz sentido na produção
textual de Marx14 porque, para ele, o que nos torna humanos é o fato de
agirmos de forma mediada pela cultura e pela história 15 (nossos atos, à
diferença dos atos animais, são atos que se beneficiam dos atos
anteriores dos membros de nossa espécie e se articulam com relação às
dimensões
passado-presente-futuro 16).
Não
reagimos
somente
ao
presente imediato, mas às condições antecedentes desse presente e às
conseqüências possíveis do que fazemos nele.
assume, qual/is as que eu com leitor assumo e que novas elaborações teóricas se constroem na relação entre essas
leituras.
14
Os conceitos de Marx que estou usando aqui são parte de sua produção inicial, do que se convencionar chamar
“o jovem Marx”. Recorro a eles porque são os que aparecem explícita ou implicitamente nos textos vigotskianos
analisados.
15
Newman e Holzman (2002, p.137) insistem em que a “atividade humana não é mediada de modo nenhum” .
Aqui há, em minha opinião, um sério equivoco quanto ao conceito de mediação. Mediação não é
necessariamente instrumental, como algo que “está entre”( a enxada entre a mão e a terra, p.ex.), mas algo que
transforma os dois termos (o uso do instrumento modificando a mão e a tarefa, ao mesmo tempo). “As
circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias” (MARX, 1996, p.56). Assim,
quando falo de mediação pela história, estou dizendo, com Marx, que a atividade humana nunca é puramente
imediata (os homens, mesmo que num primeiro momento tivessem se apropriado de algo natural e o
transformado em instrumento, não somente se apropriam daquilo que fazem agora, mas do que já foi feito pela
humanidade e, ao objetivarem isso que foi apropriado, objetivam também o processo histórico incorporado).
16
Compreendidas como fluxo, “totalidade viva, sensível, contínua , indivisível da existência humana”
(NEWMAN e HOLZMANN, 2002, p.25), mas que, quando (do ponto de vista conceitual) esse fluxo se articula
com um “ponto” no tempo/espaço, que é a existência concreta do ser que age, pode ser “imobilizado”
provisoriamente.
61
Compreendendo que as reduções do pensamento de Vigotski
(aqui entendidos como fazendo parte de um processo de isolamento dos
conceitos vigotskianos de sua matriz de pensamento) têm relação, entre
outras coisas, com uma redução da idéia de mediação, considero
importante o argumento que Duarte (2004) desenvolve a respeito da
relação dialética que Marx pressupõe entre os conceitos de apropriação e
objetivação, relação constituinte da historicidade do ser humano.
Partindo dos conceitos de apropriação e objetivação em Marx, o
primeiro definido como o processo pelo qual “o ser humano, pela sua
atividade transformadora, apropria-se da natureza incorporando-a à
prática social” e o segundo como produção de uma “realidade objetiva que
passa a ser portadora de características humanas”, Duarte
nos recorda
que, em Marx, é a dialética entre um e outro processo que constitui a
“dinâmica essencial do processo de produção e reprodução da cultura
humana” (DUARTE, 2004, p. 117). Em Marx, não há a suposição de uma
cultura e uma história, separadas da humanidade em sua concretude. A
idéia de uma realidade para-sempre-externa ao homem, que constrói
instrumentos para “agir sobre” essa realidade17, não leva em conta que só
se constitui como “realidade” aquilo que faz sentido para a atividade
humana, e é na dialética entre o apropriar-se e o objetivar que esse “fazer
sentido” ocorre.
As fronteiras entre homem e sociedade, estabelecidas de modo
fossilizado, se diluem nesse processo: o homem só o é porque é
coletividade. Não se trata aqui de relações “entre” homem e sociedade,
cada um tomado isoladamente. Trata-se da própria configuração humana,
que não pode ser meramente individual, nem pode ser pura coerção
social: o que nos configura como humanos é o fato de sermos-com-osoutros-na-história18 . Esse “outros” são o que se convencionou chamar de
17
Não há aqui uma defesa de que as “coisas do mundo” não existam, ou que só existam para os sentidos do
homem, mas que o que faz com que tais coisas adquiram realidade para os homens é o fato de fazerem sentido
em sua atividade de apropriação/objetivação.
18
Ver a noção de história que _apoiados na Nova História e em Nietsche _ Foucault e Pêcheux assumem: “o
tempo é constituído por relações de força em permanente mudança e essa oscilação permite um relativo
equilíbrio entre lembrar e esquecer no interior de um jogo entre a forma homem com as forças do tempo”.
62
sociedade, mas também são o que se convencionou chamar de história:
porém, não se limitam nem à presença imediata (o face-a-face), nem à
geração atual, nem apenas aqueles que já viveram, mas também, os que
potencialmente existirão (nosso projeto de humanidade)... São toda a
atividade humana objetivada. O outro está no livro, na roupa, no doce, na
máquina, na pintura. Está nas discussões que travo “comigo mesma”.
Está nos códigos, nos valores, na elaboração de normas. Também não
existe em si. Existe porque está em-relação-comigo. Aliás, o verbo “estar”
não ajuda na compreensão, porque dá uma idéia de estático, enquanto
que a presença do outro é também dinamismo. O outro-em-relação–
dinâmica-comigo é social e é histórico, mas não é “dado” pelo social nem
pela história como “totalidades fechadas”.
Como chegar à questão da linguagem, partindo de uma
construção conceitual que articula apropriação e objetivação? Volto ao que
dizia sobre “fazer sentido”: ao organizar sua existência, os homens não se
apropriam de tudo, mas somente daquilo que parece vinculável a
melhores
condições
de
sobrevivência.
Nesse
processo
de
apropriação/objetivação, aquilo que era “realidade externa ao homem”
passa a ser realidade humana: é objetivada e subjetivada, num mesmo
movimento. “A objetivação”, afirma Duarte (2004, p.118), “também
resulta em produtos que não são objetos físicos, como a linguagem, as
relações entre os homens, o conhecimento”. Creio que a palavra
“também” pode dar a impressão de que a linguagem e conhecimento são
subproduto da objetivação; não é isso, no entanto, a compreensão de
Marx, expressa em trecho selecionado pelo próprio Duarte (2004, p.1189): “o homem precisa conhecer a natureza do objeto para poder adequálo às suas finalidades” da mesma forma como a transformação do objeto
em instrumento exige “levar em conta, conhecer, as características
naturais do objeto[...] relacionadas às funções que terá o instrumento”.
(GREGOLIN, 2004, p.163). O conceito incorpora a idéia de descontinuidade, de heterogeneidade, de
provisoriedade e contingência (história para) (Op. cit., p.165-166).
63
Parece,
a
se
considerar
esse
conhecer
e
considerar
as
características do objeto como constituintes da própria possibilidade de
apropriação, que a dialética entre os processos de apropriação e
objetivação já se constitui produzindo sentido (por mais primárias que
sejam tais produções). Linguagem, então, pode ser entendida como
produto de objetivações, mas é preciso não esquecer de que só se
objetiva aquilo que precisa ser apropriado; produto e processo têm uma
conexão intrínseca: a produção de sentido é, ao mesmo tempo, resultado
e instrumento da busca humana pela sobrevivência. Incorporada à
atividade e tornando-a especificamente humana, não pode mais se
separar
dela:
torna-a
atividade
significativa
(é
objetivação
e
subjetivação). A ação humana se torna simbólica, discursiva.
A dialética entre os processos de apropriação e objetivação não
poderia, porém, ser compreendida como se não tivesse historicidade, isto
é, como se os modos dos homens produzirem sua existência não
modificassem a si próprios. A análise desse processo, feita nos escritos de
Marx, é bastante conhecida no meio acadêmico. Para efeito desse
trabalho, basta-me apontar o modo assimétrico como tais modos de
produção foram se configurando, de modo que o produto da atividade
humana foi lentamente se separando de seu produtor.
Apropriar-se/objetivar
implica
sempre
em
novas
apropriações/objetivações, a cada momento incorporando os produtos
anteriormente
elaborados
processo
necessidades
as
no
processo
vão
sendo
histórico-cultural.
produzidas
em
Se
nesse
condições
assimétricas (em relações de distribuição desigual do poder de produzir
sua própria vida no interior da coletividade e entre as coletividades) então
a dialética entre apropriação e objetivação deixa de ter sua razão última
de ser nas necessidades reais dos homens, e passa a se organizar em
torno de necessidades estranhas à produção da vida. Marx denomina a
esse processo alienação, processo no qual o homem se separa de sua
64
atividade (que o constitui), da natureza, de si mesmo como ser genérico e
dos outros homens19.
No mundo real, prático, a auto-alienação só pode revelar-se
através da relação prática, real, a outros homens. O meio, pelo
qual a alienação ocorre, também é prático. Por conseguinte, o
homem, através do trabalho alienado não só produz a sua relação
ao objecto e ao acto de produção como a homens estranhos e
hostis, mas produz ainda a relação dos outros homens à sua
produção e ao seu produto e a relação entre ele mesmo e os
outros homens. Assim como ele cria a sua produção como a sua
desrealização, com a sua punição, e ao seu produto como perda,
como produto que não lhe pertence, da mesma maneira cria o
domínio daquele que não produz sobre a produção e o respectivo
produto. Assim como aliena sua própria atividade, da
mesma maneira outorga a um estranho a atividade que não
lhe pertence. (MARX, 1989, p.168; grifos meus)
Há quem interprete que, nas condições acima descritas, as ações
especificamente
humanas
percam
sua
configuração
onde
se
interconstituem o pensar-falar-agir: a prática alienada não produziria
discurso, mas se ampararia num discurso estranho a ela e seu pensarfalar estariam descolados dessa prática.
Minha discordância disso tem relação com a própria idéia de
Marx de que a alienação é produto e necessidade da atual forma como
se relacionam capital e trabalho, e não condição humana atemporal. As
relações de trabalho no capitalismo separam o homem daquilo que ele faz
e precisam, para sua própria manutenção e reprodução, que ele acredite
que
subjetividade
e
objetividade
são
concretudes
que
existem
independentemente da ação humana, necessitam de que ele não perceba
sua própria atividade como constituinte da subjetivação–e-objetivação,
necessitam que ele outorgue a estranhos a atividade que não lhe
pertence.
Diz Marx, a esse respeito:
Os economistas burgueses estão tão enclausurados nas
representações
de
determinada
etapa
histórica
de
desenvolvimento da sociedade, que a necessidade de que se
objetivem os poderes sociais do trabalho lhes aparece como
19
Cf.. Mészáros, A teoria da alienação em Marx (2006, p.20).
65
inseparável da necessidade que esses poderes se alienem em
relação ao trabalho vivo (Marx, apud Duarte, 2004, p.127).
Duarte diz que, para superar a situação em que o trabalho morto
(objetivado) domina o trabalho vivo, situação que é uma inversão do
processo humanizante, é necessário um trabalho de compreensão e
análise; “para que sejam realizadas ações coletivas de superação objetiva
das relações de produção que determinam tal inversão” (2004, p.127). É
preciso não esquecer que o trabalho de compreensão e análise é trabalho
prático, é fazer coisas. Os esforços de superação objetiva da forma como
se configuraram as relações de produção se dão também no fazer
discursivo, como dimensão da totalidade da prática humana. Não são
prévios nem posteriores a quaisquer outras dimensões da prática.
Objetivação/subjetivação, que são decorrência e necessidade da
própria atividade humana, aparece nas representações capitalísticas como
processos de origem distinta e com objetivos distintos (separação
necessária entre homem e mundo, entre pensar/falar e agir). Esse
aparecer não é casual, como já foi dito: é produzido nos processos de
alienação. E preciso entender que o homem age-pensa-fala de forma
interconstituinte,
mesmo
quando
isso
se
dá
dentro
da
alienação
capitalista. O homem não se rompe internamente (subjetivação e
objetivação não se desvinculam mais, uma vez interconstituidas), mas
precisa acreditar que se rompe, precisa se sentir cindido (e a
ideologia conforme descrita por Marx _ ilusão, acobertamento das
relações reais _ serve para que ele continue pensando assim). Se de fato
ocorresse
tal
ruptura,
que
razão
de
ser
teriam
os
esforços
de
acobertamento, de naturalização, de reificação? Um processo que é
histórico, situado e datado, precisa se mostrar como se não o
fosse, como se fosse “coisa” e não processo20.
20
“Para Foucault, o fato de haver uma disciplinarização, de ter sido necessário desenvolver mecanismos de
controle e vigilância contínuos demonstra que os sujeitos lutam. Dessa luta deriva, como conseqüência, o fato de
que nenhum poder é absoluto ou permanente, ele é, pelo contrário, transitório e circular,o que permite a aparição
de fissuras onde é possível a substituição da docilidade pela meta contínua e infindável de libertação dos corpos”
(GREGOLIN, 2004, p..136).
66
É por isso que defendo que as dimensões do humano, uma vez
constituindo um todo, não podem mais se separar: continuam se
interconstituindo, só que em condições de assimetria, de disputa de
poder, o agir/falar/pensar passa a ser palco de negociação, de disputa, de
luta (não apenas disputa “entre os homens” ou “entre as classes”, mas
também disputa entranhada no “interior” do agir/falar/pensar de cada um,
tomado como totalidade); a atividade humana continua produzindo
sentidos.
Sim, argumentariam talvez, mas se Marx pressupõe que, no
capitalismo, o produto do trabalho é desvinculado de suas condições reais
de produção (a mercadoria é fetichizada21), então isso quer dizer que se
quebraram os vínculos entre os processos que constituíam aquilo que foi
descrito como o especificamente humano. Esses sentidos produzidos no
processo de alienação não serviriam então para definir o humano, porque
são desumanizantes. Sim, mas estaríamos então supondo um humano
como essência prévia à existência, e não como história. Só há o “humano”
dos homens concretos, em sua vida concreta (esses que são a premissa
de Marx22); é esse humano histórico que tem que enfrentar/conviver com
a circunstância da alienação.
Marx teria analisado como os modos de produção foram se
constituindo apenas para chegar à conclusão que o capitalismo é
alienante?
Certamente não: o esforço de entender porque e como o
capitalismo é alienante tem objetivo, se insere na prática de Marx; ele
propõe a organização dos homens em coletividades que lutem contra a
alienação, a dominação ideológica, as assimetrias de poder (“proletários
do mundo, uni-vos...”), entende alienação como processo histórico e
21
“A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos
homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do
trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total,,
ao refleti-la como relação social existente,à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho” (MARX,
in IANNI (org.), 1996, p. 160)
22
“Essa maneira de considerar as coisas não é desprovida de pressupostos. Parte de pressupostos reais e não os
abandona um só instante. Esses pressupostos são os homens,não em qualquer fixação ou isolamento fantásticos,
mas em seu processo de desenvolvimento real, em condições determinadas, empiricamente visíveis” (MARX,
1996, p.38)
67
superável: o homem pode atuar no sentido de desvelar/superar a própria
alienação23.
Nessa lógica, posso pensar que, em condições de menor
assimetria
(menos
coerções)
a
atividade
humana
permita
apropriações/objetivações, nas quais o pensar, o falar e o agir se
interconstituam de forma mais integra e ao mesmo tempo mais flexível.
Em condições de maior assimetria, essa interconstituição continua se
fazendo de forma a garantir a sobrevivência (tanto físico-corporal quanto
cultural): as energias humanas se dirigem para o enfrentamento ou a
fuga, a negociação, a criação de estratégias. A atividade humana perde
em fluidez, em integridade e em flexibilidade, limitam-se os processos
vitais da organização humana, tanto na forma de individuo como de
grupo, digamos, mas tal atividade continua podendo ser entendida como
uma totalidade, e o que lhe dá consistência é o que projeta esse pensaragir-falar, sua história interligada e a forma como se organiza no
presente.
Pretendo retomar, então, a questão da interconstituição do
pensar-falar-agir no desenvolvimento do psiquismo humano.
Na busca de compreender como a atividade humana foi capaz de
resultar num psiquismo24, Vigotski se apropria da idéia de Marx25, de que
a linguagem é produzida nas condições reais de existência. Concebe-a
como
mediadora
das
relações
entre
os
homens
(comunicação
e
Mészáros (2006, p. 22) afirma que, das duas séries de questões propostas nos Manuscritos Econômicofilosóficos (uma primeira acerca das contradições entre tendências filosóficas, filosofia e ciência, ética e
economia política, teoria e prática, e uma segunda acerca da possibilidade de transcendência, de superação
dessas contradições) é a segunda que anima e estrutura a primeira, ou seja, é a possibilidade de superação que dá
sentido a uma investigação das razões dos antagonismos.
24
Em “Instrumento e símbolo no desenvolvimento da criança”, Vigotski assim descreve seu problema de
pesquisa; “(1) Qual a relação entre os seres humanos e seu ambiente físico e social? (2) Quais as formas novas
de atividade que fizeram com que o trabalho fosse o meio fundamental de relacionamento entre o homem e a
natureza e quais são as conseqüências psicológicas dessas formas de atividade? (3)Qual a natureza das relações
entre o uso de instrumentos e o desenvolvimento da linguagem?” (VIGOTSKI, 1998, p.25)
25
“ Desde o início pesa sobre o ‘espírito’ a maldição de estar ‘contaminado’ pela matéria, que se apresenta sob a
forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a
consciência_ a linguagem é a consciência real, prática que existe para os outros homens e, portanto, existe
também para mim mesm., e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbios
com outros homens” (MARX e ENGELS, 1996, p.43).
23
68
generalização se interconstituindo)26 e dos homens consigo próprios
(organização). Vigotski não entende “mediação” no sentido instrumental
apenas: a linguagem é produto e processo, é instrumento e também
resultado daquilo que os homens fazem. É, portanto, na atividade humana
concreta que o falar-pensar se torna possível porque necessário (porque
formam uma unidade com o agir). Com o falar-pensar, os homens afetam
o próprio comportamento e o dos outros, como explicitado nesse trecho
de Ferramenta e signo, texto publicado originalmente em 1930:
Essa análise [do conceito de mediação em Hegel e Marx] fornece
uma base sólida para que se designe o uso dos signos à categoria
de atividade mediada, uma vez que a essência do seu uso
consiste em os homens afetarem o seu comportamento através
dos signos (VIGOTSKI, 2003, p.72)27 .
Assim, é compreensível que, em obra publicada em 1934,
Vigotski defenda o vínculo entre pensamento e palavra como dado no
desenvolvimento (não existe a priori) e em desenvolvimento (modificase). Esse processo é imediatamente explicado pelo próprio Vigotski, talvez
para evitar qualquer acesso de inatismo: “A palavra não esteve no
principio. No princípio esteve a ação. A palavra constitui antes o fim que o
princípio do desenvolvimento. A palavra é o fim que coroa a ação”. (2000,
p.485).
Como
Vigotski
não
defende
que
a
ontogênese
repita
indefinidamente a filogênese, a ação humana desprovida de palavra e
pensamento não existe: é nela que os dois se fundem, no processo de
desenvolvimento, formando o pensamento discursivo. Seu método, é
preciso não esquecer, pressupõe que as mudanças qualitativas se
incorporam, passando a constituir a totalidade em transformação.
Ao teorizar sobre o surgimento da conexão entre atividade
prática e linguagem, Vigotski critica as pesquisas que entendiam o
26
“Só começamos a entender a relação efetiva entre o desenvolvimento do pensamento da criança e o
desenvolvimento social da criança quando aprendemos a ver a unidade entre comunicação e generalização”
(VIGOTSKI 2000, p.13)
27
Aqui na publicação traduzida do inglês, denominada A Formação Social da Mente, que juntou textos de
Instrumento e Símbolo em seus quatro primeiros capítulos. Trata-se do mesmo texto intitulado Ferramenta e
Signo (BEZERRA, In: VIGOTSKI, 2000, p.492).
69
desenvolvimento da linguagem como isolado do desenvolvimento da
inteligência prática:
O estudo do uso de instrumentos isolado do uso de signos é
habitual em trabalhos de pesquisa sobre a história natural do
intelecto prático, assim como no procedimento de psicólogos que
estudaram o desenvolvimento dos processos simbólicos na
criança. Consequentemente, a origem e desenvolvimento da fala
e de todas as outras atividades que usam signos foram tratados
como independentes da organização da atividade prática na
criança. Os psicólogos preferiram estudar o desenvolvimento do
uso de signos como um exemplo de intelecto puro, e não como o
produto da história do desenvolvimento da criança. (VIGOTSKI,
2003, p.31).
Utilizando o mesmo método de buscar relações onde outros
pesquisadores preferiram ver totalidades fechadas e em oposição, Vigotski
analisa a relação entre o processo de desenvolvimento de palavra e
pensamento: pensar-e-falar só podem se constituir no processo histórico
da humanidade:
[...]verifica-se que essas relações [entre pensamento e palavra],
incógnitas para nós, não são uma grandeza primordial e dada
antecipadamente, premissa, fundamento ou ponto de partida de
todo um ulterior desenvolvimento, mas surgem e se constituem
unicamente no processo de desenvolvimento histórico da
consciência humana, sendo elas próprias um produto e não uma
premissa de formação do homem. (VIGOTSKI, 2000, p.395; grifos
meus).
Uma vez que atividade prática e uso de signos se encontram
(criando-se
a
atividade
prática
pensada
e
falada)
uma
vez
que
pensamento e palavra constituam uma unidade (a prática discursiva), não
podem mais voltar a ser o que eram antes: uma vez estabelecidos (tendo
a atividade humana como mediadora) os vínculos entre pensar/falar/agir,
não há mais possibilidade de separação entre essas capacidades humanas
(elas se interpenetram formando o especificamente humano), ainda que
se possa falar de predominância de uma ou outra, sob determinadas
condições.
Dessa forma, é falando-pensando-agindo (sem preocupação com
qualquer ordem, já tais dimensões não são separáveis sem perder sua
característica
humana)
que
o
homem-com-os-outros
garante
sua
70
sobrevivência material e cultural. É falando-pensando-agindo (de acordo
com aquilo que o move: os objetivos que histórica, social e culturalmente
lhe foi possível/preciso elaborar) que ele se apropria de redes de sentidos,
constrói novos sentidos, destrói sentidos que já não “fazem sentido” (a
palavra é histórica: nasce, se desenvolve, morre (VIGOTSKI, 2000)).
Uma leitura de Vigotski que leve em conta essa compreensão
permite que se leia sua defesa de que, no psiquismo humano, “o uso dos
signos é dirigido para o controle do próprio indivíduo” (VIGOTSKI, 1998,
p.73) sem desejar que esse controle esteja desgarrado das “relações
entre” indivíduo e história/sociedade (estas também como uma unidade).
Quando o ser humano é tomado como “individuo” recortado, produtor de
discursos próprios, aí sim a linguagem aparece como principal e talvez
única mediadora: porque pressupõe que tal indivíduo não tenha outras
conexões com o “mundo” (também este recortado) a não ser tentando
“expressar” aquilo que produz internamente e “traduzir” para si aquilo que
os outros (separados dele) produzem. Esteriliza-se, de uma só vez, a idéia
de mediação, de cultura e de história, e então é possível ler Vigotski
apenas como um psicólogo das micro-interações, ou das relações entre
fala e pensamento.
Espero, para depois fazer a critica de uma concepção que
subordina todas as outras práticas humanas à discursiva, ter mostrado
que assumo um ponto de vista que entende a linguagem como uma
prática humana, portanto histórica.
Considerar que a discursivo nas práticas humanas tem em si o
poder de colocar os demais aspectos dessas práticas humanas numa
relação de subordinação a ele significaria esquecer que as condições
materiais de existência incluem relações não-discursivas, ainda que
claramente mediadas pela história e pela cultura. “Não é a consciência
que determina a vida, é a vida que determina a consciência”, afirmou
Marx. Para ele, a compreensão das relações que configuram os seres
humanos exige que se parta “dos próprios indivíduos reais e vivos” e que
se considere “a consciência apenas como sua consciência” (MARX e
71
ENGELS, 2005, p.26; grifos meus). Portanto, é somente de modo histórico
e cultural que o homem pode ser homem, sendo produtor de cultura e
produzido por ela. A compreensão vigotskiana da constituição do
psiquismo humano se assenta nesse princípio geral.
Nunca é demais recordar que parte da perda da historicidade da
noção de mediação vem de sua absorção pela noção recortada de “social”
ou de “cultural”: a noção de mediação “encolhe” (sofre perdas em seu
poder heuristico) quando perde a dimensão histórica, o fluxo da vida
recortado num presente eterno e repetitivo, e quando perde a idéia da
atividade humana como força incorporadora e produtora da história e da
cultura; o conceito de mediação pela linguagem também sofre sérias
perdas quando ampliado a ponto de subsumir a construção conceitual
mais abrangente na qual ela faz sentido, que é o da mediação pelo
trabalho, pela atividade humana significativa.
3.3. MEDIAÇÃO PELO HABITUS: POTENCIALIDADES DE UM OPERADOR
O esforço teórico de perceber o movimento entre a totalidade do
modo de produção e as totalidades da atividade específica (aquilo que se
costuma chamar de relações entre superestrutura e estrutura28) já
produziu muita teoria no terreno das interpretações da produção de Marx.
Não entrarei nos detalhes dessas discussões e das divergências que as
produziram. Basta, para os objetivos desta tese, afirmar que qualquer
interpretação que compreenda cada totalidade (nesse caso, estrutura e
superestrutura) como coisa, ou que polarize, separando e opondo uma à
outra, que ignore a possibilidade de movimentação entre uma noção e
outra, não possibilitará esse esforço teórico. Da mesma forma, qualquer
28
“A rigor o texto de Marx se apóia na idéia de uma totalidade articulada por dois termos, a saber, a estrutura
econômica que determina o grau de autonomia relativa de que dispõem as formas ideológicas” (MICELI, in:
BOURDIEU, 2005, p.XXXV)
72
teoria que reduza uma à outra, ignorando suas especificidades, terá pouca
condição de perceber relações.
Os escritos de Pierre Bourdieu, especialmente o Esboço de uma
teoria da prática (1994), têm um interesse especial para este trabalho,
exatamente por sua dedicação em construir uma teoria que trate da
“mediação entre o agente social e a sociedade” (ORTIZ,1994, p.8). Como
é possível estabelecer relações entre Vigotski e Bourdieu? Que campo de
sentidos medeia suas elaborações, ainda que distantes no tempo e no
espaço? A filiação dos dois (cada um do seu modo e dentro das condições
históricas do seu tempo) ao pensamento marxista foi o que me permitiu
tentar uma aproximação de suas elaborações teóricas. De Bourdieu,
“recortei” o conceito de habitus (1994, p.73) para fazê-lo dialogar com
Vigotski. Considero que habitus é um construto que refina a idéia de
mediação, equacionando o problema de como a interioridade se faz
exterioridade e vice-versa. Isso permite sua articulação com a noção de
mediação semiótica em Vigotski (que, dentro de um estudo de como se
constitui o pensamento discursivo, busca explicar como a exterioridade se
faz interioridade).
Tratarei nesta parte do trabalho de como Bourdieu faz isso, no
Esboço de uma teoria da prática ao desenvolver o conceito de habitus, e
tentarei analisar o conceito “por dentro” para depois chegar a Vigotski e à
noção de mediação semiótica, que tentarei relacionar com uma certa
compreensão de habitus.
Primeiro, Bourdieu faz um recorte da noção mais abrangente de
atividade humana, tomando como dimensão de análise a ação concreta
dos agentes singulares. “Fecha o zoom”29 sobre o ser que age. Segundo,
não se perde numa subjetivização da ação, porque supõe que o ser que
age não o faz por si nem para si: ao analisar sua prática, Bourdieu o faz
levando em conta sua relação com a situação em geral e com certas
condições objetivas e subjetivas que constrangem o ser que age. “A
prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma com
29
Cada um usa as metáforas que a cultura de sua época disponibiliza...
73
relação à situação considerada em sua imediatitude pontual, porque ela é
o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus”
(BOURDIEU, 1994, p.65).
Habitus é entendido por Bourdieu (1994, p.65) como "sistema de
disposições
duráveis
e
transponíveis
que,
integrando
todas
as
experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de
percepções, de apreciações e de ações”. Em outro trecho do mesmo texto,
(1994, p.73), tal matriz é concebida como: "a mediação universalizante
que faz com que as práticas sem razão explícita e sem intenção
significante de um agente singular sejam, no entanto, “sensatas”,
“razoáveis” e objetivamente orquestradas”. Trata-se, diz Bourdieu, de
“disposições” que regulam tanto as práticas quanto as representações (as
quais, suponho, podem ser tomadas como uma unidade, já que reguladas
pelas
mesmas
disposições).
Tais
disposições
têm
a
ver
com
a
“antecipação implícita”, baseada em eventos passados, das conseqüências
de práticas sociais, como explica Bourdieu (1994, p.61):
[...] a avaliação subjetiva das chances de sucesso de uma ação
determinada numa situação determinada faz intervir todo um
corpo de sabedoria semiformal, ditados, lugares-comuns,
preceitos éticos [...] e, mais profundamente, princípios
inconscientes do ethos, disposição geral e transponível que, sendo
o produto de um aprendizado dominado por um tipo determinado
de regularidades objetivas, determina as condutas “razoáveis” ou
“absurdas” [...] para qualquer agente submetido a essas
regularidades.
Bourdieu define disposição como por um lado, “o resultado de
uma ação organizadora”, por outro, “uma maneira de ser, um estado
habitual (em particular do corpo) [...] uma predisposição, uma tendência,
uma propensão ou uma inclinação” (BOURDIEU, 1994, p. 61, nota de
rodapé).
O habitus tem, portanto, pelo menos uma dimensão corpórea
(ou corporalizada), uma dimensão da ação e uma dimensão discursiva. A
linguagem enquanto prática aparece como dimensão do habitus: aquela
antecipação se constitui necessariamente de forma discursiva (avaliação,
sabedoria semiformal, ditados, lugares comuns, preceitos).
74
Antes de passar à frente na questão da linguagem num habitus,
acho necessário abrir parênteses para uma breve discussão do habitus
como dimensão de reprodução, assim como das possibilidades que
antevejo nessa noção com relação a processos de transformação.
Não há dúvida de que Bourdieu pretende explicar, através do
conceito de habitus, os processos de reprodução. Não creio que
denominá-lo “reprodutivista” faça justiça a seu trabalho. Explicar a
reprodução não pressupõe defender que só ela seja possível. Explicar a
reprodução é pré-requisito indispensável a qualquer prática que pretenda
superá-la. A noção de habitus, portanto, é construída num esforço de
explicar a reprodução (ORTIZ, 1994; MICELI, 2005), num contexto em
que a crença na possibilidade de superá-la era muito mais intensa que
hoje.
O habitus tende, portanto, a conformar e orientar a ação, mas na
medida em que é produto das relações sociais ele tende a
assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o
engendraram (ORTIZ, 1994, p.15).
Tendendo a reproduzir-se, o habitus não depende das intenções
individuais, se constitui nas relações de dominação:
É sua posição presente e passada na estrutura social que os
indivíduos, entendidos como pessoas físicas, transportam com
eles, em todo tempo e lugar, sob a forma de habitus. Os
indivíduos “vestem” os habitus como hábitos, assim como o
habito faz o monge, isto é, faz a pessoa social, com todas as
disposições que são, ao mesmo tempo, marcas da posição social,
e, portanto, da distância social entre as posições objetivas[...]
(BOURDIEU, 1994, p.75 – grifos do autor).
No entanto, se parece que Bourdieu não trata da superação de
um habitus, ele não deixa de se referir às modificações no interior do
habitus que fazem com que ele funcione sempre como uma instância
reguladora nos processos de interconstituição de indivíduo e sociedade:
É tão verdadeiro quanto falso dizer que as ações coletivas
produzem o acontecimento ou que elas são seu produto. A
conjuntura política (por exemplo, revolucionária) só pode exercer
sua ação de estímulo condicional atraindo ou exigindo uma
resposta determinada dos que a apreendem enquanto tal, sobre
75
aqueles que estão dispostos a constituí-la enquanto tal porque
são dotados de um determinado tipo de disposições passíveis de
serem redobradas e reforçadas pela “tomada de consciência”,
quer dizer, pela posse, direta ou imediata, de um discurso capaz
de assegurar o domínio simbólico dos princípios praticamente
dominados do habitus de classe (BOURDIEU, 1994, p. 76).
Parece evidente que esse “ser dotado” de que fala não tem nada
de disposição inata; o habitus é produto da história.
funcionaria
tanto
numa
explicação
da
reprodução
Sendo assim,
quanto
da
transformação. É por essa brecha deixada por Bourdieu que faço, a partir
deste momento, uma extrapolação não-autorizada do operador habitus,
porque só assim ele se torna produtivo para uma possível teorização de
uma prática discursiva que possa tender não apenas a reproduzir, mas
também a transformar30.
O potencial de habitus como operador vai além de permitir
analisar sua função na reprodução: considero, com Pêcheux (GREGOLIN,
2004, p. 134), que é possível pensar as disposições que regulam a
atividade humana tanto em seus aspectos de reprodução quanto de
transformação. Seria uma violência (simbólica...) à noção construída por
Bourdieu?
Quero argumentar que não: o operador mantém, à primeira
vista, duas de suas características centrais: a) continua funcionando como
uma matriz que organiza as disposições, integrando as experiências
passadas e suas conseqüências; b) continua tendo uma dimensão
corpórea, uma dimensão da ação e uma dimensão discursiva. Restam,
claro, questões importantes: as questões do inconsciente, da alienação e
da ideologia.
Tratarei inicialmente
da questão
do
inconsciente 31. Certas
práticas parecem “sensatas”, “adequadas”, “razoáveis” em si por conta de
um
30
“esquecimento”
de
suas
condições
de
produção.
Mantendo-se
Estou adiantando uma defesa de que não há transformação sem reprodução, e que não é possível uma
reprodução pura do status quo, sem que se reproduzam também as reações a ele. Uma das razões pelas quais a
transformação é possível é que os processos humanos tendem a se reproduzir e não podem se repetir .
31
Bourdieu pressupõe, ao elaborar a idéia de habitus, sua característica inconsciente: o habitus só funciona
porque parece pertencer ao indivíduo, ser sua característica natural (“ele é história feita natureza, isto é, negada
enquanto tal porque realizada numa segunda natureza” (Bourdieu, 1994, p.65).
76
inconscientes suas razões de ser, o indivíduo as assume como “suas”: seu
caráter, sua personalidade, seu “eu”. Desde Freud, no entanto, assiste-se
a todo um esforço para fazer emergir, das profundezas do inconsciente,
“as razões de ser” das práticas de cada indivíduo. Boa parte da psicanálise
se funda na crença de que, na medida em que conteúdos inconscientes se
tornam conscientes, o indivíduo ganha maior integridade. Há uma
valorização do tornar-se consciente como processo de integração interna
do indivíduo.
Não se trata propor uma “terapia do habitus”, até porque isso
descaracterizaria o conceito (passando a ser ação consciente, deixa de ser
habitus, é que parece). O que quero fazer é uma reflexão sobre a forma
coisificada
como
tem
sido
entendida
e
popularizada
a
noção
de
inconsciente (e nem quero entrar nas discussões sobre a contribuição de
Freud para essa coisificação).
As perguntas que me ocorrem são as seguintes: porque um
processo,
para
ser
produtivo,
precisaria
se
manter
consciente?
Consciência é um estado sempre desejável, em qualquer situação?
Parece-me importante não esquecer que toda disposição modificada (pela
ação consciente) precisa se tornar automatizada (inconsciente) para poder
ser considerada incorporada (enquanto é ação consciente exige esforço,
intenção, premeditação...). Ou seja, volta a funcionar como habitus,
exatamente nos termos propostos por Bourdieu, mas já então o operador
incorpora, em sua dimensão de inconsciente, a idéia de transitividade:
não trata mais de conteúdos inconscientes (se é que só tratava disso),
mas de processos inconscientes que emergem para o nível da consciência,
se transformam e voltam a esse nível, já modificados.
Proponho então pensar a partir daí a questão da ideologia e da
alienação. Pelo habitus, o indivíduo incorpora os processos sociais mais
amplos e ao mesmo tempo os produz/reproduz. Como pensar processos
de “desalienação” fora disso, fora do próprio homem, de seu habitus, do
mundo em/com que ele se constitui? Disse Paulo Freire em algum lugar
que os homens se educam em comunhão; pode-se dizer também que se
77
alienam/”desalienam” em comunhão. A “desalienação” só pode ser
empreendida pelos próprios seres alienados, coletivamente, em sua vida
concreta. Para tanto, sua atividade (mesmo a mais alienada) precisa ser
compreendida como movimento, não como mera repetição; a ação
humana é geralmente aproveitamento de coisas velhas para a criação de
coisas novas; ignorar isso supõe continuar separando os homens em dois
grupos: os “reprodutores” e os “transformadores”, aqueles se constituindo
ou em matéria prima para o trabalho de conscientização destes ou em
inimigos que devem ser combatidos.
Retornando
às
características
que
Bourdieu
percebe
num
habitus: ele tem um aspecto de alienação (o sujeito se pensa produtor do
habitus) e portanto uma dimensão ideológica (não percebe as condições
em que se produzem as disposições que ele pensa “suas”). Tudo isso traz
à baila a questão da antecipação guiada pelas conseqüências das ações
passadas:
num
desconformes
desagradáveis,
mundo
com
a
coercitivo,
tendência
trabalharão
no
as
conseqüências
geral
sentido
tenderão
de
a
manter
das
ser
o
ações
sempre
rumo
de
movimento,
os
desenvolvimento das condições de produção32.
Quero,
no
entanto,
defender
que,
sendo
processos de reprodução são criativos, porque são humanos. É aí que está
uma brecha que vejo como pouco explorada: o capitalismo só pode se
reproduzir em nós: não “é” uma totalidade alheia a nossa existência; não
“dispõe” de uma instância fora da concretude da vida humana para se
reproduzir. Só em nós pode ser criativo. Lidar com as conseqüências
coercitivas da desigualdade é a atividade cotidiana de milhares de
pessoas. Escapar, driblar, enfrentar, reconfigurar, esquecer, adaptar-se às
possibilidades de coerção, objetiva e subjetivamente, consciente e
inconscientemente: é isso que fazemos todos os dias. Há fracassos, mas
32
Insisto: escapemos da noção ingênua de que, quando o capitalismo busca perpetuar as condições de produção,
ele “atua” promovendo a repetição alienada: trata, isso sim, de manter flexíveis as formas como essas condições
se articulam no sentido de se fortalecer, criar relações novas que as fortaleçam (toda produção humana implica
em movimento e em criatividade: o capitalismo é produção humana, donde... ).
78
também sucessos localizados, nessa rotina. Seria mesmo de surpreender
a integridade pessoal de pessoas submetidas às mais duras condições de
existência? Isso evidencia que as “instâncias de reforçamento” de que
dispomos não são apenas aquelas que valorizam e fazem parecer lógicas,
necessárias e eternas as várias dominações. Evidencia também que os
processos de reforçamento nem sempre funcionam com os humanos. É
nesse processo que se configuram as disposições humanas: a matriz que
as organiza precisa necessariamente ser móvel e flexível33 .
Dessa forma, a noção
de habitus ganha maior potencial
explicativo, porque não pressupõe que reprodução seja a repetição eterna
de uma ordem estática. Reproduzir, no caso do habitus, pode supor a
incorporação também das ações (e conseqüências delas) da resistência,
do enfrentamento, e é isso (o movimento no interior do que parece
estático) que não foi percebido por aqueles que usaram a noção de
habitus somente para entender como funciona a alienação na prática, e
não
tiraram
daí
conseqüências
para
uma
ação
transformadora
(considerando a prática discursiva de Bourdieu, não creio que seja o seu
caso).
Concordo plenamente com Miceli (2005), quando escreve:
A ausência de um princípio-mediação como o habitus está na base
de todas as representações artificialistas da ação coletiva, tanto
os que reconhecem “a decisão consciente e meditada como único
princípio unificador da ação ordinária ou extraordinária de um
grupo ou classe” como aqueles que tornam a “tomada de
consciência uma espécie de cogito revolucionário, o único capaz
de dar existência ao constituí-la como classe para si” (MICELI, in
BOURDIEU, 2005, p.XLI).
Eu acrescentaria: entre as representações artificialistas é preciso
incluir os que pensam (imobilizam, reificam, fetichizam) o conceito de
habitus como instância de reprodução ou, mesmo entendendo-o como
33
Pêcheux (2006) afirma que os estruturalistas teriam uma “concepção aristocrática” que “se atribuindo de fato o
monopólio do segundo espaço (o das discursividades não-estabilizadas logicamente) permanecia presa, mesmo
através de sua inversão proletária, à velha certeza elitista que pretende que as classes dominadas não inventam
jamais nada, porque elas estão muito absorvidas pelas lógicas do cotidiano: no limite, os proletários, as massas, o
povo... teriam tal necessidade vital de universos logicamente estabilizados que os jogos de ordem simbólica não
os concerniriam!” (p.52-53). Essa reflexão nos serve como uma luva (ou nos cai como uma carapuça...).
79
operador, interpretam seu poder de explicar a reprodução como um poder
de explicar a repetição, a não-criatividade, a impossibilidade de mudança.
São representações, além de artificialistas, imobilistas e imobilizantes. A
recusa da tentação de profetizar, feita por Bourdieu (MICELI, 2005, p.VII)
não tem razão de ser nesse sentido: fazer ciência não perde sua
especificidade quando se aceita que explicar o mundo e modificá-lo podem
ser uma e mesma coisa: para Marx, assim como para Vigotski, parecia ser
uma questão de método.
Compreender a atividade do homem contemporâneo significa
estudá-la em suas possibilidades de consciência (unicidade entre a
atividade humana e seu produto), em suas possibilidades de alienação
(dissociação dos dois) e nas relações entre um e outro conjunto de
possibilidades; eu diria que há graus e graus de alienação na atividade
humana (pelo menos na forma como ela se configura hoje); aliás, melhor:
que se pode situar tal atividade num continuum que vai de uma alienação
completa (o homem totalmente separado de sua produção) a uma
consciência absoluta (nenhuma possibilidade de separação entre o homem
e o que ele faz). É provável que Marx não aceitasse a afirmação que
decorre disso: um e outro pólo escapam das condições materiais de
existência do humano34; mas é provável também que ele se reconhecesse
na lógica que leva a essa elaboração: os processos humanos precisam ser
analisados em sua transitividade, em seu movimento, e analisar como
movimento (e não como oposições irredutíveis) as relações entre
alienação e consciência pode ser útil para se compreender a atividade
humana atual, produtora de zonas de luz e sombra, de utopias e
desesperanças.
Neste momento histórico, isso pode ser feito recolocando a ação
humana concreta como ponto de referência, analisando os graus de
alienação e consciência, em relação à relação interconstituinte entre
34
Com um pouco de imaginação, dá para “visualizar” o pólo da consciência perfeita como a representação do
Paraíso, e o pólo da completa alienação como a representação do Inferno (mas isso já é teologia, e não é terreno
onde eu possa transitar com desenvoltura...).
80
homens e circunstâncias hoje descrita como neoliberalismo 35, assim como
a configurações mais restritas, a campos de atividade, a instituições, a
crenças (como fez brilhantemente Bourdieu).
A adoção da idéia de habitus nos remete aquele outro continuum
a que já me referi: entre consciente e inconsciente. Se a noção de
consciência em Marx é fundamental para a compreensão de como se
constitui o especificamente humano, a possibilidade de consciência (no
sentido contrário ao de inconsciente) não é positiva nem negativa em si:
só tem sentido se a serviço desse processo histórico de colocar num outro
movimento as energias humanas. A noção de inconsciente, seu outro
pólo,
será
movimento,
aqui
considerada
não
como
simplesmente
reprimidos/recalcados/esquecidos.
nomeando
como
Falarei,
uma
acúmulo
então,
de
dimensão
de
em
conteúdos
processos
de
“inconscientização” (processos necessários de automatização no interior
de um habitus), tanto quanto de processos, também necessários, de
“conscientização” (no sentido de “tomar consciência de”, não de “fazer
alguém tomar consciência”).
Como se pode pensar a consciência (tanto em seu aspecto de
superação da alienação quanto em seu aspecto de trazer algo para o nível
do perceptível, do compreensível) em suas relações com a história, nesse
caso específico? Com toda a provisoriedade que toda resposta supõe,
proponho que aquilo que os processos de alienação tornaram automático
e inconsciente deveria se desenvolver na direção do consciente e do
voluntário, mas esse consciente/voluntário precisaria se tornar nova
automatização, transformando o habitus não em consciência, mas
num novo habitus (consciência seria ponto de passagem, entre uma e
outra automatizações, de níveis qualitativos diferenciados: transitividade).
Consciência se opondo a alienação, consciência se opondo a inconsciente,
reprodução
se
opondo
a
transformação
são
“imobilidades”:
é
a
movimentação entre um pólo para o outro (importante: que não é linear,
35
A totalidade hoje denominada neoliberalismo se alimenta da alienação, em padrões muito mais abrangentes do
que aquilo que Marx analisava nos momentos iniciais do capitalismo.
81
porque a relação de oposição entre os pólos é só uma forma de
compreender, não uma descrição da realidade) que consigo ler como o
“especificamente humano”.
Essa elaboração abre vastas possibilidades de discussão, mas é
preciso fechar este (longo) parênteses e retornar para esta totalidade
provisória: uma tese de doutorado que pretende discutir o produto das
práticas discursivas que constituem/são constituídas pela inclusão. Para os
efeitos deste trabalho, portanto, já é possível:
a) considerar a mediação semiótica, como proposta em Vigotski,
como dimensão constituinte da mediação pela atividade humana concreta,
como proposto em Marx;
b) considerar o habitus, dentro daquilo que Bourdieu propôs,
como mediador entre atividade humana genérica e atividade específica de
indivíduos e grupos, “princípio gerador de estratégias que permitem fazer
face a situações imprevisíveis e sem cessar renovadas” (BOURDIEU, 1994,
p.61); indo além, considerar esse operador como dispondo de movimento
interno, isso é, entender sua predeterminação a explicar a reprodução do
status quo como articulada com as possibilidades de incorporar as
transformações que a prática humana produz;
c) considerar a possibilidade de produzir/perceber movimento no
continuum entre consciência e alienação, consciente e inconsciente,
reprodução
e
transformação,
percebendo
e
fazendo
ocorrerem
transformações na atividade humana, que permitam a criação de um
habitus novo, ou seja, de um inconsciente que incorpore também
estratégias de transformação.
A produção de mudanças no habitus pressupõe uma ênfase nos
aspectos transformadores da prática. Quero crer que a ação de analisar a
prática discursiva produzida considerando sua inserção num habitus pode
ser uma prática que se movimente na direção de estratégias criativas, de
estratégias de transformação.
Antes de chegar a essa análise, entretanto, é necessário um
rápido estudo de um conceito importante na estrutura teórica vigotskiana:
82
o conceito de internalização. Criando a possibilidade de fazer tal conceito
interagir com o de habitus, poderei chegar a um conceito de prática
discursiva que permita levar em conta a subjetividade: é esse o objetivo
da parte do trabalho que se segue.
3.4. INTERNALIZAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADE MEDIADA
PELO HABITUS
Considero necessário abrir aqui um espaço específico para a
noção de internalização (cujas interpretações têm causado algumas
polêmicas entre os que discutem Vigotski)36 , por suas possibilidades
operatórias com relação à idéia de habitus, como apontei anteriormente.
Internalização é descrita por Vigotski, ao analisar a formação social e
histórica do psiquismo humano “como a reconstrução interna de uma
operação externa” (1998, p. 74). Essa remissão aos conceitos de
exterioridade e interioridade faz todo o sentido dentro de uma lógica que
pressupõe as duas dimensões do humano se interconstituindo: remete à
dialética
entre
apropriação
e
objetivação.
Em
palavras
simples:
internalizar é o nome do trajeto externo-interno do processo mais global
em que o homem, agindo, se apropria do conhecimento37 , nome que é
dado ao produto da apropriação primeira (a primeira objetivação) que se
transformou por sucessivas apropriações e objetivações.
Nesse processo de apropriação, exterioridade se reconfigura em
interioridade, e vice-versa. Interioridade é aqui sinônimo de subjetividade;
exterioridade, de mundo objetivado. Psiquismo é, de acordo com Vigotski
(1998), a transitividade de um pólo a outro. Desse ponto de vista, o
36
Tal noção é um dos pontos da teoria considerados frágeis, diz Rey (1997a, p. 42), apontando uma suposta
inspiração objetivista na base da elaboração da noção.
37
Ainda que substantivado, utilizo o termo para expressar tanto o ato de conhecer, que se baseia num modo de
operar sobre o mundo, quanto aquilo que é conhecido, o produto.
83
psiquismo humano não é entendido apenas como o pólo da interioridade,
mas como a configuração que emerge do movimento entre os dois pólos.
3.4.1. Internalização: a apropriação de modos discursivos de
operar
A noção operatória de internalização permitiu a Vigotski analisar
parte das relações entre dois mundos considerados, de um ponto de vista
cartesiano,
com
origens
distintas
e
com
características
opostas.
Considerando que interno/externo se interconstituem, ele analisa a
“parte” do movimento que vai do exterior para o interior. Vigotski não diz
que não ocorre o movimento inverso, apenas não o inclui na noção de
internalização. Ele diz: “Chamamos de internalização a reconstrução
interna de uma operação externa” (1998, p.74-75) e diz ainda que esse
processo “consiste numa série de transformações”:
a) Uma operação que inicialmente representa uma atividade
externa é reconstruída e passa a ocorrer internamente (...) b) um
processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal
(...) c) a transformação de um processo interpessoal num
processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos
ocorridos ao longo do desenvolvimento.
Os comentários que Vigotski faz entre a descrição de uma e outra
transformação do processo não deixam nenhuma dúvida, nem quanto a
sua opção por um modo discursivo de operar que tenha a ação/relação
entre os homens concretos como referência (“Todas as funções superiores
originam-se nas relações reais entre indivíduos humanos”), nem de sua
compreensão de atividade como condição para que o psíquico se constitua
internamente (“o processo, sendo transformado, continua a existir e a
mudar como uma forma externa de atividade por um longo período de
tempo, antes de internalizar-se definitivamente”), nem de sua clareza de
que a totalidade psíquica sofre mudanças qualitativas ao se mover de um
84
pólo a outro de sua constituição “sua transferência [das funções psíquicas]
para dentro está ligada a mudanças nas leis que governam sua atividade;
elas são incorporadas em um novo sistema com suas próprias leis”
(VIGOTSKI, 1998, p.75).
Desse ponto de vista, não seria possível compreender internalização
simplesmente como movimento que relaciona experiências pessoais
(subjetivas)
com
definições
estáveis
historicamente
construídas
(objetivas), ou seja, com o conhecimento pronto e acabado. Essas
relações ocorrem, naturalmente, mas internalizar significa _ na descrição
vigotskiana_ principalmente apropriar-se de processos, de operações.
Vigotski certamente compreendia a sutileza de uma prática discursiva
(ainda que a nomeasse como signo, palavra, discurso) e da constituição
psíquica constituída por ela e dela constituinte: só se pode perceber-lhe a
mobilidade quando analisamos suas operações e seu modo de operar, não
seus produtos em si.
O texto de Vigotski que descreve internalização38 é sucinto e talvez
não expresse claramente esse esforço metodológico, embora ele use
explicitamente “operações” e “processos” como definidores (op. cit.p,745). Parece óbvio que Vigotski não está falando apenas de assimilar
conteúdos: está falando do processo dialético em que uma totalidade que
se
constitui
“exteriormente”
se
transforma
noutra
totalidade
(“interiorizada”). Ajuda a compreender sua forma de fazer ciência, e,
portanto, os modos como elaborou a noção de internalização um texto
posterior, sobre a interconstituição de pensamento e linguagem. Não
poderia haver forma melhor para reiterar isso do que deixar falar o
próprio Vigotski, como pesquisador que assume um método e o leva às
últimas conseqüências.
Por isso poderíamos resumir o resultado básico de toda a nossa
pesquisa numa tese: os processos que se consideravam tolhidos
Refiro-me ao texto disponível em língua portuguesa, publicado como capítulo 4 do livro A formação social da
mente (6ª ed., 2003), tradução da edição em língua inglesa Mind in society, elaborado a partir do original russo
de Ferramenta e signo (originalmente publicado em 1930).
38
85
de modo uniforme e imóvel são, de fato, interligados pela
mobilidade (VIGOTSKI, 2000, p.482).
Foi necessário ao pesquisador Vigotski, então, considerar o
“imóvel” em suas articulações, em sua gênese, em suas relações, para
perceber que ele nunca foi imóvel: assim parece apenas em função do
prisma, do recorte. Só considerando as relações entre duas totalidades
(ou várias totalidades) é que pode ser percebido o movimento daquilo que
parece imobilizado.
Tendo a noção de prática discursiva como prática na qual ocorre
uma apropriação tanto consciente quanto inconsciente, de conhecimentos
e modos de operar transformados historicamente, é possível pensar em
internalização como uma operação que permite essa prática: ou seja,
estou tomando prática discursiva como totalidade mais abrangente (ação
humana
concreta)
e
internalização
como
processo
de
apropriação/objetivação, pelo agente, das operações e do modo de operar
nesta prática. Se parecia faltar um conceito de “externalização” para
configurar o outro pólo do movimento iniciado com internalização, é
porque os críticos de Vigotski não o souberam buscar no lugar certo. Marx
já o tinha elaborado, e Vigotski nunca o ignorou: é a própria ação humana
sobre o mundo.
A fragilidade que certos críticos vêem no conceito, então, tornou
agora fácil de compreender: descolada de seu campo de sentido, tomada
em si mesma e recolocada no seio de um modo de conhecimento estranho
àquele em que se constituiu; um modo que mantém recortados (e só os
entende em oposição) aspectos internos e externos do desenvolvimento, a
idéia de internalização só pode ser objetivista.
É preciso não perder de vista o caráter de reconstrução do
externo implicado no processo de internalização, assim como o fato de
que Vigotski, como Marx, atribuía um caráter holístico à constituição
psíquica humana:
na psicologia de Marx o vínculo do homem com o real se
apresentou através de um homem considerado holisticamente, ou
86
seja, de um homem que intervinha a partir da constituição
integral de sua psique na constituição subjetiva na realidade
social na qual se determinava, mesmo quando os termos através
dos quais esses complexos processos tinham lugar ainda não
haviam encontrado uma definição teórica precisa naqueles
momentos (REY, 1997, p.42).
A definição de Vigotski, creio, ainda é a mais precisa. Talvez
cause incômodo, nesses tempos em que tudo parece ser fluxo que leva do
nada a lugar nenhum, o fato de que ele não receava usar reificações,
conceitos em oposição e imobilizados; Vigotski o faz entendendo que
funcionam
como
momentos
do
percurso
metodológico,
necessários
inclusive ao avanço na história do pensamento discursivo:
A complexa estrutura dessa unidade [o pensamento discursivo],
os complexos vínculos móveis e as transições entre planos
isolados do pensamento verbal só surgem no desenvolvimento.
Isto a pesquisa mostrou. A separação entre significado e som,
entre palavra e objeto e entre pensamento e palavra são estágios
indispensáveis na história do desenvolvimento dos conceitos
(VIGOTSKI, 2000, p.482-3).
3.4.2. Articulando internalização, habitus e subjetividade
A prática discursiva de Vigotski é, creio eu, muito mais eloqüente
do que a rede conceitual estruturada por ele como produto dessa prática.
Creio que ele estaria, inclusive, plenamente de acordo com Bourdieu
(1994), quando este afirma que só se pode compreender como as
dimensões da interioridade e da exterioridade se constituem mutuamente
quando se investiga o modo de engendramento das práticas:
Para escapar ao realismo da estrutura, que hipostasia os sistemas
de relações objetivas convertendo-os em totalidades já
constituídas fora da história do indivíduo e da história do grupo, é
suficiente e necessário ir do opus operatum ao modus operandi, a
realidade estatística ou da estrutura algébrica ao princípio de
produção dessa ordem, ou mais exatamente, do modo de
engendramento das práticas, condição de construção de uma
ciência experimental da dialética da interioridade e da
87
exterioridade, isto é, da interiorização da exterioridade e da
exteriorização da interioridade(op.cit., p.60),.
Bourdieu se refere à investigação específica dos processos de
interconstituição da interioridade e da exterioridade, fazendo o esforço
explicito de situá-las em suas condições históricas. Esse esforço o leva a
construção de uma noção que designe não um processo (como o é
internalização), mas um sistema que coloca em relação às totalidades da
situação imediata e da situação geral. Então: o processo dialético que
constitui a interioridade foi denominado por Vigotski internalização; o
sistema, perpassado pelo ideológico, que faz com que interioridade e
exterioridade tendam a estar em consonância em cada indivíduo e em
cada grupo foi chamado por Bourdieu de habitus.
Bourdieu produz um operador que incorpora o ideológico: só se
pode entender habitus considerando que essa tendência a estar em
consonância é produzida social e historicamente. É preciso, no entanto,
supor um movimento que atualize habitus e estrutura em certa sincronia:
“A oposição entre estrutura e indivíduo”, diz Bourdieu, “obstaculiza a
construção da relação dialética entre a estrutura e as disposições
constitutivas do habitus” (1994, p.78). Superar essa oposição significaria
supor um movimento entre estrutura e indivíduo, criando e renovando um
habitus, que tende a preservar-se, tendendo assim a preservar o essencial
da estrutura. Esse movimento, atualizando-se sempre, implica em que se
suponha “modos de internalizar”, modos de se apropriar/objetivar: modos
de operar/representar, portanto “modos de engendramento” da prática,
sendo que esta “é o produto da relação dialética entre uma situação e um
habitus” (op.cit., p. 65).
Construir uma operação teórica que dê conta do processo de
construção de subjetividades nas relações assimétricas de poder que se
construíram
no
mundo
contemporâneo
(e
não
quaisquer
relações
assimétricas) exige um operador flexível. Há que levar em conta, hoje o
fato contemporâneo não só da sobrevivência, mas da flexibilização,
abrangência, fortalecimento dos processos de alienação. Há que levar em
88
conta as incontáveis ações concretas que, nesses tempos, mostraram a
necessidade premente de teorizar/praticar a superação desses processos.
Não basta, creio eu, descrever como se engendram as práticas nas
relações de dominação: é preciso teorizar sobre as fragilidades desse
processo de engendramento39. Trata-se, então, de construir um novo
operador, considerando habitus como superado?
Creio
já
ter
argumentado
suficientemente
contra
essa
necessidade, sugerindo a possibilidade de colocar em movimento, no
interior do conceito de habitus, seus próprios operadores: as noções de
consciente e inconsciente, de alienação, de reforçamento. É ainda de
Bourdieu a afirmação abaixo:
Cada agente, quer ele saiba ou não, quer ele queira ou não, é
produtor e reprodutor do sentido objetivo: porque suas ações e
suas obras são o produto de um modus operandi do qual ele não
é o produtor e do qual não tem o domínio consciente,
encerram uma ‘intenção objetiva”, como diz a escolástica, que
ultrapassa sempre suas ações conscientes (1994, p.72, grifos
meus).
O grifo nas expressões “do qual ele não é o produtor” e “do qual
não tem o domínio consciente” é para chamar a atenção para essas
condições explicitas que Bourdieu coloca para que um habitus seja
reprodutor. Passar a investigar o próprio modus operandi faria, até certo
ponto, superar a segunda condição: trazê-lo para o plano da consciência;
começar a produzir formas de produzi-lo (construir conscientemente
ferramentas, operadores) faria com que a primeira deixasse de ser
entendida como um destino do indivíduo, e passasse a ser lida
como
circunstância histórica e social: o homem não é produtor isolado de seu
modo de ser e agir,
mas os homens em coletividade o são, e cada
homem individualmente pode se aperceber e se apropriar disso. Estou
supondo, é claro, que consciente e inconsciente não são “estados
fechados” e se pode passar de um para o outro. Estou supondo que a
39
Pêcheux, ao redefinir as noções de “ideologia” e “assujeitamento ideológico”(GREGOLIN, 2004, p.126-9)
argumenta que “não existe prática, a não ser através de uma ideologia e dentro dela; não existe ideologia, exceto
pelo sujeito e para sujeitos” .
89
passagem de um estado de inconsciência para um de consciência exige
transformações no modo de operar do indivíduo e dos grupos: que há
uma mudança qualitativa; e estou, por fim supondo que essa mudança
pode ser incorporada a um novo inconsciente: a um inconsciente
atualizado. Daí se pode inferir que o conceito de habitus se mantém
plenamente operacional para explicar, para além da reprodução, a
transformação. E que a idéia de internalização se mantém, também,
plenamente operacional para explicar a passagem de modos de operar
(tanto
os
que
tendem
à
reprodução
quanto
os
que
tendem
à
transformação) do plano da ação concreta para o plano da subjetividade.
Habitus,
recordemos,
são
disposições
estruturadas
e
estruturantes: o ideológico que perpassa todas as ações humanas
(PÊCHEUX, apud GREGOLIN, 2004,128-129; VERÓN, 1980, p.102-106)
não se situa nem apenas fora nem apenas dentro dele, se situa também
nesse processo de objetivação e subjetivação; refere-se a todas as ações
e discursos envolvidos nas relações de poder, os dominantes e os não
dominantes. Daqui por diante chamarei a esses últimos de recessivos,
tomando emprestada da biologia a noção de recessividade, em oposição a
dominância, significando vozes que se contrapõem a outras, mas que
numa dada relação de poder são subsumidas por estas últimas. Não
significa que desapareçam nesse processo ou que estejam condenadas à
subordinação;
podem,
numa
determinada
conjuntura,
tornar-se
dominantes. O que quero defender é que as “vozes vencidas” continuam
ativas no diálogo social, e é por isso que as dominantes precisam por em
ação mecanismos e estratégias que as enfraqueçam.
É por isso que faz sentido retomar a noção de habitus pensando
em sua possibilidade de nomear também as disposições e representações
engendradas
nas
práticas
transformadoras,
ou
nos
aspectos
transformadores das práticas. Incorporando disposições e representações
que, de modo inconsciente, engendram práticas, e tais disposições e
representações tendo sido internalizadas com base numa avaliação
90
inconsciente que supervaloriza as conseqüências da experiência primeira
(BOURDIEU, 1994, 61-62), um habitus precisaria levar em conta somente
os efeitos dos discursos e dos modos de agir dominantes para ser
puramente reprodutor.
Como bom cientista, Bourdieu tem o cuidado de lembrar que um
habitus
“tende”
a
reprodução.
Viveu
neste
século
de
grandes
transformações. Sabe que há discursos e modos de operar com a
discursividade que não são dominantes: o seu próprio não o foi, a não ser
em territórios bem circunscritos. Não se propõe a ser profeta: opera
discursivamente na intenção de criar explicações para um determinado
real. No cuidado de não profetizar, porém deixa de evidenciar a
potencialidade do seu próprio modo de operar enquanto produz discurso.
Da mesma forma como a prática discursiva de Vigotski é mais eloqüente
para mim do que sua teorização, a de Bourdieu me ensina muito mais do
que as conclusões a que ele chega. É mais nas entrelinhas do Esboço de
uma teoria da prática (1994) que eu encontro o exercício de uma
atividade de pesquisador e de produtor de discursos que me permite
(quem sabe pelas tentativas de imitação, no sentido vigotskiano do
termo?) internalizar um modo não-dominante de produzir ciência e
discurso (apropriar-me, à minha moda, de seu modo de operar,
objetivando-o neste texto).
Pensar
o
ideológico
como
movimento,
como
processo
(o
ideológico no interior das práticas, permeadas por um habitus) pode ser
mais frutífero hoje do que pensar as ideologias estabilizadas, sem para
isso precisar negá-las. É isso que faz Verón (1980, p.102-116), ao definir
o“ideológico” como dimensão que perpassa todos os conteúdos e todos os
modos de operar, porque se constitui nas relações de poder (que implicam
também em conflito entre discursos, e não na mera imposição de um
discurso sobre o outro) e não se coisifica nas denominações fechadas;
continua operando através dos modos de operar humanos, que são
discursivos.
91
Considerei
internalização
como
processo
em
que
são
interiorizados os modos de operar, em determinadas condições concretas,
em determinadas redes de coerções. A prática discursiva, que produz
discursos para os outros no mesmo movimento em que os produz para si
mesma _ discurso interior, pensamento (VIGOTSKI, 2000)_ internaliza
modos discursivos de operar de acordo com disposições e representações
relativamente automatizados, disposições e representações que podem se
tornar conscientes cada vez que isso se faz necessário à sobrevivência
humana: cada vez que as tensões criadas pela alienação se tornam
insuportáveis.
Esse “relativamente” tem a ver com a provisoriedade dos
discursos e das práticas: eles estão permanentemente se desfazendo e
refazendo, não porque a fragmentação seja a condição necessária do
homem contemporâneo, mas porque as ações do homem não têm um
sentido-direção
único,
nem
um
sentido-conteúdo
semântico
único.
Alienamo-nos e desalienamo-nos todos os dias, na mesma medida em que
as necessidades concretas exigem: e se alienar-se pode ser condição
necessária
para
sobreviver
neste
momento
histórico,
desalienar-se
também pode. Afinal, quando falamos de humanidade, sobreviver é
sempre
mais
do
que
alimentar-se,
reproduzir-se,
repousar
(se
considerarmos o homem isoladamente, organismo biológico, isso talvez
seja sobrevivência; mas como lembrava Garcia (1998, p.86), o homem
isolado é uma ficção).
3.5. O DISCURSO: DA MEDIAÇÃO SEMIÓTICA À NOÇÃO DE PRÁTICA
DISCURSIVA
O desenvolvimento da análise que empreendi anteriormente,
recuperando as relações entre mediação pelo trabalho e mediação
semiótica, permitiu-me apontar para duas faces de um uso parcial e
92
deslocado do conceito de mediação. A primeira delas se refere a uma
subordinação de toda e qualquer prática a sua dimensão discursiva; criase um descolamento dessa dimensão de sua relação com as demais
dimensões das práticas humanas, atribuindo à linguagem o poder de, por
si, organizar o mundo humano. Uma outra face: reificada, a linguagem
deixa de ser considerada atividade social40, e passa a ser entendida como
expressão (de um conteúdo dado pela essencialização e idealização do
humano) e comunicação (desse mesmo conteúdo). No primeiro caso,
temos como conclusão que “tudo é linguagem”. No segundo, que é o
sujeito falante o centro e a origem da linguagem. Tratarei das duas
questões ao mesmo tempo, por considerar que sua matriz é a mesma: a
cisão
entre
o
homem
individuo/sociedade,
e
sua
produção,
homem/mundo,
geradora
das
oposições
linguagem/pensamento,
prática/teoria, sujeito/objeto41.
Para poder tratar delas, é preciso considerar que o esvaziamento
do conceito e suas conseqüências não se dá no vazio, nem por conta da
boa ou má vontade deste ou daquele pesquisador. Têm suas raízes num
processo histórico de desenvolvimento da própria noção de linguagem,
processo que sofreu, neste final de século passado, uma transformação
que veio a ser denominada “giro lingüístico” (GRACIA, 2004), ou “virada
lingüística” (SPINK E MENEGON, 2004) ou ainda “giro discursivo” (VAN
DIJK, 2004).
Os autores que analisam esse fenômeno (pelo menos aqueles a
que tive acesso), não mencionam Vigotski, nem como pesquisador que
atuou paralelamente aos desenvolvimentos do lado do Ocidente, nem
como autor que poderia ter contribuído caso sua produção tivesse algum
tipo de contato com a ciência ocidental. Desse modo, estarei aqui
40
Para Foucault, o discurso é produzido e controlado socialmente: (2006, p.8-9): “[...] suponho que em toda
sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada, e redistribuída por um
certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.
41
Ver VIGOTSKI (1996, p. 203-420), em “O significado da crise na psicologia”.
93
arriscando, sem o suporte de uma pesquisa mais rigorosa42, relações
entre a produção vigotskiana e o desenrolar dos estudos da linguagem no
lado ocidental.
Para Gracia (IÑIGUEZ, 2004, p.19-20), ocorreram profundas
mudanças não apenas na ênfase dada à linguagem, mas a própria
concepção da sua natureza sofreu transformações. Esse autor diz que
uma genealogia do giro remeteria às discussões medievais entre os
escolásticos acerca dos universais, isto é, de categorias gerais que
explicassem e nomeassem as classes de objetos. “As duas soluções típicas
e
iniciais
do
problema”,
segundo
Abbagnano
(2003,
p.982),
o
nominalismo e o realismo, defendiam posições contrárias: o primeiro, que
“o universal é o signo das coisas”; o segundo, que “o universal é a
essência necessária da substância das coisas”.
Mas é com Descartes que a filosofia se torna uma “filosofia da
consciência”: linguagem é entendida como manifestação de idéias
gestadas num mundo interior. Estabelece-se a dicotomia interno-externo
e a filosofia se dedica às questões dela decorrentes, em especial, como se
dão as relações entre mente e corpo, e entre mente e mundo (GRACIA;
SPINK E MENEGON, ambos in: IÑIGUEZ, op. cit.).
Já no século passado, duas rupturas estimulam o crescimento da
atenção à questão da linguagem: uma ruptura de ordem filosófica, com
Frege e Russell propondo um centramento das atenções filosóficas na
linguagem tal como ela se apresenta objetiva e publicamente; e uma
ruptura com as tradições da filologia, com Saussure propondo o estudo da
língua considerada em si mesma (GRACIA, in IÑIGUEZ, op. cit., p.21).
Spink e Menegon (in IÑIGUEZ, op.cit., p.261) dizem que ocorre aí uma
inversão, se deslocando o foco da cognição para a comunicação. Rojo
chama a esse momento o “primeiro giro”: o giro logicista, que dá início ao
processo “pelo qual a linguagem torna-se o referente principal e
42
Fica a sugestão para que essa pesquisa se constitua; seria de grande utilidade para todos os que estudamos
Vigotski, e daria muita contribuição aos estudos da linguagem noutros territórios.
94
determinante
de
todo
o
âmbito
mental,
representativo
e
de
conhecimento” (in IÑIGUEZ, 2004, p. 208).43
Antes de continuar tratando das transformações que sofreu a
prática discursiva e as concepções nela produzidas, farei aqui um corte de
ordem temporal: Vigotski começa a escrever sobre linguagem e a fazer
pesquisa sobre o pensamento discursivo poucos anos depois da publicação
da obra fundadora da lingüística, O Cours de Linguistique Génèrale, de
Saussure44. Tratou, em seus trabalhos, da função psicológica e do
desenvolvimento do signo.
Não aparecem, nas traduções de Vigotski a que tive acesso
(1988, 1989, 1993, 1996, 1998, 2000, 2003), referências explícitas a
Saussure45. Ainda que ele não o tenha lido, certamente conhecia as
concepções defendidas no Cours, dada a quantidade de críticas às formas
idealistas de conceber o signo; tais criticas aparecem tanto em A
formação social da mente (1998) quanto em A construção do pensamento
e da linguagem (2000)46. Seria, portanto, uma injustiça aos esforços de
Vigotski como pesquisador (uma ofensa, especialmente, ao seu empenho
como metodólogo) acreditar que ele simplesmente adotou um conceito
disponível na literatura da época, e o incorporou à sua pesquisa. As
próprias críticas que Vigotski faz ao isolamento de elementos nos estudos
lingüísticos
permitem
pressupor
que
ele
também
tinha
claras
as
concepções a que se vinculava o conceito de signo na lingüística em
formação:
43
Tenório (2006) afirma que o logicismo vai além de trazer a linguagem de tornar a linguagem referência par ao
conhecimento: “O logicismo não só inicia o momento no qual a linguagem passa a ser o referente principal de
todo o conhecimento, mas, principal e especificamente, afirma a redutibilidade da linguagem, e, por conseguinte,
de todo o conhecimento, à lógica formal clássica”.
44
O Cours de linguistique générale, texto considerado como fundador da lingüística, é publicado postumamente
em 1916 (Saussure morre em 1913), por Bally e Sechehaye, discípulos de Saussure que elaboraram o Cours,
baseados em notas das aulas proferidas pelo mestre (VERÓN , 1980, pp.97-172)
45
As produções acerca da obra de Vigotski, e/ou que pretendem a aplicação de sua teoria à educação,
normalmente aceitam o uso de signo sem questionamento e fazem pouca ou nenhuma referência à lingüística, a
semiologia, à teoria do discurso. Considero isso uma evidência do solipsismo em que atuam as várias áreas da
ciência.
46
A formação social da mente (1998), é uma publicação que reúne textos escritos entre 1930 e 1934 ; A
construção do pensamento e da linguagem tem sua primeira publicação, com o título de Pensamento e
linguagem, em 1934; o texto dessa última obra, aqui usado (na tradução brasileira diretamente do russo) é de
2000.
95
Segundo um dos lingüistas mais importantes da atualidade, esses
dois elementos [refere-se a som e significado], unificados no
signo, levam vidas totalmente separadas. Por isso não surpreende
que semelhante concepção só possa ter acarretado os resultados
mais melancólicos para o estudo dos aspectos fonético e
semântico da língua (Vigotski, 2000, p.7).
Suponho que poderia ser justificável, dado o desenvolvimento da
lingüística durante o período de sua produção intelectual (anos 20 e 30 do
século passado), que Vigotski mantivesse o uso da palavra signo47, mas
sua compreensão de tal termo remete para muito além da compreensão
da lingüística saussuriana. Vigotski usa, ao longo dos textos, tanto signo
como palavra, mas insiste em que não entende tais noções da forma
fragmentária como o fazia a lingüística saussuriana (1993, p.3; 2000, p.58). Muito pelo contrário, todo o tempo, Vigotski é coerente com aquilo que
ele assume como método: investiga os processos de gênese e imbricação
de atividade prática e pensamento (2000, p. 395-486); mantém a
historicidade
como
condição
para
o
desenvolvimento
da
palavra,
analisando tal processo (op.cit., p.399); assume a idéia de sentido como
muito mais abrangente do que a de significado (op.cit., p.465-466),
questão que só vem a ser desenvolvida depois da segunda metade do
século pela semiologia (VERÓN, 2004, p. 215); e investiga as relações
interconstituintes entre pensamento e palavra como “processo vivo de
nascimento do pensamento na palavra”, operando com o pensamento
discursivo como unidade (VIGOTSKI, 2000, p.484): vê a linguagem como
uma forma de atividade (op.cit., p.452).
É somente percebendo tal esforço analítico que é possível
entender o quanto Vigotski, ainda que limitado pelo alcance das
elaborações possíveis em seu tempo, avançou numa explicação do
Em Pensamento e Palavra, último capítulo de A construção do pensamento e da linguagem (2000, pp. 395486), aparece apenas uma vez o termo signo; no restante do trabalho, são utilizados os termos palavra, discurso,
pensamento discursivo. Considerando que Ferramenta e signo foi publicado originalmente em 1930 e
Pensamento e Linguagem em 1934, não posso deixar de supor que houve uma modificação no processo de
elaboração das noções tomadas emprestadas da lingüística da época. Claro que isso pode ser indício,
simplesmente, de elaborações dos tradutores, cuja prática se situa na contemporaneidade e têm melhores
condições de considerar as transformações no campo da lingüística e da semiologia. De qualquer modo, a
possibilidade de intercambiar os termos sem que se pereça o sentido geral da obra já indica que Vigotski tinha
uma compreensão abrangente da noção de signo.
47
96
psiquismo
humano.
Tanto
avançou
que
creio
que
suas
análises
permitiriam (caso as condições históricas permitissem que fossem levadas
em conta) os primeiros passos para a construção de uma noção de prática
discursiva.
Não há como negar que sua produção representa um “giro” com
relação à concepção de linguagem, ainda que dentro de outra tradição, de
outras condições de produção do discurso, dentro da construção de outra
disciplina (a psicologia) e dirigido a outros rumos: Vigotski não admite
uma filosofia da consciência, não reconhece uma oposição entre mente e
corpo, nem entre mente e mundo. Não pressupõe, pois, um sujeito
pensante e autônomo como produtor dos discursos.
Por outro lado, como psicólogo e estudioso da gênese e do
desenvolvimento dos processos discursivos, investiga o pensamento a
partir da palavra, da forma como ela se apresenta objetivamente, mas
para
perceber
a
unidade
pensamento-palavra
se
constituindo
em
pensamento discursivo. Concordaria que a análise da linguagem pode
informar sobre a realidade (GRACIA, in IÑIGUEZ, p.26), mas não
pressuporia que essa realidade fosse alheia às condições concretas de sua
produção. Gracia diz que uma das mudanças elaboradas na busca da
superação de uma filosofia da consciência é que “deixa-se de considerar
que são nossas idéias que se relacionam com o mundo [tese idealista] e
passa-se a afirmar que são nossas palavras que se correspondem com os
objetos do mundo [tese realista]” (p.27). Vigotski expressa, no capítulo
final de A Construção do Pensamento e da Linguagem (2000, p.485-486),
a necessidade de se aprofundarem os estudos “da consciência”, mas não
se preocupa em sair da consciência para o enunciado, abandonando a
primeira,
e
sim em
perceber
como
consciência
e
enunciação
se
interconstituem.
O tempo de vida de Vigotski encerra-se em 1934; sob Stalin,
seus trabalhos deixam de ser publicados na União Soviética. Suspende-se
então uma trajetória promissora que, em minha opinião, poderia ter
97
desaguado nos estudos do discurso, e seus textos só começam a aparecer
no Ocidente na década de 70, quando a lingüística já estava plenamente
estabelecida como ciência e os rompimentos no seu interior já tinham
causado profundas modificações; na filosofia, o positivismo lógico é
superado por análises da linguagem comum, “tal qual ela se dá” (GRACIA,
in INIGUEZ, 2004, p.32): com a publicação de “Investigações filosóficas”,
de Wittgenstein (1952) e surgimento, em torno de suas reflexões, dos
“filósofos de Oxford” (Ryle, Austin, Strawson, Grice) os usos e funções da
linguagem passam a ser considerados tão importantes quanto sua função
descritivo-representacional: a linguagem faz coisas, faz realidades48
(op.cit., p.34); quando, enfim, Foucault, Pêcheux e outros tantos, na
França, já se batem com a leitura althusseriana do marxismo, já propõem
inversões nos modos de compreender a linguagem e geram uma das
linhas do que já se chamava “análise do discurso” (GREGOLIN, 2004);
quando Bakhtin emerge nos estudos literários com os conceitos de
dialogismo e polifonia, no interior de uma concepção de linguagem que
“incluía a história e o sujeito” (BRAIT, 2003, p.21).
Sob o nome de Análise do Discurso, diz Iñiguez (op.cit., p.53)
“existem rótulos, nomes e perspectivas múltiplas e muito diferentes, com
princípios, características e procedimentos também diferentes”.
autor
menciona,
como
mais
importantes,
aquelas
Esse
perspectivas
identificadas com a teoria dos atos da fala, da pragmática lingüística, da
etnometodologia e a “obra de Michel de Foucault”. Parece estranho referirse a Foucault, no que se refere à análise dos discursos, sem uma
referência a Pêcheux, já que é dos enfrentamentos e complementaridades
48
Não há dúvida de que “são feitas coisas” através da linguagem, nisso é possível concordar com Austin: no
entanto, que sujeito é esse chamado “linguagem”, que faz coisas? Para que ele faz coisas? Essas coisas se
inserem em que atividade mais abrangente? Os seres humanos fazem coisas, parece, mas não usam a linguagem
pelo gosto de usá-la; ela faz sentido em sua ação concreta. Porque os noivos do exemplo clássico dizem “sim”?
Por que, ao dizer sim, casam-se. É isso que eles estão fazendo: casando-se (e não é a linguagem que está casando
os dois, através do sim). O sim é o acontecimento discursivo (PECHEUX, 2006), mas ele não pode se descolar
dos demais acontecimentos humanos, sob pena de perder o sentido.
98
entre as obras dos dois autores que se fez boa parte do que se costuma
chamar “análise do discurso de linha francesa”.49
Não farei aqui a distinção entre as várias linhas de análise do
discurso, de resto já muito bem feita por vários autores _ os aqui citados
Gracia, Iñiguez, Spink e Menegon, Van Dijk, entre outros, cujos textos
foram enfeixados por Iñiguez, (2004); Orlandi (2005); Maingueneau e
Charaudeau (2004); Maingueneau (1997); Indursky e Ferreira (1999).
Passarei, em vez disso, a caracterizar aquilo que venho
chamando, desde o início do trabalho, de prática discursiva, assentada em
duas bases: a) na herança vigotskiana e na relação que faço entre essa
herança e o conceito de habitus, de Bourdieu (1994); e b) nos trabalhos
de Foucault (1995, 2006), Pêcheux (2006); Bakhtin (2003, 2004), lidos
com a ajuda de Verón (1980,2004); Orlandi (2005), Brait (2003,2005) e
Gregolin (2004).
3.6. AS PRÁTICAS DISCURSIVAS E SEUS MODOS DE OPERAR
Até aqui, a questão da linguagem foi tratada da forma em que
“aparece” (ou mais propriamente: da forma em que aparece aos meus
olhos) na produção vigotskiana, e meu trabalho foi encontrar nessa forma
de tratamento indícios da filiação ao pensamento de Marx, dentro do
compromisso que Vigotski assume explicitamente de criar um método
partindo dos mesmos princípios que aquele. Busquei numa leitura de
Bourdieu (cujo “contato” com Marx passa por filtros históricos bem
diferentes
daqueles
de
Vigotski,
mas
que
ele
compartilha,
pela
contemporaneidade e filiação, com Foucault e Pêcheux) possibilidades de
tornar operacional para este meu trabalho o conceito de habitus,
aproximando-o daquele de internalização. Na busca de evidenciar as
49
A esse respeito,ver Gregolin (2004): Foucault e Pêcheux na análise do discurso _ diálogos e duelos.
99
contribuições de Vigotski para um estudo das práticas discursivas, dei
uma espécie de salto no tempo e no espaço, evidentemente. Aproximei
estruturas conceptuais elaboradas em condições e situações históricas
diferentes, com diferentes objetivos. Não o fiz, porém, de forma
absolutamente artificial. É só porque ecos das mesmas vozes50 ressoam
(mais ou menos longinquamente) na produção textual dos três autores
(Vigotski, Bourdieu, Foucault), assim como na práxis discursiva que tais
discursos permitem entrever, que foi possível estabelecer certo diálogo
entre eles. É verdade que a voz de um “certo Marx” ressoa diferentemente
em cada um deles: em Vigotski, no entusiasmo contagiante da construção
de
uma
psicologia
socialista;
em
Bourdieu
e
Foucault,
no
diálogo/enfrentamento, por diferentes ângulos, da releitura de Marx por
Althusser51.
Daqui em diante, acrescentarei outras vozes ao diálogo, menos
por uma escolha pessoal do que por força das definições que venho
elaborando a respeito de uma prática discursiva: as vozes de Pêcheux,
Bakhtin e Verón. Pêcheux se incorpora a esse texto porque como diz
Gregolin (2004, p.13) é ele o “centro de gravitação” do que veio a se
denominar “análise do discurso de linha francesa”. Sua produção e a de
Foucault se constituíram num debate que durou cerca de duas décadas
(GREGOLIN op.cit., p.119), e cujas divergências diziam respeito muito
mais às propostas althusserianas do que a uma teoria do discurso.
No que se refere a Bakhtin, já é uma outra situação. Por direito,
sua contribuição deveria ter-se incorporado a este texto já de início,
quando proponho Vigotski como ponto de partida para a compreensão e
construção de uma prática discursiva. Assim como Vigotski, no entanto,
Bakhtin chegou recentemente ao Ocidente, e, mais recentemente do que
aquele, às minhas leituras. De modo que contraio uma dívida de fazer
mais tarde, em outras circunstâncias, um esforço de vinculação de sua
50
Ver Bakhtin (2003).
Quanto a Bourdieu, esse enfrentamento aparece com clareza no artigo El discurso importante – algunas
reflexiones sociológicas sobre “algunas observaciones críticas em torno a Leer el Capital” (BOURDIEU, 2001,
pp.134-151)
51
100
contribuição ao que poderia ter sido uma gênese diferente das teorias do
discurso. Neste momento, procuro trazer sua voz (ou não impedir que ela
apareça) na medida do possível, sabendo que é muito pouco para um
estudioso de seu porte. A este trabalho serve, especialmente, o conceito
de gênero do discurso, como suporte das decisões metodológicas no que
se refere ao recorte do discurso a ser estudado. Considerando os gêneros
como “tipos relativamente estáveis de enunciados”(BAKHTIN, 2003,
p.262), entendo que tal estabilidade tem relação com as relações entre
linguagem e ideologia: “O gênero discursivo diz respeito às coerções
estabelecidas entre as diferentes atividades humanas e os usos da língua
nessas
atividades,
ou
seja,
as
práticas
discursivas
implicam
necessariamente coerções” (BRAIT, 2003, p.27).
Proponho retornar então a Pêcheux e Foucault. Não entrarei na
história do debate que os dois travaram; para este momento, importa ver
em que suas contribuições convergiram de forma a potencializar a análise
do discurso. De novo, aproveitarei o trabalho de Gregolin (2004), já
citado,
para
resumir
aquilo
que
os
aproximou,
produto
de
um
diálogo/enfrentamento rico e franco: nem Foucault nem Pêcheux admitem
o sujeito como fonte de sentidos (GREGOLIN, op.cit., p.134), assim como
criticam
os
projetos
científicos
totalizadores,
teorias
unitárias,
globalizadoras (GREGOLIN, op.cit., p.148). Propõem tomar como objeto
da prática científica “as relações entre a língua (campo de virtualidades,
que não pode ser desviado) e o discurso (universo do acontecimento,
ligado à história e ao poder)”, assim como “as relações entre enunciados”
e as relações entre discurso e sujeito (pensado não como individual, mas
como dispersão de lugares) (op.cit., p.124). Pêcheux se interessa, a partir
disso, pela “escuta das circulações ordinárias do sentido”, aproximando-se
do Foucault da Arqueologia do Saber (op.cit., p.130) e pelo estudo das
“resistências inscritas no simbólico” (op.cit., p.146).
Há, portanto, uma mudança no tipo de discurso em foco. Se
antes tal análise do discurso se interessava pelos “saberes dominantes” e
101
os modos como operavam para dominar, agora interessa a “insurreição
dos saberes dominados”: “saberes históricos [...] mascarados “no interior
dos
conjuntos
funcionais
e
saberes
desqualificados”,
“ingênuos”,
“particulares”, “regionais” (GREGOLIN, 2004, p.176). Os “universos
discursivos logicamente estabilizados” não são mais entendidos como o
discurso de referência, e sim como gêneros diferenciados, obrigados a
conviver,
disputar
e
se
confrontar
com
“espaços
discursivos
não
estabilizados logicamente (o filosófico, o político, o estético, os múltiplos
registros do cotidiano)”(GREGOLIN, op.cit., p.179).
Assim, desde a sua fundação, na análise do discurso derivada de
Pêcheux, o discurso é entendido como um conceito que não se
confunde com o discurso empírico de um sujeito (parole
saussureana) nem com o texto (o discurso não está na
manifestação de seus encaixamentos; sendo um processo, é
preciso desconstruir a discursividade para enxergá-lo) nem com a
função comunicacional [...]. A análise visa a apreender esse novo
objeto (discurso como processo) indagando sobre as condições de
sua produção, a partir do pressuposto de que o discurso é
determinado pelo tecido histórico-social que o constitui
(GREGOLIN, 2003, p.7; grifos da autora).
Talvez o mais importante, para este trabalho, de tal reviravolta
teórica, sejam três questões:
a) a primeira, o fato de que não se considera mais que apenas o
pensamento culto, elitizado, acadêmico seja capaz de produzir discursos,
e o povo, as “massas” devam “consumir” tais discursos de forma
alienada52. A prática discursiva da ciência se debruça sobre as diversas
práticas discursivas do “ordinário”, não para explicá-las, mas para
“encontrar-se” com elas, ou encontrar-se nelas. Para encontrar lógicas
próprias e assim redescobrir as próprias lógicas; para assumir-se
ideológica
e
debruçar-se
sobre
as
condições
que
a
produziram.
Resumindo: considera-se que não há um espaço privilegiado de “produção
discursiva”, reservando aos demais espaços o simples “consumo”: todas
as práticas discursivas são instâncias válidas de produção de
discurso.
52
É de Foucault ( 1995) a concepção de processo discursivo como produção,circulação e consumo.
102
b) a segunda, decorrente da primeira, é que se abre a
possibilidade de estudar os processos de reconhecimento dos
discursos, para além do simples consumo. É Verón (1980, p. 190;2004,
p.51-54) que propõe essa redefinição do pólo discursivo que Foucault
chamou de “consumo”, levando em conta que qualquer texto pode ser lido
de várias maneiras, pode gerar várias “gramáticas de reconhecimento”,
em “condições de reconhecimento” diversas.
Importa então analisar não só as condições de produção dos
discursos, mas também as de reconhecimento: e é na defasagem entre
um e outro processo que se pode definir “circulação”. Reconhecer um
discurso implica numa posição diferente daquela do consumir (ainda que
não se exclua a possibilidade desta)53; implica numa reconstituição das
“regras de ‘leitura’ ou de interpretação desse discurso” (VERÓN, 2004, p.
264). Tem a ver com poder: “em análise dos discursos, ‘poder’ é o nome
do sistema de relações entre um discurso e suas condições (sociais) de
reconhecimento.
O
conceito
de
‘poder’
diz
respeito,
portanto,
à
problemática dos efeitos de sentido dos discursos” (VERÓN, op.cit.,
p.59).
c) A reconstrução das regras de leitura do discurso significa que
são estabelecidas relações entre enunciados, o que, no dizer de Foucault,
implica em definir regularidades, certa ordem, certo funcionamento entre
“os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas”
(1995, p.62): implica em configurar formações discursivas.
d) os discursos não são monolíticos, não são a expressão do
pensamento de um sujeito: são arenas de disputa, “locais” de confronto.
Assume-se de Bakhtin as noções de polifonia, da heterogeneidade do
discurso, da presença do outro no interior do discurso (BAKHTIN, 2003).
53
“Do ponto de vista teórico, a posição do analista, do observador, não coincide com a do ‘consumidor’ dos
discursos; um e outro não fazem exatamente a mesma leitura. A leitura do analista é mediada pelo seu método e
pelos instrumentos que ele aplica às superfícies discursivas. Essa mediação afeta o discurso analisado no poder
do mesmo: há um fenômeno do poder-crença que é próprio do ‘consumo’ e que é destruído pela análise. Sendo
assim, quando um analista se propõe a reconstruir uma gramática de reconhecimento de um discurso ou de um
tipo de discurso, sua leitura, mesmo não coincidindo com a leitura do consumidor, tem como objetivo
reconstituir esta última”(VERÓN, op.cit, p.70)
103
O trabalho da análise de discurso se concentrará, nesse modo de
compreendê-lo e de operar com ele, nos “pontos de deriva” (PÊCHEUX,
2006, p.53), nos desvios (VERÓN, op.cit., p.68), nos deslocamentos que a
prática imprime em todo enunciado fazendo-o derivar para um outro; nas
marcas que certos discursos deixaram na produção de um terceiro e na
postulação de efeitos de sentido, já que a análise é uma leitura “em
reconhecimento”. A aproximação com Bakhtin, aqui, tem a ver com a
questão da intertextualidade, isto é, com a idéia de que todo discurso é
um diálogo com muitos outros discursos, que no interior do texto muitos
textos emergem ou são sufocados, muitas vozes entram em confronto
(BAKHTIN, 2003), e também com a noção de gênero do discurso, a qual,
segundo Brait (2003, p.26), tem relação com as condições de produção,
de circulação e de recepção dos discursos, por se constituírem e atuarem
em esferas de atividades específicas.
Creio que, feitas essas escolhas, seja possível retornar ao ponto
de onde parti: como relacionar a produção de Vigotski com esse
desenrolar da análise de discurso na versão chamada francófona?
Apontarei, resumidamente, alguns pontos de encontro. Vigotski deixou em
aberto, em sua obra, e o reconhece explicitamente, a necessidade de
investigar como ocorrem as operações implicadas no processo de
interconstituição da consciência e da realidade (2000, p.485). Considera
suas investigações sobre pensamento e palavra como introdutórias a esse
grande programa de pesquisa. Ainda que o imaginasse como um trabalho
da psicologia em construção, Vigotski não teve nenhum problema em
transitar pela lingüística, pela literatura, pela antropologia, na busca de
referenciar suas escolhas teóricas. Não seria estranho para ele que uma
teoria dos discursos ou que uma sociologia viesse a responder, à sua
moda, aquela questão. Resumirei, portanto, da seguinte forma os pontos
de encontro que teci entre uma psicologia vigotskiana, a sociologia de
Bourdieu e a análise de discurso baseada em Pêcheux e Foucault,
enriquecida pela contribuição de Bakhtin:
104
a) Os discursos são o produto de práticas54: não apenas da
ação humana em geral, mas de uma ação específica: a ação de produzir
discursos. Essa prática é discursiva, isto é, é ferramenta e é produto
a
um
só
discursiva),
tempo. O
tendo
empenho
como
matéria
em
produzir
prima
“realidades”
“realidades”
já
(prática
produzidas
(apropriadas/objetivadas), é o próprio processo de interconstituição do
que Vigotski chamou consciência e realidade: o processo em que
psiquismo e mundo se interconstituem.
b) O discurso é histórico, como queria Vigotski (2000): o que
se diz é o que tem possibilidade de ser dito, o que é legítimo, razoável,
aceitável dizer naquele momento histórico, naquele determinado feixe de
relações de poder (Foucault, 2006). A prática discursiva que o produz
também tem que ser histórica: o “como” se age discursivamente, como é
adequado e legítimo dizer/pensar, o como dizer/pensar o que não é ainda
adequado e legítimo, mas tem potencial de vir a ser: tudo isso se
configura nas condições históricas de vida dos falantes, dos enunciadores
do discurso.
c) Para a análise do discurso de que tratamos aqui, o discurso
não provém do sujeito, não é sua obra, mas é produzido nas relações
(assimétricas) entre os discursos já produzidos e determinada prática
discursiva, em determinadas condições de produção, e podendo criar um
leque de efeitos de sentido. Para Vigotski, subjetividade se constitui na
relação com objetividade; portanto na relação intersubjetiva. A palavra
para ele também não provém do sujeito, entendido com entidade isolada,
já que Vigotski sequer reconhece tal entidade isolada: não há como
conceber o indivíduo em si, nem no que se refere à constituição psíquica,
nem
no
que
se
refere
à
produção
discursiva.
Discurso
aqui
é
compreendido como processo que perpassa as falas, os textos, a produção
de imagens: é produção coletiva, sócio-histórica. Desse ponto de vista,
54
Diz Verón (1980, p.81) a esse respeito: “As operações produtoras de significação no seio do discursivo, isto é,
as operações de investimento do sentido nas matérias significantes são, ao mesmo tempo, práticas sociais
específicas”.
105
supor processos de conscientização e “inconscientização”, que ocorrem
numa configuração individual, não pressupõe que tenham gênese e
desenvolvimento individualizados.
d) É na análise do modo com operam as práticas que se
pode
sair
da
oposição
entre
consciência
e
realidade,
entre
interioridade e exterioridade. Basta, como dizia Bourdieu, “ir ao modus
operandi das
práticas”, “para escapar
ao
“realismo
da estrutura”
(BOURDIEU, 1994, p.60). No caso das práticas discursivas, isso quer dizer
buscar suas coerções de engendramento, suas regras de funcionamento,
mas também suas estratégias de resistência, e isso só pode ser feito na
busca da interdiscursividade que constitui cada discurso (VERÓN, 2004,
p.69). Assim como a palavra é “endereçada”, “se dirige a”, ela o faz
dentro de estratégias específicas, que respondem a relações específicas:,
responde, contrapõe-se, justifica, oculta, sobrepõe-se (BAKHTIN, 2003;
VIGOTSKI, 2000), também as práticas que a produzem se guiam
(conscientemente ou não) pelo modo como se configuram essas relações.
e) Deixar de supor um sujeito enquanto origem do discurso, não
implica ignorar a existência de um agente da prática discursiva, o qual
opera a partir de determinadas posições, vinculadas a um habitus, mas
também toma atitudes que modificam essas posições e esse habitus. As
possibilidades de transformação e reprodução nas práticas têm a ver com
a flexibilização desse habitus, isto é não têm a ver somente com
processos de “conscientização”, mas também de automatizações das
mudanças. O processo de internalização implica os dois processos; isso
quer dizer que superar a alienação discursiva exige voltar-se sobre
a própria prática discursiva, sobre os processos de produção e
reconhecimento de discursos que configuram a cada um como
agente.
f) Voltar-se sobre as práticas discursivas supõe, portanto, dois
movimentos, os quais têm a ver com a busca e a intenção de superação
por
parte
desse
agente:
o
primeiro,
estabelecer
relações
entre
106
enunciados,
entendendo
tais
relações
como
formações
discursivas
(FOUCAULT, 1995); o segundo, estabelecer relações entre tais formações
e determinadas matrizes de percepção, ação e apreciação (BOURDIEU,
1994), entre formação discursiva e habitus. Ao invés de opor um conceito
ao
outro,
entendê-los
como
movimentos
diferentes,
porém
complementares, de um percurso metodológico. No primeiro movimento,
romper com a experiência em si, desvelando o sistema que a regula; no
segundo, romper com a naturalização dessa experiência, buscando sua
relação com o modo de engendramento das práticas (BOURDIEU, 1994).
Não tenho dúvidas de que as noções de discurso e de prática
discursiva, tais como descritas, servem melhor ao projeto vigotskiano, na
atualidade, do que a noção de signo. Quando Verón sugere que a
semiologia dos anos 80 deveria abarcar “o processo que vai da produção
de sentido até a ‘consumação’ de sentido, sendo a mensagem o ponto de
passagem que sustenta a circulação social das significações” (2004,
p.216), resume, no meu ponto de vista, a elaboração atual da velha e
sempre relegada questão que propunha Vigotski: o problema de como
ocorrem as operações implicadas no processo de interconstituição de
consciência e realidade.
Finalmente, para concluir este momento das considerações mais
propriamente teórico-metodológicas, e remeter para o processo de
configuração das ferramentas metodológicas adequadas a esta pesquisa,
duas questões serão tratadas aqui (ainda que tenham surgido em vários
momentos do texto), para esclarecer o modus operandi desta minha
prática discursiva concreta: considerações sobre a dupla função e
configuração dos conceitos e sobre a superação do esquecimento das
condições de produção e dos modos de operar de uma prática discursiva.
107
3.6.1. Conceito como operador ou como representação de uma
realidade
Bourdieu comenta, em sua análise do modo de pensamento
objetivista, que os etnólogos estruturalistas se apropriaram de uma
terminologia cujas condições de produção eles nem sempre sabiam
reproduzir, e deixaram de fazer a “reflexão epistemológica das condições
e dos limites de validade de uma transposição da construção saussuriana”
(1994, p.50) Esse trecho me chama a atenção porque Bourdieu está
defendendo o ponto de vista de que a validade de um conhecimento tem a
ver com a análise de suas condições de produção, e isso implica supor
uma história do conceito, como queria Vigotski55.
Analisar as condições de produção de um conceito parece ser
retomar as condições de possibilidade de elaboração teórica na qual ele
fazia sentido como operador. Transformada em representação do real,
coisificada, a palavra aparece dissociada de suas condições de produção:
é naturalizada. Bourdieu se refere a um “inconsciente epistemológico”
(1994, p. 50): os atos pelos quais a teoria construiu seu objeto são
esquecidos, restando apenas o objeto, que aparece como universal. Podese dizer que houve uma “apropriação alienada” de uma terminologia.
Palavras que eram operadores (tinham a função de nomear determinada
elaboração
teórica)
ganharam
substância
e
se
transformaram
em
expressão da realidade. Deixaram de ser considerados produtos de uma
determinada prática discursiva, elaborada em determinadas condições.
O conceito entendido como operador, elaborado na práxis discursiva
como ferramenta, tende a se enrijecer quando adquire poder explicativo,
55
Abbagnano define conceito, em termos gerais, “como todo processo que torne possível a descrição, a
classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis” (2000, p.164). Tal noção, segundo o autor citado, dá origem
a duas questões; acerca da natureza do conceito e acerca das funções do conceito. Sobre a natureza, as duas
principais soluções para a questão definem conceito ou como a essência das coisas, ou como signo. Sobre as
funções, a primeira definição de natureza supõe uma função final para o conceito (o conceito serve para
“exprimir ou revelar a substância das coisas”), enquanto que a segunda supõe uma função instrumental (o
conceito descreve, classifica, organiza e antecipa). A visão de Vigotski, que aqui adoto, se alinha à segunda
solução, por supor uma historicidade no conceito, entendendo-o como produção humana, mas não supõe
conceito como processo, e sim como elemento que desencadeia um processo.
108
ou seja, quando se ganha legitimidade e autoridade nas relações de
poder.
Dentro dessa lógica, para analisar o produto de uma prática
discursiva é necessário fazer aquilo que Foucault propunha: suspender o
esforço interpretativo (a busca do sentido último do que é dito); contrapor
a isso um esforço de perceber em que condições e dentro de que relações
se constituíram aquela produção, sua estrutura e seus conceitos.
Buscar a gênese da elaboração conceitual, no meu entendimento,
significa retomar sua potencialidade de operador (em vez de pensar
“signo é...”, pensar “signo se constitui nas seguintes condições, em
polarização com tais e tais outros operadores, no esforço objetivo de...,
dentro de tal ação”...).
Para poder compreender uma totalidade é preciso vê-la em suas
relações. Os conceitos, tidos como totalidade, passam a funcionar como
operadores quando “vistos” numa totalidade maior. Por exemplo, habitus
funciona como
operador
quando
Bourdieu o
usa para mostrar
a
possibilidade de transitividade entre estrutura e superestrutura. Funciona
como conceito quando define uma totalidade (sistema de...; conjunto
de...). Diluído em suas fronteiras, se aproxima do pólo do movimento.
Enrijecido em sua identidade, se aproxima do pólo do estático (ou da
inércia).
Isso tem relação com apropriação/objetivação de objetivações, isto
é, tem a ver com internalização. Uma tendência a internalizar conceitos
como coisas, expressão da realidade, verdade, pode indicar condições de
produção/circulação/consumo dos discursos fortemente coercitivas, ou
alienantes; isso implica, creio eu, em pouca mobilidade das operações
discursivas,
e
implica
num
funcionamento
tendencialmente
mais
automático e inconsciente da prática discursiva. Em condições de menor
coerção,
é
possível
internalizar
operadores,
o
que
permite
maior
flexibilidade para não só entender as relações já elaboradas por teóricos
autorizados, mas estabelecer novas relações de modo criativo, criticar as
109
estruturas conceituais já montadas, flexibilizá-las, atribuindo-lhes poder
operatório.
Esse entendimento das definições de conceito ajuda a entender a
distinção que Verón (1980, p.102-116) faz entre ciência e ideologia. Para
ele, a dimensão do ideológico perpassa qualquer tipo de conhecimento:
tem a ver com as coerções, com as relações de poder. Não é nos
conceitos, então, que se pode localizar o ideológico, embora se possa
rotular certos conteúdos como “ideológicos”. Um discurso ideológico pode
ter a mesma rede conceitual do discurso científico, não é enquanto
conteúdo que ele se distingue do discurso científico: é no fato de que ele
propaga a si mesmo como verdade (conceito acabado e definitivo)
enquanto
o
científico
propaga
a
si
mesmo
como
possibilidade,
reconhecendo o fato de que não pode deixar de ter função ideológica (já
que não é a prática do pesquisador que determina isso).
Uma prática discursiva lida, portanto, com conceitos, podendo
entendê-los como operadores ou como expressão do real. Quanto mais
entendê-los desse ultimo modo, mais rígida será (reproduzirá verdades);
quanto mais lidar com operadores, mais flexível será (reproduzirá
possibilidades). Não pode se dar ao luxo de só reproduzir possibilidades,
uma vez que é ação concreta, voltada para objetivos criados pelas
necessidades vitais dos agentes concretos. Precisa produzir e reproduzir
“verdades”, tanto aquelas aceitas no universo de sentidos onde aquela
prática “faz
sentido”,
quanto
aquelas
provisórias,
ilegítimas,
não-
autorizadas (ideologias não-dominantes estarão aí sendo gestadas).
3.6.2. O esquecimento/desvelamento das condições de produção e
dos modos de operar da prática discursiva
Orlandi (2005, p.34-6) diz, citando Pêcheux, que é possível
distinguir, no discurso, duas formas de esquecimento. Uma delas é o
110
esquecimento
enunciativo:
ao
escolhermos
um
modo
de
dizer,
esquecemos todo um leque de outros modos possíveis. O segundo é o
esquecimento ideológico: “por esse esquecimento temos a ilusão de ser a
origem, do que dizemos, quando, na realidade, retomamos sentidos
preexistentes” (ORLANDI, 2005, p.35).
Esse segundo esquecimento tem a ver com aquilo que diz
Bourdieu (1994, p.50) sobre inconsciente epistemológico. Legitimada a
construção teórica, tende a ser esquecida a prática que a construiu; aliás,
pode ser que o esquecimento de tal prática seja inclusive condição de
legitimação daquele conhecimento. Orlandi afirma que o esquecimento é
estruturante: “as ilusões não são um defeito, são uma necessidade para
que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos” (2005,
p.36). o funcionamento da linguagem exige, portanto, a ilusão de um
sujeito produtor de discurso; o reconhecimento de um conhecimento
como válido exige que ele se descole dos sujeitos e das circunstâncias em
que foi produzido, ganhando a ilusão da universalidade.
Analisar os discursos implica num esforço de trazer para o nível
da consciência, dentro dos limites do possível, tais ilusões, já que o fato
de “desaparecerem” num inconsciente as condições de produção e os
modos de operar do discurso autorizado não implica nem que a prática
discursiva que acontece no presente possa abrir mão de realizar
operações (utilizar-se de operadores: não há funcionamento discursivo
sem eles) ao produzir discursos, nem que esteja ela própria separada de
determinadas condições de produção. Imersa num habitus, a ação de
produzir discursos opera geralmente de modo inconsciente, automatizado,
mas é possível a construção de um dispositivo de análise (ORLANDI,
2005, p.59-62) que explicite não um sentido “verdadeiro”, mas sua
materialidade. O agente da prática discursiva pode se aperceber da
própria prática: tanto das operações colocadas em movimento quanto das
condições que fazem com que tais operações sejam adequadas e
legítimas, ou o contrário.
111
Uma de suas possibilidades-limite de operação é de forma
alienada. Não é difícil imaginar as linhas gerais desse modo de operar:
trata-se de um esforço de articulação entre todos fechados; quando esses
todos parecem estar em oposição, exige escolhas entre um e outro
(atribui um estatuto de verdade e a outro estatuto de mentira, a um o
estatuto de “certo” e ao outro o de “errado”, “legítimo” versus “ilegítimo”,
e assim por diante...); subordina uns conceitos a outros e só a eles.
Procura definições fechadas e não as questiona. Explica certos recortes da
realidade e só eles com determinada teoria, imaginando uma teoria
diferente e recortada para cada campo. O discurso produzido é vinculado
de forma fechada a determinado autor, ou a determinado campo.
As condições de produção dos discursos em que tal modo de
operar faz sentido são aquelas em que a linearidade, as totalidades
fechadas, as oposições irredutíveis fazem sentido, porque garantem, na
medida em que obscurecem a possibilidade de produção de novos e
diferentes
discursos,
um
determinado
tipo
de
movimento:
o
da
reprodução.
Uma prática discursiva ganha rumos transformadores em seu
movimento quando percebe a si mesma como prática. Recordo aqui a
definição de alienação em Marx: não é apenas a separação entre o
homem e o que ele produz, mas também é a crença produzida no homem
de que ele está definitivamente separado de sua atividade. Da mesma
forma, uma prática discursiva alienada não é uma que separa teoria e
prática; é uma que imagina que teoria e prática possam ser separadas.
Quando, por meio do próprio exercício de ser o que faz, (produzir
discursos),
o
agente
da
prática
se
descobre
teorizando,
e
não
reproduzindo teorias já prontas, percebe então que está fazendo coisas,
pensando sobre elas e falando sobre elas, e que tudo isso é uma coisa só.
Descobre que é capaz não apenas de reproduzir verdades, que é capaz de
lidar com as coerções. Descobrindo que se insere num habitus, se dilui em
suas fronteiras e dilui as fronteiras desse habitus, percebendo a própria
112
prática como operadora em relação ao habitus e a este como operador
com relação aos campos da produção do simbólico e do poder.
Uma das possibilidades de reforçamento dessa prática pode ser
vista como “interna”: suas potencialidades se ampliam e renovam; ela
ganha em eficácia e em competência. Outra possibilidade pode se situar
no pólo do “externo”, do interdiscursivo: ainda que não responda às
exigências de reprodução do status quo para ser valorizada, ela pode
responder a exigência de grupos e espaços, nos quais o agente da prática
é valorizado: nos movimentos sociais, nos espaços vinculados à produção
cientifica, em tradições familiares e grupais de resistência.
O esquecimento de que fala o titulo deste item, a alienação a ele
vinculada, ainda que se configurando em condição para
a “constituição
dos sujeitos e dos sentidos” (ORLANDI, 2005, p.36) não são o destino
definitivo de toda prática discursiva. Pelo contrário, podem ser momentos
históricos
necessários
à
constituição
de
outros
momentos
de
desvelamento das práticas e elaboração de novas práticas.
Haverá quem argumente, já foi dito, que não se pode reduzir as
práticas humanas ao discursivo. Sem dúvida, mas não há que negar o
discursivo em toda prática humana. Se um redimensionamento do
discursivo enquanto prática pode contribuir para um redimensionamento
das práticas humanas como um todo, é coisa ainda a ser investigada e
experimentada. Mas que é uma possibilidade fascinante, isso é. A análise
que apresento a seguir pretende se juntar aos esforços nessa direção.
4.
A PRÁTICA DISCURSIVA COMO FERRAMENTA E PRODUTO: UM
EXERCICIO DE CONSTRUÇÃO DE DISPOSITIVOS DE TRABALHO
Para
apresentar
a
maneira
como
foram
construídos
os
dispositivos de análise e interpretação, considero necessário retomar e
esclarecer algumas questões, relacionadas tanto à forma como o objeto
foi sendo construído e reconstruído ao longo do trabalho quanto as
possibilidades mais propriamente técnicas que foram, nesse processo,
sendo elaboradas.
Tendo eleito as relações entre os discursos sobre a inclusão
como objeto de pesquisa, tive que aprofundar-me nas teorias a respeito
de discurso, e isso fez com quem me apercebesse de que o objeto e as
técnicas para lidar com ele eram de uma mesma ordem: para analisar o
produto de uma prática discursiva eu precisava lançar mão de uma outra
prática discursiva. Isso se constituiu num problema e na sua própria
solução, uma vez que os estudos a respeito do objeto eram ao mesmo
tempo aqueles necessários a subsidiar a elaboração dos dispositivos de
análise e interpretação.
Entre a quase infinidade de redes discursivas imbricadas na
questão da inclusão, precisei recortar os campos que diziam respeito à
inclusão escolar. Por campos, estou entendendo um “sistema de relações
constitutivo da classe de fatos (reais ou possíveis) de que [o objeto] faz
parte sócio-logicamente” (BOURDIEU, 2005, p.183). Desse ponto de vista,
o recorte dos campos acadêmico, escolar e governamental não foi
propriamente uma escolha, mas um reconhecimento de que se tornava
impossível tratar dos discursos produzidos num campo sem remeter ao
outro.
Segundo Bakhtin, “cada campo de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos
114
gênero do discurso” (2003, p. 261). O processo de escolha, dentro de
cada um desses campos, do gênero a ser analisado tornou-se bastante
complexo.
O campo governamental tem uma razoável produção de material
nesse terreno: leis, recomendações, instruções, manuais, entre outros
formatos. Baseei minha escolha na questão do destinatário do discurso,
considerando a interdiscursividade que está colocada no problema: escolhi
uma coleção de manuais que se propõe a capacitar o professor para
tornar sua atividade inclusiva, já que é o professor o enunciador do outro
discurso a ser analisado.
No campo acadêmico, a produção é muito mais vasta, mais
diversificada e muito mais complexa. Nos últimos anos, publicou-se muito
no Brasil, na área do pedagógico, a respeito de inclusão. Considerando a
dificuldade de selecionar um artigo ou grupo de artigos representativo do
campo, e analisá-los na integra, preferi realizar um recorte específico,
dentro do gênero “artigo de divulgação científica”: em três publicações
que selecionaram artigos de autores que são referência na área,
apresentados em encontros também nacionalmente reconhecidos como
representativos, recortei os trechos que definiam inclusão, movimento
inclusivo, escola inclusiva, ensino inclusivo, prática inclusiva e discurso
inclusivo. Desse modo, tive acesso a um leque maior de produções. Em
cada recorte, considerei aquilo que Bakhtin (2003, p.275-287) define
como os limites do enunciado: a possibilidade de alternância dos falantes
e
a
conclusibilidade,
peculiaridade
do
enunciado
que
assegura
a
possibilidade de resposta. Num artigo científico, a exauribilidade, que é
um elemento importante da conclusibilidade, é naturalmente relativa, mas
é mais fácil de ser alcançada num trecho dele que define um conceito: em
certo momento, o autor se refere ao termo inclusão em termos de
definição: “inclusão é...”, “por inclusão se entende...”, “inclusão implica
em...” ou outras expressões correlatas. Também ajuda a forma de
115
acabamento do gênero: definição é um subgênero com formato muito
específico,o que permite seu recorte sem grandes perdas de sentido.
Esses
dois
primeiros
gêneros
selecionados
podem
ser
considerados, segundo a definição de Bakhtin, como gêneros secundários,
no sentido de que “surgem nas condições de um convívio cultural mais
complexo
e
relativamente
muito
desenvolvido
e
organizado
(predominantemente o escrito _ artístico, científico, sociopolítico, etc.”
(BAKHTIN, 2003, p.263)
No campo escolar, adotei uma espécie de entrevista dialogada,
cuja estrutura foi sendo negociada no próprio processo do entrevistar.
Considerei a entrevista dialogada como um gênero que transita entre o
secundário e o primário: ao mesmo tempo em que é um diálogo face a
face, influenciada pelas “condições de comunicação discursiva imediata”
(BAKHTIN, 2003, p.263), também é uma situação estruturada em que os
papéis
(de
entrevistado
e
entrevistador)
estão
historicamente
estabelecidos, direcionando as expectativas de quem fala com relação a
quem ouve (é uma elaboração do campo da ciência, portanto uma
elaboração complexa).
Considerei que cada gênero de discurso tem sofre suas próprias
coerções de engendramento (VERÓN, 1980), da mesma forma como, em
cada campo, se estabelecem relações especificas que têm a ver com
disputas de poder, com correlações de força, com as posições que cada
grupo de agentes ocupa dentro da estrutura do campo, com o fato de que
“ele é determinado em sua estrutura e em sua função pela posição que
ocupa no interior do campo do poder” (BOURDIEU, 2005, p.190).
Um trabalho analítico que leve em conta essas duas elaborações
(campo e gênero) precisará dar conta da montagem de certos quadros,
certas configurações _formações discursivas_ no interior de cada gênero:
quais os modos discursivos de operar; que vozes entram em embate e em
diálogo no interior do gênero e do campo, que relações se pode perceber
entre essas vozes...
116
Pressupondo
relações
assimétricas
no
interior
dessas
configurações, estabeleci distinção entre vozes dominantes e vozes
recessivas, assumindo estas últimas como vozes que se mantêm vivas no
discurso, ainda que em posição de desvantagem. Uma voz recessiva é
fora de moda, out. Já foi superada, se diz na academia. É politicamente
incorreta. É de outros tempos (anacrônica). É de outros espaços. No
entanto, é renitente. Para quem se dispõe a escutar outras vozes que não
as dominantes, ela continua ali, esperando uma brecha. Perceber as vozes
recessivas pode ser fundamental na organização de um discurso que se
pretende dominante, já que permite tentar calá-las antes mesmo que
possam emergir. Também pode ser muito importante como parte de uma
estratégia para fazer frente à dominação das vozes _ no dizer de
Foucault_ autorizadas, legitimadas socialmente. É uma noção importante
numa concepção
em que o poder
está em permanente disputa;
recessividade pode ter a ver com os conteúdos (coisas que podem/devem,
não podem/não devem ser ditas),com os modos de operar (jeitos de dizer
que são/não são adequados), com os estilos, etc.
Tais modos de operar, tais relações entre vozes dominantes e
recessivas, não podem ser “mostrados” como fatos, elementos recortáveis
para uma análise fria e distanciada: só podem se configurar como efeitos
de sentido produzidos num outro discurso: aquele que assumo como
pesquisadora. E assim que Verón define efeito de sentido: “Vejo mal,
efetivamente, o que é um efeito de sentido de um discurso, do ponto de
vista semiótico, se não é um outro discurso no qual se manifesta, refletese, inscreve-se, o efeito do primeiro” (VERÓN, 2004, p.237; grifo do
autor).
Assim,
o
esforço
analítico
ocorre
no
interior
de
relações
interdiscursivas56.
56
Ver Verón (2004, p.69-70): “Se a análise dos discursos é uma análise de diferenças, é porque os discursos
sociais são sempre produzidos (e recebidos) dentro de uma rede extremamente complexa de interdeterminações.
[...] Na verdade, pode-se dizer que todo discurso produzido constitui um fenômeno de reconhecimento dos
discursos que fazem parte de suas condições de produção. Do mesmo modo,uma gramática de reconhecimento
só existe sob a forma de discursos produzidos, a partir dos quais se pode tentar reconstituir tal gramática”.
117
Minha intenção foi, portanto, analisar o modo de funcionamento
dos discursos (ORLANDI, 2005, p.86). Por modos de funcionamento do
discurso entendo a forma como os elementos que constituem o discurso
(considerando aí tanto as temáticas tratadas como os modos de operar)
relacionam-se entre si e com suas condições de produção. Fiz a opção de
analisar esse modo de funcionamento de duas formas: primeiro, postulei,
com base nas marcas do texto, operações discursivas, nos termos
propostos por Verón:
Quando fazemos análise dos discursos, descrevemos operações
[...]. Uma superfície textual é composta por marcas. Essas
marcas podem ser interpretadas como os traços de operações
discursivas subjacentes, remetendo às condições de produção do
discurso, cuja economia de conjunto define o marco das leituras
possíveis. As operações não são, portanto, elas próprias visíveis
na superfície textual: elas devem ser reconstruídas (ou
postuladas) a partir das marcas na superfície (VERÓN, 2004,
p.65-68).
Por exemplo, no texto governamental, “estimular a participação
de todos os professores nas sessões de leitura dos documentos” (C1,
p.13) destaquei como marcas no texto o verbo de ação estimular, os
substantivos
participação
indireto).Que operações
(objeto
direto)
e
professores
(objeto
podem subjazer à escolha de um verbo como
esse, com relação a esses objetos? Para evidenciá-las, é preciso realizar
outras operações: esclarecer a que sujeito o operador se refere, qual é o
objeto do verbo. O sujeito a quem esse verbo se refere é o formador: é a
ele que cabe estimular a participação. O objeto são os professores: eles é
que devem ser estimulados a participar. Temos então uma operação
discursiva na qual alguém (o professor) precisa ser estimulado (pelo
formador) a participar. Essa operação pressupõe uma expectativa com
relação aos professores: de que eles terão uma atitude passiva diante das
sessões de leitura.
Num segundo movimento, relacionei tais operações com as
temáticas a que se referem, considerando que o conteúdo dos enunciados
é visado de uma maneira especifica quando se presta atenção no
118
dispositivo de enunciação, nas operações enunciativas realizadas (VERÓN,
op.cit., p 219). No caso acima, a temática da participação sofre um
determinado tratamento no conjunto do texto: ela é valorizada quando
sob
controle
(deve
emergir
sob
coordenação
de
formadores
e
coordenadores e produzir os resultados previstos). Desse modo, modo de
operar e temática podem ser relacionados: dentro de uma lógica do
controle, faz sentido que se pressuponha a passividade do professor,
assim como se planeje formas de fazê-lo sair dessa passividade (da
direção dos objetivos previstos).
Para lidar com as temáticas, explicitando suas formas de
tratamento, recorri a Orlandi (op.cit., p. 60), a qual afirma que o analista
precisa criar um dispositivo de análise que lhe permita trabalhar “não
numa
posição
neutra,
mas
que
seja
relativizada
em
face
da
interpretação”; o esforço de incluir, nesse dispositivo, a questão das
temáticas, levou-me a organizar minha leitura do texto em quatro
dimensões diferentes, propostas pela mesma Orlandi (op.cit.,p.59): o que
é dito, o que não é dito, o que é dito nas entrelinhas, outras formas de
dizer o mesmo. A busca do não-dito, do dito de outro modo procura
responder ao esquecimento número dois de que fala Pêcheux (apud
ORLANDI, op.cit., p.34), esquecimento que é da ordem da enunciação: ao
dizer, “pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas
palavras e não outras, que só pode ser assim”. O modo de dizer, então, a
escolha das palavras, tem a ver com os limites impostos por determinadas
formações discursivas.
A busca do não dito, dos dizeres esquecidos não se faz a partir
de uma dimensão extradiscursiva, mas na própria elaboração de um novo
texto, que é parte de um discurso em reconhecimento, como propõe
Verón (1980, p.190; 2004, p.51;233;264). De acordo com este autor,
considerar os efeitos de sentido que se constituem nesse esforço de
desvelar o esquecimento enunciativo como parte de um sistema produtivo
implica levar em conta, primeiro, a existência de uma determinada
119
gramática de produção, a que se quer evidenciar pelo uso do dispositivo
de análise e interpretação; segundo, a possibilidade de várias gramáticas
de reconhecimento, uma das quais se está construindo no próprio esforço
de interpretação.
O analista dos discursos não pode fazer senão leituras dos
mesmos. Melhor dizendo: o analista de discursos, por definição,
sempre é colocado em posição de reconhecimento. Na verdade, o
discurso analisado [...] é uma condição de produção do discurso
produzido pelo analista. Do ponto de vista teórico, a posição do
analista, do “observador”, não coincide exatamente com a do
consumidor dos discursos; um e outro não fazem a mesma
leitura. A leitura do analista é mediada por seus métodos e pelos
instrumentos que ele aplica às superfícies discursivas. Essa
mediação afeta o discurso analisado no poder do mesmo: há um
fenômeno de poder-crença que é própria do “consumo” e que é
destruído pela análise (VERÓN, 2004, p.70; grifo do autor).
No empenho de amalgamar as propostas de Orlandi e de Verón,
então, busquei marcas no texto que funcionassem como traços de
operações discursivas subjacentes na primeira das dimensões (o que é
dito) e postulei operações discursivas com base nesses traços, atingindo
assim as dimensões do que não era dito e do que era dito nas entrelinhas,
e propondo outras formas de dizer. Não apenas postulei operações
discursivas no texto analisado, portanto: criei um modo de operar, em
minha prática discursiva, para poder lidar com essas operações.
Do
entrelaçamento
dessas
operações
discursivas
(as
do
enunciador e as minhas, como analista) sugeri efeitos de sentido,
produzidos em reconhecimento (VERÓN, op.cit., p.51-52), buscando
atravessar “o efeito de transparência da linguagem, da literalidade do
sentido e da onipotência do sujeito” (ORLANDI, op.cit., p.60). Às
estratégias do dizer, contrapus as estratégias do evidenciar o não-dizer,
do dizer de outro modo. Tratava-se uma prática discursiva (a minha, de
pesquisadora) tomando uma outra como objeto, fazendo um discurso “em
reconhecimento” e, portanto, não se pode falar de verificação ou de
descoberta, mas dos efeitos discursivos que foram sendo construídos na
120
interdiscursividade57.
Descrição
e
interpretação
se
entrecruzaram,
embora distintas; o lugar de uma e de outra nas práticas de análise de
discurso, diz Pêcheux, deve ficar claro:
Desse ponto de vista [de que toda descrição oferece lugar à
interpretação, porque não pode evitar estabelecer ligações com
outros discursos], o problema principal é determinar nas práticas
de análise de discurso o lugar e o momento da interpretação, em
relação aos da descrição: dizer que não se trata de duas fases
sucessivas, mas de uma alternância ou de um batimento, não
implica que a descrição e a interpretação sejam condenadas a se
misturar no indiscernível (PECHEUX, 2006, p.54).
Assim, parti daquilo que está dito no texto: descrevi. Mas nesse
dito já entrevi não-ditos, modos de dizer, processos parafrásticos _dizer o
mesmo de forma diferente_ e polissêmicos _ “deslocamento, rupturas de
processos
de
significação”
(ORLANDI,2005,
p.
36-37):
interpretei.
Portanto, o interpretar permeou todo o processo de descrição. Os efeitos
discursivos produzidos não foram “achados” no texto, ainda que suas
marcas ali estivessem e pudessem ser apontadas: foram produzidos nesse
“batimento” de que falava Pêcheux.
Para elaborar os quadros interpretativos de cada gênero, propus
então enfeixamentos das temáticas tratadas e dos modos de operar. Ou
seja, trabalhei tanto com os conteúdos dos enunciados quanto com as
operações enunciativas, de modo que as temáticas estão fortemente
imbricadas com os modos de operar do discurso.
Se os enfeixamentos, tanto das temáticas quanto dos modos de
operar, são feitos “de fora”, por quem está na posição de pesquisador,
não são feitos da forma exigida pelos desejos de quem pesquisa. Não há
que negar que eles só podem ser feitos porque algo nas configurações dos
efeitos de sentido os “atrai” para uma mesma “rede semântica”, e isso
certamente tem relação com as posições daquele modo de operar,
57
Ver Verón, (2004, p.69-70): “Se a análise dos discursos é uma análise de diferenças, é porque os discursos
sociais são sempre produzidos (e recebidos) dentro de uma rede extremamente complexa de interdeterminações.
[...] Na verdade, pode-se dizer que todo discurso produzido constitui um fenômeno de reconhecimento dos
discursos que fazem parte de suas condições de produção. Do mesmo modo, uma gramática de reconhecimento
só existe sob a forma de discursos produzidos, a partir dos quais se pode tentar reconstituir tal gramática”.
121
temática ou gênero de discurso no campo relacional. Busquei captar esse
processo no duplo movimento metodológico de configurar formações
discursivas e relacionar tais formações com um habitus.
4.1. APLICAÇÃO DO DISPOSITIVO DE ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO AO
DISCURSO GOVERNAMENTAL
Para aclarar a utilização do dispositivo de análise e interpretação,
aplicando-o ao gênero escolhido, dentro do campo governamental,
considero necessários alguns esclarecimentos prévios referentes a autoria,
texto, formato do gênero e delimitação do corpus de pesquisa.
Considerei como governamental ( ou oficial, já que usei os dois
termos como sinônimos) o texto assumido explicitamente por alguma
instância de governo58 , neste caso a Secretaria de Educação Especial do
Ministério
da
Educação
(Brasil),
daqui
por
diante
referida
como
SEESP/MEC, e tal texto, assim assumido, como uma (entre as muitas)
manifestação concreta do discurso oficial. Minha escolha do discurso
governamental se fundou no debate que essa esfera de uso da linguagem
necessariamente estabelece com os outros dois gêneros: o discurso
acadêmico e o discurso escolar organizado nas falas dos professores, em
cuja
configuração
polifônica
eu
encontrei
também
os
ecos
do
enfrentamento e diálogo com as instâncias e relações de poder que lhes
dizem respeito59.
O
discurso
oficial
pode
assumir
configurações
diversas,
organizar em diversos gêneros: pode ter a forma legal (diretriz, lei,
58
Para definir que um texto é assumido explicitamente como oficial, considerei a presença de marcas como a
assinatura da autoridade, o logotipo do governo e a referência oficial na ficha catalográfica.
59
“A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso
não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a ‘ideologia do cotidiano’, que se exprime na
vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas” (YAGUELLO, in
BAKHTIN, 2004, p.16)
122
decreto) a forma de instrução, a forma de manual, a forma de
comunicação em eventos, entre tantas. Aqui, o discurso oficial aparece
sob a forma de manual prático, destinado a subsidiar a formação de
professores para a construção de escolas inclusivas. A escolha desse
gênero tem relação com o nível do destinatário: todo discurso é dirigido,
endereçado (VERÓN, 1980, p.77; BAKHTIN, 2004, p. 112); todo texto
responde em alguma medida a outros textos, assumidamente ou não. No
caso deste, é dirigido intencionalmente ao professor, como se pode ler na
apresentação de cada fascículo. Propõe um diálogo diretamente com os
professores das escolas públicas, se apresenta como proposta para
mudanças na atuação deles. Também é um texto dirigido às secretarias
de educação estaduais e municipais, aos coordenadores e formadores de
grupo, naturalmente, mas somente do sentido em que essas instâncias e
papéis têm uma função naquilo que pode ser chamado um percurso
discursivo entre a SEESP/MEC e seu interlocutor privilegiado, o professor.
O endereçamento do discurso tem relação, então, com seu
propósito. Sendo o produto de uma prática discursiva, uma atividade, um
empenho em produzir realidades, o discurso não somente é dirigido a
alguém, mas também é dirigido a algum aspecto da realidade. Para este
momento inicial, basta considerar seu propósito explícito: subsidiar a
construção de escolas inclusivas, propósito já estabelecido na Resolução
CNE/CEB nº. 2, de 11 de fevereiro de 2001 (BRASIL, 2001). Parti desse
propósito explícito para, no estudo dos traços discursivos presentes no
texto, fazer emergir outras possibilidades.
Minha intenção era, portanto, analisar o modo de funcionamento
do discurso oficial nesse gênero específico: o formato de manual, que,
nesse caso, se configura em subsídio para a formação continuada de
professores e, portanto, para a prática pedagógica.
Na busca de delimitar um corpus coerente e homogêneo de
documentos, selecionei a coleção Saberes e práticas da inclusão (2005),
composta de sete cadernos: um “Caderno do coordenador/formador de
123
grupos”
(daqui
em
diante
denominado
C1),
um
caderno
de
“Recomendações para a construção de escolas inclusivas” (C2), cinco
cadernos específicos, com o título geral de “Desenvolvendo competências
para o atendimento às necessidades educacionais especiais” cada um se
referindo a uma especificidade no campo da educação especial (alunos
surdos (C3), alunos com deficiência física/neuromotora (C4), alunos com
altas habilidades/superdotação (C5) e alunos cegos/baixa visão (C6)) e
um
“Caderno
de
avaliação
para
identificação
das
necessidades
educacionais especiais” (C7). Para efeito desta análise, tomei, no interior
da coleção, três textos centrais: C1, C2 e C7. O primeiro, por tratar das
finalidades (objetivos), os quais são passíveis de confronto com o restante
dos textos; o segundo, por trazer as recomendações para a construção de
escolas inclusivas (fundamentos filosóficos, sociológicos, psicológicos
legais) e o terceiro, por tratar da questão da avaliação, evidenciando,
portanto, os valores defendidos.
No nível do autor, não interessam aqui as pessoas que
escreveram o texto (são diversos textos, e em cada um deles consta, na
ficha catalográfica, o autor ou coordenador da equipe de elaboração), mas
o fato de que o MEC o assume como seu e o destinatário o recebe como a
posição oficial acerca do assunto. Diz Orlandi (2005, p.73), citando
Vignaux, que
há na base de todo discurso um projeto totalizante de sujeito,
projeto que o converte em autor. O autor é o lugar onde se
realiza esse projeto totalizante, o lugar em que se constrói a
unidade do sujeito. Como o lugar de unidade é o texto, o sujeito
se constitui como autor ao constituir o texto em sua unidade, com
sua coerência e completude.
Parto desse princípio para considerar a coleção como “um
texto”60 oficial, cujo autor é o Ministério da Educação e Cultura do governo
brasileiro, através de sua Secretaria de Educação Especial, embora no
60
Um texto, segundo Orlandi (2005, p.68-73), não se define pela extensão, nem por ser escrito ou oral, “o que
delimita um texto é o fato de, ao ser referido à discursividade, constituir uma unidade em relação à situação”.
Essa definição está de acordo com a de Verón: “Texto designa, assim, para nós, num plano empírico, aqueles
objetos concretos que tiramos do fluxo da circulação de sentido e que tomamos como ponto de partida para
produzir o conceito de discurso” (2004, p.71).
124
sentido comum ele se constitua de muitos textos, escritos por pessoas
diferentes, provavelmente em tempos e condições diferentes. Parto
também do fato que o MEC/SEESP o publica e o recomenda às secretarias
municipais
e
estaduais
visando,
entre
outras
coisas,
“evitar
a
fragmentação e pulverização das ações educacionais” (C1, p.7); portanto,
considera-o representativo de um projeto unitário, uma totalidade.
Considerar o MEC/SEESP como autor, entretanto, não implica entendê-lo
como origem de sua palavra, plenamente consciente dela e de seus
propósitos. O sujeito é “sujeito à língua e à história” (ORLANDI,
op.cit.,p.49) ou, dito de modo bakhtiniano, o autor criador é um “modo
de ver o mundo”, uma posição axiológica (FARACO, in BRAIT, 2005, p.42)
O sujeito discursivo, o enunciador é pensado, aqui, como uma posição,
um lugar que ocupa para ser sujeito do que diz (FOUCAULT, 2006, p.2636).
O dispositivo de análise e interpretação elaborado foi utilizado,
para este gênero específico, da seguinte forma: o texto foi lido
integralmente e as marcas foram destacadas; cada marca foi comentada
como um traço das condições de produção do discurso, destacando o que
era dito ali, o que não era dito e outras formas possíveis de dizer o
mesmo; os trechos onde aparecem tais traços foram transcritos na
seqüência em que aparecem, com as marcas destacadas em negrito, já
que as aspas foram reservadas para a citação de trechos do texto61; os
traços foram “cruzados” entre si, buscando momentos e modos em que a
mesma temática aparece (ou não) em lugares diferentes do texto, ou em
que o mesmo modo de operar era utilizado (ou não) em temáticas
diferentes.
Desse processo, em que os efeitos de sentido foram sendo
estruturados no diálogo/enfrentamento entre as muitas vozes que se
configuram na minha voz enquanto pesquisadora e as vozes diversas que
se
61
enfrentam
no
texto,
criando
um
texto
“em
reconhecimento”,
A menos que os trechos recortados se limitassem a duas linhas ou a palavras e expressões, eles ganharam o
mesmo formato de citação longa, para tornar o texto menos pesado.
125
emergiram configurações que organizei sob cinco temáticas diferentes
embora imbricadas: a) os disfarces e ocultamentos das relações de poder;
b) a subordinação do fazer ao pensar; c) a proposta de inclusão como
ponto de ruptura; d) a responsabilização do professor por todo o processo
de mudança, e e) esvaziamento dos discursos recessivos. Em tais
temáticas, procurei analisar os modos de operar que emergem no uso de
estratégias de dizer e de não-dizer e os efeitos discursivos produzidos por
esse uso e pelo modo como temáticas e modos de operar se imbricam,
como organizado no capítulo 5, denominado Formação continuada de
professores para a escola inclusiva: uma manifestação do discurso oficial.
4.2. ANÁLISE CONVERSACIONAL E ANÁLISE DE DISCURSO: CRIANDO UM
DIÁLOGO METODOLÓGICO
Para a construção do dispositivo de análise e interpretação do
discurso escolar, precisei seguir um percurso diferente. Primeiro, por
considerar as distinções entre língua escrita e falada, as quais “resultam
de diferenças entre os processos do falar e do escrever, ou entre
condições de produção do texto falado e escrito” (RODRIGUES, in PRETI
1997, p.31). Temos na língua falada características próprias, como a
dialogicidade instaurada face a face, uma tendência para o nãoplanejamento e para o envolvimento entre os interlocutores, as quais não
são encontradas no escrito (op.cit, p.17-32).
Tais diferentes processos certamente sofrem coerções diferentes.
O discurso em sua forma falada está em produção naquele momento,
portanto é muito mais sensível ao contexto em que ocorre, sofre
reorganizações por causa das expectativas com relação ao interlocutor,
126
daquilo que o falante deseja evidenciar ou ocultar, dos riscos possíveis
que ele corre no exercício da fala, entre outras coerções.
Como o contexto em que a entrevista ocorre não é apenas o
contexto imediato, mas também injunções socio-históricas, que têm a ver
com as relações em que está inserido o falante, antes de passar à
descrição do modo como organizei a coleta de dados, parece-me
importante apresentar alguns dados a respeito da cidade de Marabá, no
qual atuo e atuam os professores entrevistados.
Marabá, sede do município de mesmo nome, localiza-se no
sudeste do Estado do Pará, Amazônia Oriental, e é município desde 1913.
Área de segurança nacional nos anos da ditadura militar, tem forte
presença militar ainda hoje. Em parte pela mesma razão, tem também
forte presença dos movimentos sociais, principalmente daqueles relativos
à luta pela terra e à defesa das questões do campo e dos direitos
humanos.
Tem uma população estimada em 195.807 habitantes, e uma
área de 15.092 km2 . Economia baseada na exploração do caucho e da
castanha no começo do século XX, atualmente se concentra na pecuária,
comércio, indústria de transformação (principalmente de metalurgia) e
lavoura62 . Região de altos índices migratórios por causa dos grandes
garimpos (Serra Pelada foi o maior e mais conhecidos deles) nos anos
70/80
e
dos
grandes
projetos
governamentais
(abertura
da
Transamazônica, Projeto Grande Carajás, Hidrelétrica de Tucuruí...), o
município de Marabá teve um crescimento populacional em torno de 200%
em 25 anos (em 1980 a 2005), enquanto a população brasileira teve, no
mesmo período, um aumento de cerca de 50%.
Marabá é, como tantos outros no Brasil, um município rico e
pobre; estando entre os municípios fora de região metropolitana que tem
maior participação no PIB regional, pelo fato de centralizar uma rede de
62
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2005, disponíveis em
www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php.
127
distribuição comercial para todo o sul e sudeste paraense e ter grande
número de indústrias minero - metalúrgicas, e tendo tido uma renda per
capita de 5.132,00 em 2003 (acima da média do Norte e Nordeste) 63, tem
graves problemas na área de habitação, saneamento, saúde pública,
educação, inclusive pelo crescimento febril e desordenado que sofreu nas
últimas
décadas,
com
o
deslocamento
de
grandes
massas
de
trabalhadores para a região, em busca de trabalho e terra, mas
principalmente por estar inserido numa lógica de desenvolvimento que
produz exclusão.
A educação pública é responsável pelo maior número de
matriculas em todos os níveis de ensino. Em 200464 , o poder público
municipal respondia por 93,3% das matrículas no ensino fundamental e
por 71,5% das matriculas em educação infantil; o estadual, por 92% das
matriculas no ensino médio; a Universidade Federal por 77,5% das
matriculas no ensino superior.
A presença da Universidade Federal do Pará na região começou
em 1987, quando foi criado o Campus Universitário de Marabá, hoje
Campus Universitário do Sul e Sudeste, o qual responde majoritariamente
pela formação docente na região, e tem um histórico, desde a sua
implantação, de atuação em projetos, em conjunto com os municípios
e/ou com os movimentos sociais, ligados a educação, aprendizagem e
formação docente.
No que se refere à educação especial, no entanto, o Campus
Universitário não tinha nenhuma experiência (foi somente a partir da
reformulação curricular de 1999 que o curso de Pedagogia passou a
contar com a disciplina Fundamentos da Educação Especial, enquanto já
havia turmas de educação especial, vinculadas à secretaria de Educação
do Estado, desde 1987). O projeto municipal denominado “Escola
63
Dados coletados em www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/pibmunicipios/2003/pibmunic2003.pdf
Fonte: Ministério da Educação, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP , (1)Censo
Educacional 2004, (2) Censo da Educação Superior 2003; dados
disponíveis no site
www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php
64
128
inclusiva: respeito às diferenças”, iniciou-se em 2001, com a extinção das
salas especiais e a estruturação de salas de recursos e salas de apoio
pedagógico específico (num total de 16 em 2005, atendendo a 35 turmas
das escolas municipais nas quais estão inclusos alunos com deficiência
visual _ entre os quais alunos com baixa visão_ ou auditiva) e um Centro
de Apoio Pedagógico (CAP) para deficientes visuais (em 2004).
Dos
222
estabelecimentos
de
educação
fundamental
do
município, 67 têm alunos inclusos, atendendo a um total de 387 alunos, a
maioria com déficit cognitivo (285) deficiência auditiva (58) e deficiência
visual (44). As escolas se organizam em torno de cinco pólos, situados
nos principais bairros da cidade65.
São os docentes que hoje atuam na interface entre educação
especial e educação comum, mas que têm uma formação na educação
especial,
os
sujeitos
desta
pesquisa
(a
maioria
deles
professores
concursados com nível superior completo ou cursando).
Considerei que uma entrevista tradicional com esses docentes,
em que entrevistador e entrevistado não se conhecem, daria ao discurso
produzido um tom de formalidade que faria perder o objetivo de fazer com
que a fala fosse o mais próximo possível de uma conversação: tivesse a
maior proximidade possível do tom de espontaneidade da fala cotidiana.
Uma amostragem aleatória de professores que atuam com inclusão teria
essa deficiência. Dessa forma, elegi como espaço de observação e
convivência o Centro de Apoio Pedagógico (CAP), que funciona na Escola
Municipal de Ensino Fundamental Prof. Jônathas Pontes Athias. Nesse
centro, atende-se a alunos cegos e com baixa visão, assim como a seus
professores, atuantes nas escolas públicas da cidade. Na mesma escola
funciona uma turma de alunos surdos, cuja professora também é
interprete e auxilia os professores de alunos surdos.
65
Dados gentilmente cedidos pela Secretaria Municipal de Educação/Diretoria de Ensino/Departamento de
Educação Especial, referentes ao ano de 2005.
129
Expliquei
meu
projeto
de
pesquisa
à
direção
da
escola,
coordenação e professores, aos quais abriram generosamente seu espaço
de trabalho, dando-me livre acesso a todas as discussões e tarefas ali
realizadas. Tive, então a convivência privilegiada durante três meses
(fevereiro a abril de 2006) com essas pessoas, sem entrevistas gravadas
(apenas anotações no diário de campo), o que criou a intimidade
necessária para as entrevistas fluírem como algo mais próximo a uma
conversação.
Foram realizadas, após esse período, quatro sessões de conversa
com professores que, a partir do CAP, atuam no processo inclusivo, tanto
na formação de professores quanto no acompanhamento dos alunos no
dia a dia escolar. São: uma professora itinerante de ensino médio (sessão
A), duas professoras de Braille e Orientação e Mobilidade (sessão B), um
professor de computação e uma professora de Linguagem Brasileira de
Sinais - LIBRAS (sessão C) e dois professores de disciplinas em ensino
médio e fundamental (sessão D).
O cuidado em criar um período de convivência para tornar as
entrevistas o mais próximo possível de conversações tem a ver com
minha intenção de estabelecer contato com as falas sobre a temática da
inclusão de um modo próximo ao modo como elas se organizam no
cotidiano. A definição de conversação dada por Rodrigues (1997) ajuda a
compreender essa minha intenção:
A conversação é um evento de fala especial: corresponde a uma
interação verbal centrada, que se desenvolve durante todo o
tempo em que dois interlocutores voltam sua atenção para uma
tarefa comum, que é a de trocar idéias sobre um determinado
assunto. Conversação natural, que ocorre espontaneamente no
dia a dia, dá-se face a face, presentes os dois falantes, ao mesmo
tempo, no mesmo espaço (RODRIGUES, in PRETI, 1997, p.18).
O grau de espontaneidade da conversa entre pesquisador e
pesquisado será sempre discutível, é claro. O que tentei fazer foi reduzir o
distanciamento, mas não deixo de levar em conta as assimetrias
existentes na interação. Essas assimetrias não ocorrem somente nessa
130
relação específica, mas em qualquer interação humana. Concordo com
Brait quando esta afirma que, “mesmo nos contextos menos formais e
aparentemente mais simétricos [...], há sempre manifestações de poder
nas diferentes formas de interação” (BRAIT, in PRETI, 1997, p.213). O
que me interessa, ao escolher essa configuração discursiva, são os modos
de operar da prática de cada falante na interlocução comigo enquanto
pesquisadora, mas também com tantos outros discursos que vão
emergindo enquanto referência.
Os falantes de uma dada língua combinam sua competência
lingüística com outras competências, o que lhes possibilita utilizar
as formas lingüísticas em diferentes contextos, em diferentes
situações de comunicação, com diferentes finalidades. Os falantes
não somente trocam informações e expressam idéias, mas
também, durante um diálogo, constroem juntos o texto,
desempenhando papéis que, exatamente como numa partida de
um jogo qualquer, visam a atuação sobre o outro (op.cit., p.195).
Para
analisar
os
textos
produzidos
na
interação
pesquisadora/professores, considerando-os em sua especificidade, recorri
então às técnicas de análise da conversação 66.O contexto da entrevista é
uma situação até certo ponto estruturada, proposta por mim, após certa
convivência e muitos diálogos com os entrevistados (por isso há muitas
remissões a conversas anteriores). Os tópicos discursivos67 (op. cit.,
p.209) são sugeridos por mim, mas não se mantêm forçosamente; os
entrevistados
Estratégias
66
inserem
de
livremente
envolvimento
e
sub-tópicos
ou
distanciamentos
novos
são
tópicos.
observadas
Ver Marcuschi, (2005, p.6): “A Análise da Conversação (AC) iniciou-se na década de 60 na linha da
etnometodologia e da Antropologia Cognitiva e preocupou-se, até meados dos anos 70, sobretudo, com a
descrição das estruturas da conversação e seus mecanismos organizadores. Norteou-a o principio básico de que
todos os aspectos da ação e interação social poderiam ser examinados e descritos em termos de organização
estrutural convencionalizada ou institucionalizada (...) Hoje, tende-se a observar outros aspectos envolvidos na
atividade conversacional. Segundo J. J. Gumperz (1982) a AC deve preocupar-se sobretudo com a especificação
dos conhecimentos lingüísticos , paralingüísticos e socioculturais que devem ser partilhados para que a interação
seja bem sucedida.”
67
Foram analisadas, em cada entrevista, a estrutura de tópicos discursivos, as tomadas de turno, as marcas
conversacionais. Tópico discursivo, segundo Fávero ( in PRETI, 1997, p. 33-54.), é a temática acerca da qual se
está falando. Tomada de turno (GALENBECK , in PRETI, 1997, p. 55-79.) refere-se a cada momento em que se
alternam os participantes do diálogo nos papéis de ouvinte e falante. Marcas conversacionais são “elementos que
ajudam a construir e a dar coesão e coerência ao texto falado, especialmente dentro do enfoque conversacional.
Nesse sentido, funcionam como articuladores não só das unidades cognitivo-informativas do texto como também
dos seus interlocutores, revelando e marcando, de uma forma ou de outra, as condições de produção do texto,
naquilo que ela, a produção, apresenta de interacional e pragmático” (URBANO, in PRETI, 1997, p. 81-101)
131
(RODRIGUES, in PRETI, 1997, P.29), as tomadas de turno “ajudam a
perceber não apenas a negociação e cooperação existentes na interação
verbal, mas também a disputa pela palavra, o jogo de poder que se
estabelece durante o intercurso verbal” (BRAIT, op. cit, p.208).
No texto oficial e nos excertos de texto acadêmico, textos
escritos, tratava-se de analisar as marcas presentes no discurso como
traços de suas condições de produção. Aqui, considerei como traços de
produção, numa primeira análise, a estrutura de tópicos, as tomadas de
turno e as marcas conversacionais; isso permitiu uma leitura dos textos
produzidos nos diálogos em sua organização interna. A seguir, esta leitura
foi remetida ao mesmo dispositivo de análise e interpretação utilizado
para investigar o texto governamental e acadêmico, nos termos da análise
de discurso: o que é dito, o que não é dito, o que pode ser dito de outro
modo; que operadores
(marcas) e operações (estratégias de dizer)
podem ser localizados no texto produzido e que campo de sentidos
permitem configurar (ORLANDI, 2005; VERÓN, 2004). Quero crer que, de
certa forma, exercitei o uso aplicado da Análise Conversacional:
Basicamente, a análise conversacional (AC) pode ser realizada de
duas maneiras. Uma delas, a mais básica, é expandir nosso
conhecimento sobre como as conversas “operam” _ o que é que
as pessoas fazem com sua fala para serem entendidas umas pelas
outras, e para produzir “a vida cotidiana” como a conhecemos.
Quanto mais pudermos fazer isso, mais seremos capazes de
chegar ao outro uso da AC, que é aplicar todo esse conhecimento
a algum dado específico e ver o que ele nos diz (ANTAKI e DÍAZ,
in IÑIGUEZ, 2004, p. 162-163).
Esse segundo uso, porém, no caso deste trabalho, precisou ser
complementado com técnicas de análise de discurso: aqui, as elaborações
sobre como as conversas operam internamente só têm sentido dentro da
busca de estabelecer efeitos de reconhecimento, ou seja, criar uma
leitura, entre todas as leituras possíveis, dos efeitos de sentido criados na
relação entre o texto produzido pelo diálogo pesquisadora/professores e
os discursos que perpassam esse diálogo. Assim, se é coerente buscar
compreender, pela análise da conversação, as coerções próprias desse
132
gênero de discurso, não se pode esquecer que ele não se esgota em sua
especificidade (no tratar-se de uma conversação), mas se insere em redes
de relações discursivas, dentro das quais fazem sentido as coerções
propriamente conversacionais.
Com resultado desse processo de análise e interpretação, seis
feixes de efeitos de sentido foram configurados, os quais
seguinte forma: a) a aprendizagem,
designei da
a prática e o outro; b) o outro-
governo e suas oscilações de sentido; c) o lugar que o professor de
atendimento especializado propõe para si mesmo no discurso; d) o lugar
do outro-professor; e) o lugar do aluno incluso e a formação. O capítulo 6,
denominado A inclusão no discurso escolar: conversas na interface entre
educação comum e especial, mostra a forma como tais feixes foram
elaborados e analisados68.
4.3.
O
DISCURSO
ACADÊMICO:
ANALISANDO
UM
CORPUS
FRAGMENTADO.
Para cada tipo de produção discursiva, a aplicação do dispositivo
de análise e interpretação precisou ser repensada. No caso dos textos
oficial e acadêmico, mesmo se tratando de textos escritos, não foi possível
dar o mesmo tratamento, no que se refere à delimitação do corpus. Se,
no caso do discurso oficial, foi possível encontrar num texto elementos
que
permitissem
uma
análise
unificada,
considerando
um
autor/enunciador, no caso do discurso acadêmico a polifonia é mais
explicita, não apenas porque os autores assinam individualmente os
68
Como normas de transcrição das entrevistas, utilizei aquelas sugeridas por PRETI, (1997, p.11-12) conforme
Anexo. Indiquei as citações extraídas das transcrições das sessões de entrevistas pela letra de referência da
sessão (A, B, C,ou D), seguida da indicação da(s) páginas(s) e da(s) linha(s). Por exemplo: A, p.2. ls. l.12-115.
133
textos, mas também porque as universidades a que se vinculam são
distintas e os próprios grupos de pesquisa a que se vinculam têm
tradições distintas.
Para atender a essa diversidade, considerei mais produtivo, para
os objetivos deste trabalho, recortar trechos da literatura educacional que
trata de inclusão, agrupados em publicações que representam momentos
específicos do processo: o Cadernos Cedes, n° 46 (1998), que buscou
divulgar artigos de profissionais atuantes em “universidades e instituições
de reconhecido trabalho em educação” (MONTEIRO e CAIADO, 1998)
analisando as relações entre a nova Lei de Diretrizes e Bases (promulgada
dois anos antes) e as necessidades educativas especiais; o livro Educação
Especial: múltiplas leituras e diferentes significados, organizado por Silva
e Vizim (2001) ”fruto de atividades do Núcleo de Educação Especial e
Leitura da Associação de leitura do Brasil” (SILVA e VIZIM, 2001) e o livro
Inclusão: intenção e realidade, organizado por Omote (2004), que
apresenta textos de convidados da VII Jornada de Educação Especial,
promovida pela UNESP Marília, no ano do aniversário de dez anos da
Declaração de Salamanca; de cada artigo, extraí excertos nos quais o
termo inclusão e seus derivados são definidos, de uma forma ou de
outra69. Os autores de cujos artigos foram extraídos trechos onde
aparecem marcadores que remetem a definições de inclusão são, em
ordem alfabética: Aranha (2004), Carvalho (2001); Cartolano (1998);
Denari (2004); Ferreira (2004); Garcia (1998); Gil (2004); Kruppa
(2001); Mantoan (1998; 2004;); Mrech (2001); Silva (2001); Skliar
(2001); Oliveira (2004;) Omote (2004) e Vizim (2001).
Nem de longe a seleção que fiz esgota a produção acadêmica em
torno do tema da inclusão; os trechos não foram selecionados por serem
considerados
69
representativos
de
posições
especificas,
nem
por
Considerei definição como “enunciado que parafraseia a acepção de uma palavra ou locução pela indicação de
suas características genéricas e específicas, de sua finalidade, pela sua inclusão num determinado campo do
conhecimento etc.” (HOUAISS, 2002). No Dicionário de Filosofia, aparece, entre outras acepções, como “a
declaração do significado de um termo, ou seja do uso que o termo pode ter em determinado campo de
investigação[...]. Assim, pode-se considerar definição qualquer restrição ou limitação do uso de um termo em
determinado contexto” (ABBAGNANO, 2000, p. 237). Creio que as duas conceituações são complementares.
134
apresentarem todas as nuances dessas posições. São “momentos” da
produção acadêmica acerca da inclusão em que o conceito é definido (e
nessa
definição
é
qualificado,
renomeado,
parafraseado);
é
um
caleidoscópio de trechos, e o que faço é um exercício de análise desses
recortes. Certamente há que se questionar se eles representam uma
mostra adequada; afirmo que não são nem uma amostra, nem adequada:
são vozes que se entrecruzam no discurso acadêmico/pedagógico cuja
temática é a inclusão. Não são quaisquer vozes, é claro: seus autores são
reconhecidamente referências na área, mas os trechos não são tratados
como “o que o autor quer dizer”, e sim como “o que diz o discurso”, às
vezes à revelia do enunciador (ORLANDI, 2005, p.75). Por isso, os
excertos foram numerados e analisados assim, sem referência ao autor,
para evitar tentativas de classificação prévia baseada nos pontos de vista
que eles assumem publicamente ou que lhes possam ser imputados, e
somente num momento posterior à análise foram referenciados. Não são
analisados com relação ao sujeito que os produz, num primeiro momento
da
pesquisa,
para
evitar
a
reprodução
acrítica
de
categorias
já
estabelecidas, mas continuam sendo entendidos como produção singular
de determinados sujeitos imbricados em determinadas redes de relações,
por isso voltam a ser referenciados.
Realizada a análise de cada excerto separadamente, agrupei-os
por temática com base nos operadores destacados (os quais não pretendo
que esgotem as possibilidades de análise, e sim apontem para possíveis
formações discursivas) e dos efeitos discursivos produzidos nas operações
discursivas que descrevo, a partir daquilo que é dito, sugerido ou omitido
em cada momento discursivo. Tais agrupamentos foram organizados em
torno de: capacidade de deslizamento de inclusão como operador que
indica movimento; nuances do fazer inclusivo (como a prática aparece no
discurso) e; como a inclusão é tratada em sua dimensão discursiva. Por
fim, analisei o modo como temáticas e modos de operar aparecem e se
imbricam e o resultado disso é apresentado no capítulo 7, ao qual intitulei
A inclusão no discurso acadêmico do campo da Educação.
5. FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES PARA A ESCOLA
INCLUSIVA: UMA MANIFESTAÇÃO DO DISCURSO OFICIAL
Neste
capítulo
apresento
os
enfeixamentos
dos
efeitos
discursivos relativos produzidos na análise e interpretação da coleção
“Saberes e práticas da inclusão (2005)”, aqui tratada como um texto
oficial no qual se configura o discurso da Secretaria da Educação
Especial/Ministério da Educação acerca da inclusão.
O dispositivo de análise e interpretação que elaborei para dar
conta de compreender as configurações do discurso nesse recorte
específico procura destacar marcas no texto que funcionam como
operadores (realizam certas operações no interior do texto e nas relações
dele com outros textos e outros discursos, pela escolha das formas de
dizer e não dizer), analisar tais operações, enfeixando as temáticas e
modos de operar reconhecidos no discurso que perpassa o texto.
O capítulo foi organizado em torno dos efeitos produzidos por
operadores que remetem a quatro enfeixamentos: os disfarces e
ocultamento das relações de poder, a subordinação do fazer ao pensar, a
proposta de inclusão como busca de ruptura e o lugar do professor nos
enunciados oficiais, com base nos quais agrupei e analisei as temáticas
tratadas e os modos de operar produzidos nesse gênero de discurso.
5.1. OS DISFARCES E OCULTAMENTOS DAS RELAÇÕES DE PODER
Configuram-se de vários modos, no texto, os ocultamentos e
disfarces das relações de poder, desde a desqualificação do pensar
diferente, a omissão de pontos de vista contrários, o ocultamento de
136
projetos em conflito, o ocultamento do próprio projeto, até a atenuação
das relações de mando sob a representação de relações de colaboração e
diálogo.
O primeiro fragmento trata da finalidade e público alvo do material.
A SEESP/MEC disponibiliza às secretarias de educação
interessadas em implementar educação de qualidade para todos
o material didático Saberes e Práticas da Inclusão. Esse material
foi planejado para ser utilizado em um contexto de formação
tendo como público alvo profissionais da educação, propiciando o
estabelecimento de vínculos com as práticas locais [...] (C1, p.7).
Quando
(SEESP/MEC)
é
dito
disponibiliza
que
o
a
Secretaria
material
às
de
Educação
“secretarias
de
Especial
educação
interessadas em implementar educação de qualidade para todos” (C1,
p.7), o texto diz nas entrelinhas, através do uso do adjetivo interessadas,
que as secretarias que não estiverem interessadas não precisam fazê-lo.
Por outro lado, faz presumir que quem não se interessar em utilizar o
material não oferecerá educação “de qualidade” e “para todos” (estratégia
predicativa combinada com uma referência a expressões comuns nos
textos
produzidos
pelos
movimentos
educacionais,
referentes
à
universalização do ensino). Ocorre um jogo de compartilhamento de vozes
entre o discurso oficial e os movimentos educacionais.
Essa estratégia discursiva de qualificar/desqualificando desvia a
atenção do que não é dito: as secretarias podem estar tão interessadas
que já tenham um material e esse material pode coincidir ou não com a
interpretação da SEESP sobre educação de qualidade e para todos. Um
efeito discursivo desse dizer/não dizer/dizer de outro modo é ocultar os
efeitos de possíveis insubordinações, ao mesmo tempo em que as
desqualifica. Produz, por outro lado, o efeito de estar atendendo a
reivindicações antigas dos movimentos.
Ainda quando reconhece a existência de conflito entre modos de
pensar diferentes, o texto não se situa com relação a esses modos de
137
pensar. A quinta finalidade dos cadernos (por ordem de apresentação,
porque, no texto, as finalidades não são numeradas) é assim descrita:
Contribuir para o debate e a reflexão sobre o papel da escola e
do professor na perspectiva do desenvolvimento de uma prática
de transformação da ação pedagógica (C1, p.8).
O texto reconhece, portanto, que existem, no Brasil, um debate
e uma reflexão sobre o papel da escola e do professor, já que se propõe a
contribuir para tal. A estratégia discursiva utilizada é uso de artigos
definidos: “o” debate, “a” reflexão; o que faz pensar que já são
conhecidos de todos; não necessita referência. No entanto, esse debate
não aparece no desenvolvimento dos cadernos. Não se fica sabendo até
onde avançou, qual a contribuição do MEC, que espaço essa contribuição
vem preencher, em que posições (de poder) se situam os interlocutores.
A idéia de transformação da ação pedagógica pode remeter às
discussões sobre uma escola transformadora. Mas a idéia de educação
transformadora tem a ver com a tarefa da educação de contribuir com a
superação das desigualdades sociais, não com transformação na ação
pedagógica (que pode se transformar em qualquer coisa). As lutas por
transformação entram no texto como discurso recessivo: remetidas ao
âmbito da ação pedagógica, criam o efeito discursivo de disfarçar/atenuar
a participação governamental no debate.
Mas a existência de conflito entre projetos de educação (e os
projetos de sociedade a que se vinculam), acima atenuada, ganha uma
solução prática logo a seguir, na descrição da sétima finalidade:
Identificar as idéias nucleares presentes e fazer os ajustes locais
necessários, atendendo às demandas identificadas no âmbito da
comunidade,
da
própria
escola
e
dos
sistemas
estaduais/municipais (C1, p.8).
O gerúndio “atendendo” faz entender que, ao identificar as idéias
nucleares presentes e fazer os ajustes, as demandas estarão sendo
atendidas. Pode ser um lapso; o objetivo central pode ser atender as
demandas e os subordinados podem ser identificar as idéias nucleares e
138
fazer os ajustes. Ainda assim: o que significa “fazer ajustes”? Segundo
Houaiss (2002), ajuste é:
atitude de integração harmônica em um contexto; adaptação,
amoldamento; estabelecimento de um pacto; trato, acordo,
convenção; ato através do qual duas ou mais pessoas celebram
um contrato ou acordo; ajustamento; ou ainda [por] derivação:
por metonímia, o próprio contrato ou acordo; ajustamento.
Partindo do princípio de que as demandas serão diversas e em
muitos casos estarão em conflito, é, então, durante o curso e baseado de
uso do material que serão solucionados tais conflitos. As idéias nucleares
presentes também serão tratadas desse modo. Quando vinculadas a
interesses contraditórios, como se chegará ao consenso? É necessário
chegar ao consenso? Será decidido pelo voto, por maioria? O exercício do
poder ora é ocultado e disfarçado, ora é remetido a âmbitos específicos. É
evidente que nem todas as demandas poderão/deverão ser atendidas,
mas a questão aqui é que o processo de escolha é remetido ao grupo
local, o MEC é dado como neutro nesse processo.
É importante lembrar que ajustar pressupõe um molde, um
projeto; ignorar isso é submeter ao projeto dominante, evidenciado na
opinião da maioria. Basta escrever a frase de outra forma, substituindo
ajustes por enfrentamentos e atendendo por selecionando, priorizando,
para perceber a diferença: “Identificar as idéias nucleares presentes e
proceder
aos
enfrentamentos
locais
necessários,
selecionando
e
priorizando demandas entre as identificadas no âmbito da comunidade, da
própria escola e dos sistemas estaduais/municipais, de acordo com o
projeto tal (mais geral)”. Nada é dito sobre a possibilidade de fazer
“ajustes” mais gerais (questionamentos a âmbitos mais gerais não
aparecem no texto). A não referência a um projeto mais amplo (e a
remissão a decisões locais) pode criar a impressão de democracia (tudo
está para ser construído, e todos participaremos do processo, em pé de
igualdade), o que apenas disfarça a existência de um projeto geral
(assumido ou não, conhecido ou não).
139
Em outra parte do texto, surge uma luz sobre essa questão:
quando se trata de criar indicadores para avaliação dos aspectos externos
à escola, as limitações à autonomia são descritos como sendo “impostos
por um organograma” e não por uma hierarquia, por um modelo de
sociedade que produz desigualdades.
Em se tratando de identificar necessidades educacionais especiais,
a avaliação desse aspecto [do funcionamento organizacional]
implicará em indicadores que permitam conhecer, por
exemplo:[...] os limites de autonomia da comunidade escolar,
impostos por um organograma (C7, p.53).
O recurso à metonímia (o gráfico da estrutura hierárquica
substituindo tal estrutura) cria o efeito de naturalização das relações de
poder.
Outra estratégia é esconder o sujeito/autor sob o véu da
universalidade, da verdade científica, indiscutível. Não se encontram
asserções do tipo: “este ministério assume como verdade...” ou “este
governo se apóia nos seguintes princípios e ou critérios”... ou “os
seguintes
autores
concepções”.
As
são
nossa
estratégias
referência”
são
várias:
“recusamos
tais
o
partícula
uso
da
ou
tais
de
indeterminação “se”: “o próprio título do capítulo já contém a mensagem
que se considera como a mais significativa e que substitui qualquer
posição quanto à função da avaliação (C7; p.19; grifo meu); o uso da voz
passiva: “Para o contexto educacional as dimensões estabelecidas para
análise são: a instituição educacional escolar e a ação pedagógica”
(C7,p.48; grifo meu); o uso de verbos que indicam essencialidade (ser,
constar):
Considerando-se a finalidade deste documento, nem todas as
dimensões acima citadas constam como elementos de análise. O
foco é a escola (C7,p.50; grifos meus).
Os efeitos discursivos produzidos resguardam o enunciador e
suas escolhas de qualquer procedimento crítico. Com o reconhecimento da
existência de uma instância (aqui designada “se”) cujas definições são
peremptórias, inquestionáveis (outras posições são inaceitáveis), o sujeito
140
não só é dado como indeterminado como suas escolhas são dadas como
decorrentes da ordem natural das coisas. Um ato falho, certamente, é o
acesso de poder evidenciado no trecho: “substitui qualquer posição com
relação à avaliação”. “Se” pode ser indeterminado, mas sem dúvida está
acima dos mortais comuns: não permite nenhum outro tipo de posição.
Tal estratégia discursiva tem efeitos contraditórios: se por um lado ela
confere força ao texto, por outro evidencia a existência de outras
posições, ou dizer que elas foram substituídas. O que torna ideológico o
discurso, diz Verón, é o fato de que ele se apresenta como verdadeiro,
como “o único discurso possível acerca daquilo que se fala” (1998, p.198).
Este exemplo mostra que mesmo se apresentar como verdadeiro é um
esforço discursivo passível de contradição, porque obriga a remeter a
outras verdades (ainda quando são apresentadas como falsidade).
A substituição de qualquer daqueles elementos por um sujeito
explícito seria o suficiente para que o recurso perdesse seu efeito: “as
dimensões que nós estabelecemos para análise são...”; “enfocaremos a
escola (deixando de lado os demais elementos)...”; são construções que
permitem a crítica, porque assumem a existência de outras dimensões
passíveis de análise, de outros elementos importantes, ao mesmo tempo
em que evidenciam um enunciador que assume a escolha de certas
dimensões, de certos elementos (e a conseqüente recusa de outros).
O lugar de onde fala o sujeito é constitutivo do que ele diz
(ORLANDI, 2005, p. 39). O sujeito indeterminado parece falar de “nenhum
lugar”, e isso o preserva dos enfrentamentos, já que o que ele diz ganha
foros de universalidade. A tendência à preservação do sujeito não impede
que surjam estratégias de legitimação do discurso, baseadas na referência
à autoridade, mas também essa autoridade é o mais genérica possível
(UNESCO), o que apenas reforça o efeito de proteção/ocultação do sujeito
e a indeterminação do lugar a partir do qual ele fala:
Cabe uma referência à tipologia dos conteúdos que são
desenvolvidos em qualquer das áreas de conhecimento:
conceituais, procedimentais e atitudinais, já mencionados
141
anteriormente. Justifica-se esse destaque pela relação entre eles
e os quatro pilares que a UNESCO estabeleceu para a educação
deste século: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a
ser e aprender a viver junto (C7, p.68).
O ocultamento/disfarce/deslocamento/naturalização das relações
de poder e a dissimulação do sujeito-enunciador se complementam com
uma concepção de sociedade que em certos trechos parece estática, em
outros, organizada a partir do consenso. Quando se trata, por exemplo,
das dificuldades em fazer parceria com profissionais de saúde para
avaliações
que
“estão
além
das
possibilidades
de
avaliação
psicopedagógica” (C7, p.72), (de resto garantida pelo art. 6° da Resolução
nº. 2, de 11/09/01), a relação adversativa evidencia a oposição entre
realidade e idealização: “Essa parceria, embora ideal, nem sempre se
concretiza, principalmente para alunos oriundos das camadas populares”
(C7, p.72; grifo meu). Isso não impede uma outra relação adversativa, na
seqüência: “embora deva-se [sic] lutar pelo ideal, sempre, há que
trabalhar com os dados da realidade, ainda que adversos (C7, p.72)”; a lei
é colocada no campo da idealização, uma vez que se choca com os dados
da “realidade”, e aí os direitos são remetidos ao campo da luta.
A concepção estática de realidade emerge substantivada em
“tempo” e “recursos”, os quais não se relacionam com a ação humana:
são “fatores”:
Com as pressões decorrentes do fator tempo e com a escassez de
recursos, há que prevalecer o bom senso na seleção de
prioridades para análise segundo os objetivos da avaliação (C7,
p.46).
Os recursos e o tempo necessários a uma avaliação séria das
necessidades educacionais (sejam elas especiais ou não) são regidos por
outra ordem; contra essa ordem, não pode a prática pedagógica senão
adequar-se, de acordo com o bom senso, o senso de realidade. O efeito
discursivo é reificar certos aspectos da realidade, separando, como ação
humana, certos aspectos (selecionar prioridades, por exemplo) e como
coisa, outros aspectos (tempo, recursos). Não é difícil desfazer-se esse
142
efeito: basta acrescentar aos substantivos verbos de ação (planejar o uso
do tempo, estabelecer estratégias de ampliação do tempo disponível,
projetar a superação da escassez de recursos) e esses aspectos da
realidade
passam
a ser
descritos como
ação
humana, reversível,
modificável.
As estratégias que levam a uma reificação de certos aspectos da
realidade não impedem a busca de consenso (e a subjacente admissão da
existência de conflitos) em determinados momentos.
O texto atribui às
instâncias municipais e estaduais a tarefa de criar consensos locais,
ajustes (C1, p.8; c2, p.11;). Parece ser tarefa federal criar um consenso
geral, partindo dos relatórios de cada instância. Em certo momento,
aparecem a função do coordenador de organizar um “caderno de registro
com a memória do curso, que permita a posterior elaboração de relatórios
a serem enviados à SEESP/MEC” (C1; p.11) e a função do formador de
grupo, que deve avaliar o desenvolvimento de cada tema, o desempenho
dos participantes e a própria atuação”, utilizando essa avaliação
para orientar seu trabalho, fazendo mudanças e adaptações nas
propostas e elaborar relatórios a serem enviados ao coordenador
e à SEESP/MEC (C1, p.13; grifos meus).
Nada é dito, no entanto, a respeito do destino desses relatórios
ou da possibilidade de retorno das questões neles colocada. Se têm algum
papel na transformação da prática dos planejadores, das secretarias, da
SEESP, do MEC, isso fica por conta da imaginação do leitor.
Esse silêncio tem uma função discursiva, que é criar, por
extensão, o efeito de sentido de mostrar uma sociedade que se organiza
por
consensos,
não
pelo
enfrentamento
de
interesses
distintos
e
contraditórios. Da mesma forma como o grupo na escola tem “autonomia”
para decidir por consenso quais são as melhores propostas, haverá grupos
no município, no Estado (a cada grau na hierarquia, aumenta o grau de
autonomia) que farão o mesmo, de modo que no final só sobrarão as
melhores propostas comuns. As relações de poder são disfarçadas com a
143
sugestão implícita de que esses grupos se movem, todos, guiados pela
mesma intenção: o melhor para todos.
As relações de poder não são, evidentemente, ignoradas. Elas
exigem apenas “os devidos cuidados”, como aparece no seguinte trecho:
A avaliação implica sempre na relação entre quem é avalia [...] e
quem é avaliado, cabendo ao(s) primeiro(s) apreciar, refletir,
analisar determinados aspectos [...] considerados como
significativos. Se há avaliação, há julgamento. Este se processa
em um contexto de valorização, o que requer os devidos cuidados
com o uso do poder e com a maior ou menor subjetividade no ato
de julgar. (C7,p.21).
Não é dito o que é que cabe ao segundo (o avaliado, apreciado,
analisado), nem a origem do poder do que avalia. O que é dito em outro
lugar, no entanto, traz novos sentidos para a definição acima: o conceito
geral apresentado de início não é considerado aplicável à instituição
escolar. A questão do poder desaparece e agora
[...] convém evitar as atitudes maniqueístas dos juízos de valor
em termos de bom/mau, certo/errado, que descaracterizam os
objetivos a serem alcançados (C7, p.22).
Complementa isso a afirmação de que “na escola todos são
avaliadores e avaliados” (C.7, p.22). Dizendo de outro modo: na escola as
relações de poder se diluem, todos se unem em torno dos mesmos
objetivos _ ainda que haja diferentes “graus de consenso” (C7, p.50); isso
faz com que pareça não haver disputas a serem consideradas com
seriedade num processo avaliativo escolar (e deixa dúvidas quanto à
forma da escola intervir nas possíveis disputas referentes ao projeto
educacional e social mais amplo subjacente a tal processo avaliativo).
Tanto
é
recorrente
essa
compreensão
(de
que
todos
os
envolvidos são guiados pela melhor das intenções), que em C7 (p.87) e
acerca de outros relatórios (aqueles que resumirão as propostas de
avaliação dos municípios e estados), o MEC aparece como uma instância
“de acompanhamento e análise”: ele apenas acompanha a implementação
144
das ações decididas por estados e municípios e analisa seus resultados.
Não aparece como instância decisória.
Além de constituírem [as propostas de avaliação] importante
acervo para intercâmbio entre gestores, também servirão para
acompanhamento, pelo MEC/SEESP, da implementação das ações
e análise de seus resultados, contribuindo efetivamente com
todos os seus interlocutores. [...] Afinal, todos lutamos por
escolas inclusivas, isto é, escolas de boa qualidade para todos
(C7, p.87).
O fechamento com uma referência à idéia de luta por educação
de qualidade para todos, expressão recorrente nos documentos dos
movimentos sociais ligados a educação, evidencia um processo que só é
parafrástico na aparência. A palavra luta, normalmente implicando em
oposição, embate, contenda, aqui se atenua e significa “esforço coletivo
para superar algo”, já que a noção de conflito desaparece. A idéia de
consenso iguala em poder a todos os interlocutores, considera-os todos
envolvidos na mesma luta, no mesmo esforço. Temos, portanto um jogo
com os sentidos de luta, um jogo polissêmico. Importante reparar que
aquela questão das secretarias interessadas a que me referi de início
também desaparece aqui: o efeito de sentido criado é de que todos os
gestores (e naturalmente os “gestados”), de todos os níveis, estão
envolvidos num esforço coletivo pela inclusão: tornam-se todos militantes,
no equivoco trabalhado com base na expressão “luta por educação de
qualidade para todos”. Há todo um esforço discursivo do enunciador em
fechar sentidos em uma dada direção argumentativa, esforço que se
explicita na paráfrase explicativa de “escolas inclusivas’: “isto é, escolas
de
qualidade”.
Essa
estratégia
discursiva
impede
contrapalavras
formuladas no interior de outros discursos que se opõem ao discurso da
educação inclusiva nos moldes em que ela se concretiza na maioria das
escolas. Daí porque se impõe a necessidade de explicitar com uma
paráfrase o que seja educação inclusiva.
145
Por fim, mas não menos importante para o estabelecimento de
um efeito discursivo de consensualidade, evidencia-se uma estratégia70 de
nomear as instruções oficiais como sugestões, colaboração, subsídio,
(apresentação; C1(p.7;10;11), C2, (p.13;39;83), C7, (p.7;85)), assim
como de manter o tom “recomendativo” de grandes partes do texto (C7,
p. 45-87; C2, p. 57-81), seguindo o estilo da declaração de Salamanca.
Favorece a interpretação de que as instâncias federais de governo não
assimilam,
não
elaboram
as
recomendações
gerais:
repassam-nas
diretamente para os municípios, as escolas, os professores. Como
também parece não ser esperado que haja na instância municipal tais
órgãos de “digestão”, de elaboração local, a recomendação é remetida tal
e qual para a “ponta” do processo: o professor. Dessa forma, parece ser
do professor a responsabilidade de responder às recomendações: de
Salamanca, das diretrizes, dos manuais (retomarei essa questão quando
tratar da concepção de professor no texto). O efeito discursivo com isso
produzido é a atenuação das relações entre MEC, secretarias e escola,
através da subordinação do professor à avaliação a respeito das
recomendações.
Creio que posso dizer, nessas alturas, da existência de uma
regularidade no discurso, no que se refere às relações de poder.
Ocultamento, atenuação, deslocamento, naturalização, reificação são
efeitos
discursivos
recorrentes,
que
revelam
um
projeto
social
e
educacional que, ao pretender se organizar pelo consenso, e não pelo
enfrentamento dos conflitos inerentes a um mundo desigual, obscurece o
processo de produção das desigualdades. Tal pretensão, no entanto, não
pode se furtar ao embate com as redes discursivas produzidas na
dimensão da militância contra a produção das desigualdades: por isso o
jogo polissêmico com a palavra luta, as referências ao trabalho coletivo, à
democracia na tomada de decisões. São discursos recessivos, atestando,
70
Aqui, estratégia não tem, como em Martín Rojo (in: INIGUEZ, 2004, p.220), o sentido de plano de ação mais
ou menos consciente: é uma estratégia discursiva orientada por condições históricas nas quais os sujeitos se
encontram inseridos.
146
com diz Orlandi a respeito do jogo entre paráfrase e polissemia, “o
confronto entre o simbólico e o político” (2005, p.38), e remetendo às
condições de produção do discurso oficial, elaborado na dinâmica das
relações (mais ou menos tensas) com as propostas dos movimentos
sociais.
Pretendendo se organizar pelo consenso, e não podendo escapar
das disputas nas quais se configura, o discurso recorre à intenção
individual como explicação para as possibilidades de sucesso ou fracasso
de sues propósitos, numa concepção maniqueísta de bem/mal: se todos
se envolverem no processo ele será exitoso. Os que não se envolverem,
parece ser a conclusão adequada, é porque não têm boas intenções. A
previsão de um interlocutor que pode não ser cúmplice de tais pontos de
vista já o coloca no pólo do mal. Orlandi (2005, p.39) chama a isso de
mecanismo de antecipação: estratégias em que o enunciador, colocandose no lugar do sujeito que ouve suas palavras, antevê suas reações e
reorganiza sua argumentação, deixando-o em posição indefensável. É
nessa posição que nosso enunciador parece querer deixar o destinatário, o
professor: ou está envolvido no processo proposto, ou não tem boas
intenções.
5.2. A SUBORDINAÇÃO DO FAZER AO PENSAR
Considerar o pensar, o fazer e o dizer como dimensões do
processo em que psiquismo e realidade se interconstituem implica
entender a prática discursiva como um empenho, a um só tempo, em
produzir realidades (discursivas) e em produzir-se como sujeito (do
discurso). Tais dimensões aparecem, no texto analisado, em relação de
subordinação, do modo que a ressignificação de uma prática é remetida à
compreensão, ao conhecimento. O significar é remetido aos processos do
147
pensar, da cognição, do imaginário; prática é a prática “do professor” (o
fazer), e esta pode ser modificada por intervenções no nível do discurso.
Entre os vários recursos de que o discurso se utiliza para
estabelecer essa dissociação, está o jogo semântico com os verbos
“analisar”, “discutir”, “criticar” e “ressignificar”. Quando o texto propõe
que o professor deva “analisar as Diretrizes Nacionais para a Educação
Especial na Educação Básica elaboradas pelo Conselho Nacional de
Educação, norteadoras do trabalho nas escolas” (C1, p.7), o que se
entende por analisar pode ter dois sentidos: separar em seus elementos
ou componentes ou submeter à crítica. Aparentemente, é ao segundo
sentido que o texto se refere, como se pode ler nas expectativas de
aprendizagem do Caderno 2, 3º encontro:
Ao final deste encontro, o professor participante deverá ser capaz
de discutir criticamente sobre as diretrizes, a educação especial e
as necessidades educacionais especiais com vistas a ressignificar
sua prática (C2,p.39; grifo meu).
O objetivo da discussão não é, portanto, submeter à crítica os
textos propostos, como poderia parecer, mas a prática do professor; é ela
que precisa ser ressignificada a partir da discussão crítica. Ocorre um
desvio semântico em que aquilo que parece estar sendo submetido à
critica (as diretrizes e demais textos) não é que deve ser ressignificado.
Ressignificar, por outro lado, implica em lidar com o campo dos sentidos:
aquilo que se supõe que haja de errado com a prática se afigura como
algo que pode ser corrigido por mudanças no campo dos sentidos; supõese que a discussão sobre as diretrizes, a educação especial e as
necessidades educacionais especiais levem o professor a mudar seu modo
de agir.
Uma série de conseqüências pode ser tirada desse modo de
dizer, primeiro pela estratégia de evidenciar aquilo que não é dito. Não
aparece no texto, por exemplo, que é possível ressignificar as diretrizes,
propondo encaminhamentos legais, partindo de uma discussão crítica. A
lei aparece como intocável, acabada, o que esvazia qualquer razão para
148
uma discussão crítica. Uma outra estratégia que abre novas possibilidades
semânticas, é dizer de outra forma o texto inicial. É possível fazer isso por
um recurso à antonímia, invertendo-se o sentido do advérbio de tempo:
antes desse material, o professor não discutia criticamente as diretrizes e
todo o restante... Emerge então outro aspecto: é como se, fora dessa
prática específica, não ocorressem discussões críticas das diretrizes, da
educação
especial,
das
necessidades
educacionais
especiais,
que
pudessem ser incorporadas a esse debate... Complementa isso um
silêncio expressivo: a crítica já elaborada (pelos movimentos sociais
vinculados à educação, por exemplo) não recebe nenhuma referência.
Reflexão e prática são dissociadas no discurso, e se estabelece
uma relação de subordinação em que refletir serve para mudar a prática:
aquela se dá sobre esta e não nesta. A mesma relação pode ser
encontrada em outro objetivo:
Favorecer ao professor a reflexão sobre sua realidade profissional
e sua prática pedagógica, bem como os ajustes que parecem ser
necessários, para que se atenda às propostas contidas na
Declaração de Salamanca (C1, p.13).
Aqui, o verbo favorecer tem dois objetos diretos: a reflexão e os
ajustes. A oração subordinada indica finalidade: para que se atenda às
propostas contidas na Declaração de Salamanca. Ou seja, o objetivo
principal é atender às propostas contidas na Declaração; o objetivo
imediatamente subordinado é fazer ajustes na realidade e na prática
pedagógica; em terceiro nível de subordinação está o refletir sobre a
realidade e a prática, a serviço daqueles ajustes. O conectivo “bem como”
disfarça essa subordinação, dando a impressão de que são orações
coordenadas (fazer uma coisa “e” outra), mas o “para que”, logo a seguir,
explicita a relação entre as orações. O verbo refletir, nesse caso, tem o
sentido de chegar à compreensão de algo já elaborado (as propostas
contidas
na
Declaração
de
Salamanca),
não
de
meditar,
pensar
criticamente a respeito de algo, o que poderia levar à criação de coisas
novas.
149
Por outro lado, a discussão do poder, subjacente a quaisquer
ações que remetam a “ajustes na realidade”, é obliterada, o que cria a
impressão de que as recomendações de Salamanca só se referem ao lugar
do destinatário (o professor) e só exigem ajustes em sua prática (ou pelo
menos que os demais ajustes são de outra esfera, não dizem respeito à
prática pedagógica e a seus sujeitos).
O efeito discursivo produzido nesses movimentos de dissociação
entre reflexão e prática, de subordinação da prática à reflexão, de reduzir
a reflexão à compreensão e ao ajuste expressam uma concepção do lugar
do destinatário como um lugar de alheamento; seu pensar se destina a
ajustes locais e imediatos, tem a ver com o entendimento e com
aplicação; ao mesmo tempo, num movimento contraditório, é nesse lugar
de alheamento que pode haver mudanças na prática, sendo esta
responsabilidade pessoal do destinatário, enquanto produzir e dirigir a
reflexão é responsabilidade do enunciador.
A prática discursiva assim configurada emerge numa prática de
formação de professores fortemente “conscientizadora”, no sentido de
uma prática que se propõe a criar consciência nos outros a partir do
exercício da leitura, da fala e do pensamento sobre a prática. Nas
sugestões operacionais para implementar a proposta de avaliação, é
proposta a “capacitação de todos os envolvidos, ressignificando-se
conceitos e procedimentos avaliativos [...] (C7, p.78)”. Por capacitação,
geralmente se entende “dar cursos”, baseados numa crença de que a
ressignificação se dá na capacitação, no estudo, e não no próprio exercício
pedagógico. O raciocínio é claro: a prática avaliativa precisa ser
modificada, e isso só ocorrerá quando os professores mudarem sua
compreensão de avaliação; essa compreensão será mudada quando eles
forem
informados
de
que
há
concepções
mais
adequadas
e
se
convencerem de que sua forma de avaliar é inadequada. Mais uma vez, a
mudança é responsabilidade individual, e está posta em relação causal
com mudanças no pensamento, na compreensão. Em nenhum momento
150
se anuncia uma intenção do enunciador de defender a suspensão do uso
de medidas no sistema educacional (portanto, dos vestibulares, diários de
classe, canhotos de notas, etc.), para que o professor possa ressignificar
sua prática, ajudando a criar novas formas de avaliar.
O discurso não assume que a idéia de medida é produzida
socialmente, mas aponta onde está enraizada:
A idéia de que a avaliação é medida dos desempenhos dos alunos
está fortemente enraizada no imaginário dos educadores e dos
aprendizes(C7, p.23, grifos meus).
O que não é dito é que tal idéia tem raízes na prática social, da
qual fazem parte professores e aprendizes (se é que professores não são
aprendizes), mas imersos em relações de poder; eles não criam a própria
prática firmados nas próprias convicções, mas na interação entre essas
convicções e as diversas instâncias de um mundo competitivo e seletor,
produtor de um modo generalizado de pensar que privilegia a seleção dos
“melhores”.
O efeito discursivo decorrente dessa compreensão é que há que
se trabalhar o imaginário de “professores e aprendizes” para assim
modificar sua prática. Dissociação, mais uma vez, entre pensar/fazer,
subordinando o segundo ao primeiro. O pensar deve ser trabalhado em
capacitações, formação em serviço, formação continuada, etc., de modo
que a capacitação faça o efeito de tornar o professor crítico (superando
preconceitos “enraizados”): p.ex: “ao final desse encontro, o professor
participante deverá ser capaz de discutir criticamente sobre...”(C2, p.39).
Basta
inverter
a
temporalidade
da
frase,
para
evidenciar
novas
possibilidades de sentido: “antes desse encontro, o professor não era
capaz de discutir criticamente sobre...” As práticas anteriores ao processo
de formação são desqualificadas; as práticas consideradas externas a esse
processo, (como a participação em fóruns, grupos de estudos, sindicatos,
igrejas, etc.), mergulham no silêncio.
151
Tais efeitos de sentido, produzidos em reconhecimento, não
seriam possíveis se o processo de produção do discurso governamental
sobre inclusão não se vinculasse a um dualismo de fundo que separa
indivíduo e sociedade, descrevendo esta última como algo estável e
situando no indivíduo a responsabilidade pelas práticas chamadas de
inclusivas. De acordo com esse discurso, enquanto a sociedade propõe a
inclusão, os indivíduos continuam tendo práticas não–inclusivas, e isso
pode fazer abortar os projetos.
Tal dualização _indivíduo/sociedade_ se vincula à dualização
prática/pensamento: considera o estereótipo que emerge nos discursos
como opção consciente do sujeito falante (e reduzida à esfera do
pensar),e isso remete a ações de conscientização (ligados a um modo de
operar objetivista). Se esse estereótipo fosse considerado produto do
entrecruzamento de práticas socialmente legitimadas (habitus), isso
poderia levar a ações que levassem ao enfraquecimento de tais práticas e
das instâncias que as legitimam. São as ações possíveis em determinadas
condições (sócio-culturais) que possibilitam o preconceito.
A subordinação do fazer ao pensar, que procurei evidenciar como
um dos aspectos do discurso oficial acerca da inclusão, tenta criar uma
realidade discursiva na qual o destinatário é levado a pensar sobre sua
prática, encontrando e combatendo nela as inadequações; a prática do
enunciador não se coloca como objeto de reflexão; seu pensar, por
escorregadio, não se situa onde possa ser criticado. Isso exige um
ocultamento da prática social como produtora do modo-de-ser-e-pensar e
uma crença na conscientização
como
saída para práticas (locais)
excludentes.
A possibilidade de cisão da voz do outro, o destinatário, cisão
através da qual ele só poderá falar ou a partir do campo do pensamento
ou do campo da prática, é o mecanismo discursivo em operação. Tal fala
só poderá estar enfraquecida, já que no campo do pensamento não tem
autoridade (não tem como opor sua verdade às verdades que lhe são
152
trazidas através dos textos), no campo da prática é atrasado, tradicional
ou inadequado (é lá que se situam as falhas a serem corrigidas).
5.3. A PROPOSTA DE INCLUSÃO COMO BUSCA DE RUPTURA
Considerando
as
práticas
pedagógicas
vigentes
como
inadequadas ao processo inclusivo, e o pensar pedagógico vigente como
causador de tal inadequação, o texto se organiza em torno da idéia da
interrupção de certas continuidades: a intenção de romper com as formas
como vêm sendo atendidas as necessidades educacionais especiais, com
determinado modelo de educação e sociedade, com a fragmentação da
formação continuada, com o individualismo são buscas de ruptura
assumidas. Uma outra emerge do texto mais pelo silêncio do que pelo que
é dito, que é a ruptura insinuada/pressuposta entre a formação básica e a
continuada.
Não
são
necessariamente
buscas
que
se
articulem
pacificamente: algumas entram em conflito, em enfrentamento no próprio
interior do discurso.
A primeira busca de ruptura que se evidencia é aquela que
intenta superar as formas como vêm sendo atendidas as necessidades
educacionais especiais, e essa se confunde com a pretensa busca de
ruptura com um modelo social e educacional. Todo o material tem essa
função, ainda que seja intitulado “saberes e práticas da inclusão” e que,
em alguns momentos, inclusão seja definida como um processo mais
amplo do que o atendimento nas escolas comuns aos alunos com
necessidades educacionais especiais, e que seja considerado equivocada
uma compreensão mais restrita: “prevalece o equívoco de que educação
inclusiva é uma proposta dirigida apenas, ao alunado da educação
especial” (C7, p. 27).
De fato, afirma a Declaração de Salamanca que as escolas
153
devem acolher crianças com deficiência e crianças com
superdotação; crianças de rua e que trabalham; crianças de
populações distantes ou nômades; crianças pertencentes a
minorias lingüísticas, étnicas e culturais e crianças de outros
grupos ou zonas, desfavorecidas ou marginalizadas (Linhas de
ação sobre necessidades educacionais especiais, Declaração de
Salamanca, C2. p.18).
O que não precisaria ser dito, porque salta aos olhos, é que os
quatro módulos específicos são dirigidos à compreensão do alunado da
educação
especial
(alunos
cegos
e
de
baixa
visão,
surdos,
superdotados/altas habilidades, e com deficiência física/neuro-motora).
Considerando que a declaração é citada como o norte da
questão inclusiva, ficaria de fato um vácuo num curso chamado “Saberes
e práticas da inclusão” lidar apenas com as chamadas deficiências e a
superdotação, deixando de lado todo o restante, explicitamente nomeado
na declaração. Se esse vácuo não parece tão evidente é porque o que se
convencionou chamar de inclusão escolar é de fato o atendimento às
crianças com necessidades educacionais nas salas de aula comuns, e todo
o restante se configura como discurso periférico.
Fora do discurso, mas como parte de suas condições de produção,
está o próprio fato do material ser produzido pela Secretaria de Educação
Especial, sem nenhuma referência à Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização
e
Diversidade
(SECAD),
a
qual
“reúne
temas
como
alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo,
educação ambiental, educação escolar indígena e diversidade étnicoracial” (BRASIL, 2006).
No interior do discurso, a apresentação dos fascículos deixa claro
esse vínculo entre os conceitos de inclusão escolar e o de educação
especial:
considerando a importância da formação de professores e a
necessidade de organização de sistemas educacionais inclusivos,
para a concretização dos direitos dos alunos com necessidades
educacionais especiais, a secretaria de educação especial tem a
satisfação de entregar-lhe a coleção [...] (todos os cadernos,
página inicial não numerada, grifos meus).
154
O
conectivo
para
indica
finalidade,
o
que
subordina
a
organização de sistemas inclusivos à concretização dos direitos dos alunos
com necessidades educacionais especiais.
Um outro movimento, no entanto, remete mais uma vez para a
ampliação do conceito de inclusão, como proposto na Declaração de
Salamanca: entre os oito objetivos propostos (C1, P.7-8), somente aquele
que propõe a análise das Diretrizes para a Educação Especial na Educação
Básica (Resolução nº. 02 de 11/02/2001) toca na questão da educação
especial. Aquele que trata de necessidades educacionais específicas (o
terceiro,
pela
ordem
de
apresentação)
é
genérico:
“Apresentar
alternativas de estudo sobre como atender as necessidades educacionais
específicas dos alunos a grupos de professores e a especialistas em
educação,
de
modo
que
possam
servir
de
instrumentos
para
o
desenvolvimento profissional desses educadores” (C1, p.7; grifo meu).
Esse esforço de dilatação do conceito de inclusão tropeça, porém, nas
escolhas evidenciadas na estrutura do trabalho e em sua formatação, no
suporte textual (são três manuais sobre como atender a necessidades
específicas: o como atender remete diretamente ao a quem atender).
E
definir como um equívoco o entendimento da inclusão como limitada à
educação especial não resolve a questão do silêncio acerca do como
atender quaisquer outras especificidades (para me manter na referência
ao texto de Salamanca: crianças de rua, trabalhadoras; nômades;
pertencentes a minorias, desfavorecidas ou marginalizadas).
O dispositivo de enunciação, ou contrato de leitura, como quer
Verón (2004, p.218), as modalidades de dizer o conteúdo dão novo
sentido àquilo que é dito. O que é dito, no caso, tem um modo de dizer
oscilante: alterna-se entre a ampliação do conceito de inclusão e sua
redução. Esse oscilar pode ganhar um sentido específico através da
estratégia de relacioná-lo com aspectos da formação discursiva esboçada
na parte da análise em que trato das relações de poder.
155
Um discurso elaborado no interior de um projeto social e
educacional que pretende se organizar pelo consenso, e não pelo
enfrentamento dos conflitos, mas que não pode deixar de dialogar com
outros discursos, forjados em práticas sociais e discursivas que admitem a
existência de conflito na sociedade, poderia ter como estratégia de
enfrentamento assumir a voz do outro, dando-lhe outras possibilidades
semânticas: o fato do anúncio da ruptura com todo um modelo social e
pedagógico se concretizar na inclusão da criança com necessidades
educacionais na escola pública ganha, nessa relação, sentido. A pergunta
gerada por esse fato _ por que a necessidade de anunciar uma ruptura
mais ampla, já que um processo de inclusão nas escolas das pessoas com
limitações físicas, sensoriais, neurológicas, com especificidades quanto à
forma
de
comunicação,
com
capacidades
acima
da
média,
está
suficientemente justificado, amparado no direito que têm todas as
pessoas à educação conjunta, e nos benefícios que traz educação traz
para todos? _ ganha resposta: porque essa é a forma do discurso
dominante se defrontar com os discursos que o desafiam: apropriar-se de
sua voz, transformando-a em voz recessiva.
Poder-se-ia argumentar, claro, que é uma questão de recorte,
criada pela impossibilidade de tratar de tudo ao mesmo tempo; que aqui
se trata de educação especial, enquanto em outro lugar serão tratadas as
demais especificidades. Mas nisso se evidencia uma outra estratégia, a de
transformar questões de fundo em questões de recorte.
Tal estratégia
está vinculada a uma impossibilidade criada pelo próprio discurso: como a
questão
da pobreza, da marginalização
é
estrutural, e
não
uma
peculiaridade, uma diferença entre tantas, dedicar-se a ela, do ponto de
vista técnico, pode criar dificuldades discursivas. É possível (e necessário
ao discurso) citá-la como especificidade, mas preparar um manual sobre
como atender à criança pobre, marginalizada, poderia evidenciar por
demais a fragilidade do discurso (pode evidenciar o tratamento que é
dado às crianças não-pobres, da mesma forma como evidenciar o
156
tratamento dado às necessidades educacionais especiais põe a descoberto
a forma como são tratados e entendidos os ditos “normais”).
Traços das condições de produção do discurso que evidenciam o
tipo de aluno que é esboçado pelo enunciador aparecem na proposta de
indicadores que ajudem a avaliar as expectativas da família, quando pela
primeira vez aparece a questão salarial: “visão otimista ou não da vida,
das possibilidades de melhoria salarial e da qualidade de vida” (C7, p.75).
O ou não faz subentender os aspectos contrários, que, se ditos,
desvelariam uma realidade menos agradável de ser citada: “visão
pessimista da vida, possibilidade de perda do emprego, piora da qualidade
de vida”.
A escolha de descrever todos esses aspectos sob a expressão
“ou não”, deixando-os como ditos recessivos, coloca num segundo plano
também aqueles a quem eles se referem. Os exemplos escolhidos a seguir
para ilustrar um possível indicador de planos para o futuro falam por si só:
“Planos para o futuro, incluindo viagens, mudança de carro, aquisição de
bens de consumo...” (C7, p.75). Está claro que tais planos têm pouco
vínculo com os projetos das famílias marginalizadas. Sempre se poderá
argumentar que o verbo “incluindo” pressupõe outros planos, de outros
grupos sociais. Sem dúvida. Em análise do discurso, porém, interessam as
escolhas discursivas feitas: porque foram escolhidos esses exemplos e não
outros? Basta dizer de outra forma para evidenciar a estranheza de uma
outra formação discursiva (ou de um outro jogo semântico): planos para o
futuro,
incluindo:
emprego,
compra
de
bicicleta,
pagamento
das
prestações atrasadas da televisão...
Outro argumento que justifica a inclusão na escola comum do
aluno com necessidades educacionais especiais é o de que sua presença
faz repensar as concepções e práticas da educação comum, argumento
fartamente sustentado na literatura acerca da educação especial, e isso
traria transformações à educação como um todo, e à sociedade por
conseqüência. O anúncio de práticas novas na educação comum, a partir
157
da ressignificação da educação especial, das necessidades educacionais
especiais (ressignificação construída nos cursos de formação), é mais
enfatizado no texto sobre avaliação (C7). A superação dos atuais modelos
de avaliação por uma proposta “crítico/transformadora” é assumida como
um esforço necessário
(C7, p.45). Obviamente, pensar uma avaliação
crítico-transformadora remete a uma concepção de educação que mereça
esse qualificativo, e o objeto da crítica e da transformação, suponho, é a
sociedade como um todo.
Compreender a amplitude da inclusão teria a ver, nesse caso,
com os efeitos que um procedimento relativamente simples (inserir nas
escolas comuns as crianças com necessidades educacionais especiais)
teria sobre a educação como um todo.
O argumento, quando usado para fazer coincidir as duas noções
de inclusão (e, consequentemente, os dois tipos de ruptura considerados),
encontraria problemas no caso do discurso em análise, tanto naquilo que
é dito, quanto no que é silenciado.
No caso daquilo que é dito, pelo menos duas questões podem
ser
consideradas:
é
contraditório
pensar
uma
educação
crítico-
transformadora para um projeto de sociedade que deve buscar consensos,
portanto reproduzir o status quo; também parece estranho considerar,
numa concepção crítico-transformadora, as deficiências da escola como
superáveis
pela
educação
de
seus
profissionais,
entendida
como
mudanças no campo do pensar.
No campo do que é silenciado, o argumento também mostra
fragilidade: aparecem muito vagamente, no texto, os sujeitos “sem
deficiência”, assim como os superdotados; toda a crítica aos processos
reprodutores no interior da escola é ignorada, portanto, não se fala dos
efeitos
excludentes
da
educação
comum
(forjada
numa
sociedade
excludente) sobre as crianças com necessidades educacionais especiais,
mais especificamente, sobre as crianças cujas limitações exigem um
atendimento individualizado.
158
Posso, dito isso, afirmar que não é, portanto, uma questão de
recorte nem de compreensão a oscilação no discurso: é um modo de ser
discursivo que se conforma em suas condições de produção: precisa
parecer o que não é, para disfarçar o que é realmente.
Reforça esse jogo discursivo a estratégia de fazer tabula rasa
das realizações anteriores, seja no campo da produção acadêmica, seja no
campo da rotina pedagógica, o que produz um efeito discursivo que
estabelece o agora como ponto de ruptura e a ação pedagógica
presentificada como detonadora dessa ruptura. Essa estratégia se
evidencia especialmente quando o texto se refere à superação dos atuais
modelos de avaliação, referindo-se a uma forma tradicional, verificadora,
aferidora de resultados. O que não é dito é que essa crítica de nova não
tem nada. É no mínimo arriscado dizer que a hegemonia de um modelo
tradicional de avaliação escolar no Brasil deste começo de século tem a
ver com ausência desse debate na formação de professores. O discurso se
situa numa espécie de “ponto de ruptura”: até aqui foi assim, daqui pra
frente será diferente (se todos se empenharem, já que “queremos todos a
mesma coisa” (C7, p.87)). No entanto, nem a descrição “do que foi” e do
atual se amparam em dados objetivos, nem o projeto “do que será” é
claro e assumido.
A
fragmentação
da
educação
continuada,
cuja
busca
de
superação é anunciada no segundo objetivo (C1, p7), não ganha um
tratamento específico no texto: algumas considerações a respeito, no
entanto, podem ser feitas, com base naquilo que é dito em outras partes
do texto: considerando que há uma defesa de que as particularidades e
singularidades regionais e locais sejam respeitadas e valorizadas (C1, p.
14); e levando em conta as dimensões territoriais brasileiras e sua
diversidade considerando que o curso tem um planejamento bastante
verticalizado com relação à escolha de conteúdos e formas de trabalhálos;
considerando
que
os
encaminhamentos
tirados
nele
terão
a
implementação analisada e acompanhada pelo MEC (C7, p. 87), parece
159
plausível pensar que a superação de tal fragmentação será buscada, na
prática, por uma unificação dos resultados e sugestões num projeto de
educação continuada de longo prazo. A esse respeito, porém, nada é dito.
Por fim, a cisão entre formação continuada e formação básica
não é anunciada; entrevê-se mais pelo silêncio do que pelo que é dito. O
subsidio tem como uma das finalidades “incentivar a prática de formação
continuada no interior dos sistemas educacionais” (C1, p.7), portanto não
é de se esperar que ele trate de educação básica. É de se esperar, no
entanto, que uma continuação se estruture sobre uma base, e nesse
sentido o silêncio acerca da formação básica é eloqüente.
Não se fica sabendo se o texto pressupõe que todos os
professores já tenham a formação básica, mas sendo um discurso cujo
enunciador é o MEC, espera-se que faça parte de seu repertório de
informações a obrigatoriedade de que até 2007 todos os docentes tenham
formação superior ou “sejam formados por treinamento em serviço” (Lei
9394/96, art. 87).
Relacionando
a
proposta
com
a
rotina
profissional
dos
professores, é possível ler o texto de outra forma: A formação de que
trata é um curso de cerca de 230 h (pode ser ampliado ou reduzido,
conforme a decisão de cada secretaria) para o qual o material publicado é
subsídio
(material
didático).
Sendo
formação
continuada,
ocupará
necessariamente os sábados _ e domingos, se contarmos a produção de
relatórios e as leituras prévias necessárias_ dos professores. Se os
professores ainda não têm o curso superior (como ainda é o caso na
maioria dos municípios do Sul e Sudeste do Pará), devem, por imposição
legal, estar cursando em suas horas vagas (noites, ou férias, sábados e
domingos). A busca de titulação, necessária tanto para a transformação
da prática pedagógica como para melhorar o padrão salarial, se choca
com a premência das formações em serviço. Como fica o ano letivo?
(numa demonstração rápida das cargas horárias de ano letivo, formação
em serviço e formação obrigatória: para um professor que trabalha 8
160
horas dia, calculo cerca de 3600 h/ano ou 360 dias com 10 horas
ocupadas em cada dia, sem contar correções de trabalhos e provas e
preparação da aula. Se contarmos 2 horas/dia de preparação de aula e
correção de trabalhos, o total sobe para 351 dias, trabalhando 12 h/dia ou
422 dias, trabalhando 10 h/dia).
O silêncio acerca dessa situação traz sérias conseqüências
práticas para a ação pedagógica, porque ela afeta o destinatário em sua
força vital; a quantidade de energia a ser investida em formação básica,
continuada e trabalho propriamente dito consome o seu tempo para além
do
que
é
humanamente
suportável.
Parece
aceitável
chamar
de
excludente tal situação; parece estranho exigir desse excluído práticas
inclusivas.
Juntam-se
ao
silêncio
sobre
formação
básica
as
poucas
referências ao trabalho das universidades e centros universitários, os
quais deveriam ser responsáveis por tal formação. Quando aparecem, é
como mais uma contribuição:
[...] interação com especialistas em educação/pesquisadores da
própria região ou de outros locais, como lingüistas, por exemplo,
que tenham desenvolvido ou estejam desenvolvendo pesquisas
sobre a educação de surdos no estado e que possam contribuir
para ampliar as reflexões que acontecem nas escolas (C1, p.11).
Não é dito que a formação universitária (cursos de licenciatura)
tenha alguma função no exercício da profissão docente. É como se se
tratasse de uma tabula rasa, na qual os cursos de formação continuada
inscreverão a formação adequada. A universidade e a formação superior
obrigatória são dadas como algo de fora, do externo.
O efeito discursivo produzido consiste em recortar a realidade
em partes sem relação entre si. Formação básica e formação continuada
são colocadas, cada uma separadamente, como exigências ao professor.
Cada vez que se trata de um dos aspectos da rotina educacional, omite-se
o outro; cada um deles, no entanto, exige do professor dedicação integral.
O fato de que isso não caiba no tempo concreto de que dispõe o
161
profissional não parece se configurar num problema para o planejador.
Mesmo a necessidade de “fortalecer o papel das secretarias na construção
de escolas que atendam a todos os alunos e a formação dos professores71,
evitando a fragmentação e pulverização de ações educacionais” (C1, p.7)
exige que não se fragmente a formação em cursos diferenciados cujos
objetivos muitas vezes se sobrepõem.
O desejo de romper com o individualismo na ação pedagógica
emerge na própria forma como o curso está estruturado. A maior parte
dos encontros está estruturada à moda da educação popular e sindical:
constam de trabalhos em grupos e plenárias, sendo que nos trabalhos em
grupo se realiza estudo dirigido e nas plenárias se identificam pontos em
comum e pontos de divergência, culminando num fechamento onde o
formador ajuda a fazer uma síntese das questões discutidas (C2,
P.11;14;40;58;84; C3, p 19-20;36;60-61;64-65; C4, P.10-12; C5, P.1011;46;53;76-77;82-84;93;104;110-113;116; C6, P.55;57;83;126;155;
158;162;174;186;187;199). Esse desejo está expresso como objetivo do
curso:
Criar espaços de aprendizagem coletiva, incentivando a prática de
encontros para estudar e trocar experiências e o trabalho em
grupo nas escolas (C1, p.8).
Ainda que não seja dito, a referência ao trabalho coletivo remete
ao discurso pedagógico socialista, às propostas de Freire, de Makarenko,
de Freinet. Essas propostas, no entanto, fazem o esforço de refletir sobre
as relações de poder nas quais a escola se insere, a coletividade se reúne
não somente para aprender, mas aprende para algo (potencializar as
ações de transformação social).
O exercício da crítica em si e por si faz aqui bastante sentido;
ganha uma função alienadora. A prática discursiva “crítica” substitui a
criticidade na prática política. O sujeito crê que está participando porque
lhe é permitido fazer a crítica, mas sua critica tem pouca função na
71
Deve ser “e na formação dos professores”, me parece.
162
transformação das coisas. O efeito discursivo construído é a definição de
atividade crítica como exercício em si, sem vinculo com um processo real
de transformação.
O uso da palavra criar possibilita que seja dito de outro modo:
não há espaços de aprendizagem coletiva nas escolas (eles precisam ser
“criados”). Mais uma vez, evidencia-se a disposição de começar do zero,
de romper com o atraso e criar o novo. A superação do individualismo,
porém, exigiria que os efeitos da ação coletiva se fizessem sentir nas
relações de poder, nas práticas produtoras de exclusão. Os professores
precisariam sentir que as decisões tomadas coletivamente são de fato
inclusivas, porque têm efeitos naquelas práticas sociais. Quando, no
entanto, os efeitos dessas decisões se centram no pedagógico (isto é, o
professor só pode decidir sobre suas próprias ações dentro da escola,
premido
pela
imposição
social
de
não
parecer
preconceituoso
ou
tradicional), é de novo o indivíduo que emerge fortalecido, e as práticas
coletivas ganham “novo” sentido, nesse jogo em que a aparente produção
de polissemia é o disfarce de processos parafrásticos: aparentemente
encerrados em si mesmos, parecem puro exercício de convivência. Digo
parecem porque, de fato, tais exercícios somente ganham sentido nos
processos de manutenção do status quo, pela tentativa de absorção dos
discursos dominados.
O efeito discursivo obtido com esse recurso a temáticas e modos
de fazer recorrentes na história da educação popular é uma atenuação dos
efeitos já analisados, relativos às relações de poder e à cisão entre pensar
e fazer. Através da estratégia discursiva de remeter a temáticas caras aos
movimentos sociais (grupo, encontros, troca de experiências, coletividade)
a noção de ruptura ganha força (a “velha” estrutura pedagógica não
continha esses espaços; eles serão criados no “novo”); ao encarcerar essa
possibilidade de mudança na “aprendizagem escolar”, no entanto, a busca
de ruptura se esvazia porque constrangida a um espaço específico.
163
Para resumir e ancorar provisoriamente este momento analítico
no jogo semântico mais amplo, teço algumas considerações: a articulação
entre os desejos de ruptura anunciados no texto, afirmei antes, não se
processa
pacificamente.
A
defesa
da
inclusão
dos
alunos
com
necessidades educacionais especiais nas salas de aula comum perde sua
especificidade e sua força porque se disfarça de mudanças na sociedade
mais ampla; a busca de mudança nas práticas sociais e pedagógicas
enfrenta o vácuo entre o social e o pedagógico, criado por uma concepção
recortada da ação humana; o desejo de criação do “novo” tropeça numa
polarização com um “velho” pouco claro, a que se fazem alusões rápidas e
estigmatizadoras (fazem tabula rasa
das experiências e produções
anteriores) assim como se embaralha em descrições vagas desse novo; o
desejo de um projeto unificado de formação continuada, rompendo com a
fragmentação das ações educacionais, perde base por causa da vaguidão
do projeto geral de educação dentro do qual se insere e, por fim, dar a
formação básica como questão resolvida cria empecilhos à execução de
qualquer projeto de educação continuada, porque não leva em conta as
bases dessa continuação.
5.4. O LUGAR DO PROFESSOR NOS ENUNCIADOS OFICIAIS
É principalmente ao professor, já foi dito, que o discurso oficial
se dirige explicitamente, no texto analisado. Segundo Verón (2004, p.
233), o enunciador, por formas variadas, propõe um lugar a um
destinatário. Ao analisar os trechos referentes ao professor, busquei
marcas que evidenciassem esse lugar, que o situassem com relação ao
enunciador, assim como investiguei as relações que o discurso propõe
entre enunciador e destinatário (VERÓN, op.cit., p. 218).
164
O lugar proposto ao professor no discurso se mostra flutuante e
contraditório. Os traços de tais flutuações e contradições foram localizados
naquilo que é dito ou silenciado em vários momentos: na previsão das
ações a serem realizadas nas sessões de leitura, debates e plenárias, nas
relações entre conhecimento e prática pedagógica, na divisão de funções e
tarefas, na sistemática de avaliação e, enfim, na caracterização de um
certo perfil de professor que se configura nesses momentos todos.
Na previsão das ações a serem realizadas nas sessões de leitura,
debates e plenárias, aparecem traços das condições de produção do
discurso no que se refere à relação com o texto que serve de subsídio à
discussão, à sistemática de escolha de pauta e estrutura do curso e da
oscilação do poder-dizer do sujeito/destinatário ao longo do curso.
Com relação às sessões de leitura, geralmente propostas para
grupos, o formador deve
[...] estimular a participação de todos os professores nas sessões
de leitura dos documentos, intervindo para que todos fiquem à
vontade para expressar dúvidas de qualquer natureza (C1, p.13,
grifos meus).
Esta descrição faz imaginar uma postura tradicional diante do
texto: o professor, aqui travestido de aluno, expressa suas dúvidas, mas
não suas divergências. O texto está numa posição hierárquica superior. O
processo de seleção desses textos e autores é silenciado, o que o coloca
numa dimensão separada para a qual não está prevista nem mesmo a
expressão de dúvidas. Nesse momento da leitura, não aparece a
possibilidade de expressar discordâncias daquilo que é lido, ou da própria
escolha dos textos e autores (haverá um momento para isso, como
mostrarei a seguir).
A mesma subordinação a uma escolha de conteúdos cujo sujeito
se eclipsa aparece em outro trecho:
É importante [...] que o formador apresente a pauta de conteúdos
de todo o fascículo (para que os professores possam saber o que
será tratado no período) (C1, p.14 – grifos meus).
165
Os verbos escolhidos são claros: nenhuma possibilidade de
mudança da pauta se coloca, assim como não se supõe que o formador
possa
ficar
sabendo
(pela
voz
dos
professores)
que
outros
conteúdos/temas são mais interessantes do que aqueles que o fascículo
apresenta. O que será tratado é definido no fascículo (por uma equipe de
planejadores da SEESP/MEC), o formador “apresenta”, e os professores
“ficam sabendo”. Não é preciso lembrar como isso entra em contradição
com a estrutura de plenárias, espaço de tomada de decisões em pé de
igualdade (um homem, um voto). O que isso evidencia é uma distribuição
desigual de poder: as plenárias podem decidir certas coisas e não outras,
e aquilo que pode ou não pode ser decidido nas plenárias é definido em
outra instância de decisão, numa estrutura em que a plenária é instância
subordinada.
É reservado, enfim, um momento para o posicionamento crítico:
ao final da discussão sobre cada tema, [...] é fundamental que os
professores tenham oportunidade de posicionar-se criticamente
quanto aos diferentes assuntos abordados (C1, p.14; grifos
meus).
Naquilo que é dito, já aparecem os traços de uma relação
desigual de poder: quem dá essa oportunidade é o formador, num
momento específico definido pelos planejadores (ao final da discussão).
Não há instruções ao formador sobre o que fazer se o posicionamento
crítico surge no momento inicial (com relação ao conteúdo, ao texto
escolhido, à forma de encaminhar o trabalho...), ou no meio, e não no
final. O discurso remete a outros discursos acerca de uma educação
crítico-transformadora,
a
possibilidade
de
criticidade
se
associa
semanticamente à estrutura de plenárias; uma voz recessiva fala desde o
interior do discurso dominante. Para lidar com essa voz, no entanto,
surgem estratégias que permitem um jogo polissêmico em que outra voz
atenua aquela: primeiro, o conjunto de expressões “é fundamental/
posicionar-se criticamente” é enfraquecido por “ao final da discussão
/tenham oportunidade”. Quando é lembrado que “é fundamental que
166
tenham oportunidade” surge a dúvida sobre se essa oportunidade
aconteceria caso o enunciador não fizesse o alerta: o enunciador se coloca
como aquele que advoga o pensamento crítico, alertando o formador para
que dê essa oportunidade aos professores, tomados como objeto da
oração, e não sujeito. O posicionamento crítico, portanto, não é
pressuposto como uma capacidade que o professor pode exercer a
qualquer momento, como inerente a seres que pensam; é o formador que
lhes dá essa oportunidade. Aí entra a segunda estratégia, em que a
questão da temporalidade modifica a rede de sentidos: essa oportunidade
não ocorrerá em qualquer momento, mas ao final do processo. O jogo
semântico
com
a
palavra
final
brinca
com
suas
possibilidades
polissêmicas: a “palavra final” parece ser do professor, mas o fato dela
estar no fim do processo não significa que seja decisiva: expressa
simplesmente temporalidade, como na piada em que o marido diz que em
sua casa a última palavra é dele (e, no exercício dessa palavra final, ele
grita: “já vou, meu bem, já vou”...).
O modo de dizer do planejamento do curso cria, então, certos
efeitos discursivos em que o lugar do destinatário oscila entre a
passividade e a atuação crítica, mas nesse oscilar, o descolamento entre
atuação crítica e possibilidades de mudança, a atomização dos momentos
e espaços de decisão, a presença de um enunciador cuja posição de poder
permite escolher que temas são ou não passiveis de decisão pelo
professor, são fatores que empurram o pêndulo para o pólo da
passividade.
Não
estou
pressupondo
que
o
destinatário
seja
necessariamente passivo, estou afirmando que se surpreende essa
expectativa do enunciador: que o destinatário seja critico, mas não tão
crítico que questione certas decisões de base, e que o seja na hora
determinada pelo enunciador; que participe, mas que essa participação
não
pressuponha
formação.
propor
outros
conteúdos,
outra
estrutura,
outra
167
As relações entre conhecimento e prática pedagógica também
evidenciam um determinado lugar para o professor e sua prática no
discurso.
No seguinte trecho, a rotina do trabalho pedagógico aparece
como modificável pelo estudo de conteúdos, os quais devem servir de
base para a reflexão sobre a prática:
Em todos os fascículos dá-se atenção especial a análise da rotina
do trabalho pedagógico, pois entende-se (sic) que esta deva
ocupar um lugar de destaque na formação dos professores. Esta é
abordada dentro da perspectiva de relacionar o conteúdo que
está sendo discutido com a prática do professor, permitindo a este
a reflexão sobre como esses novos procedimentos podem gerar
novos conhecimentos sobre sua prática (C1, p.14, grifos meus).
Vale a pena destrinchar o que é dito, para colocar em evidência
o modo-de-fazer discursivo: os novos procedimentos ensinados (sobre
como atender aos alunos com necessidades educacionais especiais)
devem gerar novos conhecimentos sobre a prática do professor. Analisase a rotina, relaciona-se com os novos procedimentos (ensinados) e
elabora-se conhecimento acerca da prática (do professor). Não aparecem
as possibilidades da prática do professor já ter avançado para além desses
novos procedimentos, ou deles não serem tão novos assim, ou de, sendo
novos, não terem grande contribuição a dar72 . Também não aventa a
possibilidade de que tais procedimentos possam ser modificados no
interior das práticas existentes, ou de que outras práticas, que não a do
professor (rotina do trabalho pedagógico), precisem ser modificadas e
exijam a elaboração de novos conhecimentos. A prática é dada como
estática (não se modificou ao longo dos anos de experiência e de cursos
de formação), e alienada (em si mesma, não gera conhecimento; é a
relação com conteúdos estudados que permite a reflexão).
Essa
desqualificação
da
prática
profissional,
aliada
à
subordinação ao ensino, à formação (nesse caso, à aprendizagem de
72
O discurso atribui uma positividade intrínseca à idéia do “novo”, em oposição à (também considerada
inerente) negatividade do velho, do tradicional.
168
novos procedimentos) se fortalece quando são localizados os traços
discursivos que encontram um lugar para o tradicionalismo: o pensar do
professor de professores e alunos. Após fazer uma crítica já bem
conhecida da avaliação tradicional, o texto atribui esse tradicionalismo ao
professor e seu modo de pensar. Não aparecem referências às raízes
sociais da aferição, da seleção, da competitividade:
A idéia de que a avaliação é medida dos desempenhos dos alunos
está fortemente enraizada no imaginário dos educadores e dos
aprendizes (C7, p.23).
O que não é dito é que tal idéia tem raízes nas práticas sociais,
nas quais tanto têm lugar professores e alunos quanto planejadores e
dirigentes, envolvidos em relações de poder; eles não criam a própria
prática a partir das próprias convicções, mas da interação entre essas
convicções e as diversas instâncias de um mundo competitivo e seletor.
Tal idéia, portanto, espelha um modo generalizado de pensar que
privilegia a seleção dos melhores. Situá-la no imaginário dos professores e
alunos não seria problemático (ela também “está” lá, claro), se não
mobilizasse uma crença: a de que é necessário e suficiente “trabalhar o
imaginário” de “professores e aprendizes” para assim modificar sua
prática.
Em termos menos poéticos: há que instruir os professores a
respeito do que significa realmente avaliação (e todo o resto), de forma
que eles possam refletir sobre isso e modificar sua prática. Tal crença
pressupõe que há um significado real em algum lugar, a que se terá
acesso através da formação; considera que é por não conhecerem, ou por
conhecerem significados equivocados, que os professores não mudam sua
prática. O recurso discursivo de dissociar o pensar do fazer, subordinando
o segundo ao primeiro, situa o professor e seu fazer como alienados e o
conhecimento (ou mesmo a mera instrução) como desalienantes.
É nas hierarquias pressupostas pela divisão de funções e tarefas
que as marcas dessa dissociação aparecem com força, porque, aqui, o
169
lugar do pensar mais amplo (no sentido de decidir) se afasta do lugar do
professor; seu pensar passa a ser vinculado com a aprendizagem (lugar
de aluno) e execução da tarefa pedagógica (lugar de professor).
O discurso explicita as funções do coordenador e do formador de
grupo em termos de distribuição de tarefas e sugere uma determinada
hierarquia. O primeiro deve “divulgar o programa para os professores”,
“ajudar na organização dos grupos de estudo”, “providenciar os recursos
materiais”, orientar as reuniões de estudo e trabalho dos formadores de
grupo,
“assessorar
e
avaliar
o
desenvolvimento
dos
cursos
de
capacitação” (C1, p.11). As funções de coordenador, portanto, podem ser
resumidas em termos de divulgação, ajuda, orientação, assessoria,
avaliação.
Faz relatórios
diretamente
para
a
SEESP/MEC.
Silêncio
interessante: o texto não cogita relatórios para a secretaria (municipal ou
estadual) que indica o coordenador. É como se ele estivesse diretamente
subordinado à SEESP/MEC:
é fundamental que cada secretaria indique um coordenador que
fará a articulação entre SEESP/MEC e os professores formadores
de grupo[..] (C1,p10. grifos meus).
Surpreende-se aqui uma estrutura hierárquica construída para o
curso,
que
passa
ao
largo
daquela
já
existente
nas
secretarias:
SEESP›coordenador›formador de grupo›professores.
Os formadores de grupo devem “coordenar as reuniões dos
grupos”, “ler previamente os textos indicados”, “elaborar atividades
complementares”;
“incentivar
os
professores
a
analisar
a
própria
experiência”, “planejar e controlar o tempo destinado a cada atividade,
bem como o uso do espaço físico e do equipamento necessário”, “criar
espaços para os professores comunicarem suas experiências”, “estimular
a participação”, “ajudar na sistematização do trabalho, “enriquecer,
ampliar ou modificar as propostas de encaminhamento”, avaliar o
desenvolvimento de cada tema, o desempenho dos participantes e a
própria
atuação”
(C1,
p.13).
Suas
funções,
portanto,
podem
ser
170
resumidas
em
termos
de
coordenação,
elaboração,
planejamento,
controle, estímulo, ajuda, avaliação. Interessante observar que, ainda que
o formador de grupo preste contas ao coordenador, as funções executivas
cabem àquele, enquanto que as funções do coordenador parecem mais de
acompanhamento e assessoria (aquelas mesmas a que o MEC se propõe,
como evidenciado em 5.1.).
Nessa distribuição de tarefas, as marcas de hierarquia são
vagas, a não ser no que se refere à avaliação: o coordenador avalia “todo
o desenvolvimento dos cursos de capacitação” (C1, p.11), enquanto que o
formador “avalia o desenvolvimento de cada tema, o desempenho dos
participantes e apropria atuação” (C1, p.13).
Tanto o orientador quanto o formador deverão ser indicados
pelas secretarias de educação. O Coordenador deverá ser escolhido entre
pessoas da localidade comprometidas de fato com a promoção do
desenvolvimento profissional dos educadores e, de preferência,
vinculadas ao setor ou departamento da secretaria responsável
pela Educação Especial no estado ou município (C1,p.10).
Os formadores de grupo poderão ser escolhidos entre
Professores das universidades, integrantes de ONG’s, especialistas
em educação especial e técnicos da equipe pedagógica da
secretaria [...] os formadores de grupo precisam ser pessoas que
gozem do reconhecimento dos professores(C1,p.12).
Dada a quantidade de trabalho envolvido (como demonstrei em
5.1.), permito-me imaginar que esses profissionais não serão voluntários,
mas pertencerão ao quadro das secretarias, o que os situa também em
outra estrutura hierárquica, diferenciada daquela prevista para o curso.
Quanto às funções dos professores, elas não aparecem num
título específico. Na qualidade de alunos, eles estão contemplados no
cabeçalho clássico dos objetivos didáticos definidos a cada início de
encontro: “ao final de [...] o professor deverá ser capaz de [...]”. A
naturalidade do uso dessa fórmula didática parece colocá-la no domínio do
171
não-discutível; não diz o bom senso que ao final de um trabalho
pedagógico, devam-se apresentar resultados? E que esses resultados se
expressam em novas capacidades (aprendizagem), cuja avaliação dirá do
bom ou mau andamento do trabalho?
O exercício da análise da prática discursiva remete para além
desse senso comum pedagógico: situar no professor (aqui no lugar de
aluno) o desenvolvimento das capacidades dadas pelo enunciador como
necessárias para uma escola inclusiva e silenciar quanto aos outros
lugares (o do coordenador, o do formador, o do próprio enunciador)
implica em supor essas capacidades já desenvolvidas nesses lugares, ou
em sua não-necessidade ali.
A pergunta que aquele cabeçalho cria _ se, ao final do processo,
o professor for capaz de todas aquelas coisas, tiver desenvolvido todas
aquelas competências, teremos então uma escola inclusiva?_ só pode ser
respondida
remetendo
à
admissão
ou
não
de
outras
instâncias
responsáveis pela inclusividade. Se respondida afirmativamente, será o
professor (ou no máximo a escola) a instância a responder pelas
mudanças
sociais.
Se
respondida
negativamente,
gerará
algumas
perguntas incômodas: As demais instâncias já estão capacitadas? Quem
as capacitará? Por que se escolheu a escola como instância inicial a ser
capacitada? Quem a escolheu?
O fato das tarefas atribuídas aos professores não estarem
descritas num texto específico não impede que elas estejam descritas no
interior do texto, como objeto das funções de coordenador e formador. De
fato, tais tarefas podem ser pinçadas ao longo do texto: os professores
devem “fazer anotações pessoais, escrever conclusões de atividades,
documentar as sínteses das discussões, formular perguntas e reflexões”
(C1, p.10);“ fazer uso do que aprenderam” (C1, p.12); organizar um
caderno de registro” (C1, p.13); expressar/analisar/comunicar (C1,p. 1213) suas experiências; participar (C1, p.13); , sistematizar o trabalho (C1,
p.13); ser avaliados com relação às expectativas de aprendizagem e aos
172
conteúdos
propostos
(C1,
p.13);
fazer
auto-avaliação
(C1,
p.14);
relacionar o que sabem com o que está sendo apresentado (C1, p.14);
“[...] posicionar-se criticamente, visualizar soluções criativas, descobrir
novos caminhos [...]” (C1.p.14). São tarefas vinculadas à aprendizagem
que deve ocorrer “neles”, na qualidade de alunos. Como o caderno em
análise é “do orientador e do formador”, e como, ao final de cada
encontro, “ o professor deverá ser capaz de”(C7, p7 e todos os demais), é
lícito imaginar, pelo silêncio discursivo a respeito, uma pressuposição de
que tais tarefas exigem capacidades que já estão desenvolvidas, ou não
precisam ser desenvolvidas, ou não é o momento de desenvolvê-las, nos
demais membros do processo.
Surpreendo aqui três hierarquias em que o lugar atribuído ao
destinatário pelo enunciador se desdobra. Uma hierarquia que desloca o
lugar do professor: na distribuição do conhecimento (quem ensina, quem
aprende) num primeiro momento ele é situado do segundo lado, na
qualidade de aluno, num segundo momento (o da prática pedagógica) ele
volta para o lado inicial (volta a ser professor). Na questão da avaliação se
flagra outra hierarquia clara; o coordenador avalia o conjunto das ações
(C1, p.11) o formador avalia os professores e a si próprio (C1, p.13), os
professores avaliam a si próprios (C1, p.15). Tal avaliação pode ter
relação com conhecimento, mas tem principalmente com controle: é
através dela que o MEC/SEESP recebe, filtrados por relatórios entre os
quais se estabelece uma relação de subordinação, os resultados daquilo
que foi executado.
Uma terceira hierarquia, a qual o texto trata como relações entre
interlocutores (C7, p.87), é aquela derivada das estruturas de poder nas
secretarias de educação (professor> diretor>secretário de educação) e
das relações de governo (prefeitura>estado>governo federal). Nessas, o
lugar do professor é o de funcionário, mas a vaguidão descritiva de tal
hierarquia no discurso faz com que esse lugar se manifeste como o do
interlocutor. Considerando-o interlocutor, atenuam-se as possibilidades de
173
discussões
a
respeito
de
carreira,
salário,
e
outras,
que
seriam
concernentes àquele terceiro lugar do destinatário do discurso e teriam
função num debate acerca de uma sociedade cujos professores sofrem
processos excludentes.
A análise dos desdobramentos do papel que o enunciador atribui
ao destinatário (aqui aluno, ali professor, acolá interlocutor) exigiria muito
mais do que é possível fazer nesta tese (exigiria, quem sabe, uma outra
tese a respeito dos lugares do professor nos discursos oficiais). Para efeito
deste trabalho, basta dizer que tais desdobramentos não escapam das
hierarquias: em seus efeitos discursivos, também se organizam segundo
uma ordem determinada, na qual o lugar de interlocutor é absorvido pelo
lugar de professor e este é absorvido pelo lugar de aluno. É somente se se
demonstrar “capaz de” (no lugar de aluno) que ele será julgado adequado
para o lugar de professor, condição na qual ele poderá se configurar como
interlocutor adequado: um professor “inclusivo”.
Além disso, como uma hierarquia não substitui a outra (elas se
sobrepõem), além dos conflitos inerentes a cada uma internamente, podese imaginar outros, decorrentes dessa sobreposição. Como o interlocutor
aparece como um lugar subordinado ao de professor e este como
subordinado ao de aluno, não é difícil imaginar que o lugar dos
educadores seja o mais afetado por tais conflitos.
Por fim, um comentário sobre o lugar do enunciador: as
secretarias de estado e municipal não se mostram, no caso desse
discurso,
como
desdobramentos
do
enunciador.
Configuram-se,
no
máximo, se me é permitido usar uma gíria militante, como “correia de
transmissão” do discurso. Sua função, caso estejam interessadas numa
educação inclusiva e de qualidade para todos (C1, p.7) é criar condições
para que o discurso chegue ao seu destinatário: o professor.
Ainda que eu já tenha tratado das hierarquias na sistemática de
avaliação, vale a pena voltar a esse tema para acessar outra rede de
sentidos referentes ao lugar do professor, aqui com referência a certo
174
perfil que vai sendo desenhado conforme o discurso vai caracterizando
seu destinatário.
[...] considerando-se que os professores, em sua maioria, não
têm acesso garantido à literatura sobre avaliação e às questões
que o tema tem suscitado, é de compreender que avaliem de
forma inadequada, ainda que desejando fazer o melhor (C7, p.20;
grifos meus).
Na frase acima, é dito nas entrelinhas que nenhum professor
deseja medir seus alunos, e se o faz é por falta de informação. Se isso
pudesse ser dito de forma coloquial, teria o seguinte formato: “O
professor é bonzinho, mas tonto, pobrezinho”. No que não é dito, o lugar
de onde fala o enunciador se fragiliza: pondo em ação a crença de que o
acesso à literatura e ao debate pode fazer avaliar de forma adequada, não
cita uma única experiência em que somente tal acesso tenha feito avaliar
de forma adequada (aquela minoria que o texto deixa entrever). Ao
mesmo tempo, postula a criação desse acesso como forma de adequar as
práticas avaliativas e pedagógicas como um todo.
É
àquele
mesmo
professor
que
cabe
corrigir
em
suas
preocupações inadequadas e em suas falsas suposições, dando-lhe
oportunidade de refletir sobre isso num curso de formação continuada:
Inicialmente cabe destacar sua importância [das habilidades
pessoais-sociais dos alunos], nem sempre tão valorizada como
elementos (sic) de análise pelos professores, mais preocupados
com o rendimento escolar e na falsa suposição de que aspectos
sociais e afetivos são mais pertinentes nos processos de avaliação
clínica (C7, p.67; grifos meus).
Entre o perfil desenhado para o professor do “agora” num pólo, e
o projeto de um professor bem-formado, inclusivo, inovador (no pólo
contrário), situa-se a formação. Evidencia-se então a contradição a que já
me referi: é à comunidade escolar (da qual esse professor é membro
importante) que cabe decidir e encaminhar todo o projeto pedagógico,
como dito a seguir: “a identificação dessas necessidades deve impulsionar
a comunidade escolar às providências cabíveis para satisfazê-las” (C.7,
p.23). Essa contradição se atenua quando é levada em conta a questão da
175
temporalidade: O “formar-se” e o “tomar decisões a respeito da inclusão”
ocorrem num mesmo tempo (no próprio interior do curso de formação
continuada): as reflexões sobre a prática produzem efeitos imediatos, não
exigem um tempo maior de elaboração.
O efeito discursivo produzido por essa contradição entre o perfil
que o enunciador desenha para o destinatário e as expectativas que tem
em relação ao seu papel numa sociedade inclusiva, efeito esse que afeta a
auto-estima do professor ao mesmo tempo em que lhe impõe desafios
imensos, põem em ação a velha crença de que venho falando: basta a
educação para que o mundo se modifique para melhor. Junte-se a essa
crença as propaladas premências do mundo contemporâneo (essa
educação tem que ser “para ontem” e por isso não pode esperar por
projetos mais gerais) e teremos o lugar do destinatário como um lugaralvo: nele se situam todas as falhas que é preciso corrigir para a
construção de uma escola inclusiva e a ele se dirigem todas as ações de
correção.
As flutuações do lugar proposto ao professor no discurso,
aparecendo como subordinado, passivo, em certos momentos, para
emergir como agente, cidadão participativo em outros; capaz de tomar
providências e encaminhar o processo inclusivo em certos trechos, em
outros, portador do atraso (que ele precisa superar pela formação
adequada), ganha sentido numa formação discursiva em que fazer e
pensar aparecem como dimensões recortadas do humano, novo e velho
são dimensões opostas da vida e o poder se disfarça de interlocução.
5.5. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO GOVERNAMENTAL:
TEMÁTICAS E MODOS DE OPERAR
Enfeixei, então, quatro conjuntos de efeitos discursivos no
discurso oficial: os disfarces e ocultamentos das relações de poder, a
176
subordinação do fazer ao pensar, a busca de ruptura, as flutuações do
lugar do professor. O desafio metodológico, agora, é cruzar esses
conjuntos de efeitos, caracterizando a configuração discursiva que toma
forma nessa articulação. Para estabelecer tais relações, é importante
retomar suas relações interdiscursivas internas.
O primeiro conjunto de efeitos discursivos, que denominei “os
disfarces e ocultamentos das relações de poder”, envolve um embate que,
no interior do próprio discurso, se estabelece com as vozes contrárias:
exige certos ocultamentos (omissão de pontos de vista contrários, o
ocultamento de projetos em conflito, do processo de produção das
desigualdades, o ocultamento do próprio projeto), a desqualificação do
pensar diferente, a atenuação das relações de mando sob a representação
de relações de colaboração e diálogo (harmonização do conflito), certos
mecanismos de antecipação da voz do outro e de enfraquecimento dessa
voz (a intenção individual aparece como definidora tanto do lugar do
enunciador quanto do lugar do destinatário).
O segundo conjunto, “a subordinação do fazer ao pensar”, inclui
operações discursivas que buscam deslocar o pensar do destinatário na
direção de si próprio e de sua prática (cindida de outras práticas e
estabelecida
como
objeto
privilegiado
de
reflexão),
ocultam
a
possibilidade dessa prática de produzir pensamento e remetem tal
produção para o campo do conhecimento, aqui transformado em formação
(conscientização). Cindir a voz do outro na sua possibilidade de se
contrapor é o projeto discursivo: ele falará ou do campo do pensamento
ou do campo da prática; essa cisão desqualifica a própria possibilidade
da contrapalavra, por causa da posição em que o professor é colocado: no
campo do pensamento não teria autoridade, no campo da prática seria
atrasado e tradicional.
No terceiro conjunto, aqui chamado “a proposta de inclusão
como busca de ruptura”, o discurso evoca para si a responsabilidade da
mudança: se apresenta como arena na qual que o “velho” é combativo e o
177
“novo” começa a se estabelecer. Enfrenta a contradição posta entre
propor a inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais na
escola pública (o novo) e o processo de deterioração dessa mesma escola
situando nos modos de pensar e de saber dos professores as razões dessa
deterioração:
autoriza-se
assim
a
propor
novas
formas
de
conscientização, dessa vez acerca de como atender as necessidades
educacionais especiais.
No
quarto
conjunto
de
efeitos
discursivos,
o
lugar
do
destinatário, o professor, se organiza por flutuações nas quais ora aparece
como
ser
subordinado,
passivo
ora
como
agente,
como
cidadão
participativo; ser portador do atraso e ser agente de mudanças ganham
articulação quando se pensa que é aí que faz sentido um projeto de
formação: é ele que faz a ponte entre velho e o novo, entre a
heteronomia diagnosticada e a autonomia almejada.
Considerando com Orlandi (2005, p.43), que “a formação
discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada _ou
seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica
dada _determina o que pode e o que deve ser dito”, esses conjuntos de
relações entre efeitos discursivos se configuram em formações discursivas
diferentes e em enfrentamento quando relacionados entre si.
O modo de funcionamento do discurso oficial, então, no discurso
analisado, estabelece um embate entre formações discursivas que
chamarei de dominantes e recessivas (o que pode e deve ser dito, como
discurso de frente e como “discurso de suporte”).
A formação discursiva dominante, então, abrange a superação
do atraso, o aprender a fazer, a predominância das idéias sobre a prática,
a busca do consenso, a democracia em que todos os interlocutores têm o
mesmo peso, a existência de uma sociedade inclusiva, pelo menos na
intenção (e nesse discurso, intenção significa muito, já que as idéias
predominam sobre a prática).
178
Uma certa ordem, uma certa regularidade pode ser encontrada:
o lugar do professor flutua em consonância com o projeto de formação
(que pretende, pela via das mudanças no saber, mudar o fazer); tal
projeto se organiza num projeto mais amplo, para o qual a ocultação das
relações de poder é vital, já que sua desocultação explicitaria
características das práticas sociais nas
as
quais fazer e saber se imbricam
estreitamente.
Esse projeto mais amplo é chamado de sociedade inclusiva, o
qual aparece ora como projeto a ser construído (por instâncias que se
complementam) ora como realidade que tem suas disfunções mais
gritantes na prática pedagógica, a qual necessita de ajustes. A inclusão se
situa no pólo do consenso, não no do conflito (e as possibilidades de
conflito aparecem relacionadas com intenções individuais, tradicionalismo,
formação insuficiente, carências diversas).
Os saberes da inclusão aparecem como saberes já constituídos,
enquanto que as práticas da inclusão dependem do professor repensar
sua
prática,
com
base
naqueles
saberes
(já
constituídos)
e
no
conhecimento técnico (o como lidar com cada especificidade). Não são
relacionadas as práticas que excluem com a intenção ou a necessidade de
excluir, mas com o preconceito, a desinformação, o atraso, a formação
inadequada. Essas práticas têm geralmente o professor como sujeito. Não
aparece nenhuma referência a práticas excludentes do sistema (mesmo
quando se refere ao sistema escolar, aprovação e reprovação aparecem
como decisões que dizem respeito ao professor).
Tal discurso tem ênfase na produtividade, e não na criatividade
(ORLANDI, 2005, p.38): a produção de idéias novas por parte dos
professores se perde na falta de interlocutores (e apenas passam a
constar dos relatórios). O projeto de transformação se fecha na ação
pedagógica. A criação de coisas novas se situa no campo das idéias, que
deverão reformar a prática; no entanto, as novas práticas têm a ver com
a aplicação das idéias aprendidas (formas não-excludentes de lidar com a
179
deficiência). As práticas já existentes (atuais) não são descritas como
passiveis de não só abranger aquilo que é descrito na Declaração de
Salamanca e nas diretrizes, mas avançar para além dela.
A formação discursiva recessiva, nesta relação configurada como
de suporte da formação dominante, inclui a idéia da transformação social,
da ruptura, da ação coletiva, da formação do agente social crítico e
reflexivo, da participação no poder, da necessidade de construção de uma
sociedade não-excludente pela superação dos mecanismos de exclusão.
Digo que são “de suporte” porque tais vozes se entrecruzam de
tal forma no discurso, que as segundas, ao invés de se colocarem em
contraposição, dão suporte e estabilidade às primeiras. Os ocultamentos,
os deslizamentos de sentido, as reificações contribuem para que a
transformação se reduza a ajustes na prática pedagógica, a crítica ocorra
nos momentos pedagogicamente corretos, a participação se limite à
participação
permitida,
a
construção
da
inclusão
se
reduza
à
aprendizagem de que inclusão é possível, dentro de uma realidade à qual
todos tem que se submeter.
Considero que é possível, com Verón, chamar tais relações de
coerções de engendramento do discurso, as quais “deixam rastros no
texto” (2004, p.52); tais rastros são os traços das condições sociohistóricas em que ele é produzido, as quais permitem a construção de
diversas gramáticas de reconhecimento; a que serve de base a esta tese é
apenas uma dessas possibilidades.
6. A INCLUSÃO NO DISCURSO ESCOLAR: CONVERSAS
INTERFACE ENTRE EDUCAÇÃO COMUM E ESPECIAL
NA
Neste capítulo, apresento a análise e interpretação de um gênero
de discurso escolar, representado pelas falas transcritas de professores do
ensino público de Marabá, Pará, que atuam na interface entre educação
especial e comum (na qualidade de professores responsáveis por um
atendimento
denominada
pedagógico
de
inclusão
especializado),
escolar73.
Foram
dentro
da
transcritas
experiência
e
analisadas
entrevistas/conversas com sete professores, em quatro sessões (num
total de 2:58’:17” h de gravação); tais textos foram tratadas inicialmente
como conversações, como descrevi no capítulo 4, e depois submetidos ao
dispositivo de análise de discurso construído a partir das contribuições de
Orlandi (2005) e Verón (1980; 2004).
Tal forma de lidar com o texto produzido pela transcrição das
falas se ancora numa compreensão de que o falar se estrutura
diferentemente do escrito; tem uma lógica interna própria e isso repercute
sobre suas possibilidades de análise e interpretação. É por isso que usei
normas de transcrição que procuram, na medida do possível, preservar
características do falado, evitando tratar o texto que foi produzido com
origem nas falas da mesma maneira que seria tratado um texto escrito.
Em todas as entrevistas, os entrevistados tiveram mais tempo
de fala do que eu, a entrevistadora, como de praxe nesse tipo de diálogo.
No entanto, sou eu quem está numa posição considerada superior (pela
minha função de professora universitária e pesquisadora); a assimetria
conversacional, nesse caso, se opõe à assimetria social (GALENBECK, in
PRETI, 1997, p.61). Essa assimetria conversacional aparece também nas
73
As iniciais que representam os nomes dos entrevistados não correspondem a suas iniciais de fato; foram
substituídas para garantir o anonimato, considerando que é um grupo conhecido na comunidade educacional
local.
181
características dos turnos de conversação: os turnos em que eu
intervenho são, em sua maioria, turnos inseridos, ou seja, turnos que
indicam que continuo acompanhando a conversa (GALENBECK, in PRETI,
1997, p.61). Os turnos nucleares em que intervenho, isto é, turnos que
veiculam informação (idem, ibidem), são geralmente aqueles em que
procurei inserir um novo tópico, uma mudança de orientação no tópico
discursivo, ou entrei nas polêmicas propostas por meus interlocutores. É
preciso que diga que nem sempre tive sucesso nessas tentativas de
direcionamento; muitas vezes a importância que o interlocutor dá ao
tópico se expressou em retomadas, em exemplificações dentro de outros
tópicos, em proposição de novas temáticas no interior da conversa. O
processo
de
replanejamento
acontecido
durante
o
diálogo,
numa
reelaboração coletiva, não deixou de imprimir marcas na estrutura de
tópicos dos textos (RODRIGUES, in PRETI, 1997, p.31).
Os operadores destacados com mais importantes têm origem
tanto em minhas falas como nas de meus entrevistados: o que lhes
confere destaque porém, é a forma como que os entrevistados operam,
em seu discurso, com tais termos. Certos operadores inspiram longas
histórias, outros são quase que ignorados; uns são recontextualizados,
outros irrompem dentro de tópicos que sequer lhes dizem respeito e
assumem o centro da conversação.
Creio que em nenhum momento a
afirmação vigotskiana de que a palavra é viva ganha tanta clareza quanto
na análise de textos conversacionais.
Agrupados em torno dos operadores mais enfatizados no
discurso, seis feixes de efeitos de sentido foram configurados: a
aprendizagem, a prática e o outro; o outro-governo e suas oscilações de
sentido; o lugar que o professor de atendimento especializado propõe
para si mesmo no discurso; o lugar do outro-professor; o lugar do aluno
incluso e a formação. O enfeixamento dos efeitos de sentido produzidos se
traduziu neste relato na organização dos subtítulos deste capítulo,
conforme pode ser visto na seqüência.
182
6.1. A APRENDIZAGEM, A PRÁTICA E O OUTRO
Durante as sessões, emerge muitas vezes o conceito de
aprendizagem, às vezes proposto por mim, às vezes pelos meus
interlocutores. O professor (tanto eu quanto eles) fala, evidentemente, em
seu lugar de membro de uma comunidade que lida constantemente com o
aprender. Esse operador (aprender) aparece com certa flexibilidade; ora
remete a estratégias de lidar com os pares (geralmente os professores de
sala comum), ora de lidar com os pais, era de lidar com os alunos, ora de
lidar
com
as
exigências
profissionais,
de
dominar
as
formas
de
comunicação com os alunos com surdez, cegueira ou baixa visão, assim
como as técnicas adequadas ao ensino desses alunos.
A principal aprendizagem citada por T. na experiência de
trabalhar com inclusão é a aprendizagem da negociação:
T.
Ent.
T.
Ent.
T.
Ent.
primeiro você aprende.. como liDAR ...não é... com
as pessoas, hum...porque... porque você vai ter que
entenDER... pessoas... vai ter que as vezes concordar
com elas... até naquilo que não tá muito correto...
porque?
porque às vezes... se você...eh... de repente você...
NÃO concordar eles sentem que você está
aprontando. então muitas vezes você tem que
CONcordar com aquilo, mas FRI-SAR um outro lado, o
correto...
para poder se aproximar...
para poder se aproximar...tá?... tem vez que a gente
tem que chegar e dizer NÃO... tem vez que chegar e
dizer e dizer SIM... MAS... nós vamos fazer por
aqui...certo?...então tem que ter muita precaução pra
gente trabalhar com o pessoal... saber COMO...
entrar e sair pra não se ferir...
e pra não ferir a outra pessoa... (A, p.1, ls.11-30)
Essa aprendizagem da negociação, na qual é importante “saber
entrar e sair... pra não se ferir”, cuidar para que os outros não sintam que
se “está aprontando” de inicio foi interpretada por mim como aprendida
183
na relação com os alunos com necessidades educacionais especiais, mas
logo ficou claro que ela se referia aos demais professores, como se
evidencia na história que serve de exemplo (A, p. 2-4, ls. 72-195). T. é
professora itinerante, isto é, acompanha os trabalhos dos professores de
ensino médio que têm em suas turmas alunos cegos e com baixa visão:
não tem funções supervisoras, funciona mais como uma professora de
apoio (reproduz material _ampliações e transcrições em Braille _ para os
alunos com baixa visão e cegos (A, p.4-5, ls. 196-275). Sua relação com
os colegas ganha ênfase no discurso, ao descrever como aprendizagem
principal a negociação com eles (de certa forma uma relação de poder, já
que os colegas podem ou não aceitar sua intervenção).
O respeito à diferença aparece, nessa relação com os colegas,
como uma via de mão única: é ela que tem que mudar, já que, segundo
T., não pode mudar o outro; precisa aprender a lidar com aquela pessoa,
mas não é dito que a outra pessoa também tem que lidar com suas
singularidades como pessoa.
Ent.
T.
você acaba aprendendo a conquistar outras pessoas...
com certeza... com certeza porque...eh....eh... de
repente você aprende a lidar com todas... com as
pessoas da maneira que elas são.... --primeiro você
não pode mudar ninguém... você tem que chegar
e..eh-eh... conVIVER com aquela pessoa do jeito que
ela é...agora que você é que tem que mudar...é
VOCÊ que tem que mudar-- você tem que
aPRENder a lidar com aquela pessoa (A, p.1, ls.39-49)
D. (sessão C) descreve, como importante na sua vida, uma outra
situação de aprendizagem: a sua própria como professora, ao descobrir
um novo tipo de aluno (o surdo) e uma nova linguagem (LIBRAS).
Ocorreu nessa relação um outro tipo de conflito, não entre F. e o outro,
mas
entre
seus
conhecimentos
anteriores
e
a
nova
situação.
Enfrentamento que a professora descreve como produzido a partir de uma
situação repentina (“... dei de CAra... assim... com os alunos surdos na
sala”). Aparentemente, não houve nenhuma discussão anterior sobre a
presença dos alunos surdos e da necessidade de lidar com eles de modo
184
especifico; isso vai ocorrer depois, no curso de LIBRAS e na experiência
de sala de aula:
D.
Ent:
D.
eu...comecei ter contato com essa ação social... com
aluno incluso, em 2002, quando eu vim trabalhar
nesta escola... na escola J. que tem um trabalho
bem... bem antigo já...com a inclusão... né... né...e
assim.... fui professora da sala comum...e de repente,
entrei em contato... dei de CA::ra... assim... com
os alunos surdos na sala...fiquei sem saber
como:::...
levou um susto...((risos))
foi um susto..né... sem saber como me comunicar...
com eles... sem... sem saber/perdida mesmo né... e
daí a gente... com o tempo com a experiência fui
acostumando né... trabalhar com eles... a escola me
possibilitou entrar em contato com a LIBRAS que é a
linguagem... do aluno surdo e aí a gente foi... a partir
da experiência com os cursos de LIBRAS... da
experiência diária com eles... colocando em prática o
que a gente viu no curso... aprendendo com eles...
Chama a atenção o nomear da inclusão como “ação social”, pela
professora; isso remete ao assistencialismo histórico com relação à
deficiência. Isso, no entanto, aparece mais como um lapso: no restante, o
discurso da professora D. não descreve o aluno surdo como coitadinho, e
sim como alguém capaz de aprender (às vezes mais rápido) e ajudar os
ouvintes.
D.
aqui a gente tem a questão da aceitação que é muito
bOA... então acabam:: se ajudando... e:::a gente
percebe que às vezes o aluno SURdo também ele
ajuda o colega que é ouvinte... ele percebeu
meLHOR... né... rápido... primeiro que o aluno
ouvinte e acaba às vezes ajudando...(C, p.9, ls. 475481).
Na citação anterior, o “aprender com eles” desloca o papel do
professor
como
“aquele
que
ensina”;
a
professora
assume
sua
inexperiência e se dispõe a se modificar; na seguinte, os alunos se
ensinam mutuamente.
185
Para L., a aprendizagem é também pessoal, e se refere ao domínio
do conhecimento necessário para assessorar os alunos cegos no domínio
do Braille, conhecimento que é adquirido na prática cotidiana :
L.
Ent,
Z..
Ent.
L.
e aí... eu tou... me sentindo melhor com dv (os alunos
cegos) e:: a dificuldade (...) bom... a coisa assim
num... num depende só de mim... né
[
hunrum...
as dificuldades no caso eh::
[
em geral... conta sua experiência depois... o que for
faltando eu vou perguntando...
é uma coisa assim que a gente... que a gente tá
aprendendo no dia a dia... a gente vai adquirindo a
gente vai assim adquirindo mais conhecimento... a
gente tá sempre adquirindo mais conhecimento... a
dificuldade vai superando... a cada () da gente... de
repente você vê que é uma coisa tão simples... você
tem uma dificuldade é uma coisa simples... (D, p. 01,
ls. 29-46
Z., que participa da mesma sessão com L., considera que tem
responsabilidade sobre a aprendizagem dos colegas, a aprendizagem é
construída num processo de ajuda mútua.
Z.
L.
Z.
que ela já foi fazer o curso mas só que o tempo foi
muito curto... e o curso de soroban é mui::to
exten::so... porque você tem que trabalhar todas as...
as contas... e:: até mesmo assim... ... em sala de
aula... eh:: nós colegas que ficamos aqui... às vezes...
ela até já me pediu...
eu me sinto até culpada
também por causa disso porque ela fica assim... “Js.
... vamos fazer... Js... vamos tentar...” e a gente vai
enrolando vai enrolando vai enrolando... e faz uma
coisa e faz outra...
a gente tem tanta tarefa... que passa...
e aí vai pasSANdo... sabe... porque a gente vai se
preocupando mais com a história dos alunos... e dos
próprios colegas até a gente vai (descuidando)
e::: nesse caso aí eu tava até falando... tava até
conversando com E. que nós vamos tirar um DIA pra
nós mesmos do CAP ficar aqui dentro mesmo... prá
NÓS mesmos trocar umas experiências por
que::: senão... se nós não acharmos essa/esse
esPAço... nós não vamos conseguir... (D, p.02, ls.
68-89)
186
Nesses três excertos o conceito de aprender tem certa flexibilidade,
com relação aos tradicionais papéis de quem ensina e quem aprende:
aprende-se na prática, com os colegas, com os alunos.
A aprendizagem da inclusão, nas falas de P., outro professor, vai
além da relação professor-aluno. Numa situação utilizada como exemplo
na conversa, em que determinado pai humilhou a professora porque ela
tinha saído com os alunos e se atrasou no horário de chegada74, E.
lamenta a perda da chance de se promover aprendizagem também nas
relações entre pais e professores:
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
ai a professora falou que o pai agiu daquele jeito..
que ela ficou muito magoada... falou que o pai agiu
daquele jeito porque ele era muito ignorante... BOM...
se ele e:::ra... ou é muito ignorante...era uma
BE:::la oportunidade pra educar...
si:::m...chamar (...)
é..(...) perderam uma bela oportunidade de educar o
pai....e se ele não quisesse ouvir... fosse/ registrasse
um BO ((boletim de ocorrência))...né.. que ele ia ser..
é/é/é intimado.. ele ia ter que depor...
é um processo educativo também...
é um processo eduCATIvo... se ela/se ela/ se ela::...
entrasse com um processo contra ele.. é:::... um
processo educativo porque lá::: ele ia ouvir... e a
professora
não
foi
em
moMENto
algum
irresponsável... em momento algum... ela levo::u o
menino.. trouxe pra escola... a gente assiste
documentário na TV escola ou em qualquer canal
educativo...e o que mais a gente vê... é o professor
tomando atitude de SAIR com seus alunos...(B, p.24,
ls. 1321-1343)
Para P. o conflito, o enfrentamento das contradições, é uma situação
educativa, servem para que se olhe as coisas de outros pontos de vista. O
cuidado que T. expressa para “não se ferir” não aparece aqui, da mesma
forma como não aparecem papéis sacralizados, intocáveis (o pai agressor
poderia inclusive ser intimado pela policia, na descrição dele). Na
seqüência, E. explicita sua concepção a respeito:
P.
74
.
e/e/ eu....uma coisa que eu.. que eu .. carrego/vou
carregar durante toda a vida...que a professora M. me
falou na faculdade é o seguinte... não existe
Essa história aparece inteira no item 6.4: O professor que faz inclusão e os outros professores.
187
situação melhor pra se aprender do que a
situação complicada...
exatamente.. concordo ple::namente..
não existe...quando você contradiz as coisas...
(...) quando não há conflito não é pedagógico...
quando você analisa as coisas antagonicamente..
contrárias... assim.. você constrói um poder de
reflexão critica muito grande .. por que você tá
acabando de provar pra você mesmo...que você não
vê as coisas só de uma ótica...só de um ponto de
vista...
e ai a situação da pessoa com deficiência...na sala é
um momento de confli::to...a situação de um pai que
chega numa reação desse tipo.. bons momentos pra
escola reunir e debater.. né...
debater....no momento que o pai chega...
como é que se faz isso...
no momento que o pai chega é:::...curioso na sala de
aula.. e o momento bom.. do/do ... e o momento de
o professor perceber que ele tá com a mente aberta
pra ouvir... (B, p.25, ls. 1374-1397)
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
Na fala de P. o aprender pode ocorrer também com o pai, e também
é tarefa da escola: o aprender é um modificar do outro ainda que ele não
esteja no papel de aluno; na de D.
e de L. é enfatizado o aprender
“interno”, o modificar-se internamente para enfrentar a nova situação; na
de Z, ajudar a colega nos domínios das técnicas e aprender juntos, com
as trocas de experiências;
na de T. também o aprender interno, o
modificar-se já que ela não crê que possa modificar o outro.
Dois aspectos organizam o enfeixamento dos efeitos de sentido
produzidos nessas descrições das experiências do aprender/ensinar:
a) Em nenhum caso trata-se de domínio de conteúdos: os processos
de modificação descritos são sempre a aprendizagem do lidar, do prático:
Lidar com as técnicas e dominá-las (como no caso do Braille...), tornar-se
afiado no uso de instrumentos (o soroban é dado como exemplo),
dominar estratégias de lidar com o outro (o colega que dificulta o diálogo,
o pai que desrespeita a professora)
b) em nenhuma das situações aprender/ensinar aparece como ato
individual: é sempre descrito como situação coletiva, sempre com o outro
(pai,
colega,
aluno),
em
contexto,
nas
relações.
Os
papéis
tradicionalmente vinculados a aprender e ao ensinar também são
188
flexibilizados: os professores não se envergonham de dizer que mesmo as
coisas simples têm que ser aprendidas ali, na prática cotidiana, que se
aprende com os alunos e colegas, que se pode educar o pai de aluno cuja
atitude com relação à professora foi tida como excludente.
Noto, portanto, a importância da prática e do outro nos trechos em
que os professores falam de ensinar e aprender.
6.2. O OSCILAR DOS SENTIDOS DO OUTRO-GOVERNO
Quando dirijo minha atenção, na análise da conversação e do
discurso, para os “outros” que emergem nas falas dos professores,
aparece um outro a quem eles se referem constantemente, que é o outrogoverno. Esse outro emerge dentro de várias nuances de sentido, em
cada fala é descrito como pertencendo a lugares diferenciados e em
posições diferenciadas com relação ao falante. Cuidei, na análise, de
tentar situar esses lugares e posições, para agrupar, no final, os efeitos de
sentido produzidos no diálogo entre os professores e o governo que vai
sendo elaborado na situação conversacional.
Nas falas de A., as alusões à política são feitas em termos vagos,
rodeados de pausas e metáforas. A política aparece nas falas como “o
outro lado”. “as pessoas”... Essa vaguidão ganha sentido quando T. relata
sua demissão numa gestão anterior (“fui JOGADA FORA do Estado como
qualquer um...um lixo”) é essa demissão é compreendida como causada
pela política (“a política... ela faz isso com as pessoas”). Dessa forma
política aparece com conotação negativa. O processo de readmissão, no
entanto, já não é descrito como política, mas como relação pessoal
(“precisaram de alguém... procuraram a mim”).
Ent.
T.
do ponto de vista da sua vida profissional... você
sente que... É valorizada por causa dessa atuação que
você tem?
NÃO... não...
189
Ent.
T.
Ent.
T.
Ent.
T.:
Ent.
T.
fale um pouco sobre isso...
eu faço por amor--não só por amor porque eu preciso
do meu salário-lógico... ((risos))
se eu tivesse uma condição de trabalhar só por
amor... eu sei que também faria isso... sabe? eu amo
de uma maneira assim fora de série... a ponto de
depois de dizer que não voltava NUNCA MAIS... estar
aqui novamente, ta?...porque em dois mil fui JOGADA
FORA do Estado como qualquer um..um lixo... então...
eu sofri muito.. e as vezes...eu... agora mesmo eu já
tive até pensando que... é por ca/ isso é..depende..
eh... muito, não é/a política... política ela faz isso com
as pessoas... não é? porque você... quando entrou
outra pessoa que foi ((outro governo)) que
preciSARAM de alguém... procuraram a mim...
procuraram você?
então...quando eu retornei... né/hoje nós tamos
trabalhando... as pessoas não... não dão muito
valor... a esse trabalho...
uhn rum...
agora...eu posso também te dizer que entre aspas...
em termos de professores... diretores que...já
chegaram até pra mim a dizer “olha... pelo amor de
Deus”... que talvez eu não fosse ficar por causa do
meu contrato, né?... já teve diretor ((que disse))/
“não... pelo amor de Deus... você não pode nem
pensar em sair... tá muito bem... a gente tá
trabalhando... tamos conseguindo... então... não pode
nem pensar”... aí você se sente bem... quando você
chega os professores chega... senta na mesa com
você... aí pergunta uma coisa... pergunta outra...
QUER saber de uma coisa... QUER saber de outra...
então é MUITO gratificante PRA VOCÊ... sabe... saber
que aquelas pessoas estão eh...eh::.. querendo
aprender de ti.... querendo aprender aquilo que eles
estão colocando em prática, né? e aí a gente se sente
valoriZAda...agora, olhar pra o OUTRO lado...
entendeu... assim.. as pessoas... é muito difícil... (A,
p.6,ls.276-322)
As pessoas a que T. se refere no oitavo turno desse trecho (“as
pessoas não... não dão muito valor... a esse trabalho...”) e no final do
ultimo turno (agora...olhar para o OUTRO lado...entendeu...assim...as
pessoas ..é difícil) não são, evidentemente, as pessoas de modo geral,
mas as pessoas do mundo da política.
Ela admite que está usando
pessoas “entre aspas”, tanto que logo depois destaca a valorização que
sente junto a professores e diretores. O mundo da política, das estruturas
de poder é designado de forma metonímica, em que “pessoas”,
substantivo comum e genérico, adquire novo peso semântico, estratégia
190
que faz emergir perguntas a respeito das razões de A. para essa forma de
designar as relações de poder. A. se refere com muitas hesitações a esse
“outro lado”; não apenas não percebe valorização para o que faz nessa
dimensão, mas tem dificuldade inclusive em referir-se a ela: considera
difícil “olhar para o outro lado”.
A
valorização
profissional
é
descrita
como
o
apoio
de
profissionais do mesmo nível (professores, diretores de escola) e não
como política. A. diz que “aí você se sente bem” (quando os colegas
valorizam e reivindicam sua continuidade no trabalho), o que denuncia
seu mal-estar diante do poder político, desse outro que pode descartá-la
“como um lixo”.
O outro-governo, na fala de P., aparece como um outro que
impõe o processo de inclusão. Em seu discurso, contrapõem-se imposição
legal e consciência: a inclusão desejada deveria ser estabelecida pela
consciência e pela formação da sociedade; os dois termos vêm juntos, um
surgindo como paráfrase do outro, mas a entonação mostra uma ênfase
em formação.
P.
(...)essa política de inclusão ela não está acontecendo
da forma que a gente queri::a assim que ela
acontecesse...
que fosse realmente de forma
espontânea assim pela consciência... pela FOR-MAÇÃO da sociedade de modo geral... ela... tá
acontecendo assim meia decretada né... porque::...
é...nos últimos anos o governo por exemplo deu muita
ênfase a essa questão de política de inclusão... mas...
em forma de decreto...né?... por que antes... a gente
percebia que NEM as universidades/as próprias
universidades não...não abordava muito isso... e o
próprio atendimento do aluno lá dentro também
era...era difícil... (B, p.1, ls.37-53)
Insinua-se na fala de P. uma critica ao governo pela decretação
da inclusão, mas a continuidade da fala traz um outro elemento: as
escolas básicas são analisadas como mais avançadas em relação à
universidade, o que traz uma leitura do decreto como benéfico: o outrogoverno é justificado em sua necessidade de impor determinadas coisas.
191
P.
Ent.
P.
Ent.
[
P.
o próprio atendimento do aluno lá dentro também
era...era difícil...
era? (...)
né?ou...é/é difícil porque não existia não é::?
não existia
na verdade não existia...então não é só a escola HOJE
não é só a escola que tem a dificuldade de atender
esse aluno... não é só a escola/não é só a escola de
educação básica... mas também a de ensino
superior..né... e:: pelo que a gente vê HOje a gente::
percebe que:::... em alguns casos... as escolas de
educação
BÁsica
tá
à
frente
das---no
atendimento a esses alunos---...tá à frente das
universidades né porque--- como:: a gente:: sabe-- existe sala de recurso...existe centros de apoio
pedagógico pra... pra atender os aluno com
deficiência e na universidade não se vê muito disso
não...(B, p.1, ls. 52-70)
Reforça essa justificativa o desejo que o falante expressa, mais
adiante, de que o decreto da inclusão se ampliasse para a universidade, o
que enfraquece sua (velada) critica anterior.
P.
pois é.. e::: falando da questão do prejuízo e:::u....
outro prejuízo que eu vejo ...é porque as
universidades/por
exemplo...as
licenciaturas
..deveria... já há muito tempo... ter enquadrado
esses currículos nessa política de inclusã::o (B, p.9, ls
506-510)
Por outro lado, a conscientização (e, portanto, aquela formação
geral a que ele se referia inicialmente), é cobrada mais adiante como uma
tarefa também governamental:
P.
quando a gente fala em investimento... quando o
sistema investe... infelizmente ele só investe mais é
na infraestrutu::ra... e/e/e também só na formação
do profissional em si... que trabalha ali dentro do
centro.. né...então investe na infraestrutura... e no
profissional né... mas essa conscientização da
comunidade escolar.. e da comunidade de um
modo geral ...ela não há.. (B, p.16,ls.901-908)
Ocorre aqui uma contradição, de que P. parece não se dar conta:
o que justifica que o governo imponha o processo de inclusão é a falta de
192
consciência da sociedade, no entanto, também a conscientização e a
formação são dadas como tarefa governamental.
O vinculo entre os sentidos de formação e consciência retornou
nesse ultimo trecho, no qual a critica foi redirecionada: não basta o
investimento nos profissionais e na infra-estrutura, é necessário investir
na conscientização da comunidade (é de se supor que assim não houvesse
mais necessidade de decretos, já que havendo consciência, a própria
comunidade assumiria a inclusão, a qual, de qualquer forma, teria que
acontecer, e é melhor que seja antes):
P.
o prejuízo né ... é que a gente vê a política de
inclusão decretada.. a gente vê/é...é um mal mas é
um mal necessário ... por que de qualquer maneira
ela teria que acontecer.. sabe se ela acontecesse
naturalmente sabe... através da formação cultural...
de todas as pessoas ia demorar muito mais... (B, p.8,
ls. 416-421)
O outro-governo aparece então como um ator que, pela
imposição, reorganiza processos que não estão ocorrendo como deviam; a
imposição, inicialmente descrita como negativa (não deveria haver
necessidade dela) é atenuada pela situação (naturalizada) de uma
comunidade não-consciente e de uma universidade inadequada; num
outro
momento,
o
Estado
é
responsabilizado
também
pela
conscientização, mas não aparece no discurso alguma força responsável
pela produção da “falta de consciência ou de formação”; estas aparecem
de forma naturalizada.
Já no discurso de O., é o papel do Estado nos processos de
inclusão que é atenuado: a necessidade de mais profissionais é descrita
como falta de “apoio”, e não como efeito de uma desobrigação pelo
Estado de seus deveres. A palavra apoio, utilizada para expressar o
contrato de mais profissionais, implica numa compreensão dos deveres do
Estado como subsidiários aos deveres dos professores. O que é dito nas
entrelinhas é que são os professores, no fim e ao cabo, os responsáveis
pela política de inclusão.
193
O.
Ent.
O.
Ent.
O.
nós temos aqui em Marabá.. o que? dois
intérpretes...aonde esses dois intérpretes ... é:: por
exemplo/eu sou uma intérprete...
é:: atuando em sala de aula?
atuando em sala de aula...mais ensino fundamental...
hanrAN
o outro colega meu já foi pro ensino médio..mas não
conseguiu ir pra frente POrque:::..---.ele diz que não
deu conta né...--então quer dizer a/o
nosso
TRAbalho aqui...acaba sendo pouco... em termos
de/tem poucos profissionais na nossa área ainda..
então nós precisamos de mais apoio... precisamos
de/de mais gente pra tá trabalhando na nossa área...
(B, p.2, ls. 86-100)
O discurso do “precisamos de apoio” lembra aqueles das
instituições que assumem as obrigações do Estado, lembrança forte na
história da educação especial. Ainda que tais instituições, com exceção da
APAE, praticamente não existam em Marabá, o discurso sobrevive.
O lugar do governo é expresso, nas várias falas, nas exigências
de investimento em material e infra-estrutura; na fala de P., são
valorizados
os
investimentos
nessa
área,
a
existência
de
verbas
especificas, como “um grande passo”.
P.
Ent.
P.
(...) porque o sistema tá tendo uma preocupação
sim... né...o sistema ele tá:::... libera verba.. né...
produz material né...
não sei se essa verba é bem administrada...em fim...
mas que existe os recursos existe... as verbas
destinada pra educação especial né... então i::sso é
um grande passo... É um grande passo...com
certeza... porque quando você fala que o aluno da
educação especial...quando o
aluno portador de
necessidades... além dele freqüentar
o ensino
regular...
ele
também
tem
que
ter
a
co::mplementação
curricular
dele...
e
essa
complementação
curricular...
é/é
o
tipo
de
aprendizagem que exige muito recurso... porque ela
é adaptada para ele... ela é diversificada... né.. e é
ESsa complementação curricular também que vai ser
FUNdamental
né.. além dos conteúdos que ele
aprende
na
educação
básica...
mas
é
a
complementação curricular que vai reabilitá-lo pra
vida...não só pro trabalho... não só pros estudos mas
pra vida... né... e::: pra trabalhar com essa
complementação curricular né... aí é que tá...porque
aí o/... exige
muito essa questão de material
diversifica:::do... no caso lá dos deficientes visuais
por exemplo.. a gente tem uma grande preocupação
ainda porque o material é muito caro...né...o material
é muito caro... então mesmo que seja colocado em
194
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
disponibilidade assim.. é/é nas escolas.. nos centros
né... pra toda a comunidade... mas a/a quantidade
não é suficiente
é pequena né...
é pequena... então a gente atende a clientela de
maneira .. é:::: deficitária (...)
quer dizer... se aumentasse a consciência social ..e o
pessoal começasse a cobrar e viesse pra cá ((para o
CAP))... não ia ter como atender... né...
claro... não ia ter como atender porque::::...
pouca gente e pouco material
quer dizer ...a:::: a curto prazo nã::o ia ter como
atender
a curto prazo...
não ia ter como atender de jeito nenhum...porque::: é
uma coisa assim que exige tempo... né... exige
tempo... pra você/até pra você investir a própria
verba você tem que saber como investir... a gente
tem que fazer pesqui::sa.. ver a necessidade do
alu::no... a FORmaçã::o do professor
pra
trabalhar..nessas salas de recursos...nesse centros...
é
demorado
também...né...entã:::o
é
uma
coisa...que:: ..eu vejo assim que...o sistema falha no
seguinte...quando é pra
implantar um centro de
atendimento
a
um
portador
de necessidade
especial...implanta-se bonitinho mas o problema é a
manutenção depois de feito...
hanran… (B, p.14-15, ls. 767-825)
A tomada de decisões acerca do investimento das verbas, para
suprir a insuficiência de material e de pessoal (insuficiência que eu tento
enfatizar no sexto turno deste trecho), é justificada por P. como um
processo que em si é demorado. Chama a atenção o fato de que o outrogoverno, tratado como “o sistema” no turno inicial (uma terceira pessoa),
chega a se confundir com P. nesse ultimo turno, (“a gente tem que fazer
pesquisa... ver a necessidade do aluno... a FORmação do professor”). No
final do turno, no entanto, quando ele diz que ocorre a implantação dos
centros, mas não necessariamente a manutenção, volta a se afastar e a
denominar como “sistema” esse outro.
Na falas de P. os sentidos atribuídos ao outro-governo se
agrupam em três “pontos”: um outro que, de fora, impõe mudanças e
corrige desajustes sociais; um outro no qual ele se inclui, ao descrever as
exigências para a aplicação adequada das verbas; um outro que executa
mas não dá continuidade às próprias propostas. Ao contrario de T. cuja
195
relação com esse outro parece vaga e assustada, na fala de P. parece uma
relação clara (ainda que oscilante em seus sentidos) e até, em certos
momentos, participante.
Na fala de J. (sessão C) aparece uma reivindicação com relação
às políticas de formação, não apenas dos professores, mas de todo o
pessoal envolvido na escola e inclusive da sociedade. A formação aqui
ganha uma amplitude maior de sentido e se aproxima da idéia de
consciência, como na fala de P.: também aqui a educação da sociedade
(no sentido de conscientização) aparece como tarefa governamental.
Iniciando afastado, referindo-se aos responsáveis pelas políticas públicas
como uma terceira pessoa (“política que... fazem... da inclusão”) também
J. se inclui, no final do turno, enquanto ator de tais políticas (“acho que a
gente tá caminhando pro... pro sentido certo”).
J.
o que tem que ser mudado... acho que..que muita
coisa (...) política que...fazem...da inclusão
(...)sabe... eu falo política pública MESmo... de::: de
investimento mesmo... estrutura mesmo...acho que
os professores eles tão aqui pra ... pra aprender uma
coisa nova...o pessoal que tá dentro de sala de
aula...o profissional que tá dentro de sala de aula...e
precisa mesmo de políticas PÚblicas... sabe... dentro
da escola... de formação... não só de... professor..
mas de funcionários de alunos de pais de
sociedade...acho que a gente tá caminhando
pro...pro sentido certo (C, p. 10, ls. 524-537)
A cobrança de investimentos, na fala de D., se transforma em
reivindicação tanto de capacitação quanto de recursos pedagógicos e
didáticos: ela explica a rejeição que o professor sente em relação à
questão da inclusão pela falta de formação do professor, e coloca a
capacitação (como a resposta possível para a falta de formação) como
responsabilidade das políticas públicas.
D.
essa rejeição é pela FAL::ta de formação que ele tem
na área (...) não tem uma formação pra
ah::
trabalhar com o aluno surdo... ele então vai ficar
assustado... né... ele vai ficar sem saber como fazer...
como trabalhar... e aí.... deve ser desesperador
mesmo porque EU já tive essa experiência...(acho que
só com o tempo como n. falou... faltam políticas
196
públicas
pra...
tar
colocando
TOdos
os
profissionais capacitados pra trabalhar com a
inclusão...que a gente vê que ainda::: são são
POUcos os profissionais que estão... capacitados pra
trabalhar com a inclusão...com os cegos...com os
surdos (..) (C, p.11, ls. 577-589)
(...)
D.
eh::quando N. fala da questão dos recursos... né... é
uma coisa bem real pra gente... o aluno surdo por
exemplo
ele
precisa
MUIto
de
recursos
visuais...onde é que estão esses recursos na sala de
aula... na sala de aula comum...pra trabalhar com os
alunos? ... veja bem... a gente sabe que::: a questão
visual ela é importante até pro aluno ouvinte... né...
porque VER:: é muito melhor do que só ouvir...
Nessas falas o outro-governo aparece como provedor (ou
aparece um desejo de que esse outro se configure como provedor, já que
os verbos mais utilizados são faltam e precisa); é, no discurso dos
professores, o responsável pela capacitação, conscientização, recursos
materiais, estrutura...
Em certo momento da fala de O., esse outro ganha maior
proximidade. Seu falar evidencia que ela acompanha os processos de
liberação de verbas para a área (entre o MEC e o governo local), e ela
denuncia o desencontro entre a gestão local e a gestão federal, que incide
em seu trabalho cotidiano e impede sua ação de ser eficaz:
O.
Ent.
P.
O.
Ent.
O.
e qua::ndo te::m recu::rsos... chega e não usa...
né...como é que fica?... igual a minha sala...
é mais complicado ainda
ainda existe esse caso...
já TEM a ve:::rba... o MEC já mando::u.. tá na
conta desde dezembro...quer dizer... minha sala
está aí...ganhei uma sala grande... pra serem
colocados os recursos... e até agora...
a questão de informática...?
a questão de tudo.. eh... tanto de informática...
recursos... de livros né.., eh:::.. filmadora...
televisão... tudo tem que ter... ter os recursos
completos pra que a gente possa trabalhar melhor...
porque como todo o trabalho dele ((o aluno surdo)) é
visual...eu vou só escrever no quadro?... eu vou só
usar a linguagem de sinais?... e o resto?... eu vou tá
recortando
((gravuras
de
revistas))
né...
tá
recortando e mostrando... nem tudo a gente pode
mostrar pra eles.. (B, p.15-16, ls.850-868).
197
Uma outra história de sala para atendimento especial emerge na
sessão D, em que Z. e L. discutem a montagem da sala para atendimento
das crianças com déficit cognitivo num local que consideram inadequado
(um bairro de centro, distante dos bairros populares onde mora a maioria
da clientela). Segundo elas, a mudança de local seria uma questão
simples, mas “o poder público não quer ter gastos”.
L.
Z.
L.
Z.
Ent.
L.
Z.
Ent.
Z.
e ó..ficaria ótima aquela sala lá...
ficaria
porque ali ficava um local bem centralizado pra todos
os...
pra atender todo mundo...
mas é tão difícil assim mudar a sala? tem alguma
estrutura especial que:::
não num tem nada NÃ:::O
não tem NA-DA de estrutura o problema é que as
pessoas não querem... sabe..o poder público ele
NÃO quer ter gastos...
não teria gastos de ..deslocamento...
NÃO teria na::da... o que é que tem lá... aterramento
dos computadores.. é tomada... é um buraco pra
botar um ar condicionado...sabe... (D, p.26,ls. 14491464)
Essa visão do poder público como indisposto a fazer gastos para
corrigir a falta de planejamento é, no entanto , modificada mais adiante: o
poder público não demonstra problemas em deixar duas professores
desocupadas, já que os alunos não têm recursos pra se deslocar para tão
longe. Aparentemente, portanto, a questão não são os gastos, mas a
própria disposição de usar adequadamente os recursos:
Z.
Ent.
Z.
do jeito que eles são crianças assim...loucas pra
utilizar um computador ... que veio TANtos
jogos..tanta coisa na/de:: de programas pra
se..ah..trabalhar como DC..sabe..e ela diz “a gente
taí parado... porque eu num tenho com quem
usar ... eu tou usando pra mim mesmo...”
e é desesperador... pra quem quer fazer alguma
coisa....
agora ela é uma professora muito irrequieta... a outra
não... mas ela do jeito que ela é ...ela diz que ela num
vai ficar muito tempo ali não que ela diz que qualquer
dia desses ela vai entrar de atestado...((risos))
porque se for pra ela ficar daquele jeito ela vai ficar
na casa dela... porque ela diz “ eu num agüento
198
Ent.
L.
Ent.
porque o professor passa na porta e diz ‘ê mas tu é
folgada né.. eu também queria’...”
todo mundo trabalhando e ela lá á toa né...
[
pra num se estressar...
[
daqui a pouco tá com má fama...((risos)) (D, p.27, ls.
1481-1502)
Percebo, nas falas de Z. e L., o acompanhamento atento das
ações políticas no que se refere às necessidades da educação especial; a
relação entre esse outro governo e o professor de educação especial
ganha muito mais concretude quando se trata do governo local.
Também na fala de P. a relação entre comunidade e governo
ganha
concretude.
Ele
lembra
a
necessidade
de
participação,
de
fiscalização, para que as políticas públicas tenham sucesso. O outro
governamental, aqui chamado de “sistema”, só pode ter uma atuação
eficaz com a participação local.
P.
então eu vejo o seguinte.. o sistema ele tá... é:::
manifestando uma boa vontade de investir...na
educação especial... mas o que eu já pude perceber o
pouco tempo que eu to trabalhando na educação
especial eu pude perceber isso que...se a comunidade
não fiscalizar ... não anda...não anda porque só dá o
primeiro passo...que é a inauguração do centro... a
inauguração da sala de recursos... mas pra ela
funcionar bem sem a fiscalização...da comunidade...
não tem como andar porque
o sistema ele
investe...mas se não tiver ninguém pra fiscalizar... o
trabalho não vai... (B, p.16, ls. 876-889).
Essa distinção entre o sistema (governo federal), descrito como
tendo uma disposição de investir, e o local, descrito em suas dificuldades
ou incapacidade de corresponder aos investimentos, também já havia
aparecido nas falas de Z., quando conta a situação já descrita pela colega
em outra sessão. A professora toma para si a responsabilidade de
justificar o fato do dinheiro não ter sido utilizado, na tentativa de não
perder as verbas, e nesse processo, sua ação se confunde com a do poder
público.
199
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.,
Z.
em de-ZEM-bro de dois mil e CINCO:: entrou dinheiro
na conta da prefeitura...do ME::C pr fazer a sala da I.
e os equipamentos... né....
ah::: eu lembro dela ter comentado sobre isso...
pois é... MAS até hoje eles nunca pregaram um
prego... a sala continua sem cadeira sem NAda... os
alunos ()
como é que o dinheiro tá disponível ainda se já fechou
o ano... o ano fiscal... como o pessoal diz...
nã::o o que acontece... quando tava para fechar o
ano fiscal eles correram aqui comigo pra fazer
um::um... como é o nome que eles dão? uma
justificativa... ta
hum... pra poder rolar pro ano seguinte...
pro ano seguinte... aí eu inda caí na besteira de fazer
por causa da I. eu pensei eu vou fazer essa
justificativa...
[
pra não perder...
[
por que senão a colega é que vai perder... e aí () até
agora...
vai ter que fazer uma segunda justificativa quando
chegar dezembro deste ano ((risos))
porque eles têm que prestar conta... ou presta ou
devolve... tá... e tem mais uma... como eu falei pro L.
eu digo “L...se esse dinheiro volTAR... aí que vai ser
dificuldade pra VIR diNHEIro... aí vai ser dificuldade
pra conseguir dinheiro retornando pra... pra alguma
coisa da educação especial... então vocês têm que
pensar nisso”... tá (D, p. 11-12, ls. 604-635)
Agrupei os efeitos de sentido em torno do outro-governo que
aparecem no discurso em quatro feixes, não necessariamente excludentes
entre si, nem necessariamente vinculados as falas de cada entrevistado
separadamente; muitas vezes no interior das falas de uma mesma
pessoa, aparece um e outro feixe de sentidos, mesmo quando eles
parecem contraditórios entre si. Os sentidos referentes ao outro-governo
se articulam com os sentidos agrupados em torno da própria definição
como educador.
a) outro-opressor, desvinculado dos compromissos da inclusão,
embora precisando contar com profissionais que atuem nesse sentido.
Nesse caso, a inclusão é tida como tarefa do educador, aparece como
missão que ele desenvolve inclusive à revelia dos desígnios estatais.
200
b) outro-“ajudante”, cuja ação poderia complementar a do
educador e sua comunidade. Também nesse caso, o professor é o
principal responsável pela inclusão, sendo a ação estatal um apoio para o
melhor desempenho dessa tarefa.
c) outro-educador, responsável pela formação e pela consciência
das pessoas. A inclusão seria tarefa da comunidade se ela tivesse
consciência para tanto; isso não ocorrendo, cabe ao Estado impô-la e
garantir que ela ocorra. O professor se coloca no papel de partícipe do
processo, assumindo como seus os princípios defendidos pelo Estado.
d) outro-provedor, responsável pela estrutura, pelos recursos,
pela capacitação. Essa definição não se separa das anteriores: em todos
os efeitos discursivos descritos anteriormente, sendo o Estado opressor,
ajudante, ou educador, a garantia dos recursos é vista, descrita e
esperada como sua função.
Descrito como provedor e ajudante, muitas vezes tais descrições
do outro governo se fazem pela falta (deveria ter mais carga horária...
deveria haver mais intérpretes... o poder público não quer ter gastos... a
outra professora já devia ter sido contratada... a sala já devia ter sido
montada...). Isso configura um outro descomprometido, que exige a
vigilância e o acompanhamento constante para poder cumprir suas
obrigações. Nesse caso, a descrição é geralmente do poder local, e o
educador se coloca como interlocutor, como participante do processo de
acompanhamento
e
cobrança
das
ações
necessárias
para
o
desenvolvimento da educação especial.
Essas elaborações remetem a relações entre o falante e esse
outro que vão do distanciamento/descolamento entre ele e o sujeito
falante a uma aproximação-imbricação das ações de Estado, comunidade
e educador. Quanto mais distanciado, mais as referências a esse outro são
vagas (“o sistema”... “os outros”... “as pessoas”... “eles”...) quanto mais
próximo/imbricado, mais vão ganhando concretude no discurso (“a
201
gente”, “a prefeitura”, “a secretaria”... e inclusive a referência às pessoas
pelo primeiro nome).
6.3. O LUGAR DO PROFESSOR DO ATENDIMENTO ESPECIALIZADO: A
MILITÂNCIA
O lugar que o professor de atendimento especializado reserva
para si no próprio discurso de algum modo já tinha sido sinalizado na
análise das referências ao outro-governante. Há, no entanto, outros
elementos que ajudam a situar esse lugar, e têm relação com os
operadores que são utilizados quando a temática é relações de trabalho.
Entre esses operadores, destacam-se demissão e readmissão, carga
horária, sobrecarga de trabalho, exigências quanto às competências
profissionais
e
à
formação
exigida,
remuneração,
quantidade
de
profissionais disponíveis, entre outros.
A análise dos sentidos produzidos em torno de tais operadores
mostra que a temática das relações de trabalho, se não deixa de
atravessar o discurso (inclusive porque o trabalho pedagógico com a
inclusão não pode deixar de ser trabalho), não é central nele. Na maior
parte das vezes, se atenua e se esconde sob uma compreensão de
atuação para a inclusão como militância, como luta.
Na topicalização da sessão A, por exemplo, ocorre um esforço de
minha parte de remeter à questão das relações de trabalho, enquanto a
entrevistada resiste a entrar no tema, remetendo sempre às relações
pessoais no espaço de trabalho, rede de relações na qual ela diz se sentir
valorizada, onde o seu trabalho parece ser bem recebido. As relações com
o Estado, do qual é funcionária, são esboçadas, quando T. fala da
necessidade de maior carga horária para desempenhar sua função, mas a
reivindicação é suavizada pelo uso do futuro do pretérito (“seria bom”) e o
202
modo subjuntivo (“que houvesse”),os quais podem ser lidos como
marcadores conversacionais que indicam abrandamento75.
Ent.
T.
Ent.
T.
Ent.
T.
Ent.
T.
digo assim... não tem nenhum outro profissional que
faça a mesma coisa que você?...
no estado... aqui em Marabá não... trabalhando
itinerante com deficientes VISUAIS... no ensino médio
só tem eu...
mas é muito serviço...
nós temos sete alunos... nos temos cinco escolas... e
esses alunos todos eles precisam de materiais
ampliados... né... ou transcritos... nesse momento
estou trabalhando com cem horas...
esse contrato de que você falou agora é de cem
horas...
é...esse contrato é de cem horas... é o que eu já
falei... que seria bom que houvesse uma
ampliação dessas horas...
duzentas horas pelo menos...
pra que eu tivesse um tempo melhor para fazer o
material...
Na sessão B, é um dos próprios entrevistados (P.) que remete
para o tópico condições de trabalho; depois de uma fala em que
defende que os professores de educação especial são vistos de forma
preconceituosa pelos das salas comuns, o tema da superlotação das salas
de aula emerge. No entanto, na descrição de P. parece tratar-se mais de
uma querela entre categorias de professores (os das salas comuns que
acham que trabalham mais do que os da educação especial) e não de uma
discussão que afeta igualmente os dois. A referência ao discurso oficial
(“toda criança na escola”), feita por mim de forma irônica, parece não
atingir meu interlocutor: P. retoma o turno atribuindo a reação do
professores com classes superlotadas à falta de uma compreensão da
política de inclusão.
P.
O.
P.
Ent.
O.
75
até::PO::rque:: um dos problemas da educação
básica hoje é a questão da superlotação..
é::::
em sala de aula..
toda criança na escola né... caiba ou não caiba
é:::toda criança na escola né.. superlotaçã::o das
crianças.. eh... das escolas.. então quando um
professor que não tem uma dimensã:::o.. uma
Os sinais de abrandamento “resolvem problemas específicos, como a comunicação de más notícias e
informações desagradáveis. (...). A rigor, realizam atos indiretos com a função de minimizar riscos”
(MARCUSCHI, 2005, p. 73).
203
Ent.
P.
Ent.
O.
concepção é/é da política de inclusão vê:: um
professor
trabalhando
com
três
alunos...separadamente
acaba sendo discriminado .. é verdade
ele vai achA::r... que aquele cara realmente...
“porque eu tenho que trabalhar com quarenta e você
com dois” né..
ele vai achar que o outro não tá trabalhando... ele é
que trabalha porque ele tá com trinta e cinco... né..
ele é que trabalha porque ele tá com trinta e cinco...o
outro lá que tá se desdobrando pra trabalhar com três
alunos de TRÊS patologias diferentes.. digamos
assi:::m... né... porque dentro de cada deficiência a
patologia MUda.. né... muda... então é:::.. o professor
ali...no momento ele tem que trabalhar de três formas
assim.. mas pra quem tá vendo de fora.. “ não
ali/ali::: tá bom porque:::... nem/nem
trabalha
porque só tem três alunos”... (B, p.11, ls.545-602)
Também O., quando reivindica mais apoio governamental,
remete à temática mencionada. Fala das dificuldades que a inclusão
enfrenta, e relata que, em Marabá, são necessários mais intérpretes de
LIBRAS (há dois interpretes para um universo de 58 alunos surdos).
O.
Ent.
O.
Ent.
O.
nós temos aqui em Marabá.. o que? dois
intérpretes...aonde esses dois intérpretes ... é:: por
exemplo/eu sou uma intérprete...
é:: atuando em sala de aula?
atuando em sala de aula...mais ensino fundamental...
hanrAN
o outro colega meu já foi pro ensino médio..mas não
conseguiu ir pra frente POrque:::..---.ele diz que não
deu conta né...--então quer dizer a/o
nosso
TRAbalho aqui...acaba sendo pouco... em termos
de/tem poucos profissionais na nossa área
ainda.. então nós precisamos de mais apoio..
precisamos de/de mais gente pra tá trabalhando na
nossa área.. (B, p.2, ls. 86-99)
O. se inclui quando afirma que “precisamos de mais gente”; a
política de inclusão não é externa a ela, já que é ela que reivindica apoio;
o papel do governo aqui é acessório. Nesse caso, assim como em vários
trechos, nos quais ocorrem referencias ou criticas às condições de
trabalho (necessidade de maior carga horária, mais capacitações, mais
profissionais capacitados) não aparecem como uma reivindicação de
direitos do profissional, mas como uma necessidade da inclusão. Assim,
204
não aparecem reivindicações de que as turmas sejam menores, ou o
trabalho melhor remunerado. Em vários momentos o profissional se
confunde com o agente das políticas públicas, através de expressões como
“a gente”, “precisamos”, “estamos indo no sentido certo”, etc.
Também evidencia esse posicionamento a própria organização
tópica da conversação. Na maioria das vezes, o tópico “condições de
trabalho” é inserido por mim, e em duas delas preciso insistir pra que ele
se mantenha; a tendência dos entrevistados é concentrar suas criticas na
falta ou insuficiência de recursos e investimentos na inclusão em geral. A
exceção se revela na fala de P. quando este descreve as dificuldades
criadas pela sobrecarga de trabalho, as exigências do processo inclusivo e
a baixa remuneração.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
...o professor que tá trabalhando
na educação
especial.. ele não pode se limitar a se aprofundar só
na patologia dos alunos dele...
nã:::o….ele tem mais alunos...
ele tem que entender.. né...
[
tem conteúdo pra estudar
ele tem que entende:::r... que tá inserido no contexto
político...social ...econômico.. ele tem que entender
que... se ele tá trabalhando com crianças.. que::...
embora ela tenha uma patologia... mas ela É:: uma
criança...mas ele tem que ter um conhecimento sobre
educação infantil...
ludicidade… alfabetização…
né… socio/sociologia da educação...filosofia da
educação...é:::.. a gente fala por exemplo.. a maneira
como a resistência da comunidade de aceitar o
deficiente.. a gente te::m que entenDER que isso tem
uma herança...cultura... que antigamente todo tipo de
pessoa portadora de necessidades especiais era tido
como lo:::uco...era colocado de forma isolada... e é
por isso que hoje ainda há esse isolamento... então a
gente tem que compreender muita coisa...
não é pedir muito dos professores...eu fico
me
perguntando..se não tá exigindo mais do que cada
pessoa pode dar...
é pedir muito porque:::... em termos da própria
remuneração... como a remuneração é baixa...ele
não tem nem o direito de administrar a própria
formação continuada dele... né.. ele fica restrito só ao
curso que é ofertado pelo sistema...
ele próprio ir atrás...
ele próprio ir atrá::s é quase inviável...porque um
professor/é poucos que têm uma oportunidade por
exemplo... de ter uma tevê a cabo em ca::sa... ter a
205
Ent.
O.
P.
O.
assinatura de uma boa revista... de um bom
jornal...ter assinatura de internet... é poucos... né...
poder se loco/poder ter um veiculo próprio pra se
locomover rápido pra não perder tempo em ônibus...
tudo isso...se for colocar na ponta do lápis é..é muita
coisa... camarada que ganha pouco... e a::nda de
ônibus... em fim... não é fácil... que não tem o
direito
de
administrar
nem
sua
própria
formação... né..
e nem o próprio lazer...porque domingos e sábados
vão embora todos...
[
lazer não existe...
[
nem existe...porque...
nem existe... o professor geralmente não tem lazer..
(B,p.17, ls.996-1022)
Chama a atenção, na fala de P., a questão da dependência com
relação à formação, causada pela baixa remuneração. Impossibilitado de
buscar opções outras de formação (e de informação, já que P. se refere a
TV a cabo, revistas, jornais e internet), o professor é descrito como
obrigado a se submeter à formação oferecida pelo sistema. Essa
subordinação implica numa naturalização das razões pelas quais ele não
tem a formação necessária, e/ou numa responsabilização do próprio
professor por isso. O fato de que tal situação emerge na fala de um
professor
faz
perceber
que
tais
processos
de
naturalização
e
responsabilização não deixam de ser notados, como não deixa de ser
notada a apropriação do tempo do professor, quase totalmente engolido
pela sua profissão.
Os efeitos discursivos que dão o tom, na maioria das falas, têm
relação com um lugar do professor distanciado das relações propriamente
trabalhistas: o abrandamento das reivindicações, a substituição de
relações de trabalho por relações pessoais, a querela entre professores
substituindo a reivindicação de melhores condições de trabalho, a
concepção de governo como apoio, os professores assumindo como
responsáveis pela inclusão são efeitos que mostram uma concepção
localizada e individualizada do trabalho educativo. O professor aparece
pouco como trabalhador. O trecho em que o professor relata a submissão
206
(inclusive ao processo de formação) causada pela dependência financeira
se constitui em contraponto a essa tendência.
Tanto os efeitos de sentido produzidos dentro da temática
“relações de trabalho”, quanto aqueles produzidos na configuração do
outro governamental, se encaixam de certo modo com uma temática que
aparece em certos momentos nas falas desses professores: a temática da
luta. Descrever como luta a atividade na inclusão dos alunos surdos cegos
e com baixa visão cria uma idéia do papel do professor como militante;
sua atuação extrapola, portanto, as atribuições profissionais, e ajudam a
configurar um determinado tipo de relação com o empregador, no caso, o
Estado, e com os outros de modo geral.
Z. e L. conversam acerca da luta para a formação de professores
em Braille
Z.
L.
então nosso foco... além de atender aqui os
alu::nos... nós esta::mos lutando aí com ESsa
formação de professores pra ver se a gente
enxerga ah... um:: algum lugar... porque senão... do
jeito que tava num...
num e feito não...tem que cuidar também da
preparação também do professor que tá na sala de
aula... (D, p.05, ls. 248-255)
No trecho abaixo, T. dá como exemplo de sucesso da inclusão
uma escola onde as pessoas assumiram a inclusão como luta (“lutar com
a gente ombro a ombro”):
T.
Ent.
T.:
mas é bom... muito bom... inclusive tem escolas...
tá... como...realmente eu tenho que frisar o Gabriel
Pimenta... né... uma escola que...
fica onde...o Gabriel Pimenta?
na Morada Nova... uma escola que ABRAÇOU...
sabe... assim a idéia de fazer um curso... aprender e
tal... lutar com a gente ombro a ombro... e
entregar o material todo com antecedência... ta...
sabe... uma coisa assim é muito.. é uma maravilha.
foi... chegou ali parou...(A, p.7, ls.381-392).
No entanto, as paráfrases seguintes simplificam bastante a idéia
de luta: trata-se de preparar os cursos, realizá-los, no caso do professor
207
de educação especial; dispor-se a aprender o que nele é ensinado,
entregar o material para ser adaptado a tempo, no caso do professor que
tem aluno incluso...
Isso ajuda a suavizar a reivindicação acerca do aumento de
carga horária (“seria bom que houvesse uma ampliação dessas horas”)
feita anteriormente. Tal reivindicação, assim, não aparece como objeto de
luta, mas é deixado por conta do acaso (se acontecesse, seria bom). A
inclusão, no entanto é assumida como tarefa pela professora, e independe
desse aumento de carga horária.
T.
Ent.
T.
Ent.
T.
é esse o trabalho que a gente faz... eu não tou
trabalhando só na escola... por onde eu passo eu faço
um trabalho de inclusão dos alunos com deficiências
visuais....
independente de...
independente de sala de aula ou não... de professor
ou não... aonde eu chego que alguém toca no
assunto... eu estou fazendo a inclusão de meu
aluno...meu aluno ele pode trabalhar... ele tem que
trabalhar... ele tem que estar no meio social... ele é
não é diferente dos outros... certo?...(...)... ele tem
toda uma habilidade pra colocar em prática... ta...
então eu faço inclusão direto...
você é militante... ((risos))
((risos))em todos os momentos eu tô fazendo
inclusão...(A, p.8, ls. 429-445)
A mesma disposição militante se vê em O. quando discute a
possibilidade do aluno surdo chegar à universidade. O avanço do aluno na
carreira escolar se torna uma questão de dedicação pessoal do professor
de educação especial, o que faz suspeitar uma desobrigação das outras
instâncias sociais, ao mesmo tempo em que enfraquece toda a discussão
acerca das possibilidades de autonomia da pessoa surda.
O.
é como a gente vê por exemplo (...) que tá lá na sala
que tem trinta alunos... que
vê a gente com um
aluno...é::: vê... pelo menos na minha área né.. que
que acontece.. em relação esse aluno surdo né...ele
vai chegar até onde? ele vai até a universidade
porque EU vou estar junto dele.. eu tou com aluno
desde 96.. tá... (B, p. 12, ls.630-636)
208
A militância extrapola, como T. já tinha mostrado em suas falas, os
limites do estritamente pedagógico; exemplifica isso a luta pelo passe
livre para os alunos com déficit cognitivo, cujas condições Z. e L.
acompanham de perto e conhecem com detalhes. Essa luta tem relações
com o fato da sala de acompanhamento para esses alunos ter sido
localizada, como já foi descrito anteriormente, numa escola central,
distante dos bairros populares onde mora a maioria desses alunos:
Z.
L.
Z.
L.
Z.
Ent.
Z.
...tá..os alunos de DC eles NÃO conseguiram passe
livre...porque PAra conseguir o passe livre tem que ter
um LAUdo...do::: do médico de cabeça...
o neurologista
o neurologista... .Marabá não tem neurologista...
tá...então essa mãe pra ela sair da Liberdade da
Laranjeira... ela vai chegar até o Novo Horiz/até a
praça da Cidade Nova tem que pegar um ônibus... do
Novo Horizonte...da::
da Cidade Nova pro Novo Horizonte...
da Cidade Nova pro Novo Horizonte ela tem que pegar
outro ônibus... são dois ônibus... então pra ela ir e
voltar ela tem que pagar quatro ônibus... tá... se for
uma criança mais...
pra ela e pra criança...
quatro passagens no dia... como é que essa pessoa
tem condições? poder aquisitivo? (D, p. 24-25, ls.
1348-1365)
Chamo a atenção para o fato de que a Escola Jônathas Athias,
onde se situa o CAP, também ser centralizada. A professora remete a uma
luta anterior, a busca do passe livre para os alunos cegos, na qual ela se
inclui e inclui os colegas.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
aqui também tem algo parecido né..este bairro::..a
demanda não é tão grande..o pessoal já vem de longe
pra cá...
é..mas só o que acontece... nossos alunos nós
conseguimos passe livre... porque a deficiência
deles é uma deficiência visível...
vocês têm médico local que dá o laudo...
tem médico local pra fazer o laudo... né... já o DC
não... é a família que tem que pagar mesmo...
quando ele não é aposentado tem que pagar... (D,
p.25, ls. 1369-1378)
Como afirmei de inicio, os enfeixamentos de sentido produzidos
no meu diálogo com as falas dos professores se organizam muito mais em
torno da idéia de professor militante, que assume a inclusão para si, a
209
despeito das condições de trabalho e de suas relações com o empregador,
do que em torno da idéia de um professor-trabalhador, cuja possibilidade
de produção se ancora nas condições concretas de vida.
A palavra salário não aparece uma única vez nas sessões; seu
sinônimo, remuneração, aparece somente na fala de P., na sessão B. A
necessidade de aumento de carga horária não toma a forma de
reivindicação. Não aparece nenhuma referência à carreira; embora
muitas, as referências a formação têm mais a ver com tornar-se capaz de
atuar eficientemente na inclusão do que com ascensão profissional. A
necessidade de mais profissionais aparece como uma necessidade do
projeto de inclusão, do que como reclamação a respeito da sobrecarga de
trabalho. A questão da valorização profissional aparece muito mais como
vinculada às relações pessoais, ao desenvolvimento da consciência,
aprofundamento da formação, e inclusive como reivindicação do direito de
trabalhar (de não ficar à toa, no caso em que a sala de acompanhamento
foi localizada numa escola onde os alunos não podem ir).
6.4. O PROFESSOR QUE FAZ INCLUSÃO E OS “OUTROS PROFESSORES”
Um outro que aparece constantemente nas falas dos professores
de atendimento especializado é o “professor de sala comum”, ou “os
outros professores”. As relações com esse outro são descritas geralmente
como estabelecendo certo nível de tensão; o professor de educação
especial descreve a si mesmo em contraposição a esse outro, e
vice-
versa.
As circunstâncias em que esse outro emerge na fala são
diferentes: dentro de histórias, na descrição da prática cotidiana. Na
maior parte das vezes se distinguem claramente os dois sujeitos (o
210
professor de educação especial e o de sala comum), geralmente dentro de
avaliações das suas posturas com relação à inclusão. Há momentos,
menos comuns, em que esse professor e o da educação especial se
fundem (nas descrições dos processos excludentes porque passam, por
exemplo).
Duas situações emocionalmente intensas, nas sessões A e B,
acontecem quando os entrevistados recorrem a histórias do cotidiano para
exemplificar certos tópicos propostos na entrevista, e essas duas
situações têm com esse outro professor como personagem principal.
O uso de histórias é recurso importante para a interação entre os
interlocutores. “Contar histórias, especialmente de caráter pessoal, implica
a experiência de vida” (BRAIT, in PRETI, 1997, p.210), e faz com que
tópicos importantes para essa experiência ganhem destaque no discurso.
O tópico reação dos professores aos cursos de formação, por
exemplo, surge (na sessão A) dentro do tópico aprendizagens com a
inclusão: a entrevistada insere na conversação, para exemplificar a
flexibilidade aprendida na experiência da inclusão, uma história referente
à reação de certo professor à proposta de um curso de formação para o
trabalho com alunos cegos.
T.
Ent.
T.
Ent.
T.
Ent.
T.
Ent.
eu sou assim... eu vejo dessa maneira... só que...
também... eu tenho que em muitas ocasiões eu
tenho... eh eh eh... flexível...eu tenho que ser flexível
em certos casos, né...e às vezes o meu colega...ele
não é... ele vê de uma outra maneira... eh...no caso...
esse rapaz que... ele achou... falou que... o:: a::
educação especial não vai pra frente...
porque?
ele falou isso pra mim... ele também chegou pra mim
e perguntou se eu queria ensinar ele...
ensina::r...?
porque ele foi meu professor... ele foi meu
professor... no primário... quando comecei a estudar
com vinte anos, ele foi meu professor... e hoje ele não
ACEIta que ele possa aprender algo comigo...tá... na
educação especial.
mas ele pediu isso pra você?
NÃO... ele ele veio...quando colocamos a intenção de
fazer um curso... de capacitação-- um curso básico -ele perguntou pra mim se eu queRIA ensinar ele.
ah... ele perguntou... mas de uma maneira...
211
T.
de uma maneira, como é que chama... não é crítica...
é uma...aquela...me fugiu agora...
ele achava que você não estava à altura de ensinar
pra ele... foi essa a idéia mais ou menos dessa...da
frase?
ele quis dizer que porque ele me ensinou... há tantos
anos atrás... hoje eu não teria capacidade de...
ensinar ele não porque de lá pra cá ele já aprendeu ...
tá?... mais do que eu porque ele já sabia mais do que
eu...(A, p.2, ls.67-99)
Ent.
T.
A professora suspende por instantes o diálogo comigo para
dialogar (de forma tensa e enfática) com esse colega que resistiu à
formação e que coloca sua (dela) capacidade de aprendizagem e sua
própria competência como profissional em dúvida. Um colega cuja
presença no
diálogo
é
tão forte que
ocupa o
meu lugar
como
interlocutora.
Lutando para ocupar de volta meu lugar no diálogo, tento várias
vezes sair da história e ampliar para uma compreensão geral da questão,
mas A. resiste e se mantém na digressão76. Tento fazer com que ela conte
outras situações, contrárias; para tanto, emito sinais de armação do
quadro tópico (MARCUSCHI, 2005, p.73) como “inda bem que essa
posição não é geral”, ou, logo adiante, “mas, no geral...”, mas ela passa
rapidamente sobre o primeiro sinal e ignora o segundo: retoma, a cada
turno, a história contada, o que mostra a importância, para a entrevistada
de manter a temática em primeiro plano na conversação.
T.
Ent.
T.
76
é aquilo que eu te falei... ele não quer, ele não VAI....
falou isso pra mim...ele NÃO VAI participar dos
cursos... ele não quer participar, e:::.. pouco se
interessa, POUCO se interessa... ele não quer nem
ficar sabendo...
inda bem que essa posição não é geral...
GRAÇAS a Deus em toda a jornada encontrei dois...
que chegaram com esse ponto... essa posição... não é
que eles não tenham conhecimento... eles têm o
Segundo Fávero (in PRETI, 1997, p.51-52), uma digressão pode se basear no enunciado, na interação ou em
seqüências inseridas. Nesse caso, temos uma digressão baseada no enunciado, em que A. conta uma história para
exemplificar a aprendizagem da flexibilidade que ela diz ter adquirido na vivência com a educação especial.
212
Ent.
T.
Ent.
T.
conhecimento... ta? eh.... EU DIGO que eles NÃO
QUEREM ter res-pon-sabilidade com aquilo ali...
mas
no
geral
o
professorado
assume
a
responsabilidade de ter aquela criança em sala e...
eu disse pra ele que ele...ele.. assumindo ou não a
responsabilidade, ELE É responsável NA DIS-CI-PLINA DE-LE por aquele aluno...
com certeza...
se o aluno ficar reprovado na disciplina dele, ELE É o
responsável pelo aluno...NÃO sou eu... eu estou indo
na sala... eu estou indo fazer um acompanhamento,
mas....pra tirar as dúvidas do professor com o aluno...
do aluno com o professor e interAGIR naquilo que o
professor não...não tiver condições, né?... Só que...
ele não quer não, NÃO... tudo bem... só que ele é
responsável pelo aluno...eu vou procurar trabalhar o
aluno que/e trabalhar ele à distância... não posso
chegar perto dele eu vou trabalhar ele à distância
através do aluno... (A, p.3-4, ls.160-190)
No mesmo trecho, chama a atenção a ênfase que T. dá para
questão da responsabilidade do professor para com o aluno, retirando
de si a culpa no caso do aluno reprovar. Uma contradição se evidencia: os
cursos são técnicos (o ensino do Braille para os professores de alunos
cegos), têm o objetivo de prover certo tipo de conhecimento; no entanto,
tais professores são descritos como tendo conhecimento, mas não
querendo a responsabilidade. Nesse caso, fazer o curso evidenciaria mais
o desejo de assumir a responsabilidade com a inclusão do que a
necessidade daquele conhecimento específico (aparece como uma questão
de intenção individual o assumir a inclusão; o curso, como um quaseritual de iniciação).
A flexibilidade que T. reivindica como aprendizado próprio tem
relação com o fato de que ela “aceita” a recusa do professor e passa a
tentar influenciá-lo de longe, através dos alunos. Não desiste dele, apenas
cria uma outra forma de acesso:
T.
se o aluno ficar reprovado na disciplina dele, ELE É o
responsável pelo aluno...NÃO sou eu... eu estou indo
na sala... eu estou indo fazer um acompanhamento,
mas....pra tirar as dúvidas do professor com o aluno...
do aluno com o professor e interAGIR naquilo que o
professor não...não tiver condições, né?... Só que...
ele não quer não, NÃO... tudo bem... só que ele é
responsável pelo aluno...eu vou procurar trabalhar
o aluno que/e trabalhar ele à distância... não
213
Ent.
T.
posso chegar perto dele eu vou trabalhar ele à
distância através do aluno...
através do aluno...
é a única solução que eu encontrei pra trabalhar ele...
então é que nem eu te falei: agora eu tenho que ser
o que... flexível... eu tenho que trabalhar o aluno/o
professor através do aluno...(A, p.4, ls. 179-195)
Há, no entanto, uma contradição entre essa forma de acesso e a
responsabilização do professor pelo que possa ocorrer, caso ele não aceite
participar
da
inclusão; é
como
se
tal
participação
aliviasse
essa
responsabilidade (se ele aceita a responsabilidade é partilhada, ou
continua com ele?). T. se coloca na posição de poder cobrar do professor
de sala comum a aprovação do aluno, já que imagina estar oferecendo as
condições para que ele tenha sucesso. Por outro lado, o fato de o
professor se recusar a fazer o curso e colocada como algo que
impossibilita ao professor de apoio se aproximar do outro: “não posso
chegar perto dele”. Assim, parece que a única forma de chegar perto do
professor é através do curso de formação. Mais uma vez, aparece uma
ênfase no curso como acesso ao mundo da educação especial, ou da
inclusão.
A vívida descrição do outro por T. evidencia alguns atributos
desse outro em sua fala: é alguém que se recusa à responsabilidade para
com os alunos com necessidades educacionais especiais, que desvaloriza o
trabalho de apoio nessa área, que precisa aceitar outras aprendizagens
que não aquelas as quais domina, alguém a quem é difícil acessar
diretamente. Faz parte de sua luta, então acessar esse professor, e ela
passa a fazê-lo através do aluno.
A outra história é contada na sessão B; nela, partindo de uma
provocação minha acerca da passividade com que eu imagino que são
aceitas as imposições legais, os falantes trazem como exemplo uma
situação acontecida recentemente na escola; nesse exemplo, o tópico
passividade, inserido por mim, ganha novas nuances em sua relação
214
com o que os falantes consideram uma agressão à autonomia do
professor.
A história de S., professora do ensino fundamental da mesma
escola, é contada a duas vozes e de forma indignada. P. e O. escolhem-na
como um exemplo da exclusão do professor, uma vez que, em sua
compreensão, a autonomia dessa professora foi desrespeitada,:
Ent.
O.
Ent.
O.
P.
O.
P.
O.
Ent.
P.
O.
A
temática
da
nessa questão assim... “não...tem que incluir... vamos
incluir... tem que fazer vamos fazer”...mas não é com
o coração... não é com empe::nho assim...
a lei tá ai... a lei tem que ser cumprida... vamos
cumprir...
e se amanhã vier uma lei que disser ao contrário...
também tá bom?... né... você não vê uma
reivindicação... tem que fazer porque é certo... tem
que fazer porque....
(...) aquela questão da S. ontem/hoje... ---que ela
falou... né..---(...) ali foi muito pesado... quer dizer
o:::..
se cobra tanto a autonomia do professor... que ele
tem que ter...
e quando o professor vai ter autonomia... não tem...
a primeira atitude que o professor toma ...advinda da
autonomia dele... que ele possa ter... ele é e
excomungado por um pai porque acha que ele tirou o
filho da escola sem autorização... mas a direção da
escola autorizo:::u... a criança foi com a autorização
da escola... mas o pai não:::... né.. a ignorância pega
ele que ele não consegue entender...
eu sinceramente...eu numa/numa ocasião dessas...
eu saía do salto... ela é muito passiva... eu não iria...
(...) no mini::no... deixar um pai te esculhambar... te
dizer que você não presta... que você não vale
nada...a:::que você...
ah:::... na escola??
DENtro da escola...
dentro da escola... (B, p.22, ls 1211-1234)
passsividade,
que
eu
inseri
como
um
não-
questionamento das imposições legais, ganha outro sentido nas falas de
meus interlocutores: o novo tópico, inserido por eles por meio da história
de S., não trata desse tipo de passividade, mas da passividade da colega
diante do pai de aluno que a tratou mal em público, dentro da escola,
passividade contra a qual O. se indigna; para P., isso indica que o
professor realmente não tem autonomia. É no desdobramento da história
que vão surgindo novos elementos em que o outro professor é situado:
215
P.
aconteceu foi que... os alunos da turma tinham
recentemente perdido um colega... que tinha morrido
afogado...e tava tendo aula bem na hora do velório...
e como tinha pouca gente pediram pra professora
liberar e não tinha autonomia pra liberar...e ai eu já
acho um erro... eu acho um erro... porque se fosse
comigo.. .eu co-mu-ni-cava a direÇÃO que eu estava
indo...mas eu não deixaria os alunos pedir pra ir...eu
ia fazer diferente... eu tomaria a iniciativa...então ...
já com receio de tomar essas decisões... ela pediu
pros alunos irem e comunicar a direção.. a direção
concordou desde que a professora fosse...ela não fez
corpo mole… ela foi... aí chegaram do bendito
veló:::rio... que nem era tão tarde assim que o
horário de saída é seis horas eles chegaram sei::s e
meia... o pai tava aqui pronto... né de arma na mão
pra detonar na professora... e excomungou a
professora... ficou por ISSO MESmo... ficou por isso
mesmo... ela foi agredida verbalmente... dentro da
escola e não foi registrada nenhuma ocorrência...
nada...
é um ato de exclusão....
então hoje quando ela tava colocando a situação pra
gente... ela
chorou muito... desabafou... o único
direito que ela teve foi desabafar com os colegas
dela... de trabalho... viu... mas eu acho que a:::... a
direção foi omissa... (B, p.23, ls. 1267-1296)
Ent.
E..
P.
questiona
não
apenas
o
fato
da
professora
ter
sido
desrespeitada, mas a postura dela que permitiu isso: deixou para os
alunos tomarem a iniciativa de ir ao velório, colocando-se numa postura
de submissão; o receio de tomar decisões parece ter deixado a professora
já numa situação de desvantagem. Indigna-se por tudo ter ficado “por
isso mesmo”, assim como O. Tanto o fato de ter emergido essa história
como exemplo de passividade quanto as reações que P. e O. têm com
relação a ela criam efeitos de sentido com relação ao lugar do professor
em seu discurso: não admitem a submissão, a falta de iniciativa como
atitudes de professor; atribuem a direção da escola um papel na defesa do
professor; não descrevem uma atitude deles próprios com relação ao que
aconteceu, mas ao que teriam feito no lugar dela; os direitos do professor
se relacionam parte à própria atitude e iniciativa, parte à proteção que
deve ser dada pela hierarquia.
216
Uma e outra história trazem dois perfis diferentes desse outro
que aparece no discurso dos professores. Na história contada por T.,
temos um outro arredio, inacessível, indisposto a aprender coisas novas.
Na história contada por P. e O., esse outro é passivo, inseguro, pouco
capaz
de
iniciativas
próprias
e
de
defender
os
próprios
direitos.
Contrapõe-se e complementa a descrição do outro, naturalmente, uma
descrição de si próprios como professores: no primeiro caso, alguém
comprometido, preocupado com o sucesso dos alunos, capaz de continuar
tentando mesmo quando os outros se recusam. No segundo caso, alguém
capaz de tomar a iniciativa, se impor diante dos pais e da direção,
defender-se.
Seriam apenas histórias, se características que reforçam o perfil
não fossem aparecendo ao longo das falas, em todas as sessões, e
mostrando que o discurso propõe uma diferenciação entre o professor de
sala comum e aquele envolvido nas tarefas da inclusão.
O atributo de passividade vinculado ao professor de sala comum
aparece na fala de Z., quando conto que um aluno cego tinha me dito que
procurava não incomodar em sala de aula, uma vez que ele percebia a
superlotação e a insegurança da professora. Ela reage expressivamente,
descrevendo o papel do aluno (de educação especial) como uma “pedra
no sapato”:
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
o A. ((aluno cego)) me disse um dia que procura não
incomodar... a professora porque são quarenta
alunos...
[
pois é...
[
na sala e ele sente que ela fica pressionada....
ele se sente... e:: não é o caso... ele TEM que
incomoDAR MESmo porque se ele não incomodar os
professores não vão...
é... tem que incomodar... como todo aluno né?
é::: tem que incomodar porque se não incomodar ((a
professora)) não vai sentir aquela pedrinha no sapato
ali né... porque olha... ela foi uma das professoras que
eu insisti pra que ela fosse pro ... pro NAEJA... pra
fazer esse treinamento... é pouco? é... mas se desde
cedo o professor tá dentro... já saiu LENdo... já saiu
escreVENdo... ( D, p. 5-6, ls 270-288)
217
Aquela disposição de que T. falava, de acessar o outro professor
através do aluno, aparece também aqui: o aluno deve incomodar, deve
chamar a atenção para sua existência, para que o professor saia de sua
passividade.
O. se coloca numa posição também diferenciada com relação ao
professor da sala comum, quando descreve uma estratégia para fazer com
que ele utilize os conhecimentos dados no curso de LIBRAS. Ela diferencia
os que trabalham na mesma escola que ela (“esses eu vejo (...) porque eu
acompanho”) e os que trabalham em outras escolas. Como os alunos
vêem ao CAP para acompanhamento das tarefas, é através deles que ela
tem acesso aos professores: sua estratégia é fazê-los usar a linguagem de
sinais incentivando o aluno a exigir isso do professor.
O.
Ent.
O.
Ent.
O.
Ent.
O.
só... por
exemplo.. aqui na nossa escola nós já
tivemo:::s...dois cursos de linguagem de sinais.. Mas
foi para os profissionAI:::s que estão atua::ndo na
escola
hanran
estes sim.. eu prefiro trabalhar
[
precisam desse curso mesmo né...
ta? ...e esses eu vejo trabalhar em sala de aula..
principalmente pessoas de quinta à oitava .. porque
eu acompanho.. e aquele professor que fez o curso
de linguagem de sinais.. né.. e que está na sala de
aula... com aluno incluso.. surdo...
hanran
e que ele não utiliza lá... o aluno surdo vai comigo...
eu digo “ não... é você quem tem que dizer... porque
ele fez o curso... você preci::sa de comunicação... é
você... num é eu não” ai ele vai lá... (...) professor
né... ele vai lá...e diz “ cadê a linguagem de sinais?
eu não conheço... eu sou surdo”... ai o professor vai
pede desculpa pra ele e começa... (B, p.4, ls.159181)
A valorização da experiência mais próxima (“esses eu prefiro
trabalhar”) em detrimento da que ocorre nas demais escolas, sugere uma
necessidade de controle (“esses eu vejo...”), por parte do professor de
educação especial, daquilo que acontece com a inclusão, necessidade de
controle que também aparece na fala de Z.:
218
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
todo contato do professor do ensino fundamental com
vocês então é só através do aluno..
NÃO... é atravé/ nosso mesmo...porque nós... nós...
vocês estão lá também...
nos também fazemos esse... esse contato... o pouco
tempo que nós temos que é na sexta-feira que teria a
sexta-feira prá NOS... né... nós vamos fazer visita...
junto aos professores... só que...
na própria sala de aula...
é... só que () tem trinta e dois alunos... nós temos o
que... trinta e dois alunos... quer diZER que mesmo
que eu... eu faça três visitas no dia... e ela faça três
visitas são seis...
mesmo assim...?
leva um mês... um mês e quinze dias ... pra você
retornar... tá... então quer dizer que toda
aquela/aquele trabalho que você fez... mesmo que
você oriente... /porque você sabe que o professor do
ensino regular se você não tiver junto ali com
ele... pra contar... pra... “vamo fazer isso... vamo
fazer aquilo... vamo ter uma idéia...” num
adianta que ele num faz...
tem que contar que a rotina dele também é...é
estafante num é...
é...
é aquela coisa de... resolver todo dia o problema
daquele dia...
é... então... é esse o contato... por exemplo..nós
temos alunos... ele tem que... o professor na sala...
eh:: sala regular..ele tem que entregar a apostila...
uma semana... pra que no dia que ele pegar aquela
matéria...o aluno vai tar sabendo ... né... só que nos..
com essa dificuldade... a copiadora que/ ah:: a
máquina Braille ... foi pra Porto Alegre ((pra
consertar)) (D, p.04, ls. 170-206)
Assim como na conversa com P., tento contrabalançar a
descrição do professor em minha tomada de turno, lembrando sua rotina
estafante. Z. aparentemente concorda comigo, repetindo “é” depois de
cada fala minha, mas volta à sua fala sobre seu contato com esse
professor sem demonstrar ter registrado minha observação.
A participação dos outros professores nos curso de LIBRAS é
descrita por O., mais como uma busca de certificação do que uma
formação
para
contribuir
no
processo
de
incluir
os
alunos
com
necessidades educacionais especiais na escola comum. A busca de
certificação é colocada como se estivesse em contraposição com a
219
militância inclusiva (evidenciada no verbo “contribuir”, que P. insere na
fala).
O.
Ent.
O.
Ent.
O.
P.
O.
P.
O.
(...).. então nós precisamos de mais apoio..
precisamos de/de mais gente pra tá trabalhando na
nossa área.. então quer dizer...as pessoas que
faze::m curso né...eles
fazem curso geralmente
pelo/pelo diploma... pelo certificado...não pelo
trabalho em si...de estar junto com a gente
trabalhando...então é difícil...no NOsso:: município
(...)...
[
não/não entendi essa parte ai de fazer curso.... as
pessoas que fazem curso de/de atendimento.. curso
de preparação?
[
não... por exemplo...a/eu tou precisando de curso de
linguage::em de sinais
isso...sim…
né.. a maioria dos profissionais que estão na/ na
área..né...da/da educação especial...né::... que estão
(...) na atividade de ensino.. eles/ a maioria deles
foram fazer esse curso NÃ:::o pra trabalhar com
aluno surdo...
[
não pra contribuir né...
mas SIM pra estar apresentando na universidade
que FEZ...
[
pra engrossar currículo
É:::.. só pra engrossar currículo... (B, p2, ls. 98-125)
A exigência da universidade e da secretaria de educação com
relação a fazer tais cursos não é colocada em pauta, mas o fato do
professor não se interessar suficientemente por eles, sim. A maioria não
demonstra vocação pra trabalhar com o aluno surdo, mas quer e precisa
fazer o curso, o que coloca a educação especial diante de um dilema, o
qual emerge nas aflições de O: a questão da vocação. Como encontrar os
vocacionados? Ou melhor, como não desperdiçar esforços com quem não
é vocacionado? Parece incomodar a O. que o esforço que faz, realizando
cursos de LIBRAS, não faça surgir mais intérpretes, mais pessoas atuando
na área.
Também P. descreve uma resistência do professor ao Braille (e
uma desistência maior do que no caso de LIBRAS) por causa do que ele
220
descreve como uma maior dificuldade do próprio Braille e uma falta de
interesse dos professores:
P.
Ent.
P.
olha:::...o/a questão
do Braille...é até
mais
complexa.... porque:::..em Marabá por exemplo não
houve tantos cursos assim como já houve no/com o
LIBRAS... né...e muitos têm uma resistência quando
tem um primeiro conTAto com o aprendizado do
Braille... muitos professores da sala regular de
ensino.. eles têm uma resistência.. eles acham que...
é:::...que
não
vai
consegui:::r...aprender
a
linguagem.. porque REALmente a pessoa que::...lê
em tinta...o:: chamado vidente... esse/ esse...
eu fiquei tentando.. (...)
pois é...esse.. as pessoas que enxergam eles acham
que não vai precisar e que não tem tanta necessidade
assim... né.. mas eu vejo assim... eles nu::m/eles
tem uma resistência até maior.. eles tem
resistência maior de aprender... né.. e não tem
muito interesse.. LIBRAS... eu não sei se eles têm
essa compreensão ... mas eu percebo um pouco
disso... que...eles querem engrossar currículo... e:::
é:::... querem fazer o curso .. como a professora
falou pra... ter o diploma... enfim... e o Braille até
tem esse desejo...mas quando começa um primeiro
contato assim eles vê que o negocio... é
dife::rente...que a dedicação tem que ser grande
mesmo...e ai acabam abandonando... muitas pessoas
manifestam pouco interesse por isso porque ... ---só
pra você ter uma idéia. ..o/o próprio professor de
Braille que enxerga ele não lê usando o tato né... a
gente teve em Belém agora...a gente pode perceber
isso... ele lê:::... olhando pro pontos... né.. olhando
pros pontos né.. só quem realme:::nte utiliza o tato
pra fazer a leitura...do Braille é::: o CEgo.. é o aluno
cego esse/então é uma linguagem que... embora ela
seja conhecida em todos os paises.. mas ela num.. em
termos de comunidade... ela não se universalizou
ainda
porque...as
pessoas...
é::
não
tem
necessidade...então é muito difícil é::: difundir esse
tipo de escrita... é muito difícil mesmo... né.. (...) só
partindo da vontade das pessoas por que... é difícil ter
um vidente que vá querer ter uma dedicação ..
excluSIva ... gRANde...pra ler assi::m como um cego
lê... é complicado... (B, p.5, ls.204-251)
Aparece na fala de P., no final do turno, uma exigência de
identificação do professor com o aluno cego (uma dedicação exclusiva),
como se tal identificação fosse condição para o trabalho pedagógico. O
fato de que o professor vidente lê o Braille usando a visão diminui essa
identificação, e esse fato é descrito como uma das complicações do ensino
221
do Braille para professores. Anteriormente, há também a afirmação de
que os professores acham que não vão conseguir aprender, o que mostra
que, na visão de P., esses professores têm uma baixa expectativa com
relação à própria capacidade de aprendizagem.
A mesma exigência de identificação com a educação especial
aparece nas falas de Z., quando descreve o sucesso do curso de Braille
que tinha realizado há pouco tempo:
Z.
...
Z.
É::: se identificaram muito... MUIto MESmo...
sabe....é tão/tanto que nós saímos de lá... “professora
nós vamos sair daqui mas nos já vamos sair já... com
a data marcada... do segundo encontro”... que vai ser
do dia vinte e seis ao dia vinte e nove de setembro...
tá... que eles já iam colocar no planejamento deles
que essa semana eles estariam fora da escola... que
eles iam... fazer esse trabalho... quando eles dizem
assim “nós (D, p.06. ls 288-297)
não..e:sse curso/esse treinamento foi o seguinte...
foram trinta e seis participantes...desses trinta e seis
eu te digo que trinta...trinta participaram assim do
inicio ao fim... horário cumprido assim aquela coisa
toda..e:: se identificaram... mas porque...porque
eles sentiram a necessidade na própria sala de aula...
eles tavam com aluno incluso porque nós só pegamos
os professores que esTAvam atuANdo com aluno...(D,
p. 08, ls. 447-456)
Quando pergunto por vantagens e desvantagens da inclusão, do
ponto de vista pedagógico, a desvantagem que O. relata não vem do
processo inclusivo em si, mas das disposições do professor em atuar com
alunos cujas especificidades ele não conhece, e que vai lhe dar mais
trabalho.
Ent.
O.
(...) assim ainda nessa questão de vantagens e
desvantagens do/do/ a gente podia tratar do
pedagógico também.. em sala de aula assim...
a desvantagem do ponto de vista pedagógico no caso
né... é até de interesse mesmo né...que a gente vê
...do professor não querer.. é:::.. estar com aquele
aluno em sala de aula.. quer dizer ...ainda há essa
discriminação... “ ai eu não sei trabalha:r.. eu não
sou forma:da... e::u não sei .. eu não sei pra onde
va:i .. e come que eu vou ensinar.. e isso...” né
...então.. coisas...que realmente aconTEce em tO:das
as escolas aonde o professor realmente ele não/ não
conhece..
né..
aquele
aluno..
ele
não
222
Ent.
O..
conhece...aquela/aquela... deficiência em si.. ele não
tem o conhecimento daquilo ali.. então pra ele é
difícil.. É... né.. mas.. é por exemplo... aqui como
nos trabalhamos com esse professor ...estamos junto
com ele... apesar de nos estarmos na sala de recursos
trabalhando...mas a gente tÁ tendo ai.. tá dando
orientação pra ele de como --- não como ele deve
trabalhar..--- mas sim dando uma orientação básica..
né.. e orientações estas.. que servem pra ele
trabalhar com aquele aluno em sala de aula.. que está
com ele todo o tempo...por mais que ele esteja em
outra escola está presente com ele..outro dia eu ouvi
assim mesmo ó.. “ a:::::...meu deus do céu.. eu
peguei um aluno e agora.. quem que vai me apoiar...”
porque há um me::do...até de que a/ de que o
professor.. por essa aflição... por esse pânico que ele
entra.. ele deixe de fazer o que ele fazia bem.. ou seja
o atendimento às demais crianças..
e ele sabe... que ele vai ter que/ o plano dele .. vai
ter que ter uma modificação.. né.. ele vai ter que
trabalha::r .. não... por conta daquele aluno que
chegou.. ele vai ter que adaptar o conteúdo dele e
ver...que ele tem um aluno com uma deficiência em
sala de a::ula...e que ele vai ter que ter uma
aDAptação pra aquele aluno.. dependendo da
limitaçÃo dele...(B, p. 8-9, ls. 450-492)
Minha justificativa do pânico do professor não encontra eco nas
falas de O.: ela retoma a palavra no turno seguinte evocando o trabalho
que o professor vai ter com essa criança (mudança nos planos, adaptação
de conteúdo). O que era descrito primeiro como um não-querer, depois se
transforma em desconhecimento e desorientação e finalmente, em falta
de vontade em modificar a rotina (adaptar-se).
A discussão das condições de trabalho traz um elemento, ao qual
já me referi: o conflito entre professores das classes comuns e professores
da educação especial; O. descreve o preconceito contra o professor da
classe especial por trabalhar com menos alunos como algo que sobrevive
nos processos de inclusão:
O.
(...) não é esse nã:::o porque no momento que você
tem...na universidade como ( eu fiz né). E:::
educação especial.. quer
dizer.. quando a gente
começava a debater educação especial sobre
trabalhos feitos nO município...né... o pessoas
diziam... “que na:::da...o professor de educação
especial com dois alunos não trabalha nã:::o” né... “
as pessoas de educação especial não faz nada” ...“ as
223
Ent.
P.
pessoas de educação especial ou a/a o departamento
de
educação especial..não traba:::lha... não dá
suporte pra professor...isso e aquilo”... então quer
dizer nÓs que estamos dentro da educação especial..
que trabalhei... a gente entende... quer dizer ... há/há
...aquela né /aquele DEBAte né.. porque eu
defendo...eu defendo porque
eu to de:::ntro...eu
trabalho e vejo meu trabalho né..
(...)
então há um preconceito já antigo...
[
HÁ um preconceito antigo... com a educação especial
que também aparece agora na inclusão
também
né..(B, p. 10, ls. 544-572)
O lugar do professor oriundo da educação especial e diferente,
no discurso deste, do lugar do professor de sala comum, e isso é
explicitado
o
tempo
todo,
mas
aparece
também
em
estratégias
conversacionais. Por exemplo, sob a forma de desvio temático, como se
pode ver abaixo, num momento em que eu tento, inspirada em uma fala
de P. sobre as dificuldades de difundir o Braille entre os professores,
chamar a atenção para a quantidade de tarefas a que o professor seria
submetido:
Ent.
P.
Ent.
P.
porque tem a ver com necessidade pessoal também
né...vo/você é forçado ... é colocado na situação que
tem que usar... quando você não é colocado na
situação...---mas
é/é
engraçado
isso
porque
professO:::res.. pelo menos na teoria né.. . que a
gente tá lendo sobre a inclusão né.. ele/ ele teria ..
teria que ter uma rede de recursos pra poder lidar
com todas as diferenças na sua sala de aula.. quer
dizer
..teria
que
conhecer
o
Braille
e
minimamente...ver se os trabalhos estão sendo
fei::tos.. as tare:::fas... teria que conhecer LIBRAS
pra comunicar.. teria que ajudar no deslocamento da
criança com/com deficiência física...--é porque...você vê uma criança por exemplo.. a/a
criança...ela começa a se alfabetizar mesmo antes de
ir pra escola...
hanran
né…porque a gente/ nossa cultura ela é:::...uma
cultura orAL... e é uma cultura escrita também... né
...tem paLA:::vras... tem carTA:::zes... e a criança
começa a ler aquilo... ela começa a treinar escrita
também... logo muito cedo.. ma::s .. é:: tratando-se
de alunos cegos...ele vai começar a se alfabetizar
realmente só na escola... por que é só lá que ele vai
ter o contado com o Braille...e mesmo depois que
tenha esse contato... né... é restrito porque ele não
tem ni:nguém lá fora que estimule ele.. né...porque
224
as pessoas lá fora não conhecem essa linguagem...(B,
p.5, ls.252-283)
O preconceito a que P. se referia entre professores da educação
especial e da sala comum é descrito por ele em uma outra situação. Em
que o tema é a desinformação geral, emerge na discussão a desobrigação
que outras pessoas sentem com relação à inclusão. Para P. o fato de
haver profissionais que são pagos para atuar na educação especial (os
professores que ficam na interface entre uma e outra, no processo
inclusivo) faz com que os outros se considerem desobrigados dessa tarefa.
P.
Ent.
P.
...a desinformação é muito grande e isso prejudica...
prejudica a socialização... que muitas pessoas ainda
não se deram conta... acham que:: só quem tem a
obrigação de:: se relacionar com o portador de
necessidades especiais só é realmente quem
trabalha com ele... quem ganha pra isso...
quem tá habilitado... quem ganha...
quem tá habilitado.. e quem ganha pra isso...muita
gente trata dessa maneira ainda...(B, p.8, ls. 416443)
Esse perfil em vários momentos desenhados tem, é claro, suas
exceções. Na fala de D., por exemplo, já não parece haver essa distinção
tão marcada entre os dois tipos de professor. Para ela, a rejeição por
parte do professor de sala comum é apenas uma reação inicial,
relacionada com sua pouca experiência e pelo medo de não conseguir
ensinar, pela falta de formação:
D.
Ent..
D.
Ent.
D..
a gente vê a diferença/o trabalho aqui né... que..eh::
quando chega o professor NOvo que depara com o
aluno incluso..ele tem essa tendência de assim... eh
... da... da... questão da rejeição
o professor novo ele::... ele tá assustado com tudo...
diga-se a verdade ((risos))...
é... mas assim...NOvo na questão da inclusão...
[
ah sim...mesmo já sendo (...) profissional de longa
data(...)
MESmo já sendo um profissional experiENte...mas
quando ele chega e se depara com o aluno com
necessidade especial na sala de aula dele ali...junto
com os outros...ele acaba... sem saber como
fazer...acaba assustado... num primeiro momento...
essa é a experiência que a gente tem visto..tem
225
J..
D.
Ent.
D.
percebido aqui... então... eh... nesse caso... nesse
primeiro momento... a gente pode até dizer que é ...
uma rejeição... mas eu diria que..é uma rejeição
eh:: eh:: por MEdo de não conseGUIR::..
[
cumprir o conteúdo (...)
de não conseguir comunicar... de não conseguir
ensinar o conteúdo dele da mesma forma que ele tá
ensinando... ele fica sem saber como que ele vai
ensinar da mesma forma que ele tá ensinado pros
ouvintes
pra’quele
aluno
surdo...
por
exemplo...né..então...essa:::
[
eu ficaria apavorada...
essa rejeição é pela FAL::ta de formação que ele tem
na área (...) não tem uma formação pra
ah::
trabalhar com o aluno surdo... ele então vai ficar
assustado... né... ele vai ficar sem saber como fazer...
como trabalhar... e aí.... deve ser desesperador
mesmo porque EU já tive essa experiência...(acho que
só com o tempo como J. falou... faltam políticas
públicas pra... tar colocando TOdos os profissionais
capacitados pra trabalhar com a inclusão...que a
gente vê que ainda::: são são POUcos os profissionais
que estão... capacitados pra trabalhar com a
inclusão...com os cegos...com os surdos (..)
Um elemento da fala de D. justifica essa insegurança. Ela diz que o
professor “se depara” com o aluno incluso, e invoca a própria experiência
inicial; isso quer dizer que o professor não foi preparado anteriormente
para essa situação. A rejeição e a insegurança, descritas em outros
discursos como definidora do lugar do professor, na fala de D. é
historicizada: tem a ver com os modos de se fazer a inclusão e o lugar
que se atribui ao professor nela.
A resistência dos professores de sala comum, nas falas de Z. e L.,
têm a ver com o tipo de aluno incluso e com sua capacidade de se
adaptarem às exigências de disciplina e silêncio, constitutivas da norma
escolar. Isso explica, segundo ela, que os alunos cegos e surdos sofram
muito menos resistência por parte dos professores do que os alunos com
déficit cognitivo:
Z.
Ent.
diminuído... com certeza... a resistência maior... a
resistência maior NÃO É com os alunos de DA e NEM
com os alunos de DV... a resistência maior que existe
é com os alunos DC...
mas porque será...
226
Z.
Ent.
Z.
L.
Z.
porque os alunos com déficit cognitivo eles são
irrequietos... né... eles pu::lam...eles fa/eles não
sosSEgam... porque... porque não têm o atrativo pra
eles que aquele negócio só de escrever escrever
aquilo ali não é pra eles
((risos)) nem pra nós né....a gente cansa muito
[
pois e´...
pro::pro dito normal já é...já é chato agora imagina
então com ESsa::/com essa categoria... é uma
reclamação só... se você juntar os professores de/
que têm aluno incluso DC tá... aí você vai ver
aber/aberração... (D, p. 09-10, ls.498-516)
A relação com esse outro se organiza então em torno de um esforço
para conscientizá-lo e despertá-lo. Ambos os verbos criam a idéia de
um professor pouco consciente, adormecido; essa situação será superada
com os cursos, os quais provendo conhecimento ao professor, o tirarão
dessa letargia. A crença no poder do curso se vincula a uma idéia de
conhecimento como mobilizador.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
L.
Z.
Ent.
Z.
é como eu tava te falando... a gente fala assim por
exemplo que o professor tem essas dificuldades... eu
tenho visto muito de assim....num ter o apoio
necessário... e devia ter mais... sabe... uma coisa
assim que..essa questão de ter... você tá vendo... ela
acabou de falar... essa questão de curso... exige...
que ele tem que ter conhecimento... tem que se
preparar..
tem que parar as aulas pra fazer isso...
é ESsa a dificuldade...que eu vejo..então..é uma coisa
assim que::
((risos e vozes concomitantes))
porque é muita coisa que se fala sobre a inclusão
como se fosse uma questão só de boa vontade..e num
é..claro que exige boa vontade... mas só ela num
resolve....
é... por exemplo... a conscientização...isso que a
gente acabou de fazer... é um pouco assim... ele se
interessar mais... a questão da boa vontade assim...
mais boa vontade... e o conhecimento que eles podem
se aprofundar mais um pouco no..
teve um que disse assim... “professora... agora/ o ano
que vem eu pego com fé em Deus”...
eles aumentaram a::a vontade de participar...
com certeza... tá… enquanto eles tão vendo lá de
longe só no papel ali... pra eles é alheio... mas no
momento que eles começa a conhecer..né.. aí já
começa a despertar... (D, p.8, ls. 409-437)
Desse modo, a tarefa de despertar o outro (e assim, conseguir
novos militantes, novos vocacionados para a educação especial) é
227
assumida pelo educador, ainda que esse despertar signifique mais
trabalho.
Z.
Ent.
Z.
...já que existe o estágio... no ensino regular... dos
professores... acadêmicos... por que que esses
professores...esses acadêmicos também não vêm
fazer estágio::: na educação especial? pra ter que...
não se esqueçam que isso vai sobrecarregar vocês
também...
é..mas aquela coisa também...é aí que estamos
querendo chegar porque eu acho que quanto mais
despertar eu acho que nós vamos ter mais
profissionais...tá... que não é possível que em vinte...
em trinta... num..num aponte UM...(D,p. 20, ls. 11041116)
Esse outro professor se interessa, segundo as falas de Z. quando a
prática exige que ele aprenda coisas novas; nesse caso, ele inclusive
investe pessoalmente na formação, comprando o material necessário para
aprender o Braille. Insinuo que isso deveria ser obrigação municipal, uma
vez que é material de trabalho, mas Z. está entusiasmada exatamente
com esse desapego do professor. A disposição de comprar o material é
dada como um indício do interesse do professor pela educação dos alunos
cegos, e é tão valorizada, que ela própria se encarrega de fazer o
levantamento de preços e intermediar a compra.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
não..e:sse curso/esse treinamento foi o seguinte...
foram trinta e seis participantes...desses trinta e seis
eu te digo que trinta...trinta participaram assim do
inicio ao fim... horário cumprido assim aquela coisa
toda..e:: se identificaram..mas porque...porque eles
sentiram a necessidade na própria sala de aula... eles
tavam com aluno incluso porque nós só pegamos os
professores que esTAvam atuANdo com aluno...
que a prática tava exigindo esse conhecimento...
que a Prática tava exigindo... então por isso que teve
esse rendiment ---eu acho que foi um rendimento
muito bom...---que era o que..oito horas podia chegar
que eles tavam tudinho... nove horas só se escutava
esse barulhinho tec tec ((risos))... quinze pras duas...
eles iam almoçar assim correndo... então o interesse
deles foi tão grande que eles tão querendo assim
adquirir o materIAL... o material em si... que eles
dizem “se a gente não praticar nós vamos esquecer”...
é verdade...
tá... então nós vamos tentar ligar lá pra Bengala
Branca pra ver qual é o preço que custa o material...
né...pra:: eles comprarem:: e::: continuar o
trabalho...
228
Ent.
Z.
Ent
Z.
comprariam individualmente ou a prefeitura compraria
pra eles?
individualmente... né...
hunrum
cada um quer adquirir o material pra si mesmo...
(D, p.08-09, ls. 447-479)
Outro momento em que esse outro-professor ganha valorização,
as falas de Z., é quando é confrontado com o perfil do supervisor. Nesse
caso, a valorização tem a ver com a proximidade do professor com a
prática, da qual, segundo Z., está distante o supervisor. O fato de que os
supervisores são enviados para os cursos no lugar dos professores
incomoda Z., que não vê neles interesse de fato pelas questões da
inclusão. Minha tentativa de amenizar a situação, lembrando que os
supervisores também têm que compreender o processo faz com que
ambas as professoras envolvidas na conversa reajam, exemplificando esse
desinteresse com o fato das supervisoras sequer se fazerem presentes
durante todo o tempo do curso; em contraposição a isso, e por causa da
necessidade prática, o professor teria aproveitado melhor.
Z.
Ent
Z.
L.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
agora mesmo por exemplo () foi quinze dias de
curso... era para os professores da Sala
regular...que estão atendendo os alunos... o que
que acontece... a diretoria de ensino () mandou
os supervisores...
mas num é nessa preocupação de fazer eles
entenderem um pouco também como é que
funciona...?
MAS o que que acontece
eles não passam o que vêem...
não... que num passam eu sei... mas esse entender já
num é meio caminho andado pra ele saber do que que
tá falando?
pode ser até que seja... se eles ficassem realmente no
local... mas é tão desinteressado... se eles ficassem
as oito horas do curso... assim... aí eles vão... eles
vão fazer... ele vão pro dentista eles vão tratar da
saúde eles vão num sei o que ((risos)) resultado...
quando dão três horas da tarde a sala tá vazia...
porque pra eles num tem...
ocuparam o espaço daquele professor que tinha o
direito...
se fosse o professor que está atuando com o
aluno de forma... dentro da necessidade... ele
iria aproveitar o momento (D, p,. 16, ls. 875-900)
229
Outro elemento que complementa a compreensão dessa relação
da professora de educação especial com as supervisoras, o que faz aquela
se deslocar de sua posição com relação ao professor de sala comum
aparece na continuidade da conversa: é a resistência das supervisoras por
causa da fama de “briguentas” das professoras de educação especial. São
professoras que, segundo Z.. reagem e não deixam por menos quando os
alunos são discriminados
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
L.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
não até que não... porque nós temos assim.. nós
temos assim () professoras doidas ((risos)) ...
como assim... que é doida...?
nós temos uma que eu vou te dizer...a L. ...gente a
L. eu num sei como é uma dupla daquela..a L e a
supervisora dela...
briga muito..?
mi::nha mãe....porque ela... ela diz logo ... “olha L. tu
vem cuidar de teus doidinhos... “de teus doidinhos
não... de nossos doidinhos”...((risos))
como é... isso é lá palavreado que uma supervisora
use....
pois é...
é... e ela diz assim “meu não... nosso... e outra
coisa... não é doido... tu respeita... porque eu vou te
colocar na cadeia...”((risos))
tá certa... a gente se educa uns aos outros é assim...
né...
então assim...são essas professoras assim que
tem aquele empaque né... e tu sabe que uma
supervisora ela vai passando pra outra quando
tem reunião...então eu acho que também por
isso ... tá havendo essa resistência ...
que vai haver... discussão... e::
vai haver discussão... aquela coisa toda...mas eu te
digo o seguinte que a/nas escolas que a gente tem
ido... né L..?... que a gente tem feito esse trabalho...
sabe... tem sido bem...tem sido bem aceito...(D, p.
18, ls.976-1005)
Sugerida essa capacidade de enfrentamento como própria dos
professores de educação especial, fica mais uma vez reforçada a
caracterização, feita anteriormente, dos professores de sala comum como
passivos. Por outro lado, o enfrentamento das supervisoras coloca do
mesmo lado esse professor e o de educação especial: com relação á
formação, e em contraposição com a postura dos supervisores, esse
professor aparece como interessado, pelo fato de estar imerso em
230
necessidades práticas que o fazem aproveitar
melhor a contribuição da
educação especial para sua atividade pedagógica.
Para enfeixar os efeitos discursivos produzidos no esboço do perfil
do outro-professor, que emerge em muitos momentos das várias sessões,
criei três linhas gerais:
a) aparece, na maior parte das falas e ao longo delas, uma distinção
entre o professor que faz inclusão, que é o professor oriundo da educação
especial, e o professor de sala comum. O lugar deste último no discurso
se configura geralmente por atributos como desinteressado, inseguro,
preconceituoso quanto às possibilidades desse tipo de educação, incapaz
do desprendimento que se verifica naqueles de educação especial. Este se
desenha, em contraposição, como um profissional que precisa estar no
controle do processo inclusivo e na defesa dos alunos com necessidades
especiais.
b) uma outra distinção entre os dois perfis de professor se esboça a
parir da possibilidade que a ação dos professores de educação especial
ajuda a conscientizar e a despertar aquele outro professor. Nesse caso,
este é descrito como interessado, capaz de investir e de participar da
própria formação.
c) a elaboração desses perfis têm um antecedente histórico: o
preconceito de que se sentiam vítimas os professores de educação
especial, antes da inclusão. A inclusão os coloca numa situação de poder
diferenciada: agora eles são uma espécie de assessoria, à qual os demais
professores têm que se submeter, de uma forma ou de outra,. As tensões
remanescentes da antiga relação se reconfiguram nas relações atuais,
mas
não
deixam
de
desenhar
posições,
de
certa
forma,
em
enfrentamento.
Num momento ou noutro, as condições históricas em que tais
atributos foram sendo construídos são levadas em conta, mas eu diria que
esses perfis, desenhado pelos profissionais cuja função é criar uma
relação entre a sala comum e a educação especial, tendem a se
estabelecer no imaginário dos professores de educação especial como
231
definição identitária dos demais colegas. Isso certamente influirá em sua
interação, e, por conseqüência no trabalho educativo a ser realizado por
ambos. Fica em aberto, já que a pesquisa não permitiu fazê-lo ainda, um
estudo do perfil que os professores de sala comum esboçam de seus
colegas de educação especial, os quais, na situação da inclusão, ocupam
um lugar privilegiado com relação a eles.
6.5. O LUGAR DO ALUNO DITO “INCLUSO”
Um terceiro outro, sempre presente nas falas dos entrevistados,
é o aluno que passou a ser denominado “incluso”: aquele que, ou sendo
oriundo da educação especial, ou tendo começado sua escolarização na
sala comum sob os cuidados do atendimento especializado, por conta de
necessidades educacionais especiais, é objeto da atuação tanto de
professores de sala comum quanto dos de educação especial.
Operadores que aparecem bastante, nas falas com relação a
esses alunos, quando os entrevistados são indagados das vantagens da
convivência, são sensibilização e ajuda.
Esses termos são encontrados na fala de P. que destaca a
importância de aluno cego e vidente se sensibilizarem mutuamente; ao
exemplificar, no entanto, ele destaca a aprendizagem do aluno vidente no
lidar com a deficiência do outro, movido pela curiosidade. O contrário não
é dito, da possibilidade de o aluno cego ser movido pela curiosidade de
saber das especificidades de um vidente, e das aprendizagens daí
decorrentes. A história que O. conta em seguida, para exemplificar essa
convivência, mostra um aluno ouvinte tentando ajudar a colega surda na
apresentação do trabalho; ela passa para esse aluno a tarefa de ajudar,
232
mais uma vez explicitando quem está em condições de ajudar e quem tem
necessidade de ser ajudado:
Ent.
P.
Ent.
P.
Ent.
P.
O.
P.
O.
Ent.
O.
fala/fala muito na literatura assim.. das vantagens
que é pra criança comum.. pra criança (da escola
regular) ter contato com essas pessoas.. cês vêem/
tem
visto
vantagens..
assim...no
desenvolvimento...DESsas crianças com relação ao
contato com a pessoa...cega...
é... digamos que é de grande valia... o contato é de
grande valia... é fundamental... eu diria que é
fundamental... porque::... sensibiliza as duas
partes... né...
hanran
sensibiliza tanto::: o aluno que tem a deficiência...
né.. como também...sensibiliza o aluno que não tem
a deficiência mas aprende a lidar com ela... a/porque
vai é::: vai criando gosto de maneira natural...
isso que eu queria perguntar... assim:: tem um/um
incentivo... um desejo de...
[
é... tem a curiosidade .. tem até curiosidade por
parte do aluno que não tem deficiência.. tem o
contato/ ele quer ter o contato... né...e é:: I::Sso
que:::... a legislação prevê por exemplo...
[
nós temos exemplo.. né:::.. E... por exemplo aqui na
escola... nós temos alunos inclusos... eu tou
colocando de quinta a oitava né..
[
exatamente
aonde a NECEssidade do coleguinha dele... de fazer
um trabalho com ele... apreSENtar um trabalho...
que o trabalho deles são visuais... né..
hanran
ou... gestos...as vezes eu
digo pra eles.. “se o
professor não conhece a linguagem use um gesto... a
mímica...aonde o professor... ele vai conseguir é::
entender o que você tá falando” e geralmente --incrível--- tem na escola nossa aqui... tem na escola
um aluno.. aonde lÁ na igreja de::le...Testemunha de
Jeová... lá eles conhecem a linguagem de sinais.. tá...
e LÁ ele aprendeu um pouquinho...e a necessidade
dele...porque tem um aluno e ele quer ajudar...ai ele
vai comigo.. “ professora eu pOsso ajudar....à/à
aluna Márcia” a/ “ pO:::de.. graças a Deus que
chegou você ... vem aqui” aí eu passo... quer dizer..
há todo aque:::le trabalho de interpretação...(B, p.5,
ls. 304-353)
Também na sessão C, nas falas de D., aparecem os operadores
sensibilização e ajuda, dessa vez associados a socialização. Os benefícios
da inclusão são relacionados ao aluno que tem necessidade especial e não
233
ao outro. O fato de o aluno surdo “as vezes...ajudar o ouvinte” não deixa
de reforçar o que tinha sido sito pelo outro colega: via de regra, é o
surdo, o cego, a pessoa que necessita de ajuda. No último turno D. faz um
fechamento para o raciocínio que
mostra o que para ela seria sim um
problema difícil de contornar: uma diminuição da capacidade cognitiva. Ou
seja , a possibilidade de ajudar, na escola, aos alunos surdos e cegos,
assim como sua aceitação, tem a ver com o fato de que sua capacidade
cognitiva não foi afetada.
Ent.
D.
Ent.
D.
(...) na verdade a grande tese da inclusão é essa...
né... que::: todo MUNdo ganha com a inclusão...
ganha o chamado incluso... ganham os demais
colegas... vocês acham...que isso se evidencia... dá
pra ver isso na...sala de aula...
eu acredito que sim...eu acredito que sim.. a gente
tem... eu acredito que...de forma alguma ia ser
diferente... eh:::...com certeza vai ser diferente... se
esse aluno surdo que hoje tá lá... co::m trinta... trinta
e cinco alunos... dois alunos surdos e trinta ouvintes
na sala de aula...se eles estivessem exclUÍdos desse
grupo com certeza o aprendizado deles seria
diferente... eu acho que a inclusão ela... beneficia
sim...
esse aluno que tem uma necessidade
especial... né... de aprendizagem... por que a gente
que trabalha... eles estão lá socializando com os
outros..os colegas ajudam... eh... aqui a gente tem a
questão da aceitação que é muito bOA... então
acabam:: se ajudando... e:::a gente percebe que ás
vezes o aluno SURdo também ele ajuda o colega que
é ouvinte... ele percebeu meLHOR... né... rápido...
primeiro que o aluno ouvinte e acaba às vezes
ajudando...
hunrum
então a gente vê que não é. eh::: não é questão..não
é nenhuma questão cogniTIva que ele tem... né... e a
questão da surdez não... não o atrapalha...na questão
da aprendizagem né..não diminUI a capacidade
cognitiva dele...né...(C,p.9, ls 457-488)
Essa condição colocada para que a convivência seja benéfica
remete ao dizia Z. na sessão D: os problemas da inclusão têm a ver com
certos tipos de deficiência: aquelas que colocam em xeque a norma da
escola. Para esta, a mudança de visão dos alunos com relação aos colegas
com necessidades educacionais especiais levam a tentativas de ajuda.
234
Ent.
L.
e você acham que a sala de aula... os outros alunos
eh:: no contato com os que tem necessidades
especiais...
vocês
acham
que...
que
isso
melhorou...as condições sala de aula... ou criou mais
dificuldades pra funcionamento... em termos de
aprendizagem... relações... pessoais:::... disciplina...
eu acho... eu vejo assim que...que desenvolVEU essa
parte...até porque eles não são tão... tão assim...
discriminados... tem aqueles que (sentem) até... se
vê ... iGUAL... apesar de/aí depende... depende da
escola... do professor... essa questão de aceitar a
sensibilização ... então na medida que o professor
vai adquirindo conhecimento até os próprios aLUnos...
os próprio colegas vão vendo eles de outra forma... a
gente vê que eles tentam ajudar não é... colegas
que tem mais dificuldade... no caso dos alunos que
têm déficit cognitivo...enfim... eles se ajudam... (D,
p.18-19, ls 1015-1034)
Tais palavras trazem uma carga relacionada à própria história da
deficiência: esse aluno é sempre alguém que precisa da sensibilidade e da
ajuda dos outros, tidos como normais. Por outro lado, a tarefa da
inclusão, ao juntar diferentes na mesma sala de aula, precisa ir além de
tornar as pessoas sensíveis à presença do aluno com necessidades
educacionais especiais: precisa garantir que o aluno aprenda, ao mesmo
tempo em que possa ensinar algo (e esse algo precisaria ter a ver com o
específico da escola, e não com o específico da deficiência).
A quantidade de alunos em classe, descrita por Z. como uma
tentativa do poder público de aumentar as verbas recebidas para a
educação (que são calculadas por quantidade de alunos), traz uma
informação que coloca em dúvida a possibilidade real do atendimento
pedagógico desse aluno incluso: cada aluno com déficit cognitivo é
contado por dois para efeitos desse cálculo. A redução não é grande coisa,
considerando-se que não são colocados muitos alunos com necessidades
educacionais especiais em cada sala de aula. Assim, uma sala que teria
quarenta e recebe três alunos DC, por exemplo, ainda fica com trinta e
sete alunos.
Ent.
eu fico pensando nesses professores assim... porque
ao mesmo tempo que eles têm que ter a formação em
235
Braille... sabe... e... e em outras sabe porque não vão
ter só alunos cegos em sala... eles tem tam-bém toda
a preocupação com os alunos videntes
videntes
com os que têm déficit cognitivo... com os que têm
problemas com... com a escola...com disciplina...
enfim vocês conhecem a realidade da sala de aula...
é por isso que eu bato na tecla que eu acho que a sala
de aula deveria TER SIM... só vinte e cinco alunos...
e se tiver alguém com DV talvez até menos...
até menos...não...vinte e cinco alunos seria com... já
incluído...
com esse incluso...
com o aluno... por exemplo... a cada...DC ---deficit
cognitivo--- é menos dois alunos... é menos dois
alunos aí o que acontece... inchaço... a turma com
quarenta alunos... é... é... aquela história... não
vamos tapar o sol com a peneira... tá... porque é
aquela coisa assim.. é menos...menos dinheiro pra
pra... pagamento de professor... é menos professor...
né... porque eles ganham...
aumentar a quantidade de gente na sala... né
é... em vez deles pagarem dois paga só um... tá... aí
o que é que acontece... num aumenta renda da
escola... porque o alunos que eles ganham... a verba
vem por aluno...(D, p.06 ls 305-336)
L.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
L.
Z.
Ent.
Z.
O aluno, descrito aqui a partir da posição do poder público,
ganha atributos de valor contábil. Mesmo aquela possibilidade de ajudálos (numa visão médico-assistencialista) fica extremamente comprometida
se se pensar nas limitações de um professor para atender a tanta gente,
ainda que com a ajuda esporádica dos professores que fazem o
atendimento
especializado.
É
de
se
concluir,
portanto,
que
o
especificamente pedagógico perca muito, mantidas essas condições.
Isso faz com que a preocupação com a aprendizagem dos
conteúdos
apareça
nas
falas
dos
professores
de
atendimento
especializado:
Z.
Ent.
Z.
(...)
eu tou muito preocupada com os alunos do NAEJA
((Núcleo Avançado de Educação de Jovens e
Adultos))em termos de... de... matemática... por
que:: eles tem que fazer os cálculos matemáticos
porque o ano que vem eles TÊM... por o-bri-gação...
eles tão o que... na quarta etapa?
eles tão na quarta etapa... o ano que vem eles
ingressam no ensino MÉdio... então VAI exigir..(D,
p.04-05, Ls. 214-221)
236
D.
J.
D.
nesse primeiro momento... a gente pode até dizer que
é ..uma rejeição..mas eu diria que..é uma rejeição
eh:: eh:: por MEdo de não conseGUIR::..
[
cumprir o conteúdo (...)
de não conseguir comunicar... de não conseguir
ensinar o conteúdo dele da mesma forma que ele
tá ensinando ..ele fica sem saber como que ele vai
ensinar da mesma forma que ele tá ensinado pros
ouvintes pra’quele aluno surdo...(C, p. 10-11,ls. 563573)
A sessão C, da qual foi extraído o ultimo excerto, da qual
participaram um professor de exatas (J.) e uma professora de língua
estrangeira (D.)_ os únicos que não são oriundos dos quadros da
educação especial_ girou, quase que completamente, em torno da
discussão
das
possibilidades
de
aprendizagem
de
determinados
conteúdos, dos métodos adequados, dos recursos. J. vislumbra inclusive a
possibilidade de produção de novos métodos:
J.
Ent
J.
...mas aqui o CAP eu vi que tem uma oportunidade de
criAR material...sabe... principalmente na área de
eXAtas... que você tem que peGAR você tem que
VER..sabe...(...) interessante... pra você estuDAR...
pesquiSAR (...) principalmente o cego... o baixa
visão... então eu entrei com esse propósito de fazer
um estudo profundo disso aí...
(...)
é....de produzir métodos... de ensino...sabe?... de
criar material... de... fazer um esTUdo MESmo...
científico... em cima dessa área... então... meu
objetivo era passar este a::no estudando o cego e o
baixa visão..aí eu entrei(...) com esse objetivo..aí eu
vi que não é só:: o baixa visão que
tem essa
necessidade ..que as pessoas de DA ((deficiente
auditivo)) que tem uma necessidade muito grande...
C, p.03, ls 135-153)
Retornando às condições que são vinculadas à aceitação ou não
desse aluno, na fala de Z. a rejeição tem a ver com a incapacidade que o
aluno mostra de adaptar-se à norma escolar. Nesse caso, os alunos com
déficit cognitivo se diferenciam dos cegos, com baixa visão e surdos:
Z.
Ent.
Z.
a resistência maior que existe é com os alunos DC...
mas porque será...
porque os alunos com déficit cognitivo eles são
irrequietos... né... eles pu::lam...eles fa/eles não
237
Ent.
Z.
L.
Z.
sosSEgam... porque... porque não têm o atrativo pra
eles que aquele negócio só de escrever escrever
aquilo ali não é pra eles
((risos)) nem pra nós né....a gente cansa muito
[
pois e´...
pro::pro dito normal já é...já é chato agora imagina
então com ESsa::/com essa categoria... é uma
reclamação só... se você juntar os professores de/
que têm aluno incluso DC tá... aí você var ver
aber/aberração... (D, p. 09-10, ls. 498-516)
O aluno ideal é aquele que agarra as oportunidades que a escola lhe
oferece, o que não acontece com aqueles classificados como DC. A
inclusibilidade, então se ancora não nas necessidades reais do aluno, mas
no quanto ele se aproxima das características do aluno ideal prevista as
pela escola.
Z.
L.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
é porque é aquela coisa também...os alunos DV... os
alunos DA...qualquer oportunidade que eles dão...
eles seguram... tá... com unhas e dentes... o DC
ele já num tem essa conscientização pra eles... pra
eles/eles tanto faz com tanto fez... e eles não são
trabalhados nisso...
mas também é questão do ritmo de aprendizagem...
questão do ritmo:::
questão do ritmo do tipo de coisa que eles possam
aprender..do limite que eles têm...até onde vão
aprender...
Isso... tá...então eles se tornam assim crianças muito
irrequietas...com elas são chamadas () doidinhas...
são considerados como os doidinhos da escola...
e a escola lida muito com a coisa da disciplina...
[
da disciPLIna...
quanto mais o aluno é quietinho mais ele é bem
aceito...
mais ele é bem aceito...quer dizer que quando/eh:::
na escola aqui mesmo a gente vê... um aluno
aprontou... “vai pra casa só volta quando seu pai vier”
... (D, p. 10, ls. 539-564)
O outro-aluno é, geralmente, adulto, segundo Z. (“hoje nós
temos alunos... nossos alunos... é mais na fase adulta... (D, p. 22, ls.
1199-1201)77 , e esse dado traz uma nova especificidade que não pode
deixar de ser levada em conta: um adulto que decide estudar é movido
77
Os relatórios gentilmente colocados á disposição pelo Departamento de Educação Especial da Secretaria
municipal de Educação não trazem dados relativos a faixa etária. Pude verificar na convivência de vários meses
no CAP que os alunos que o freqüentam são geralmente adultos.
238
por interesses diferentes dos de uma criança que é mandada à escola,
independentemente de suas necessidades especiais.
Sua capacidade de intervir também é muito maior, e essa
informação modifica o entendimento do quanto o aluno pode “incomodar”
a suposta passividade do professor, já destacada na fala de Z. “é::: tem
que incomodar porque se não incomodar ((a professora)) não vai sentir
aquela pedrinha no sapato ali né...”. A capacidade de pressionar desses
alunos, de ser uma “pedra no sapato”, foi exemplificada numa ação em
que eles acionaram o Ministério Público contra a secretaria, tentando
garantir seus direitos. Isso mostra que sua capacidade de intervenção vai
além da sala de aula:
Z.
Ent.
Z
(...)
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
Ent.
Z.
agora os alunos de DV peGOU no calo deles eles
tão..
((risos))
reagindo...
os meninos tava falando até aqui que:: “é...eu duvido
que se isso fosse comigo se essa sala não já tava
pronta”...( D, p.12, ls.591-597)
com DA...só que aquela coisa..os alunos...
os
alunos de DA eles são mais... num é nem porque/é
porque a professora SE ela for falar o que os
alunos..falam.. ((traduzir da LIBRAS)) num é... na
frente do Ministério Público/na frente da secretária de
educação..é porque é ela...
é a opinião da professora...
é... então que que vão dizer... vão dizer que é ela que
tá... incentiVANdo...igual ()
então eles vão ter que arranjar outro intérprete... de
outra maneira... agora a voz deles tem que aparecer
num é...
tem que aparecer... eu disse pra eles “então leva na
escrita”
documenta...
documenta...”você senta vocês faz o documento”
abaixo-assinado...
se não vai verbalmente vai no ((escrito)) (D, p.12, ls.
647-666)
O outro-aluno tem também como característica importante ser
geralmente um migrante, geralmente vindo de outras experiências de
educação especial. Isso explica também a preocupação de Z. com a
atualização
diferenciada:
constante: a cobrança desse
tipo
de
aluno
pode
ser
239
Z.
então as duas estão inscritas pra fazer... atualização...
no caso eu vou fazer atualização e ela já vai pegar o
outro método porque na verdade o soroban tem
qua/três métodos... ele tem um método lá do sul...
que é da::: da Cleonice... né... ele tem um método
da/da Bahia... na Bahia eles já usam um outro...
outro método pra...pra ensinar o soroban... e temos
um mé::todo aí que/que foi o primeiro que...que
surgiu... né... então:: tem esses três... então o
PROfessor da... da... da sala de recurso... do CAP...
ele tem que estar afiado nos três... porque se não
tiver... vai ver que vem alguém lá do sul... vem
de lá do nordeste... e aí como é que nós vamos
fazer... né? (D, p.02, ls. 123-137)
Por outro lado, ainda que sendo adultos, os alunos com
deficiência podem ter um histórico de super-proteção familiar, o que tem
o efeito de lhes reduzir o estatuto de maioridade. A história de A., aluno
cego do ensino médio, é contada como exemplo tanto de relações de
super-proteção na família quanto do processo de superação disso pela
ação dos colegas e professores:
Z.
Ent.
Z.
Z.
Ent.
Z.
acho que é onde tem menos resistência é dentro da
própria sala de aula... é entre os próprios alunos...
principalmente assim...nessa fase inicial.. porque sabe
que quando eles já são adolesCEN::tes...já pode
então... eles mesmos se isolam... eles mês mos... já
faz o mundinho deles... e aí eles acham que todo
mundo tá contra eles... eh:: tipo assim...um aluno
que nós temos no Acy Barros... então... eles/começa
por eles..ele não aceita a própria deficiência que ele
tem... a família superprotege... os meninos tavam até
rindo aí um outro dia que ele caiu e se machucou –
um rapagão já... sabe--- aí ele ficou preocupado com
a mãe dele ver aquele machucado ((risos)) que
quando chegar em casa a mãe dele ia brigar por
causa daquele... que ele caiu... aí () mancando... fez a
maior coisa daquele:::
maior drama
é maior já... faz o primeiro ano do ensino médio...e
com essa familia sabe... preocupada aquela coisa....
((vozes concomitantes))
A mãe... a familia em si é que::não facilita
não facilita...
e... na sala de aula ele tava numa situação que ele
não queria participar com o::: o grupo... né... mesmo
porque os outros alunos disseram que não iam
fazer trabalho pra ele... e ele muito mimado... a
irmã era que fazia todo o trabalho... então com o
trabalho/depois desse curso que houve... né... que os
240
professores começaram a (conversar) com ele...
começaram a falar pra ele do curso... ele não aceitava
o Braille agora já tá aceitando... porque como eu disse
pra ele /eu digo “agora até os seus professores que
são videntes... eles tão aprendendo o Braille... porque
que você que TEM necessidade num vai fazer?”...né
então foi um toque assim:: que ele já/hoje já vem...
tá... no horário dele de Braille ele já vem...então foi
uma mudança assim muito boa... os próprios alunos...
foi feita a sensibilização na escola pros alunos na sala
de aula...então houve uma aceitação melhor... então
hoje já tá bem... sabe... houve um bom desempenho
na turma... (D, p. 19-20, ls. 1035-1080)
Esse trabalho com a afetividade, tornado necessário no exemplo
dado por conta de uma atuação da família, deve ser expandido para todos
os alunos, na opinião de O.. Ela aproveita para fazer a crítica do
tradicionalismo, utilizando uma expressão típica: a professora “carrasca”.
O.
eh: eu tinha falado com a direção aqui né.. porque a
gente tem que trabalhar... todos esses pontos...
né...não só o deficiente... mas também de indivíduos
norma:::is...
porque
nós
precisamos
de
afetividade... nós precisamos ter carinho... nós
precisamos de atenção... então é... quando eu não
tou na sala de aula... eu tou lá na sala regular de
cima... ali com os meninos... do lado de cima... então
eu vejo a carência deles em relação a... a/o
profissional tá ali... aquela professora carrasca...
aquela professora que só manda... não passa a
mão... entendeu... não tem uma/uma palavra de
cari:::nho... entendeu... não tem... então quando
eles encontram uma professora... que vai assim...
eles se apegam... todos nós...(B, p.13, ls. 693-708)
A experiência com os alunos surdos e com os demais alunos da
sala regular mostra a O. que a carência afetiva não é própria apenas
daqueles que sofrem uma discriminação específica, mas é comum a
todos; ela a atribui isso a posturas tradicionais em que o professor se
coloca física e emocionalmente distanciado dos alunos (“não passa a
mão”... “não tem uma palavra de carinho”...). A ampliação de um
trabalho com os aspectos afetivos para todos os alunos, baseado na
experiência com a inclusão de alunos com necessidades educacionais
especiais, é um dos aspectos em que se pode dizer que a aprendizagem
específica da inclusão se coloca a serviço de todos.
241
Se no exemplo dado por Z. tratava-se de ajudar o aluno a
superar o excesso de proteção, ganhando mais autonomia ( e aparece aí
uma noção do aluno como capaz de e tornar emocionalmente forte
autônomo), na fala de O. trata-se de fazer o movimento contrário, mas
complementar àquele: ajudar a aproximar professores e alunos em laços
afetivos, superando a distância física e emocional estabelecida num
modelo de ensino tradicional _ emerge aí uma noção do professor e do
aluno
como
capazes
(e
necessitados)
de
se
doar
também
emocionalmente.
Os efeitos discursivos elaborados em torno do esboço desse
outro-aluno nas falas dos professores que atuam na inclusão entrelaçam
então aspectos remanescentes da tradição assistencialista da educação
especial como alguém que necessita de ajuda (e para tanto é preciso
sensibilizar os outros), que desperta a curiosidade, alguém que de acordo
com a sua deficiência pode se inserir melhor ou pior na escola (por conta
da características da própria escola). Outros aspectos se confrontam com
aqueles, às vezes no discurso da mesma pessoa: esse outro também é
alguém em cuja aprendizagem e desenvolvimento eles investem; um
outro adulto, que reivindica sua cidadania e seu espaço no mundo; um
outro cuja experiência de migração faz com que tenha exigências de
acompanhamento diferentes; um outro cujas carências emocionais têm
que ser trabalhadas, e nisso não é diferente dos demais e dos próprios
professores.
Durante todo o tempo em que acompanhei o trabalho no CAP, os
professores, sem exceção, falam apaixonadamente de seus alunos;
conhecem-nos em detalhes, acompanham cada passo de suas vidas (as
lutas por passe livre, pela aplicação correta dos recursos, as aflições em
tempo
de
avaliação
escolar,
as
tentativas
de
aprendizagem
dos
conteúdos, a relação com os outro professores, com a família). É verdade
que também se definem com relação ao outro-governo e ao outro
professor de sala comum, mas creio que a relação com o aluno é a que
242
mais o define como professor, é a relação emocionalmente mais
consistente; com relação a este ele se desdobra em militante, psicólogo,
pesquisador, especialista em determinados conteúdos, e evidentemente,
não deixa de ter um característica paternal/maternal, na medida quem
que sobrevive um certo assistencialismo na relação.
6.6. FORMAÇÃO SUPERIOR E FORMAÇÃO EM SERVIÇO
O aspecto da formação é uma constante nas preocupações que
aparecem nas falas dos professores. Emerge em todas as sessões, a
propósito dos mais diversos temas.
Quando T. reage à descrença do outro professor em sua
capacidade, por exemplo, é à formação que ela recorre:
T.
tenho que dizer o quê... eu disse...como eu falei pra
ele, eu digo não, você não vai/eu não vou ensinar
você...você vai aprender comigo o que você não
conhece... e você não conhece a educação especial...
porque
você
nunca
fez
um
curso
de
aperfeiçoamento...
nunca
fez
um
curso
de
capacitação... então você não sabe...
nunca viveu ...() de trabalhar com alguém...
ou seja... porque você nunca fez um curso de
capacitação...
nunca
fez
um
curso
de
aperfeiçoamento... e eu tenho uma espECIA-LI-ZAÇÃO... um adicional de quase oito meses...(A, p.2-3,
ls. 105-117)
Ent.
T.
Tento inserir na discussão o aspecto da experiência com
educação especial, mas ela se mantém no tópico que lhe aprece
importante: é o fato
de ter-se capacitado que lhe dá
autoridade para
dizer que tem algo a ensinar ao outro, ainda que esse outro seja mais
velho e mais experiente.
243
Em outros momentos, o operador aparece nas referências ao
professor de sala comum; nesse caso a falta de formação é geralmente
evocada para explicar as dificuldades que o professor tem em lidar com as
especificidades dos alunos surdos, cegos, com baixa visão, com déficit
cognitivo. No excerto abaixo, por exemplo, o professor recorre à
explicação da própria falta de formação, segundo O., para justificar a
recusa do aluno surdo, e ela própria reconhece que sem essa formação e
o conhecimento necessário, fica difícil o trabalho daquele professor:
O.
a desvantagem do ponto de vista pedagógico no caso
né... é até de interesse mesmo né...que a gente vê
...do professor não querer.. é:::.. estar com aquele
aluno em sala de aula.. quer dizer ...ainda há essa
discriminação... “ ai eu não sei trabalha:r.. eu não
sou forma:da... e::u não sei .. eu não sei pra onde
va:i .. e comé que eu vou ensinar.. e isso...” né
...então.. coisas...que realmente aconTEce em tO:das
as escolas aonde o professor realmente ele não/ não
conhece..
né..
aquele
aluno..
ele
não
conhece...aquela/aquela... deficiência em si.. ele não
tem o conhecimento daquilo ali.. então pra ele é
difícil... (B,p.8-9, ls,453-466)
O operador formação surge no discurso com dois sentidos
principais: ou se refere aos cursos de treinamento que os educadores
especializados oferecem aos professores em geral, ou aos cursos de
formação superior.
O primeiro sentido aparece com uma ênfase maior no discurso
da maioria dos entrevistados. Nesse caso, geralmente significa cursos
técnicos ( Braille, LIBRAS, Soroban, etc.). Não me deterei nesse aspecto,
nem apresentarei muitas citações porque elas aparecem abundantemente
ao longo de todo o texto. Gostaria de chamar a atenção, no entanto, para
o entusiasmo e a importância que
esses educadores atribuem a esse
trabalho: T., quando fala da recusa do professor em fazer o curso; Z. e L.
descrevendo o curso que ministraram, em que os professores quiseram
até comprar o próprio material; O. quando descreve a grande necessidade
que os professores novatos têm de aprender LIBRAS e seu esforço em
244
fazer com que ele usem. A citação abaixo é apenas um dos muitos
momentos em que essa valorização se evidencia:
Z.
É::: se identificaram muito... MUIto MESmo...
sabe....é tão/tanto que nós saímos de lá... “professora
nós vamos sair daqui mas nos já vamos sair já... com
a data marcada... do segundo encontro”... que vai ser
do dia vinte e seis ao dia vinte e nove de setembro...
tá... que eles já iam colocar no planejamento deles
que essa semana eles estariam fora da escola... que
eles iam... fazer esse trabalho... quando eles dizem
assim “nós num tamos fora da escola... nós tamos é
dentro da escola fazendo
fazendo::
nós tamos fazendo a formação... então foi muito
bom por que:: teve professor que foi até em casa de
aluno(D, p. 06. ls. 288-303)
Ent.
Z.
À valorização do fato de estar capacitado soma-se uma certa ânsia
de
capacitação.
Elas
se
referem
com
entusiasmo
aos
curso
em
andamento, tanto que realizarão com os professores quanto aos que elas
próprias participarão na qualidade de alunas, como nos dois excerto
abaixo:
O.
(…)
Z.
Ent.
Js.
Ent.
Js.
dizer...esse ano...é pra começar agora... dia quatorze
de agosto... o terceiro curso de linguagem de sinais
na escola.. só não vou começar .. porque eu vou
adiar...por::que eu vou ter que viajar... mas no
moMENto que eu chegar.. eu já vou fazer meu
cronograma
pra
/nesses
profissionais
que
estão/principalmente nos novatos que entraram
agora... a necessidade é muito grande...(B, p.4, ls
191-199)
é...eu tive assim experiência --- e foi uma experiência
muito boa porque eh:: devido estar... há mais tempo
no Braille... a área mesmo pra que eu fiz... então
como... né... porque como eu sou registrada no MEC
todos os curso que vem já vem:: é sempre assim... o
município... ele já tem os professores que vão
indicar... né...
hum
então LÁ mesmo eles já têm os::os nomes dos
professores... então... como:: por exemplo nós
temos:: duas etapas ainda de curso fornecido pelo
MEC... que no caso é AVD, né que eu falei?... AVD e o
soroban...
AVD...
né... soroban... então como eu tava falando pra N.
((coordenadora de educação especial)) já que a
245
Ent.
Js.
demanda tá grande... quando eu fi/ quando eu fui me
inscrever eu já inscrevi o nome dela (L.) também...
hunrum...
então as duas estão inscritas pra fazer... atualização...
no caso eu vou fazer atualização e ela já vai pegar o
outro método porque na verdade o soroban tem
qua/três métodos... (D,p. 2-3, ls. 102-126)
Por outro lado, é perceptível uma diferença entre os entusiastas
da formação técnica em serviço e os da formação superior. Nas falas dos
entrevistados que deram ênfase maior aos treinamentos,
poucas
referências aparecem ao curso superior (apesar de que todas são alunas
de Pedagogia em fase de conclusão do curso). Quando Z. se refere à
universidade, por exemplo, é mais como instituição de apoio, da qual ela
reivindica o envio de estagiários para atuar no atendimento especializado
e assim,quem sabe, despertar vocações. O. se refere a ela como o futuro
do aluno que ela acompanha, mas não com relação à própria formação. A
referência que O. faz à própria formação superior traz a lembrança do
preconceito dos colegas com relação a educação especial, traz as marcas
de seu confronto com esse preconceito:
O.
(...) não é esse nã:::o porque no momento que você
tem...na universidade como ( eu fiz né). E:::
educação especial.. quer
dizer.. quando a gente
começava a debater educação especial sobre
trabalhos feitos nO município...né... o pessoas
diziam... “que na:::da...o professor de educação
especial com dois alunos não trabalha nã:::o”
né... “ as pessoas de educação especial não faz nada”
...“ as pessoas de educação especial ou a/a o
departamento
de
educação
especial..não
traba:::lha... não dá suporte pra professor...isso e
aquilo”... então quer dizer nÓs que estamos dentro da
educação especial..
que trabalhei... a gente
entende... quer dizer ... há/há ...aquela né /aquele
DEBAte né.. porque eu
defendo...eu defendo
porque eu to de:::ntro...eu trabalho e vejo meu
trabalho né.. eu defendo aqueles também ... o
profissional ...que realmente na educação especial ele
faz o trabalho... (B,p. 10, ls.544-563)
É nas falas de P. (pedagogo) e J.(licenciado em matemática) que
o termo formação aparece mais no sentido de um curso superior. Nesse
246
sentido, formação geralmente tem a ver com a formação dos próprios
educadores do atendimento especializado e dos professores de modo geral
Quando P. faz a crítica da inadequação da universidade, referese basicamente a duas questões. A primeira: como instituição de ensino,
ela própria não tem estrutura para adequadamente os alunos com
necessidades educacionais especiais
(P. é pedagogo e tem baixa visão;
fala, portanto da própria experiência):
P.
(...)
P.
...então não é só a escola HOJE não é só a escola que
tem a dificuldade de atender esse aluno... não é só a
escola/não é só a escola de educação básica... mas
também a de ensino superior... né... e:: pelo que a
gente vê HOje a gente:: percebe que:::... em alguns
casos... as escolas de educação BÀsica tá à frente
das---no atendimento a esses alunos---...tá à frente
das universidades né porque--- como:: a gente::
sabe--- existe sala de recurso...existe centros de
apoio pedagógico pra... pra atender os aluno com
deficiência e na universidade não se vê muito
disso não...(B, p.02, ls. 58-70)
eu acho que é por isso que a gente falou no começo
que as universidades não se adequaram... porque
realmente... custo::u mu:::ito dar atenção pra
educação da/do portador de necessidades especiais...
então são poucos que chegaram ao curso superior...
então a quantidade que chega é tão insignificante...
que eles acham que não tem que se adequar... o
que chega lá vai se virar...(B, p. 11, ls.617-625)
A segunda questão que aparece no discurso de P. acerca da
universidade é que ela também não fornece aos alunos de licenciatura
uma formação adequada para atuar na inclusão. Isso justifica talvez a
ênfase
que os outros entrevistados dão aos treinamentos em Braille e
LIBRAS,os quais funcionam como um preenchimento dos vácuos deixados
pelo curso superior no que se refere à educação especial.
P.
pois é.. e::: falando da questão do prejuízo e:::u....
outro prejuízo que eu vejo... é porque as
universidades/por
exemplo...
as
licenciaturas
..deveria... já há muito tempo... ter enquadrado
esses currículos nessa política de inclusã::o
porque é como um professor de história tava me
falando.. “ po::xa eu aprendi a dar aula de historia...
mas nunca me disseRAM... que ia ter que falar em
LIBRAS pra me comunicar...
247
Ent.
P.
não disseram nem pra mim .. nem pra você..
não disseram pra ninguE::m... quer dizer.. forma-se
por exemplo... pedago::go... licenciado pleno pra dar
aula de
primeira a quarta série por exemplo...
educação infantil...mas sobre política de inclusão... a
universidade
não faz nada... então a pessoa sai
licenciada... né .. pleno que::... nÃ::o é pleno..
porque quando se fala em atender o aluno ce::go...
em atender o aluno sur::do... em atender o aluno
deficiente cognitivo... ai ele tá
realmente
despreparado... então há esse/essa divida social na
universidade... (B, p. 9, ls. 506-527)
Para J., que vem de uma outra experiência, o começo das relações
com os alunos cegos aconteceu no próprio estágio do curso universitário:
J.
Ent.
J.
Ent.
J.
Ent.
J.
eh...minha
história
como...com
deficiente:::
visual...principalmente...
começou
em
São
Paulo...né...que eu tive uma aluna...que era escola
particular...era a Escola do Sagrado Coração de
Jesus..e tinha uma aluna que era cega...ne...e aí... eu
fazia faculdade ainda... tava no terceiro, quarto ano...
e eu tive a oportunidade de fazer estágio nessa
escola....como estagiário...aí ela tava no segundo
ano...né ...eu estagiei um ano lá, ai no terceiro ano fui
professor dela...ne´...no ano seguinte eu virei
professor da escola e... tinha muitos recursos
assim...ela:: tinha grana... tinha condições de
carregar sua máquina ((de Braille)) lá dentro então
era mais FÁcil pra ela
hunrum
muito mais fácil ..e mais fácil pra nós também...
professores... lá... não tinha sala de apoio... ela:: era
auto/auto- suficiente... aí eu vim pra cá... e o ano
PASsado, eu...ah:: N.H. me procurou que tinha uma
aluna... tinha uns problemas de... umas questões de
matemática... química () num conseguia resolver... ai
eu saí da sala de aula e fui ver o que que era... se
conseguia resolver pra ela... eu achava que era uma
aluna::... né...
com dificuldades de compreensão...
depois fui ver que era uma aluna cega... cega não...de
baixa visão...
hunrum
que era a T. ...então a partir daí eu comecei::...(C,
p.02, 75-105)
Dentro do CAP, J. já enxerga possibilidades que vão além do
mero treinamento (ao qual aliás ele se dedica com a maior seriedade:
estuda Braille e LIBRAS na horas vagas, para poder acompanhar os alunos
nas disciplinas da área de exatas) ele se vê como professor-pesquisador,
248
criando métodos e produzindo recursos para melhorar a aprendizagem de
alunos surdos e cegos:
J.
Ent
J.
mas aqui o CAP eu vi que tem uma oportunidade de
criAR material...sabe... principalmente na área de
eXAtas... que você tem que peGAR você tem que
VER..sabe...(...) interessante... pra você estuDAR...
pesquiSAR (...) principalmente o cego... o baixa
visão... então eu entrei com esse propósito de fazer
um estudo profundo disso aí...
(...)
é....de produzir métodos... de ensino...sabe?... de
criar material... de... fazer um esTUdo MESmo...
científico... em cima dessa área... então... meu
objetivo era passar este a::no estudando o cego e o
baixa visão..aí eu entrei(...) com esse objetivo..aí eu
vi que não é só:: o baixa visão que
tem essa
necessidade ..que as pessoas de DA ((deficiência
auditiva)) que tem uma necessidade muito grande...
só (C, p. 3, ls 135-152)
A formação universitária aparece, no discurso da ausência que
faz P., como capaz de prover os licenciados dos conhecimentos (inclusive
técnicos) necessários para lidar com a inclusão. Nas falas de J., ela se
entremostra em sua disposição de atuar na produção científica.
Um distinção que me ocorre entre os dois tipos de formação
propostos nas falas analisadas é que no primeiro (o treinamento em
serviço) o professor, pela própria falta de tempo e recursos, se subordina
muito mais à formação que lhe é proposta pelo governo, não podendo ser
sujeito de sua própria formação, como bem lembra P.:
P.
... camarada que ganha pouco... e a::nda de ônibus... em
fim... não é fácil... que não tem o direito de administrar nem
sua própria formação... né..(B, p.20, ls. 1012-1014).
No segundo caso, a própria amplitude da formação permite
maior leque de escolha. Por outro lado, deixa de fornecer o específico de
que necessitam os professores envolvidos na inclusão. Aquele entusiasmo
pelo saber fazer que demonstram T., Z. L. e O. pode ter inclusive relação
com o fato de que os cursos de formação superior, voltados mais para o
refletir, deixam um vácuo na formação profissional.
249
Os sentidos referentes ao operador formação, então, na fala dos
entrevistados, podem ser enfeixados
em dois grupos: os sentidos
referentes a formação em serviço, técnica, voltada para as habilidades
que permitem melhor comunicação com os alunos (nesse caso, surdos e
cegos; não houve nenhuma referência a cursos para os professores que
lidam com déficit cognitivo, cuja responsabilidade é de outra equipe); e os
sentidos referentes à formação universitária, a qual aparece de duas
formas:
como
ausência
e
possibilidade,
quando
é
descrita
sua
inadequação à inclusão, e como base para o professor ir além do mero
ensino e tornar pesquisador e produtor de métodos e material. Parece
haver uma linha que separa os dois grupos de sentido: quando um é
enfatizado, o outro praticamente desaparece: não surgiram relações entre
um e outro grupo de sentidos nas falas analisadas. Pode ter relação com
isso o fato dos falantes que enfatizam a formação em serviço virem da
educação especial e terem começado o curso superior depois, enquanto
que os outros dois concluíram o curso superior para depois começarem a
atuar na inclusão, sem ter passado pela educação especial.
6.7. MODOS DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO ESCOLAR: TEMÁTICAS
E MODOS DE OPERAR
O modo de funcionamento que capto no discurso dos entrevistados
pode ser configurado com base nas relações entre os enfeixamentos de
efeitos discursivos anteriormente analisados: os relativos a aprendizagem,
aos outros (governo, professor e aluno), ao próprio professor que atua na
inclusão e à formação.
Para relacionar esses conjuntos de efeitos discursivos (os quais
englobam tanto as temáticas quanto os modos como o discurso opera com
250
elas), organizei algumas configurações discursivas que buscam cruzar os
conjuntos de efeitos.
O fato dos entrevistados não se referirem, na temática da
aprendizagem, aos conteúdos, e sim ao domínio de técnicas, ganha
sentido quando aparece a ênfase nos cursos de treinamento; do mesmo
modo, o destaque para o domínio de estratégias relacionais faz mais
sentido quando aparecem as tensões entre professores e pais, professores
de sala comum e professores do atendimento especializado, professores e
supervisores... O aprender se refere àquilo que é vivido, e o que é vivido
mais
intensamente
enfrentamento
é a imersão
constante
em cursos de
decorrente
dos
dilemas
treinamento
que
a
e
o
inclusão
acrescenta aos muitos dilemas da educação. Nesse vinculo entre atividade
concreta e aprendizagem se apresenta um movimento em que aprender e
ensinar
se
interconstituem,
diluindo
os
papéis
tradicionalmente
estabelecidos de professor e aluno no habitus escolar. As disposições do
aprender, comumente articuladas ao lugar do aluno, ganham espaço no
lugar do professor.
A flexibilização dos papeis de quem aprende e quem ensina e o
aprender como um ato coletivo também têm estreito vinculo com essa
situação vivida, de enfrentamento e negociação: as relações com os
outros são constituintes da identidade em processo do professor de
atendimento especializado, em duas dimensões imbricadas:
a) A relação com o outro-governo (considerado principalmente em
seus atributos de provedor, educador e ajudante) desenha um professor
militante, envolvido nas discussões da inclusão, que intervém e exige
condições para que a inclusão aconteça.
b) As relações com um outro-professor tido como passivo, carente
de formação, inseguro reforçam o esboço anterior, na medida em que o
lugar em que os entrevistados propõem para esse outro em seu discurso
justificam uma atuação agressiva, que inclusive tenta suprir o vácuo
governamental, nos aspectos em que as funções de educador e provedor
são descritas mais pela ausência do que pela presença.
251
A configuração dos lugares do enunciador se faz em polarização e
complementaridade com os desse outro professor, e o mesmo processo
acontece relativamente aos lugares do outro-governo.
As relações entre os falantes e os outros com os quais dialoga
em
seu
discurso,
que
vão
do
distanciamento/descolamento
à
aproximação-imbricação, também podem ser lidas nessa mesma linha: o
lugar de professor se confunde com o lugar de governo, quando o discurso
daquele circunscreve para ele um lugar de ator do processo inclusivo, e no
mesmo movimento se distancia do lugar do outro-professor, que é
descrito muito mais em sua resistência do que em seu envolvimento; esse
outro precisa ser despertado, conscientizado, formado, e esses são os
propósitos do profissional de atendimento especializado, que se coloca no
controle do processo inclusivo. Por outro lado, se distancia do lugar do
outro-governo na medida em que considera que este não cumpre suas
funções com relação à inclusão e com relação á educação como um todo _
movimento pelo qual se aproxima dos professores da educação pública
em geral.
É preciso dizer que essa aproximação é relativa; mesmo
considerando-se professor, a familiaridade com os órgãos de gestão faz
com que as formas de pressão e reivindicação daquilo que é específico da
inclusão se diferencie das lutas em geral dos professores. O fato dos
professores que atuam no atendimento especializado se constituírem
numa espécie de assessoria da inclusão os coloca numa situação de poder
diferenciada, e isso não deixa de fortalecer as tensões remanescentes da
antiga relação, em que se consideravam discriminados pela educação em
geral. As coerções que o discurso sofre por conta dessas tensões se
evidenciam, entre outras coisas, no deslizamento semântico dos lugares
dos outros e do próprio lugar do enunciador nessas relações.
A diferenciação entre os dois lugares de professor e as relações
de assimetria entre um lugar e outro entre remetem a uma valoração
positiva do tipo de aluno que está mais próximo do professor de
252
atendimento especializado (o aluno com necessidades educacionais
especiais). Ainda que descrito em termos de alguém que precisa de ajuda,
também é alguém em cujo desenvolvimento é preciso investir; é um
adulto que reivindica cidadania; um outro que, tendo necessidades
emocionais mais evidentes, pode servir de referência para a superação de
uma escola fria e distanciada. Se a relação com outro professor e com o
outro-governo pode ser descrita pela tensão, a relação com o outro-aluno
se configura mais pela admiração e amorosidade. Tanto essa tensão
quanto essa amorosidade podem ser lidas como constituintes dos lugares
de um e de outro no discurso, e portanto das subjetividades que se
interconstituem nesse processo.
Assim, sendo que o outro cuja referência é mais forte no
processo de definição identitária que aparece na prática discursiva desse
professor é o aluno;
sendo a tensão com o outro-professor justificada
pela sua pretensa falta de formação, vocação ou conhecimento para lidar
com a inclusão, a temática da formação ganha novos efeitos discursivos:
faz muito sentido que os cursos de treinamento em serviço (os quais
proverão uma proximidade maior com o aluno na medida em que
garantem
um
canal
de
comunicação)
sejam
muito
valorizados,
provavelmente mais do que a formação superior. O movimento semântico
de uma temática para outra se inscreve numa configuração em que o
lugar do falante e o lugar do outro são determinantes na valoração que é
feita do processo formativo.
O modo de funcionamento do discurso escolar no espaço
específico do atendimento pedagógico especializado se configura em
formações discursivas em que os pontos de dispersão se articulam tanto
tematicamente numa rede de sentidos (aprender/ensinar, lugar do aluno,
lugar do outro-professor, lugar do governo, formação profissional) quanto
operatoriamente numa rede de estratégias (deslizamento, polarização,
interconstituição). No esforço de não perceber um modo de pensar único,
253
mas
formações
discursivas
em
debate,
articulei
esse
modo
de
funcionamento em duas configurações principais:
a) numa delas, configurada quando se coloca em destaque a
complementaridade de sentidos, desenha-se a predominância da prática
sobre o discurso, a suavização das relações de poder ou o seu
deslocamento para as relações pessoais, a vinculação da idéia de inclusão
à de prática escolar (prática dividida nos processos de formação técnica e
de atividade escolar propriamente dita, divisão em que esta última se
subordina àquela).
b) numa outra, cujo esboço se constrói com ênfase nos
enfrentamentos, emergem a noção de aprendizagem fazendo diluir os
papéis clássicos de professor e aluno; uma valorização da formação se
contrapondo às limitações da formação possível: a formação técnica em
serviço; valorações positivas para o aluno cidadão, capaz de intervir, mas
também para a necessidade de ajuda e assistência desse aluno; descrição
de si próprios como militantes e do outro como passivo, o que configura
um lugar contraditório para o professor; e, por fim, o lugar do governo se
confundindo com do militante em certos momentos e se distanciando em
outros.
Essas duas configurações esboçam a arena em que se elabora o
discurso escolar, em que a lógica dominante se afirma e se esboroa num
batimento marcado pela história dos enfrentamentos e das subordinações.
As contradições nos efeitos criados pela análise das marcas no discurso
são rastros das coerções contraditórias da vida cotidiana. O que permite
que a produtividade _ a repetição de discursos já estabelecidos _ tenha
que se confrontar com a criatividade _ a crítica desses discursos e a
abertura ao que vai se instituir (ORLANDI, 2005, p.37-38).
7. A INCLUSÃO NO
EDUCAÇÃO ESPECIAL
DISCURSO
ACADÊMICO
DO
CAMPO
DA
Este capítulo tem como finalidade apresentar a análise e
interpretação dos excertos (definições de inclusão
escolar e suas
derivações) recortados do discurso acadêmico. O dispositivo de análise e
interpretação
utilizado,
como
já
mostrei
no
terceiro
capítulo,
é
basicamente o mesmo daquele utilizado para a análise do texto
governamental. No entanto, a constituição do corpus de análise e o
tratamento do material foi diferenciado. Considerei que a especificidade
do campo acadêmico, no qual as relações entre as muitas vozes em
debate/enfrentamento são mais próximas do simétrico do que em outros
gêneros, exigiria uma leitura de vários autores. Pela amplitude do campo
da inclusão, foram escolhidos três publicações que se configuram como
resultado de congresso importantes na área
e de seus artigos foram
extraídos trechos nos quais definições do operador inclusão e seus
derivados se faziam presentes.
A estruturação do capítulo
tem relação com os próprios
resultados das análises; cada subtítulo busca enfeixar efeitos discursivos
decorrentes das operações discursivas percebidas a partir da análise de
certos traços de produção do discurso, entendidos como operadores.
Dessa forma, nos discursos acadêmicos que perpassam os trechos
recortados, foram analisados os operadores movimento, prática e
discurso. Para fechar, procurei agrupar os feixes discursivos produzidos
em/por cada análise, criando uma configuração que caracteriza certos
aspectos dos discursos acadêmicos, nos limites do material analisado, do
dispositivo
analítico
e
interpretativo
interpretativa da pesquisadora.
utilizado
e
da
capacidade
255
7.1. INCLUSÃO COMO OPERADOR QUE INDICA MOVIMENTO E SUA
CAPACIDADE DE DESLIZAMENTO
O primeiro grupo de definições de inclusão tem como unificador
o tema do movimento. A idéia de movimento, que aparece em cada
excerto teria, no entanto, o mesmo sentido? O Houaiss (2002) apresenta
uma diversidade de sentidos para o verbete. Pode-se falar de movimento
no sentido de “conjunto de ações de um grupo de pessoas mobilizadas por
um mesmo fim”, mas também no sentido de “partido, agrupamento,
organização que vise a mudanças políticas ou sociais” (HOUAISS, op. cit.).
Na rubrica filosofia, no mesmo Houaiss, movimento é definido como
sendo um “processo de mudança ou alteração das relações internas ou
externas de um sistema”. Tais possibilidades de sentido permitem que
uma análise do operador movimento busque quais as ações que ele
supõe, que grupos de pessoas, partido, organização envolve, que
mudanças (e em que âmbito) ele supõe, que relações altera ou propõe
alterar.
Em
cada
excerto,
a
idéia
de
movimento
agrega
novas
possibilidades polissêmicas; ao mesmo tempo, vão se estabelecendo os
limites e contradições do discurso. Senão vejamos:
No final do século XX, a realização de uma escola transformadora,
a escola proclamada pela Declaração de Salamanca, com
qualidade e a “apta a incluir todas as crianças independentemente
de suas diferenças ou dificuldades individuais” continua sendo
uma utopia necessária, mas difícil de ser alcançada. Vários
estudos e experiências tem demonstrado a importância dessa
escola inclusiva, na qual as estruturas se modificam tendo
como paradigma assegurar o direito a uma escola de
qualidade a todos, isto é, uma escola que respeita as diferenças
de cada um de seus alunos e que não é reprodutora das
desigualdades sociais” (KRUPPA, apud SILVA e VIZIM, 2001,
p.25).
No primeiro excerto, a idéia de movimento aparece na expressão
“as estruturas se modificam”. As mudanças que pressupõe tal modificação
256
são a garantia de uma escola de qualidade para todos, que respeite as
diferenças e que não reproduza as desigualdades sociais. O excerto traz a
idéia de inclusão como utopia, a qual é definida no dicionário como
“qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada
em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente
comprometidas com o bem-estar da coletividade” (HOUAISS, 2002).
Portanto, as relações passiveis de alteração parecem ser as relações
sociais mais amplas.
Na paráfrase, surgem como equivalentes, já que ligadas por um
“isto é”, duas orações: “as estruturas se modificam tendo como
paradigma assegurar o direito a uma escola de qualidade a todos”, e “uma
escola que respeita as diferenças de cada um de seus alunos e que não é
reprodutora das desigualdades sociais”.
Para a escola não reproduzir as desigualdades sociais, posso
pensar duas possibilidades: ou ela é refratária a essas desigualdades, ou
tais desigualdades já estão sendo superadas. No primeiro caso, um
elemento da totalidade social ganharia tal autonomia que poderia deixar
de apresentar as características dessa totalidade; no segundo, a inclusão
seria remetida para um momento superior de desenvolvimento social.
Parece ser este o caso, pela definição desse movimento como uma “utopia
necessária”. Isso faz com que o movimento da inclusão possa ser
compreendido como fazendo parte de um movimento emancipatório, de
um movimento de transformação social.
Preocupa-nos o fato de a Educação Inclusiva ser encarada como
um movimento reducionista, limitado à inserção de alunos com
deficiência no contexto comum da educação. É preciso ter cautela
e
insistir,
repetidamente,
no
caráter
mobilizador
e
transformador dos fundamentos e princípios inclusionistas.
Indiscutivelmente, ao falar de inclusão estamos, justamente,
demarcando, mais uma vez, o caráter segregativo, discriminatório
e opressor da escola, uma vez que ela deveria ser “digna, sem
adjetivações, porque deveria ser de qualidade e inclusiva em sua
essência” [...] (OLIVEIRA, in OMOTE, 2004, p.108).
257
Aparentemente a mesma relação se encontra no segundo
excerto, que, ao parafrasear a idéia de inclusão como movimento mais
amplo que a mera inserção de alunos antes excluídos da educação
comum, acrescenta um elemento: a denúncia do caráter “segregativo,
discriminatório e opressor da escola”. As ações que se realizam nesse
movimento são de denúncia, de mobilização e de transformação.
Um outro elemento, no entanto, distingue esse excerto da
anterior. Ao contrapor o que a escola “é” ao que “deveria ser [...] em sua
essência”, o discurso aponta para um movimento de mudança, mas supõe
uma essência educacional alheia às práticas educativas de fato existentes.
É negado àquilo que a escola é, no presente, uma essência educativa,
sendo essa essência remetida a um dever ser. Desse modo, a escola como
se apresenta parece não servir à inclusão; é a inclusão enquanto
movimento que serve à escola, uma vez que tem uma função de denúncia
de tais práticas segregativas.
Também aparece como um movimento a serviço de um
movimento mais abrangente, o qual se dirige para a realização de uma
essência da educação que é positiva em si (de qualidade e inclusiva,
qualidades que podem ser relacionadas, partindo daquelas apresentadas
como negativas, como uma escola que não discrimina, não segrega e não
oprime).
Além disso, o movimento aponta para algo que precisa ser
implementado; a escola deveria ser digna, sem adjetivações, de
qualidade em sua essência. O verbo dever, segundo o Houaiss (2002),
quando
usado em conjugação perifrástica com verbo no infinitivo,
frequentemente, assinala uma lei inelutável à qual o sujeito está
submisso, independentemente de sua vontade ou uma obrigação
à qual o sujeito se submete geralmente em razão de um preceito
moral ou de um saber prático (op.cit.; grifos do autor).
A inelutabilidade do dever ser, quando pensada junto com uma
concepção essencialista de educação, distancia-se da idéia de uma
258
educação que se constitui nos enfrentamentos reais de uma sociedade
desigual, em que é preciso partir do real como ele se apresenta e projetar
o futuro a partir dele. Portanto, a amplitude do movimento transformador
se restringe, uma vez que este se prende à busca (imperativa) de uma
essência da educação. Reforça essa restrição a idealização dos princípios
e fundamentos da inclusão como transformadores em si, fazendo a
transitividade entre a escola opressora, num pólo, e a inclusiva, no outro.
O ensino para alguns é ideal para gerar indisciplina, competição,
discriminação, preconceitos e para categorizar os bons e maus
alunos, por critérios que são, no geral, infundados. O ensino para
todos desafia o sistema educacional, a comunidade escolar e
toda uma rede de pessoas, que se incluem em um movimento
vivo e dinâmico de fazer uma Educação que assume o “presente”
como tempo que concretiza a mudança do “alguns” em “todos”,
da “discriminação e preconceito” em “reconhecimento e respeito
às diferenças”. É um ensino que coloca o aluno como foco de toda
a ação educativa e possibilita a todos a descoberta contínua de si
e do outro, dando sentido ao saber/sabor de educar (MANTOAN,
in OMOTE, 2004, p.141).
O terceiro excerto, em que inclusão aparece como movimento,
traz, como reescrita dessa noção de movimento, as contraposições entre
“um ensino para alguns” e um “ensino para todos”78, no tempo presente.
Não remete, pois, inclusão a uma utopia, a uma possível sociedade sem
desigualdades, mas a própria prática da convivência entre os diferentes
como parte do movimento inclusivo. Trazer todas as diferenças para o
interior da escola aparece como um desafio à mudança: “O ensino para
todos desafia o sistema educacional, a comunidade escolar e toda uma
rede de pessoas, que se incluem em um movimento vivo e dinâmico”.
Não é dito da possibilidade da convivência reafirmar os preconceitos e
discriminações; ao ser colocado na situação de lidar com o diferente, o
sistema educacional, a escola deverá responder ao desafio de forma a
superar as discriminações. Para tanto, o aluno deve ser tomado como
“foco de toda a ação educativa”.
78
Segundo Sassaki (1997, p.164-167), as expressões. “para todos” e “inclusivo” se equivalem nos documentos
da ONU. São usadas uma ou outra, indiferentemente, em vários textos.
259
Dois efeitos discursivos podem ser destacados nessa definição: o
primeiro, no dinamismo como positivo em si; o segundo, na criação de
situações concretas como detonadoras de mudanças. Quanto ao segundo
efeito, o movimento é a própria colocação de elementos novos na
situação, forçando as práticas a lidarem com tais elementos, portanto a se
modificarem. Que essa modificação seja para melhor (se dirija no sentido
da superação das discriminações) já é algo que pode ser situado no plano
do primeiro efeito.
Lido nessa perspectiva, o movimento tem como ponto de
partida, num extremo, a situação de segregação das pessoas com
necessidades educacionais especiais, e como ponto de chegada, no outro
extremo, o dinamismo da convivência entre diferentes e a “descoberta
contínua de si e do outro”. O conceito de inclusão pode ser entendido,
então, como ponto de inflexão do movimento da educação especial, por
um lado, e por outro lado, da educação comum. Sua convergência cria um
movimento novo na educação, cujas relações internas são alteradas, no
presente, pela convivência entre os diferentes.
O quarto trecho remete ao mesmo movimento de possibilitar a
convivência entre diferentes no interior da escola, mas o analisa não como
deve ser e sim como o que tem sido (uma resposta negativa ao desafio da
inclusão):
[...] o movimento de incluir tem se resumido à inserção
física, no mesmo espaço escolar, de pessoas com deficiência
junto das não-deficientes. Tal situação não altera, no cotidiano da
escola, a existência de práticas excludentes, o que produz um
ambiente tão danoso quanto a segregação explícita feita às
pessoas com deficiência (VIZIM, in SILVA e VIZIM, 2001, p.163).
As ações supostas pelo movimento de inclusão se reduzem,
nessa descrição, à inserção física, ao acesso à escola, e outras ações são
relacionadas
a
esse
movimento:
aquelas
vinculadas
a
práticas
excludentes, que não são alteradas pela presença de novos sujeitos.
Aquela crença evidenciada no excerto anterior, de que tal inserção
provocaria mudanças na prática, não é aqui partilhada. As práticas
260
excludentes
vão
além
da
ausência
da
criança
com
necessidades
educacionais especiais no interior da escola, e não são corrigidas com sua
presença. Tal movimento, então faria parte não de um movimento maior
de transformação, mas de manutenção da realidade excludente. Ao fazer
isso sem remeter a situações ideais, aponta para a produção de um
ambiente excludente, cujos danos não seriam menores do que a
segregação explicita (essa última expressão pressupõe a existência de
uma segregação implícita, criada pelas práticas excludentes).
No ultimo excerto em que inclusão aparece como movimento, ele
é descrito como um movimento reivindicatório da educação especial com
relação aos poderes públicos, como um movimento por acesso aos
serviços públicos:
O movimento integrador alia a critica ao trabalho desenvolvido, o
descaso dos poderes públicos ao atendimento a essa clientela e à
falta de políticas públicas específicas que dêem prioridade a esta
área. A partir disso, defende uma política de escola para todos,
política defendida inclusive pela Secretaria de Educação Especial
do MEC. A política anteriormente mencionada de Educação para
Todos, incorporada pela educação especial faz, no seu discurso,
uma relação dos projetos de integração com os possíveis
atendimentos em contextos educacionais regulares. Vê-se, assim
que, na verdade, o discurso da integração no Brasil está
diretamente associado ao acesso a uma escola pública ou a
serviços públicos (SILVA, (in SILVA E VIZIM, 2001, p.184-5).
Pensando o operador inclusão como movimento, sou levada a
buscar que relações tal movimento pretende alterar. Os excertos apontam
para três níveis de mudanças: nas relações sociais mais amplas
(superação das desigualdades, da opressão, da reprodução do status
quo); nas relações entre educação especial e educação comum, no âmbito
do sistema educacional; e nas relações entre aluno e professor e demais
profissionais, no âmbito da escola.
O primeiro nível de mudanças, ainda que amplo, é geralmente
referido ao interior da escola: tem a ver com mudanças no modo de ser
dos sujeitos que ali atuam. São destacados o caráter mobilizador e
transformador dos princípios inclusionistas e a modificação das estruturas
261
escolares para assegurar uma escola de qualidade para todos, que não
reproduza as desigualdades sociais.
Aparecem então três possibilidades de relação entre a parte e o
todo, no que se refere à dimensão de movimento do processo denominado
inclusão:
a) Mudanças gerais criam mudanças no localizado: a superação
das relações de desigualdade social é a utopia para a qual remetem as
ações de inclusão; a escola será inclusiva quando as demais relações
sociais forem inclusivas.
b) Mudanças locais deflagram mudanças gerais: a criação de
situações inclusivas deflagrará mudanças na estrutura da sociedade como
um todo.
c) Mudanças locais pressupõem manutenção da totalidade: a
criação de situações inclusivas no espaço escolar e sua restrição a esse
espaço faz disfarçar as relações excludentes da sociedade como um todo.
Não
distinguir,
em
cada
discurso,
essas
possibilidades
semânticas pode levar a certos deslizamentos de sentido, dos quais posso
entrever alguns.
O primeiro diz respeito aos atores do movimento e às posições
que eles ocupam: afirmar que a inclusão é um movimento que busca
manter todas as crianças dentro da escola cria o efeito discursivo de que o
conceito pressupõe a existência de um movimento contrário, contra o qual
se coloca: o de manter certas crianças fora da escola, o que vem a ser
uma das características de uma escola que historicamente foi destinada às
classes dirigentes. Esse efeito situaria todos os atores daquele primeiro
movimento numa luta contra a forma histórica como a educação se
constituiu e contra os processos que produziram e produzem essa
desigualdade, o que escamoteia parte da realidade. Muitos atores desses
movimentos lutam por manter todas as crianças dentro da escola, mas
262
não se propõem a enfrentar o processo de produção das desigualdades,
para além de seu reflexo na escola.
Outra possibilidade de deslizamento tem a ver com a adoção de
um único sentido para inclusão, definindo-a, com base na idéia de
movimento, como um leque que agrega dos militantes da educação
especial (em sua luta por superação dos resquícios de segregação e de
uma
concepção
militantes
da
de
desenvolvimento
transformação
social
centrada
(no
esforço
na
de
deficiência)
aos
denunciando
a
reprodução, superá-la). A confusão criada por essa interpenetração de
sentidos pode ser bastante útil para se criar a ilusão de que ocorre um
movimento generalizado de transformação nas estruturas da sociedade,
nomeando como revolucionárias ações que não tocam no cerne do
processo de exclusão social.
Tanto as possibilidades de relações nomeadas pelo operador
inclusão quanto seu potencial de deslizamento demonstram a capacidade
que tem tal operador de designar igualmente processos distintos e
inclusive contraditórios, assim como distintos níveis de relação; isso
denota uma elasticidade e flexibilidade do operador, um grande potencial
polissêmico.
Poder-se-ia dizer então, como Gentili, que “nenhum conceito é
bom quando se usa para definir tantas coisas ao mesmo tempo” (in SILVA
e VIZIM, 2001, p.52). Mas eu creio que essa elasticidade é exatamente o
que torna “bom” o conceito, num certo sentido: ela ganha utilidade no
interior de um discurso em cujo funcionamento tem muita serventia essa
capacidade polissêmica de escorregar de um sentido para outro, de criar
efeitos discursivos contraditórios, conforme a situação, os sujeitos, os
grupos e as relações de poder que entre eles se estabelecem.
Para o momento, basta a clareza de que inclusão, ao se
configurar como movimento, ganha múltiplas possibilidades de sentido. A
análise dos próximos excertos mostrará como nesse movimento é possível
surpreender certas práticas e certos discursos.
263
7.2. NUANCES DO FAZER INCLUSIVO: OS LIMITES DA INCLUSÃO NOS
MUROS DA ESCOLA
Um outro aspecto que aparece no discurso acadêmico acerca da
inclusão escolar é a dimensão da prática, que, nos excertos analisados, se
desdobra em três aspectos: a prática no interior da escola (pedagógica,
burocrática) a prática de formação de professores e a prática política, ou
seja, a prática das instituições que pensam e dirigem a escola. Prática
aqui é entendida como atividade, que-fazer humano (no sentido de ação,
execução, realização, exercício): implica, em termos de análise, em
buscar as ações que, nos excertos, são descritas como “fazer inclusão”.
Organizei os excertos partindo das práticas realizadas no interior da escola
para as práticas mais gerais, mas isso não quer dizer que nos textos
apareçam mais umas e menos outras, ou primeiro umas depois outras;
trata-se de uma opção de organização textual (a análise das razões
subjacentes a tais processos de escolha fica por conta do exercício
discursivo do leitor).
No excerto abaixo, a ação de incluir ganha substância nos verbos
inserir e exigir. A prática, resumida nas relações entre esses dois
verbos, aparece como modificadora dos modos de ser; o discurso faz
equivaler a inserção dos alunos com deficiência mental na escola comum e
a exigência de novos posicionamentos e procedimentos de ensino.
[...]a inclusão escolar não é de interesse apenas para os alunos
com deficiência mental, uma vez que ao inserirmos esses
educandos na escola regular estamos exigindo da instituição
novos posicionamentos e procedimentos de ensino baseados e
concepções e práticas pedagógicas mais evoluídas, além de
mudanças na atitude dos professores, modos de avaliação e
promoção dos alunos para séries e níveis de ensino mais
avançados (MANTOAN, 1998, p.104).
264
No enunciado, as expressões “ao inserirmos” e “estamos
exigindo” descrevem fatos de uma mesma ordem temporal: a inserção de
um sujeito novo na escola implica numa exigência de novas formas de
fazer na educação, no presente. Supõe aqui uma crença de que o fazer
com relação ao aluno com deficiência necessariamente será mais evoluído
do que o fazer com relação ao aluno “sem-deficiência”. Coloca-se a
instituição na situação de ter que evoluir, para responder àquelas
exigências. Isso faz surgir um questionamento: quem é o sujeito da ação?
Certamente não é a escola, já que a expressão “estamos exigindo” a
coloca como objeto. Isso faz supor um sujeito externo à escola que exige
dela novos posicionamentos, novos procedimentos, novas práticas.
A mesma inserção aparece como prática que mascara a
segregação, no excerto seguinte. O ato de matricular esse novo sujeito
na escola não implica necessariamente em novas formas de fazer; pode
significar manter as velhas formas. Claro que inserir é diferente de
matricular: a matrícula é o ato legal pelo qual se insere a criança na
escola. E a escolha do verbo matricular já evidencia a postura defendida:
muitas vezes a inserção não passa de um ato legal. A crença subjacente
é outra: a de que é necessário um envolvimento da coletividade no
processo de transformação da educação, aqui descrito como deixado por
conta da atuação do professor:
A transformação do processo educacional é tarefa e competência
a ser realizada coletivamente, não cabendo exclusivamente ao
professor promovê-la, no interior de uma sala de aula, como tem
com freqüência acontecido. Matricular um aluno com deficiência
em classe regular e deixar somente por conta do professor a
administração de seu processo educativo é manter as condições
de segregação do aluno com necessidades especiais e do
fracasso do ensino, mascarados pelo índice quantitativo da
matricula (ARANHA, in OMOTE, 2004, P. 56).
A presença de novos sujeitos, com novas exigências, no
ambiente escolar, não terá a força de modificar as práticas existentes se a
segregação não for enfrentada em outras dimensões: a dimensão do
trabalho do professor e do projeto coletivo de sociedade. No entanto,
265
outra possibilidade de sentido se entremostra no processo: essa denúncia
do que tem acontecido com a matrícula dos alunos com necessidades
educacionais especiais na escola comum pode ser vista como uma
conseqüência da inserção referida no excerto anterior; assim, a prática se
confirmaria como capaz de deflagrar mudanças (ainda que essa mudança
seja uma denúncia): a prática que faz a critica só pode se dar sobre uma
prática já existente, a de matricular na escola comum as crianças com
necessidades educacionais especiais.
Num outro excerto, a inclusão é ela própria descrita como algo a
ser praticado. Praticar a inclusão modifica o olhar, a visão que se tem
tanto da educação comum quanto da Especial (e nesse caso, temos um
fazer que modifica o pensar (são os que praticam a inclusão, e não os que
apenas a pensam, que revolucionam a educação). Tal revolução é
explicada na paráfrase do final do trecho: significa a passagem de um
modelo médico para um modelo social da deficiência, visando agora o
sujeito e não mais sua deficiência. Praticar a inclusão então significaria
pensar o sujeito e não o estereótipo baseado numa característica (no caso
a deficiência visual).
Como um foco de luz, ela [a educação inclusiva] atrai todos os
olhares, levando as pessoas a ficarem fascinados por ela, pois,
para os que a praticam, não dá mais pra olhar da mesma forma
nem a Educação Comum nem a Especial. Em suma, há um lado
da educação inclusiva no qual ela apresenta a emergência de um
aspecto do real que revoluciona a educação contemporânea.
[...] É por tudo isso que acreditamos que a base da Educação
tenha de ser repensada. Não dá mais para o professor e o
especialista permanecerem no modelo antigo. O que se introduz
agora é um novo circuito de relações, no qual aquilo que se
visa é o sujeito com suas necessidades educativas especiais, e
não mais a sua deficiência visual e os olhos que não vêem
(MRECH, in SILVA E VIZIM, 2001, p.118).
Essa passagem parece mesmo ser entendida como o ponto de
ruptura da educação, tanto que o ensino regular, que não viveu tal
ruptura, é descrito em outro excerto como um abandono do desejo e da
capacidade de decidir:
266
Será que nós acabamos cegando nossos alunos, com nossas
práticas pedagógicas, levando-os a deixar de desejar, de
estabelecer aquilo que acham importante para eles mesmos? [...]
Pela nossa vivência no Ensino Regular percebemos que esse tem
sido o relato de grande parte dos professores. Em relação à
Educação Inclusiva o circuito tem sido outro, os professores
reportam uma vontade muito grande de aprender, o
mesmo acontecendo com seus alunos (MRECH, in SILVA E
VIZIM, 2001,p.123).
De que posição fala o enunciador? “Nós”, no início, parece se
referir a professores, como esclarece a expressão “com nossas práticas
pedagógicas”. Logo adiante, o enunciador aparece também como pessoa a
quem
os
professores
relatam
suas
impressões,
provavelmente
pesquisador/a. É como pesquisador/a que ele/ela compara duas práticas
coexistentes (definidos como ensino regular e educação inclusiva) e
contraditórias. A escola inclusiva é dada como existente no presente, e se
contrapõe a uma outra, não inclusiva, mas também atual. São práticas se
contrapondo, no interior do sistema educacional.
Concluímos em nossos estudos que mudar a escola não é justapor
os serviços da Educação Especial às salas de aula de ensino
regular, como o apoio de professores itinerantes, os currículos,
atividades e avaliações adaptadas. Trata-se de adotar novas
medidas para atender às diferenças de todos, medidas essas que
não sejam excludentes, tais como as provas e outras avaliações
de caráter classificatório, o ensino disciplinar, a fragmentação dos
temos escolares em séries, entre outras, sobejamente conhecidas
e praticadas em nossas escolas, ainda! Não há com acolher todos
os
alunos
em
escolas
que
selecionam,
reprovam,
marginalizam o ensino de alguns alunos em classes e programas
à parte dos demais colegas (MANTOAN, in OMOTE, 2004, p.135)
No excerto acima, a definição da prática escolar inclusiva é
realizada pela negação das características de uma escola não-inclusiva: a
escola inclusiva não reprova, não seleciona, não marginaliza, não
classifica, não trabalha com base em disciplinas, não fragmenta o tempo
escolar em séries. Tais negações descrevem a escola como é (ainda), o
que coloca a educação inclusiva como projeto (o de mudar a escola).
Nesses excertos, as práticas escolares referentes à inclusão
aparecem então em duas dimensões: num, as práticas inclusivas,
começando pela inserção do aluno com necessidades educacionais
267
especiais, deflagram mudanças, porque obrigam a novas práticas que
possam lidar com essas necessidades, a mudanças gerais na escola e no
sistema educacional; noutro, a prática de inserção, por si só, escamoteia a
manutenção do status quo, uma vez que ao ser colocada como sinônimo
de inclusão, desobriga de outras mudanças necessárias.
As posições evidenciadas pelas dimensões descritas nos excertos
mostram uma luta entre pontos de vista, mas não em supostas oposições
entre “precisa matricular/não basta matricular”; “precisa de novos
procedimentos de ensino/não basta deixar por conta do professor”. Não
seriam oposições; alguém que defende que precisa matricular todas as
crianças na escola pública não necessariamente defenderia que basta isso;
alguém que defende que são necessários novos procedimentos de ensino
não precisa defender que isso basta para a inclusão... Não é no campo da
defesa da inserção/não-inserção então que se situam as oposições, mas
nos silêncios acerca da existência de processos de exclusão (de
segregação mais ampla do que aquela criada pela presença da limitação),
que aparecem em certos excertos e não em outros. O novo pensar criado
pelo deslocamento da ênfase (da deficiência para o sujeito) pode ser novo
com relação a um âmbito especifico (o da educação especial), mas não
toca na questão da manutenção do status quo.
A educação especial como âmbito específico, num outro excerto,
é descrita como também produtora da bipolaridade inclusão/exclusão,
apresentada como uma falsa oposição.
A educação especial, como disciplina formal, em seu discurso e
em suas práticas hegemônicas, é descontinua em seus
paradigmas teóricos, anacrônica em seus princípios e finalidades,
relacionada mais com a caridade, a benemerência e a
medicalização do que com a pedagogia, determinada por técnicas
discriminatórias e segregacionistas, distanciada do debate
educacional geral e produtora/reprodutora, também ela de uma
falsa oposição entre inclusão e exclusão (SKLIAR, in SILVA E
VIZIM, 2001, p.104)
A oposição inclusão/exclusão, quando aparece nas posições
expressas na primeira das dimensões (a da prática inclusiva como
268
deflagradora de mudanças), geralmente tem a ver com o acesso ou não à
escola pública, a novos métodos e técnicas de ensino, a novas relações e
novos valores no interior da escola. Os processos sociais excludentes são
tratados naquilo que é específico da educação, e as propostas de
enfrentamento desses processos também se limitam ao interior da escola.
Na segunda dimensão, em que a prática da inclusão aparece como
disfarce de processos excludentes, o enfrentamento de tais processos é
remetido para
além da escola. Nesse caso, não há oposição entre
inclusão e exclusão: o incluído (na escola pública) não deixa de ser
excluído (por ser pobre, desempregado ou subempregado, etc., etc.).
Um outro aspecto da prática denominada inclusiva, a formação
de professores, pode ser encontrado nos excertos a seguir.
No primeiro excerto, a formação de professores é mostrada
como forma de incluir também o professor, possibilitando-lhe o privilégio
de conviver com a diferença. Dois aspectos podem ser destacados aqui; a
primeira
é
a
caracterização
da
convivência
com
os
alunos
com
necessidades educacionais especiais como um privilégio, e não como um
dever moral.
A segunda é a extensão da idéia de integração também ao
professor da escola especial, o qual, tendo uma formação geral, pode
transitar também na rede comum de ensino. A formação deve ser
inclusiva, ou seja, não deve ser diferenciada (diferenciada aparece como
contrario de inclusiva e é associada ao modelo capitalista de produção). A
crítica remete aos cursos de formação de professores da educação
especial separados da formação comum.
Nesse sentido, a formação diferenciada para professores de uns e
de outros [“normais” e “deficientes”] vem somente reforçar o
modelo capitalista de produção baseado na eficiência, na seleção
dos melhores e na exclusão social de muitos e fundado em uma
visão ‘desfocada’ da realidade e do indivíduo; estamos, assim,
correndo o risco de estar institucionalizando a discriminação já no
ponto de partida da formação dos professores e negando,
portanto, o princípio da ‘integração’, não só do deficiente na rede
regular de ensino, como também do profissional da educação na
269
realidade educacional existente _não só escolas, mas também
classes especiais, instituições especializadas, etc. Estamos
negando a esses profissionais o privilégio e o desafio de conviver
com a diferença. (CARTOLANO, 1998, p.30, grifos da autora).
Essa critica parece assimilada no excerto seguinte, onde é
defendido
que
a
formação
de
professores
deva
superar
qualquer
diferenciação. As ações de inclusão previstas na formação de professores
devem possibilitar, na ação cotidiana dos professores, o apoio pedagógico
necessário aos alunos com necessidades educacionais especiais e aos
alunos em situação comum ao mesmo tempo.
Considerando, pois, a política de inclusão que garante acesso e
permanência a todos os alunos com necessidades educativas
especiais no ensino comum, na formação do professor seria
importante prever: 1. preparo de qualidade para lidar com a
diversidade. 2. Formação específica em Educação Especial para
prover os apoios pedagógicos previsto na legislação (DENARI, in
OMOTE, 2004. p.75).
Chama a atenção que a formação para lidar com a diversidade
tenha relação com a inclusão de alunos com necessidades educacionais
especiais, como se a idéia de diverso se referisse apenas a eles (como se
antes de sua entrada no ensino comum ali não houvesse diversidade).
A formação (aprender os postulados da educação inclusiva) pode
ser, no entanto, recusada pelos professores, é o que aponta o terceiro
excerto, cujo texto trata também de adiantar as razões dessa recusa:
[...] acreditamos que quando os sujeitos se vêem perante o
registro do real, muitas vezes optam por não querer saber.
Uma atitude denegatória, uma atitude de recusa de saber. Uma
postura bastante próxima à que temos encontrado em muitos
professores em relação à Educação Inclusiva. Como se sua
recusa em aprender os postulados referentes à Educação
Inclusiva os levasse a não terem mais que conviver com estes
sujeitos. É a crença na preexistência de um olhar prévio, de um
olhar mágico. Aquilo que eu não vejo não existe, não está ali
(MRECH, in SILVA E VIZIM, 2001, p.116).
Essa recusa é traduzida por uma recusa em ver o diferente. A
aceitação da aprendizagem dos postulados é dada como sinônimo da
aceitação da convivência com o diferente; sua recusa, dada como a recusa
de tal convivência. Só se consideram aceitos esses sujeitos se forem
270
aceitos também os postulados a respeito deles. Não é dito que a recusa
dos postulados possa ter relação com a crença em outros postulados; ou
com
a
forma
como
os
postulados
são
apresentados,
ou
com
a
possibilidade/impossibilidade de participar das decisões do processo. Esse
não dizer cria uma possibilidade de culpabilização do professor, assim
como de colocar como condição para ser um bom professor aceitar os
postulados da educação inclusiva. Destaco o artigo definido para chamar a
atenção para o efeito discursivo que coloca fora de discussão tais
postulados.
O discurso a respeito das práticas de formação de professores
aqui evidencia três aspectos: num, a reivindicação do privilégio de o
professor poder conviver com as diferenças e aprender com elas, e a
denúncia da discriminação que significa excluir o professor dessas
possibilidades; noutro, a intenção de querer fornecer as competências
necessárias para lidar com a clientela egressa da educação especial, ao
mesmo tempo em que preparo para lidar com a diversidade de modo
geral;
a
culpabilização
do
professor
por
eventuais
recusas
desse
conhecimento e dessas competências.
Em outro grupo de trechos, a prática inclusiva é mostrada como
prática das instituições que dirigem a escola; prática aqui chamada de
política:
Quanto às necessidades educacionais especiais, avaliando os
impactos específicos da Declaração de Salamanca (UNESCO,1994)
Underwood, Richmond e McGee (2001) reconhecem que a
inclusão se tornou um padrão internacional, mas argumentam
que a imposição de políticas que não refletem os valores das
nações que as recebem acabam por comprometer o próprio
conceito de inclusão; e que essas políticas aparentemente
universais têm reflexos diferentes nas políticas das diferentes
nações, inclusive pelas diferenças culturais e educacionais
(FERREIRA, in OMOTE, 2004, p.14).
Chama a atenção, nesse excerto, a conotação positiva dada para
padrão internacional (através do verbo reconhecer), colocada em
relação adversativa com imposição de políticas (imposição que acaba
271
por comprometer a inclusão). Subordina a razoabilidade da inclusão ás
recomendações internacionais, por um lado. Por outro, deixa o que pensar
sobre como se chegou a esse padrão, se as políticas de inclusão
(universalizadas) precisam ser impostas aos países. Estão supostas aí
relações de subordinação inclusive nas definições de padrões inclusivos.
Isso também levanta questões sobre se a possibilidade de chegar a um
padrão internacional preservando os valores das nações que recebem
certas políticas. Se a política é recebida de fora, como poderia refletir os
valores locais? As políticas locais são o reflexo da política maior? A prática
da inclusão se associa então, nesse excerto, a um padrão externo e a
imposição de políticas. A ultima oração, unida por “e que” à anterior, dá
continuidade à relação adversativa: a universalidade das políticas de
inclusão (padronização) é questionada pelos diferentes reflexos que elas
têm nas políticas de diferentes nações.
Essa prática imposta aos paises em situação de menor poder nas
relações internacionais se reflete na prática dos gestores educacionais,
como aparece no excerto abaixo, onde eles têm que ser alertados para a
inclusão:
Os gestores educacionais (profissionais da educação que
trabalham exercendo cargos político-administrativos) pelo
acumulo de tarefas burocráticas, podem ser considerados como os
educadores que mais recentemente, têm sido alertados para as
propostas de inclusão. As idéias sobre a educação para todos e
a elaboração de um projeto político pedagógico para a escola em
muito têm contribuído para que eles se interessem pelos
assuntos do “especial” da educação, embora, nem sempre, suas
intenções sejam concretizadas na prática (CARVALHO, in SILVA e
VIZIM, 2001, p.62).
A oposição expressa entre intenção e prática, expressa no final
do trecho, é contraditória com o verbo usado anteriormente (alertar). Se
alguém precisa ser alertado para determinada proposta, isso significa que
ela
não
tem
sentido
vital
para
essa
pessoa,
não
se
insere
significativamente nem em suas intenções nem em sua prática. Portanto,
a relação adversativa estabelecida pelo uso de “embora” não faria sentido.
O
interesse
pelas
questões
da
inclusão,
despertado
nos
gestores
272
alertados, provavelmente tem mais a ver com a obediência aos padrões
estabelecidos de forma impositiva do que propriamente com intenções e
práticas localizadas.
Algumas relações é possível entrever entre as várias nuances
que a prática da inclusão apresenta no discurso acadêmico: no que se
refere às práticas escolares, a dimensão da prática como transformadora,
mas recortada do todo, pode remeter a responsabilidade pela mudança
muito mais fortemente aos sujeitos da escola: diretores, professores,
alunos (especialmente ao professor, por sua relação direta com o aluno,
tomado como foco da educação). Nesse caso, a prática de formação de
professores tenderá a querer dar a esse professor todas as competências
para uma transformação no interior da sala de aula (saber lidar com toda
a diversidade, dominar as técnicas da educação especial, além das outras
atribuições de praxe).
Ao dimensionar a prática no interior da escola como forma de
escamotear
a
exclusão,
o
discurso
remete
à
coletividade
a
responsabilização pelas mudanças. Nesse caso, não cabe apenas à
comunidade escolar mudar a escola, mas a todos, na medida em que
percebemos processos de exclusão e tomam posição com relação a eles.
Nesse caso, o professor saber mais e poder fazer mais pela educação dos
alunos com deficiência é importante e necessário, já que a educação de
qualidade é direito de todos; no entanto, não se coloca na escola, nem
nessa formação, a tarefa central de transformação da realidade.
Quando essas duas dimensões são relacionadas com as práticas
de gestão, onde a obediência a padrões impostos de fora faz supor
relações de submissão, percebe-se que as relações de poder, nas quais a
escola se situa na periferia, faz com que a inclusividade exigida da prática
escolar (especialmente a pedagógica) não seja, na primeira dimensão,
exigida da prática política, a não ser naquilo que diz respeito diretamente
à escola e à educação. A prática dos gestores se dá no sentido de tentar
viabilizar a inclusão na escola, mas não inclui a escola no processo
273
decisório. A segunda dimensão se centra na denúncia dos processos
excludentes, portanto também na prática dos gestores e de seus reflexos
na escola; talvez, no entanto, apareça de forma frágil a crença na
transformação pela prática, também no interior da escola, muito mais
evidente naquela dimensão anterior.
7.3. A INCLUSÃO EM SUA DIMENSÃO DISCURSIVA: DA AUTONOMIA DO
DISCURSO À PRÁTICA DISCURSIVA
Em oito dos trechos em estudo, há referências à dimensão
discursiva da inclusão. Busquei analisar, nesses trechos, o que aparece,
deixa transparecer ou é silenciado da interconfiguração discurso-prática,
quais são os termos que definem e qualificam inclusão enquanto discurso
e que operações são realizadas com o uso de tais termos (operadores) no
enunciado. Os efeitos discursivos produzidos nesse esforço analítico
trazem elementos para esboçar diversas configurações da noção de
discurso no discurso acadêmico sobre/na inclusão.
A análise de alguns discursos sobre a inclusão e de algumas
práticas pedagógicas declaradas como inclusivas levanta a
nossa inquietação com relação à possibilidade de estar ocorrendo:
(1) uma mera inserção do aluno deficiente em classes comuns a
título de inclusão, (2) a migração de alunos deficientes no sentido
inverso
do
que
ocorria
no
passado
recente
(3)
a
institucionalização da normificação e (4) o desvirtuamento de
objetivos precípuos da educação escolar (OMOTE, in OMOTE,
2004, p. 5).
No primeiro excerto, aparecem dois objetos da análise científica:
os “discursos sobre a inclusão” e as práticas “declaradas como inclusivas”.
O fato de aparecerem como objetos distintos de análise faz pensar numa
tentativa de estabelecer relações ente objetos dados como separados.
Isso leva a uma segunda questão: o discurso é dado como autônomo com
relação à prática: fala sobre. As práticas, por sua vez são objeto de
274
desconfiança:
declaradas
inclusivas,
podem
não
o
ser,
dada
a
possibilidade de estarem ocorrendo fatos entendidos como não-inclusivos:
“mera inserção”, migração inversa, “institucionalização da normificação” e
“desvirtuamento
de
objetivos”
(OMOTE,
in
OMOTE,
2004,
p.
5).
Surpreende-se no texto ao mesmo tempo uma separação entre discurso e
prática, assim como uma distinção entre discursos e práticas inclusivos e
aqueles que se dizem inclusivos ou tratam da inclusão. Os eventos não
inclusivos aparecem como sendo do campo da prática, mas também do
discurso, e se pode pensar, como efeito discursivo, numa exigência de
coerência entre eles.
Os discursos da educação para todos e da escola inclusiva
ocorrem num contexto de exclusão social ampliada, o que
aumenta os desafios para assegurar os direitos das pessoas
denominadas portadoras de necessidades especiais (FERREIRA,
1998, p.14).
No terceiro excerto, os discursos “da educação para todos” e da
“escola inclusiva” são descritos como contraditórios com relação ao
contexto socialmente excludente onde ocorrem. O verbo ocorrer faz
pensar num determinado entendimento da noção de discurso e de sua
relação com o contexto, na medida em que ocorrência é acontecimento,
acaso, sucesso (HOUAISS, 2002). O contexto não aparece como condição
de produção do discurso, e sim como cenário. O discurso, por sua vez,
não
sendo
autonomia.
compreendido
O
desafio
como
“para
produzido
assegurar
os
nesse
“cenário”,
direitos
das
ganha
pessoas
denominadas portadoras de necessidades especiais” (FERREIRA, 1998,
p.14) parece ser estabelecer uma coerência entre contexto e discurso,
portanto, discurso aparece, aqui, como autônomo em relação ao contexto.
No afã de desmontar alguns mitos, crendices e estereótipos, vêm
sendo empregados nos discursos de inclusão alguns conceitos
que rapidamente se tornaram lugares-comuns. Destaca-se, por
exemplo, a idéia de que (1) todas as pessoas apresentam
diferenças umas em relação às outras, fazendo crer que mesmo
as mais graves patologias são apenas diferenças quaisquer; (2) a
ocorrência de anomalias faz parte da vida normal das pessoas
(“ser diferente é normal”); e (3) a convivência entre o deficiente e
o não-deficiente, com ênfase no ato de aprenderem juntos,
275
fazendo crer que o simples fato de estarem juntos é bom para
todos. Evidentemente, essas afirmações têm toda a sustentação
dentro de um contexto apropriado. Torna-se, entretanto, motivo
de preocupação quando esses conceitos passam a ser utilizados
de maneira descontextualizada e como se encerrassem verdade
incontestável. E aponte-se que alguns dogmas da inclusão vêm
sendo construídos (OMOTE, in OMOTE, 2004, p. 7).
No excerto acima, o discurso é qualificado como “de inclusão” e
não “acerca da inclusão”. Essa qualificação faz pensar numa concepção de
discurso como prática: o discurso não apenas “fala sobre”, mas faz parte
do movimento de inclusão; no entanto, quando é descrito como podendo
ser utilizado com a função de “desmontar mitos, crendices e estereótipos”,
a noção de discurso como prática ganha autonomia com relação às
práticas sociais como um todo: a prática discursiva, empregando
determinados conceitos, tenta modificar as demais práticas. O discurso é
entendido como ato consciente. Nesse esforço de modificação das
práticas, a prática discursiva da inclusão torna-se dogmática, utiliza
conceitos importantes do ideário inclusivista (diferença, convivência) fora
de contexto e como verdade inconteste. Pressupõe uma crença (efeito
discursivo) de que um discurso possa ser “empregado”, por um lado, e
que tal emprego possa se dar fora de contexto. O novo contexto em que
os conceitos são utilizados parece ser o da militância da inclusão, já que
isso é feito na diligência de desmontar mitos e estereótipos. Aparece um
conflito entre produção cientifica e militância ideológica, em que aquela é
instância autorizada, contexto adequado, e esta, tendendo a generalizar e
a dogmatizar, aparece como ilegítima. O discurso, então, é visto como
prática, aqui descrita em sua dimensão consciente. Tal prática discursiva
se desqualifica e é desautorizada, no entanto, quando é referida apenas à
sua dimensão dogmática.
Falar em uma educação inclusiva é, exatamente, tocar nesses
aspectos nevrálgicos da organização, estrutura e funcionamento
de todo o sistema educacional; portanto, é a busca de
superação de uma educação reprodutora para uma educação
emancipadora, capaz de viver com toda a intensidade o respeito à
participação e à autonomia humana. Não preparar para a
autonomia, mas viver a autonomia de forma responsável no
276
interior de uma coletividade, representada pela comunidade
escolar (OLIVEIRA, in OMOTE, 2004, P. 80).
Neste excerto, o “falar em uma educação inclusiva” é descrito
como sinônimo de “tocar nesses aspectos nevrálgicos da organização,
estrutura e funcionamento de todo o sistema educacional”. O verbo ser
acompanhado do advérbio de modo “exatamente” não deixa margem a
dúvidas: o discurso é descrito como prática, falar é fazer. Percebo aqui
pelo menos três possibilidades de sentido: numa delas, o falar implicaria
em agir sobre a realidade, ou seja, a prática discursiva é empenho de
modificar certas estruturas; noutra, teria o sentido de que, por falar, o
sujeito se sentiria agindo sobre essa realidade, modificando as estruturas
pelo simples fato de falar sobre tais modificações (o falar seria um fazer
em substituição a outros fazeres). O terceiro sentido se obtém invertendo
a ordem dos fatores: agir é falar. Nesse caso, as ações concretas de
transformação do sistema educacional seriam elas próprias o falar sobre a
inclusão.
A paráfrase seguinte, (“é busca de superação de uma
educação reprodutora para uma educação emancipadora”) reforça o
primeiro e o terceiro sentido articulados: falar/fazer aparecem como
ferramentas da luta por inclusão escolar e esta é apresentada como parte
de uma luta por uma educação emancipadora, descrita como “capaz de
viver com toda a intensidade o respeito à participação e à autonomia
humana”, o que, pelos termos gerais, poderia remeter a um movimento
de transformação social. No entanto, a paráfrase a seguir restringe tais
limites: “[...] viver a autonomia de forma responsável no interior de uma
coletividade, representada pela comunidade escolar”. (OLIVEIRA, in
OMOTE,
2004,
P.
80).
O
discurso/prática,
então,
tem
função
transformadora, mas nesse movimento restrito: o de modificar a
educação
nos
limites
da
comunidade
escolar.
Reforça
ainda
essa
compreensão a crença em que é possível viver a autonomia dentro desses
limites, como se eles não fossem atingidos pelas forças sociais que
restringem tal autonomia e se empenham na própria reprodução. A
277
possibilidade de ser responsável pela própria autonomia, então, encontra
seus limites na produção de heteronomia que não se restringe ao interior
do indivíduo nem da escola.
Enfeixando os efeitos discursivos produzidos nas compreensões
de discurso, encontro, por um lado, uma noção de discurso como
autônomo, quer em relação à prática, quer em relação ao contexto; por
outro lado, nos momentos em que o discurso aparece como prática,
aparece apenas na dimensão de prática consciente e dogmática; quando
surge com função transformadora, tem seus limites na escola. Algumas
conseqüências
podem
emergir
dessas
compreensões
das
relações
possíveis entre discurso e prática, em cada feixe de efeitos:
1) Os efeitos apontam que as práticas (ou o contexto)
precisam se sintonizar com o discurso: nesse caso, as
ações de inclusão estarão voltadas para os conflitos entre
prática e discurso, buscando adequar um ao outro:
geralmente, denunciar a prática inadequada e o contexto
excludente. A idéia do anacronismo entre políticas e
prática, na qual as práticas são antiquadas e a legislação
atual, tem vinculação com esse modo de pensar/agir.
2) O discurso é mostrado como origem da prática: assim, há
que aprender os conceitos adequados como preparação
para uma ação inclusiva. Isso remete para formação de
professores,
estudos
e
debates
na
intenção
de
convencendo as pessoas envolvidas, modificar sua prática.
3) O discurso parece coincidir com a prática: nesse caso, há
pelo menos duas possibilidades: investir no discurso
inclusivo, porque fazê-lo tem efeitos sobre a totalidade das
ações humanas (falar é fazer) ou porque tal discurso faz
crer na existência de processos inclusivos, (falar substitui o
fazer) ou colocar em prática os princípios da inclusão
(fazer é falar). Decorrentes dessa crença podem surgir
278
atividades de conscientização, propaganda e informação,
cuidado com o falar politicamente correto, por um lado, ou
ações concretas de lidar com as diferenças nas relações
humanas, entre indivíduos e grupos, por outro.
7.4.
MODOS
DE
FUNCIONAMENTO
DO
DISCURSO
ACADÊMICO:
TEMÁTICAS E MODOS DE OPERAR.
Para fechar provisoriamente essa análise dos discursos que se
entrecruzam no âmbito acadêmico, cumpre retomar algumas questões já
levantadas nos enfeixamentos de efeitos discursivos referentes aos
operadores “movimento”, “prática” e “discurso”, no que se refere a seus
modos de operar.
A primeira delas diz respeito à oscilação polissêmica do conceito
de movimento inclusivo, o qual pode significar em certo momento um
movimento no interior da educação especial, em outro um movimento no
interior da escola, um movimento que integra educação especial e
educação comum, chegando em alguns extremos a
parecer um
movimento de busca da superação das estruturas capitalistas de produção
de exclusão.
Foi dito que tal capacidade de deslizamento pode ser de grande
utilidade num operador, em circunstâncias nas quais o discurso precisa
exatamente ser camaleônico para responder ou parecer que responde às
muitas coerções a que se submete.
A segunda questão é que a materialização desse deslizamento do
operador movimento sobre os operadores prática e discurso faz
emergir uma pergunta importante: quando os limites do movimento são
deslocados para outro limite (quer dizer, quando descreve uma prática,
279
um discurso, uma política que se inscreve num movimento restrito como
se se inscrevesse em outro, mais amplo, ou o contrário) que efeitos
discursivos isso pode criar? Num esboço de resposta (porque tal questão,
por si, já demandaria um projeto de pesquisa), eu diria que se trata de
uma operação de deslocamento cujos efeitos discursivos parecem ser:
a) A mobilização de crenças de um domínio para o outro. A
superação do modelo médico no campo da educação
especial aparece como revolução no campo da educação
em geral; a possibilidade de convivência entre diferentes
na escola regular se transforma em ícone da superação da
discriminação na sociedade como um todo, para citar só
dois exemplos. Nos dois casos tais mobilizações podem
estar a serviço tanto
de processos de manutenção do
status quo quanto de resistência, podem estar na base de
processos de mudança no interior do novo domínio ou pelo
contrário, apresentar-se como a mudança (já realizada).
b) A polarização de conceitos em âmbito restrito como
polarização geral: quando se opõe inclusão (escolar) a
exclusão (social) e esta última aparece como a exclusão de
todas as minorias de seus direitos, por exemplo, isso cria o
efeito de modificar o primeiro termo da polarização,
travestindo-se
a
inclusão
escolar
de
superação
dos
processos sociais excludentes. No outro extremo, tal
polarização cria um efeito de desqualificação da inclusão
escolar, a qual, não significando superação da exclusão,
também não deixa de implicar em avanço com relação a
um certo âmbito da realidade. É como se fora dessa
polarização não houvesse posição possível: só se pode
aceitar a inclusão se ela implicar em mudanças gerais; ou
não se pode aceitar a inclusão porque ela serve para
escamotear um aspecto da realidade; ou ainda: quem não
280
aceita a inclusão é contra as mudanças na escola (porque
só podem ser aceitas mudanças se couberem no conceito
de inclusão)... e assim por diante.
c) Os deslizamentos de um operador são associados à
reificação de outros, podendo inclusive se alimentar de
certas reificações. O potencial polissêmico do operador
movimento se ancora nas limitações dos operadores
prática e discurso. Por exemplo, prática precisa se referir
ao especificamente pedagógico ou escolar, excluindo desse
território (lugar do professor e do aluno) a possibilidade de
produção discursiva, para que movimento possa significar
tanto mudanças amplas como específicas (é como se o
território da escola fosse o ultimo refúgio do atraso e
precisasse ser atingido pelos discursos das mudanças
gerais que estão ocorrendo – e a escola não se dá conta).
Nesse caso, também o operador discurso ganha fixidez em
determinados territórios: ele geralmente se refere ao falar
acadêmico ou oficial, e é como se nesse âmbito não
fossem produzidas práticas (ou nada houvesse a ser
transformado nas práticas referentes a esses campos),
como se a prática discursiva produzida nesses campos
fosse pura, desligada das disputas de poder. Essa fixidez
permite, por exemplo, que a noção de movimento se limite
às tentativas de “aplicação” de certos discursos a certas
práticas.
d) Movimentos localizados, ao serem tomados como gerais,
podem se colocar em polarização com supostas inércias.
Como exemplo, posso recordar a questão de que a
educação
comum
parece
ser
tomada como
estática,
quando a ela são opostas as mudanças trazidas pela
educação especial. Assim, são propostas alterações na
281
educação como um todo, por via das mudanças trazidas
pelo processo de inclusão, mas não se pressupõe no
processo histórico da educação contribuições e elaborações
que possam favorecer o processo inclusivo. Considerandose a educação como em estado de inércia, não são
também levadas em conta as possibilidades de tensões, de
disputa de espaços entre os dois campos.
e) Por
outro
movimentos
lado,
como
o
próprio
gerais,
fato
obriga
de
à
descrever
tais
polarização
com
movimentos que sejam de fato gerais. Desse modo, a
produção da resistência se dá com base nessa polarização.
O
fato
da
educação
em
geral
(através
de
seus
movimentos) não se reconhecer nessa descrição inerte,
reagir a tais rotulações faz com que as tensões ganhem de
novo espaço na produção discursiva, no enfrentamento dos
discursos.
Evidentemente, o enfeixamento realizado quanto aos modos de
operar é efeito de reconhecimento, obra de meu esforço de analisar os
traços de produção dos discursos nos excertos; não precisa corresponder
aquilo que cada autor assume como sua prática discursiva.
Não quer
dizer que eu, como pesquisadora, tenha acesso ao inconsciente dos
autores através do texto: quer dizer que o texto se mostra e se esconde,
e a análise é um esforço de evidenciar e interpretar certos aspectos desse
movimento. Diferentes modos de conhecimento terão com diferentes
modos de operar, mas isso não tem necessariamente relação com o
referente de que tratam. Não se trata de analisar apenas aquilo que o
discurso defende, mas também como o faz.
A terceira questão que eu gostaria de levantar tem relação com
as temáticas tratadas. Os discursos em embate no campo acadêmico
também são multifacetados quanto ao modo de lidar com as temáticas:
neles as posições são mais claramente assumidas (inclusive porque cada
282
autor assina seu texto, defende-o em congressos, submete-o ao crivo de
seus pares e à opinião pública na medida em que o publica), e os pontos
de vista em confronto se expressam com maior liberdade (espera-se que
nesse
gênero
de
discurso
as
contraposições
entre
vozes
sejam
autorizadas, bem-vistas, desejadas até).
Nos excertos analisados, considerei possível agregar as vozes
que emergem nos discursos com relação a três temáticas centrais:
A presença ou ausência dos processos de exclusão como
referente para o discurso _ Se determinadas vozes silenciam a respeito
de tais processos, outras os assumem como elemento do “real”, mas os
colocam como pano de fundo, cenário no qual se desenrolam, à sua
revelia, os processos inclusivos. Outras vozes os assumem como ponto de
partida para pensar-fazer a inclusão (argumentando que exatamente
porque existem processos de produção de exclusão é que é necessário
criar situações inclusivas). Outras ainda assumem os processos de
exclusão como ponto de partida para analisar os processos inclusivos
como componentes do próprio processo excludente (a criação do discurso
da inclusão no interior de tais processos teria uma função alienante,
escamoteadora da realidade).
As crenças acerca do lugar da escola nos processos de
reprodução e transformação do real_ É possível enfeixar em três
grandes linhas os discursos que têm essa questão como temática.
A primeira localiza na escola e nas práticas do professor da
possibilidade de ações inclusivas, de onde se “espalharão” para o todo
social. Nessa concepção, centram-se na formação do professor, na
estruturação da escola e na aceitação e promoção da aprendizagem do
aluno “diferente” as linhas de ação da inclusividade. A educação aparece
como redentora, capaz de abrir, para todos, territórios de bem estar
social.
283
Uma segunda linha amplia para além da escola a possibilidade
de ações inclusivas. A escola é apenas um dos territórios da inclusividade,
mas tal inclusividade se refere à aceitação e abertura de espaço para os
diferentes. Nesse caso, a expressão “para todos” geralmente se refere a
uma polarização: “deficientes”X”normais”, “especiais”X”não-especiais”, ou
quaisquer outras denominações; o que interessa aqui é que são
pressupostos dois pólos, os quais, estando representados na educação e
em todos os espaços sociais, caracterizarão a sociedade para todos.
Uma terceira grande linha agrega as vozes que defendem a
inocuidade
de
ações inclusivas numa rede
de relações de
poder
assimétricas e excludentes por definição. Desse último ponto de vista, tais
ações se manifestam como disfarce, como escamoteio; criam a ilusão de
que, por serem criados acessos a representantes de certos grupos,
excluídos de certas relações, em certas instâncias sociais, estaria havendo
uma superação da exclusão (entendida esta como momento atual das
relações capitalistas, em que ocorre uma busca por “ingressar” nas
relações capitalistas de exploração). Quando tais processos se localizam
na escola, funcionam como mecanismos de reprodução do modo de
pensar/agir dominante, segundo esta última linha.
As relações entre discurso e prática _ Tratar da temática
“relações entre discurso e prática” é diferente de tratar dos modos de
operar com discurso e prática; como temática, tomarei estes últimos
como conceitos e não como operadores.
Os discursos acadêmicos, nos
excertos analisados, apresentam duas posições distintas:
a) tratam discurso e prática como conceitos referentes a
instâncias distintas do real e buscam formas de fazer tais
instâncias convergirem ou estabelecerem uma coerência
entre si. Evidenciam essas posições as discussões a
respeito da prática preconceituosa, discriminadora ou
opressora da escola; dos discursos separados da realidade,
dogmáticos, incoerentes; da necessidade de mudança nas
284
práticas dos professores; dos postulados inclusivos que
precisam ser aceitos, aprendidos e postos em prática.
Nessa forma de lidar com a temática, prática é quase
sempre entendida como a “ação dos professores em sala
de aula”. Levando em conta aquela compreensão de que o
discurso é de uma ordem distinta da ordem da prática, a
conclusão a que sou levada é que em tais posições a ação
pedagógica não aparece como uma prática discursiva, mas
como puro fazer (no extremo, poderia ser encarada como
pura técnica). Reforçam esta minha posição a ausência de
certas
perguntas
na
literatura,
como:
Porque
os
professores deveriam buscar ser coerentes, em seu fazer,
com discursos nos quais não se reconhecem? Por um dever
ser, ou por um reconhecimento de autoridade em certos
discursos e de ilegitimidade em certos outros? Esse “não
se reconhecer” se explica por falta de formação, por
desconhecimento, ou por um tipo de conhecimento que
não é legítimo nem autorizado, e portanto, sequer entra
como voz nos diálogos/enfrentamentos encontrados nos
excertos?
b) A concepção de prática e discurso como esferas distintas
pode
dar
ênfase
determinante
da
a
um
relação.
ou
Nesse
outro
conceito
caso,
é
como
geralmente
discurso o pólo dominante, sendo dado como origem e
produtor de práticas, e tendo como locus de produção
outros espaços e práticas que não a prática pedagógica, a
qual aparece como locus de aplicação.
c) tratam discurso como coincidindo com a prática. Nessa
situação, o discurso configura-se, ele próprio, como prática
e é tratado como atividade panfletária, militante. Os
debates
acerca
da
necessidade
de
disseminação
do
285
discurso da inclusão, a propaganda, as cartilhas de
conscientização podem ser citados conseqüência desse
modo de tratar a temática. Não posso deixar de pensar
que
tal
compreensão
tende
a
substituir
a
ação
propriamente por um “falar sobre”, na qual oferecer a
temática da inclusão em embalagens diversas (palestras,
congressos, livros, manuais, cartilhas, cartazes...) serve
como ”prova” de que há uma “intenção” inclusivista _ e aí
aparece
o
discurso
buscando
estratégias
de
sobreviver...como discurso.
Em qualquer dos casos, a prática não aparece como produtora
de discursos (mantendo-se a distinção entre os campos), nem como
interconstituinte em relação ao discurso (compreendendo-se discurso e
prática como dimensões de um mesmo processo: o que fazer humano)...
Há, por último, uma questão a ser colocada com relação ao
discurso acadêmico. O discurso acadêmico não está, por ser acadêmico,
imune à alienação. Na medida em que ele não se volta sobre si mesmo,
não se analisa como prática discursiva, deixa de perceber que utiliza
certos
operadores
como
conceitos,
como
definições
do
real.
Não
percebendo a polissemia dos operadores que elabora e utiliza, pode
colocar-se inadvertidamente a serviço de estratégias discursivas gestadas
nas disputas de poder, e isso pode fazer com que se dilua, no gênero
acadêmico, sua característica mais preciosa, que é exatamente poder
pensar a si mesmo como prática discursiva, ideologicamente produzida,
como todo discurso, mas capaz de desdobrar-se e ver-se a si própria,
como propunha Verón:
O “efeito de cientificidade” repousa numa espécie de
desdobramento: o discurso é reconhecido como instaurador de
uma relação com sua relação com o “real” que descreve. Essa
relação dupla é obtida quando um discurso que, como todo
discurso, está submetido a condições de produção determinadas,
se mostra precisamente como estando submetido a condições de
produção determinadas. Dito de outra maneira: a relação do
discurso com seu referente é marcada pela relação do discurso
286
com suas condições de engendramento. O “efeito ideológico” é,
em contraposição, o do discurso absoluto: aquele discurso que se
mostra como o único discurso possível acerca daquilo que se fala.
Mas tanto um como o outro desses efeitos de reconhecimento
ocorre necessariamente no interior de discursos que são
ideológicos na produção. (VERÓN, 1980, p.198 – grifos do autor).
Percebo muito mais, no discurso acadêmico analisado, uma
busca de lidar com conceitos (enquanto descrições do “real”) do que a
percepção de que eles podem ser operadores, ferramentas para agir sobre
si e os outros. Desse ponto de vista, o discurso acadêmico analisado
parece pouco propenso a desdobrar-se sobre si mesmo, percebendo suas
coerções internas.
Assim as formações discursivas no discurso analisado articulam
os operadores prática,
discurso e movimento de três formas mais
explicitas:
a) Quando a noção de movimento significa que mudanças
gerais criam mudanças no localizado: a superação das
relações de desigualdade social é a utopia para a qual
remetem as ações de inclusão; a escola será inclusiva
quando as demais relações forem inclusivas... Nesse caso,
as práticas inclusivas no interior da escola são dadas como
importantes,
mas
não
resumem
todas
as
tarefas
transformadoras, nem no interior da escola nem no
contexto mais geral. Os discursos da inclusão se encaixam
nos discursos mais gerais de transformação social, o que
cria certas contradições características internas dos dois
tipos de discurso.
b) Mudanças locais deflagram mudanças gerais: a criação de
situações inclusivas deflagrará mudanças na estrutura da
sociedade como um todo. Esse matiz de movimento
remete a uma prática escolar recortada do todo social,
remetendo a responsabilidade pela mudança aos sujeitos
da escola, especialmente ao professor. Nesse caso, a
287
prática de formação se centrará em modificar as atitudes e
competências desse professor. a inclusividade exigida da
prática escolar (especialmente a pedagógica) não seja, na
primeira dimensão, exigida da prática política, a não ser
naquilo
que
diz
respeito
diretamente
à
escola
e
à
educação. Numa concepção de que as práticas (locais)
estão atrasadas com relação a um determinado discurso,
haverá um movimento na tentativa de sintonizar discurso e
prática, modificando localmente estas últimas e adotando
determinado discurso, externo a essas práticas, como
expressão do que “deve ser”.
c) Mudanças locais pressupõem manutenção da totalidade: a
criação de situações inclusivas no espaço escolar e sua
restrição a esse espaço disfarçam as relações excludentes
da sociedade como um todo. Nessa nuance, o movimento
que o discurso antevê se situa mais do lado da reprodução,
da manutenção do status quo, e as práticas chamadas de
inclusivas tenderão a ser analisadas em seu conjunto como
parte desse processo. Englobar tais práticas na denúncia
dos processos excludentes pode fragilizar a crença na
transformação pela prática, e fortalecer o pensar (externo
à prática) como origem e organizador do fazer.
Permeando a articulação interna dessas três formações aparece
uma estratégia discursiva que tende a descrever realidades ao invés de
processos discursivos. Também aparece um descolamento entre prática e
discurso, em que a prática não é colocada como interconstituinte em
relação ao discurso, mas subalternizada em relação a este. O operar com
representações de um real estático e a separação entre prática e discurso
dá maior organicidade à segunda formação descrita, e fragiliza as outras
duas, as quais, pela utopia da transformação e pela denúncia da
manutenção do status quo, seriam fortalecidas por uma estratégia de lidar
288
com operadores e a de amalgamar pensar-e-fazer como práticas humanas
interconstituintes.
8. INTERDISCURSIVIDADE E HABITUS: AS IMBRICAÇÕES DOS
DISCURSOS NO CAMPO DA INCLUSÃO
Neste capítulo, teço entrecruzamentos entre os três gêneros de
discurso anteriormente analisados, expondo as relações interdiscursivas
que construí ao elaborar uma leitura “em reconhecimento” de tais
discursos. Esses entrecruzamentos se caracterizam pelas referências
explicitas e implícitas que uns discursos fazem aos outros, pelas temáticas
comuns ou especificas de cada tipo de discurso, pelos modos de operar
que são recorrentes nos vários discursos ou próprios de cada um. Como
parti da hipótese de que esses discursos dialogam entre si, e o fazem
dentro de certo habitus, tento aqui esboçar os principais traços desse
diálogo e os elementos do habitus no qual atuam, relacionando-os entre
si.
Nos três capítulos anteriores a este, dedicados à análise de cada
gênero de discurso, busquei responder à primeira pergunta do problema
de pesquisa: Como se configuram os modos de funcionamento dos
discursos governamental, escolar e acadêmico no campo da inclusão?
Aqui, à guia de capítulo conclusivo, tento organizar a resposta à segunda:
que efeitos de sentido podem ser produzidos, em reconhecimento, a partir
das relações entre esses modos de funcionamento?
Os textos recortados para análise, dentro de cada discurso, se
referem a um horizonte comum (o processo de inclusão dos alunos com
necessidades educacionais especiais dentro da educação pública), e foram
produzidos num contexto geral comum: uma mesma época histórica, uma
mesma configuração sócio-econômica. No entanto, as condições de
produção em que são elaborados se diferenciam: o texto oficial tem entre
suas condições de produção certa normatividade, uma determinada
produção acadêmica, um determinado projeto político; o texto acadêmico
tem outra normatividade, outros discursos de outras academias, com os
290
quais estabelece determinados tipos de relações; um determinado tipo de
relação como projetos político diversos: a falas dos professores sofrem as
coerções do contexto, das posições que são atribuídas aos participantes
do diálogo, de suas vinculações pessoais e de grupo com determinados
projetos políticos. Tudo isso faz com que sejam textos diferentes, o que
permite uma abordagem comparativa, como propõe Verón:
Do ponto de vista de uma teoria da produção social de sentido,
um texto não pode ser analisado “em si mesmo”, mas apenas em
relação a invariantes do sistema produtivo de sentido. Ora, para
mostrar que certas propriedades de uma economia discursiva
estão realmente associadas a invariantes produtivas determinadas
(seja na produção, seja no reconhecimento), é preciso que, sob
condições diferentes, os discursos produzidos sejam diferentes.
Por isso, a abordagem comparativa é o princípio de base da
análise dos discursos (VERÓN, 2004, p.62; grifo do autor).
Buscando realizar essa análise comparativa, produzo aqui um
texto que tem como condições de produção os três textos analisados.
Busco amalgamar os enfeixamentos já realizados, tanto das temáticas
quanto dos modos de operar, o que só pode ser feito, como disse antes,
porque alguma coisa nas configurações dos efeitos de sentido os “atrai”
para uma mesma “rede semântica”. Se é possível adotar a idéia de
formação discursiva como um sistema de dispersão é porque, ainda que
dispersos, os elementos constituem um sistema, relacionam-se entre si.
Essas relações, nesta leitura em particular, são vinculadas às coerções às
quais os discursos estão submetidos, por serem produzidos nas relações
humanas concretas, atravessadas pelo poder e pelo ideológico. Essa
vinculação
permite
esboçar
a
configuração
de certo
habitus,
que
transparece no estudo do produto das práticas discursivas.
O
entrecruzamento
dos
discursos
se
organizou
numa
topicalização que pretende mostrar como esses discursos dialogam entre
si, e que traços desse diálogo produzem efeitos de sentido que configuram
um habitus. Um habitus sendo entendido como um “princípio gerador de
estratégias” (BOURDIEU, 1994, p.61), sistema de disposições que gera e
estrutura práticas e representações, ao se organizar discursivamente deve
291
prever um lugar para o enunciador e para o outro (e relações entre esses
lugares), um lugar para o fazer/dizer /pensar (que promova ou não uma
cisão entre essas instâncias do humano), deve mobilizar determinadas
crenças e, por meio desses movimentos estratégicos, se configurar em
determinadas formações discursivas. Por esta razão, os tópicos deste
capítulo foram assim distribuídos: a) o lugar de cada enunciador no
discurso do outro; b) prática como instância subordinada do real; c)
crenças
postas
em
ação
nos
discursos;
d)
formações
discursivas
recessivas e dominantes.
8.1. O “LUGAR” DE CADA ENUNCIADOR NO DISCURSO DO OUTRO
A distinção/interdefinição entre o professor que atua na inclusão
e o outro professor aparece nos vários discursos, no entanto com
configurações diferentes.
No
discurso
caracterização
escolar,
dominante
do
essa
distinção
se
outro-professor
ampara
pela
numa
passividade,
insegurança e carência de formação, assim como numa polarização, na
qual se esboça um professor especializado como militante ativo, disposto
a cobrar a atuação governamental e a atuar no vácuo criado pelo seu
descomprometimento. Portanto, aparece um processo de interconstituição
das identidades dos dois tipos de profissional, em que o professor do
atendimento especializado evoca a passividade do outro para explicar a
necessidade de sua intervenção, assim como evoca sua carência de
formação
para
justificar
a
necessidade
de
mais
cursos,
de
mais
treinamento.
No discurso oficial, a flutuação que o lugar do professor sofre no
discurso, em que a expectativa de passividade em certos momentos se
contrapõe a exigência de atuação crítica em outros, permite a auto-
292
identificação tanto de um quanto de outro profissional. Também a
desqualificação das práticas anteriores à inclusão tanto pode ser referida à
educação especial nos moldes chamados de segregacionistas quanto à
escola denominada tradicional. No entanto, quando na prática são
principalmente os ex-profissionais da educação especial que assumem as
tarefas de encaminhamento da inclusão, como no caso estudado, esse
processo de auto-identificação e de identificação do outro se organiza de
tal forma que a flutuação mostrada no discurso governamental pode ser
colocada a serviço das estratégias de desvalorização do outro-professor
no discurso escolar, e portanto do fortalecimento das tensões entre os
dois grupos. O tênue poder que significa dirigir o processo de treinamento
dos demais professores, receber primeiro as informações que serão
levadas a todo o grupo, acompanhar as dificuldades de aprendizagem e,
portanto, de certa forma, avaliar a ação do outro modifica e reorganiza as
elaborações identitárias e portanto as inter-relações no interior da escola.
No discurso acadêmico, mais multifacetado que o oficial, essa
relação aparece de modos diferentes: quando a inclusão aparece como
movimento no interior da escola, disposta a modificá-la em suas velhas
crenças, o professor que não tinha vínculos com as discussões da inclusão
é
constituído,
grosso
modo,
como
o
porta-voz
dessas
crenças
ultrapassadas, portanto clientela preferencial da formação e treinamento
para a inclusão. Tanto nesse caso, como naquele em que o movimento da
inclusão é definido como um movimento de superação das desigualdades
sociais, o lugar do professor especializado como militante ganha reforço e
destaque, assim como ganha reforço sua reivindicação e esperança de
surgimento de novas vocações, de despertar mais lutadores para a causa.
No caso em que tal movimento aparece como disfarce das relações
excludentes, essa distinção perde sentido; tendo essa crença como pano
de fundo, já não são os profissionais da educação especial os porta-vozes
da mudança, não se configurando mais em grupo mais esclarecido e
melhor formado do que os outros. Pelo contrário, as tensões estabelecidas
293
tenderão a desqualificá-los, caracterizando-os como porta-vozes do status
quo e não da mudança.
Vê-se nesse caso, que o atributo da passividade ou da militância,
referido a um grupo ou a um tipo de profissional, precisaria ser
contextualizado e historicizado e o discurso acadêmico teria uma função
importante nesse processo, por ser o discurso onde os pontos de vista em
contraposição têm maior liberdade de se expressar e cuja forma de operar
permite voltar-se sobre si mesmo, reconhecendo-se como ideológico.
As definições identitárias de professor através dos atributos da
passividade, má formação, carência, por um lado, e da capacidade de
militância, de participação, do exercício da cidadania, por outro inscrevem
num certo habitus, ancorado nos processos históricos porque passaram a
educação brasileira e o próprio país. Seus aspectos positivamente
valorados são assumidos por um grupo que remete os atributos negativos
àquele com quem polariza nas tensões criadas nas assimetrias de poder
Assim, analiso que os professores do atendimento especializado
não assumem para si o lugar flutuante que o texto oficial lhes propõe: em
compensação remetem para esse lugar os demais professores, o que
reforça ideologicamente o texto oficial. O que as falas dos professores
dizem é que esse destinatário existe e portanto tal configuração
discursiva tem razão de ser.
Esse outro-professor passa a ocupar o lugar de aluno na situação
de formação continuada, na qual deve refletir sobre a inadequação daquilo
que faz e de seus modos de pensar (o tradicionalismo da escola, suas
práticas excludentes). Sua caracterização anterior aqui ganha mais uma
razão de ser: uma das limitações do processo inclusivo é a sua falta de
formação; e é a sua falta de formação que justifica a existência de uma
rede de formadores e um investimento em cursos de treinamento, num
trabalho de conscientização e sensibilização. Não se assemelha nem de
longe àquele lugar que os entrevistados reservam em seu discurso para os
alunos com necessidades educacionais especiais: pessoas que precisam de
294
ajuda, sim, mas decididos, participativos, lutadores, capazes de pressionar
e brigar por seus direitos.
Assim como o discurso oficial reserva um lugar para o professor,
nas falas dos professores o governo ganha também determinados
contornos: seu lugar oscila entre a autoridade opressora, educadora,
provedora, ajudante.
Nesse deslizar, o professor especializado vai do
distanciamento à identificação com o outro-governo: demonstra uma
postura crítica, aponta as falhas, exige mudanças, mas também se coloca
no lugar dele. Quando cobra mais formação, por exemplo, geralmente fala
do lugar do formador, quando exige mais material, mais e melhores
profissionais, aplicação das verbas, situa o governo como instância de
ajuda numa tarefa da qual se vê como o centro (ou melhor, como parte
do centro, já que sua auto-identificação se articula fortemente com o
lugar do aluno com necessidades especiais).
Se o professor a que o discurso oficial se refere não lida com
questões salariais, com família, não tem necessidades específicas a não
ser as de formação, esse esboço tem seus contornos reforçados com o
potencial
missionário
evidenciado
na
militância
inclusiva,
elemento
importante do discurso dos entrevistados. Por outro lado, o destinatário
do discurso não é a militância da inclusão, é todo o professorado da rede
pública. Parte das razões pela qual a discussão da inclusão enfrenta
tensões no interior das escolas pode ter a ver com a pouca aproximação
entre o professorado concreto e esse esboço identitário.
Quando o foco é o lugar do acadêmico nos outros discursos,
surgem muito mais vácuos do que nos casos anteriores, em que o lugar
do outro aparece claramente, mesmo quando flutuante e escorregadio. O
lugar do acadêmico aparece pouco e vagamente no discurso oficial.
Aparece pelo silêncio, quando remete a formação apenas ao treinamento
e não à formação superior, criando/supondo uma cisão entre formação
continuada e formação básica e aparece quando é assumido como auxiliar
no processo de inclusão (propõe que se busque uma interação com
295
especialistas para enriquecer os conhecimentos dos professores a respeito
de inclusão). Claro, sem contar as referências a determinados autores e a
omissão de outros, aspecto que não foi trabalhado nesta investigação
porque demandaria uma outra tese.
No
discurso
escolar,
em
que
formação
é
uma
temática
recorrente, as referências à universidade não são o centro dessa temática
e sim os cursos de formação em serviço. Dos momentos em que a
universidade aparece, ou ela é caracterizada como precisando se adequar
aos parâmetros da inclusão, ou como referência de formação pessoal, mas
aparentemente a diversidade e riqueza do debate a respeito da inclusão
faz pouco eco no interior do discurso escolar.
8.2. A PRÁTICA COMO UMA INSTÂNCIA (SUBORDINADA) DO REAL
O lugar de destaque que a prática ocupa no interior do discurso
acadêmico também se mostra nas falas dos professores e no discurso
oficial. Evidentemente, que, no caso do discurso oficial, o próprio recorte
feito já remete para esse ângulo: trata-se de uma proposta de curso de
formação com caráter eminentemente prático, que é propiciar subsídios
para a formação de professores para a escola inclusiva, fornecendo-lhes
meio de lidar com os alunos cegos, surdos, com altas habilidades e com
deficiência física/neuromotora.
A prática se desdobra em dois sentidos principais: a prática
pedagógica (que deve ser modificada pela conscientização promovida nos
processos inclusivos) e a prática de formação (caracterizada pelo
treinamento e aquisição de habilidades para lidar com as deficiências). O
dois sentidos de prática se entrecruzam tanto no discurso escolar como no
oficial, já que a prática de formação deverá ter um efeito sobre a prática
pedagógica.
296
No caso das falas dos professores especializados, ocorre uma
distinção entre sua própria prática (identificada com a de formação) e a
prática pedagógica que é preciso modificar (identificada com a dos
professores em geral). A valorização dos cursos de formação em serviço,
tão evidente no discurso dos professores, encontra nessa distinção boa
parte de seu sentido: não é a sua prática que está “na berlinda”, mas a
dos demais professores.
Os
dois
discursos,
ao
propor
que
um
processo
de
conscientização, de aquisição de conhecimentos possa ter efeitos de
transformação da prática fazem entrever uma subordinação do fazer do
professor a um pensar que é externo a ele, e, portanto, uma cisão entre
seu próprio fazer e pensar. Tudo isso, no entanto, pôde ser captado muito
mais nas entrelinhas do que num discurso assumido, no que se refere ao
discurso oficial e escolar. É no discurso acadêmico que as relações entre
discurso e prática, no campo da inclusão, aparecem com maior clareza: ou
se trata de sintonizar a prática ao discurso (caracterizando aquela como
antiquada ou inadequada e este como transformador); ou de promover
mudanças
no
discurso
para
assim
atingir
a
prática
(através
da
conscientização); ou de compreender a prática como discurso, ou viceversa (e aqui não se refere à prática pedagógica, mas à prática militante
da inclusão, que até pode incluir o pedagógico, mas não se limita a ele).
A exclusão do território do professor (a prática pedagógica) da
possibilidade de produção discursiva relevante e o situar dessa produção
nos campos do oficial e do acadêmico são outros elementos que se
agregam à desvalorização daquele lugar do professor, conforme analisei
anteriormente.
Esse
silenciar
simbólico
do
professor
se
expressa
claramente na denúncia feita por um dos entrevistados da submissão às
práticas de formação oferecidas pelas secretarias, submissão essa
garantida pela falta de condições do professor para procurar a formação
que ele considera a mais adequada. Essa subordinação não é sequer
aventada pelo discurso oficial (pelo contrário, a oferta desse tipo de curso
297
é caracterizada como uma demanda do professorado, uma vez que são
naturalizadas as razões pelas quais ele não tem a formação necessária). A
reivindicação do direito de administrar sua própria formação é uma voz
absolutamente recessiva no discurso escolar, mas traz à superfície uma
questão extremamente importante na desnaturalização de tais razões.
Portanto, a prática pedagógica se configura, nesses discursos,
como instância subordinada do real; ou não pode produzir discursos, ou
os discursos que venha a produzir não são relevantes para a sua própria
transformação; no máximo se alimenta
dos discurso de outros, cuja
legitimidade se ancora no lugar de onde emanam. É pela proximidade
maior com esses lugares que a prática de formação ganha maior
legitimidade, e se descola da prática pedagógica. Não é ela própria
também produtora de discursos, mas, sendo porta-voz legitima dos
discursos autorizados, ganha ascendência sobre a prática pedagógica.
8.3. CRENÇAS POSTAS EM AÇÃO NOS DISCURSOS
Diz Verón que, para que um discurso tenha poder, deve por em
ação uma crença (1980, p.198). Isso implica que um habitus é posto em
ação, já que uma crença mobiliza aspectos inconscientes, voltados para a
reprodução de experiências reforçadas ao longo da história do individuo e
do grupo ao qual pertence. Considerando que nas relações entre os
discursos, assimetrias de poder fazem com que uns se imponham sobre os
outros sob determinados aspectos, importa analisar as crenças que são
postas em ação nos discursos, ou seja, o que se apresenta neles como
sensato, razoável, objetivo.
Entre as muitas crenças mobilizadas nos vários discursos,
algumas são comuns a todos eles, mesmo que com graus de relevância
diferentes em cada um. Já destaquei a crença numa subordinação do
298
fazer ao pensar, a qual, posta em ação nos vários discursos, legitima e
organiza as relações entre os vários enunciadores. Admitir a prática dos
professores como capaz de produzir um saber relevante, ou analisar as
práticas produtoras dos discursos autorizados por exemplo, seriam
possibilidades de rompimento daquela lógica que poderiam estabelecer
novas bases para essas relações.
Uma outra crença que, mobilizada no discurso oficial mas
presente também nos outros, busca garantir o envolvimento
dos
destinatários do discurso nos processos da inclusão é a sua caracterização
como ruptura, como mudança. Não é preciso discutir a carga semântica
desses operadores nos processos históricos de redemocratização do país
e dos debates educacionais
relacionados a isso. Colocar-se contra a
mudança é geralmente caracterizado como uma atitude reacionária, ou
antiquada, ou desinformada. Isso alinha todas as criticas às proposições
ligadas à questão da inclusão, tenham elas ou não fundamento, nesse
espaço obscuro e recessivo, o que é prejudicial ao exercício do
pensamento crítico; agrega todos os interessados em estar na moda ou
em ganhar financiamento para pesquisa e extensão aos educadores e
pesquisadores de fato envolvidos com a questão da inclusão, o que
desqualifica
trabalhos
de
excelente
qualidade;
traveste
de
transformadoras ações que são mera manutenção da educação, o que
desobriga de transformações realmente profundas; por fim, alimenta as
tensões entre os
professores que coordenam o processo inclusivo e os
demais, ao invés de articular as diversas contribuições dos grupos num
projeto de educação que transforme suas estruturas.
Uma outra crença enfatizada no discurso oficial é aquela que
coloca a educação como alavanca de transformações na sociedade.
A
idéia de transformação, naturalmente é ressituada pela leitura da
polarização exclusão/inclusão. Num mundo que se organiza pela produção
cada vez maior de excluídos, garantir a inclusão passa a ser tarefa
prioritária da educação. Questões como debater as razões pelas quais
299
ocorre a produção de excluídos e as possibilidades de um mundo diferente
se tornam recessivas, diante da urgência de se reduzir a quantidade de
excluídos (ou de se demonstrar disposição de reduzir essa quantidade,
uma vez que para cada aluno que a escola inclui, a sociedade produz
muitas outras exclusões). A capacitação do professor se insere nessa
urgência, e por isso ela precisa ser em serviço: não há mais tempo para
longas formações. Os ecos dos debates produzidos
dentro do discurso
acadêmico acerca do papel da escola e da educação, as próprias leituras
acerca dos processos excludentes ressoam pouco no discurso oficial e
escolar, embriagados da urgência de mudar o que está para continuar do
mesmo jeito, de movimentar-se espasmodicamente para não perder o
mesmo lugar.
O acesso dos alunos como necessidades educacionais especiais
à escola pública, garantido por suas lutas e estabelecido como direito, o
atendimento às suas especificidades e o exercício do direito de aprender
são avanços inquestionáveis da educação como um todo, mas apenas
anunciam o aprofundamento das exigências de uma educação de
qualidade,
gratuita, cidadã (exigências fortalecidas pelo acesso de uma
clientela acostumada com as lutas por seus direitos). Não atingem os
mecanismos de produção da exclusão social, ainda que não precisem
fazê-lo para ter validade e legitimidade.
Situar os processos transformadores da educação (a educação
em movimento) no processo de inclusão, esboçando outros processos
como em estado de inércia faz obscurecer aspectos da história recente
dos educadores, alunos e pais (lutas por educação de qualidade, por
exemplo); por outro lado, também desqualifica as lutas por inclusão
diante dos olhos desses atores e cria polarizações que enfraquecem a
educação como um todo.
Ao colocar em ação tais crenças, descrevê-las como razoáveis e
sensatas (colocando do lado da insensatez os que discordam delas), o
discurso estabelece estratégias de envolvimento do destinatário, as quais
300
podem obter ou não sucesso, podem fazer o discurso ampliar-se para
determinados campos ou ver-se limitado a outros; podem ver-se frente a
estratégias que as confrontem ou que se desviem delas.
É possível localizar estratégias para a proposição de outra
sensatez, de outra razoabilidade, considerando a reprodução de ações de
resistência construídas na história desses educadores e seus alunos, na
história do pensamento oficial e acadêmico. Tais estratégias se estruturam
dentro de formações discursivas recessivas, no que se refere ao discurso
oficial, mas não tanto no que se refere aos outros dois discursos.
No próprio discurso oficial, ainda que aparecendo como voz
recessiva e
como suporte
da formação
dominante,
os temas da
participação, da transformação, da mudança fazem com que as vozes
articuladas a esses temas ganhem espaço, disputem os temas e suas
redes de sentidos, minando a crença de que a transformação passou a se
limitar aos enfrentamentos dentro da polarização inclusão-exclusão.
Na falas dos professores, a descrição das condições de trabalho,
ainda quando justificadas como inadequadas por não estarem a serviço da
inclusão, evidencia que sua noção do razoável para a educação pode
propiciar mudanças, o que vai além daquilo que está dado como
necessário no discurso oficial. Da mesma foram, a exigência da superação
da passividade, ainda quando referida apenas aos processos internos à
escola e à inclusão, é uma crença que se contrapõe à descrição do
professor em geral (na qual o professor especializado não enquadra a si
mesmo). A valorização do aluno que atua, reivindica, exige, é outro
elemento que coloca em questão os papéis esboçados para os atores na
educação e coloca em ação a crença numa prática transformadora.
301
8.4. INTERDISCURSIVIDADE: FORMAÇÕES DISCURSIVAS DOMINANTES E
RECESSIVAS
Como último movimento, na análise das relações entre os
discursos, estabeleço aqui algumas aproximações e distanciamentos entre
as formações discursivas cujas configurações elaborei, na construção
deste texto.
Tanto a formação discursiva considerada dominante no discurso
oficial
quanto
a
recessiva
encontram
ressonâncias
nas
formações
enfeixadas no discurso escolar e acadêmico.
As flutuações do lugar do professor, presentes na primeira,
encontram no discurso escolar flutuações semelhantes, no que se refere
ao lugar de aluno que ele ganha no discurso oficial, que se articula com a
passividade do outro-professor descrita no discurso escolar. O lugar de
funcionário, de trabalhador é obscurecido nos três discursos, que tendem
a destacar o lugar de professor como ator responsável pela inclusão
independente de seu lugar nas relações de trabalho. O lugar de
interlocutor, que aparece no discurso oficial, encontra eco nas falas dos
professores no que se refere à vigilância necessária para que o Estado
cumpra suas obrigações, mas não no que se refere à formação: o
momento de formação é descrito como situação de aprendizagens de
novas técnicas e formas de lidar com o aluno, não de elaboração de
proposições para renovar o debate educacional. As ilusões que o professor
evidencia a respeito de seu lugar como militante não se reproduzem em
sua noção da relação com o governo: ele chega a se colocar no lugar
deste, reserva-lhe no discurso um lugar de provedor, de educador, cobra
dele esse papel, mas não prevê um diálogo produtivo com ele no que se
refere à dimensão sócio-educacional.
A ocultação das relações de poder ressoa fortemente no
discurso escolar; tais relações são abrandadas pela própria descrição do
302
professor como militante de um projeto inclusivo.
A concepção de
sociedade inclusiva, como projeto a ser construído ou como realidade com
certos desajustes, mas passível de correção, se casa tanto com a visão
dos professores especializados como militantes desse projeto, como com a
descrição das carências e passividade do outro-professor como os
desajustes (a serem sanados com a prática de formação em serviço)
O fato de os saberes da inclusão serem dados como já
constituídos ganha sustentação na distinção entre saber e fazer, entre
pensar e fazer, fortes nos três discursos. A formação técnica enfatizada no
discurso escolar, o discurso como origem e organizador da prática
presente no discurso acadêmico são elementos que garantem o pouco
questionamento de tais saberes, de sua origem, de sua escolha e
pertinência. Desse modo, a produção de novos saberes é pouco
reivindicada pelos atores da prática de formação, que também não a
apontam no outro-professor, o de sala comum.
Das formações presentes no discurso acadêmico, é a segunda
que se articula melhor com esse aspecto dos dois outros discursos.
Considerar que a criação de situações inclusivas deflagrará mudanças na
estrutura da sociedade como um todo, reforça o lugar de professor da
inclusão como militante, a prática de formação centrada nas mudanças
nas atitudes e competências desse professor e alivia as exigências com
relação à prática política, a não ser naquilo que diz respeito ao lugar de
provedor e educador reservado ao governo.
A formação discursiva recessiva presente no discurso oficial, a
qual inclui a idéia da transformação social, da ação coletiva, da formação
do agente social crítico e reflexivo, da participação no poder, da
construção de uma sociedade não-excludente encontra seus ecos na
formação discursiva presente no discurso escolar, aquela elaborada com
ênfase nos enfrentamentos: valorização do aluno critico e participante, na
auto descrição do professor especializado, na critica da passividade do
outro-professor.
303
Tanto a primeira como a terceira formações presentes no
discurso acadêmico se articulam com essa formação recessiva, na medida
em que ambas propõem a transformação social como horizonte (e incluem
os processos inclusivos nessa transformação) e denunciam a manutenção
do status quo pelo disfarce das relações de poder subjacente a discussão
da inclusão.
Tal articulação, como já foi dito, se enfraquece pelo discurso
acadêmico não incorporar estratégias que compreendam o fazer e pensar
como interconstituintes. Como o mesmo acontece com o discurso escolar,
no qual os saberes e os discursos se colocam fora do domínio da escola
(caracterizada como território da prática e da aplicação dos saberes), tal
formação recessiva se reforça em sua recessividade.
Os efeitos de sentido produzidos, neste texto, pelas relações
entre os modos de funcionamento dos três gêneros de discurso, se não
chegam a permitir respostas claras aos incômodos a que eu me referia na
introdução, pelo menos apontam lugares onde essas respostas possam
ser buscadas. Desses lugares e das considerações finais eu trato no
próximo item deste capítulo, no qual teço relações entre as concepções da
noção de inclusão e a prática discursiva.
8.5. A INCLUSÃO, A PRÁTICA DISCURSIVA NA ESCOLA E OS CACOS DO
ESPELHO
Desde o inicio do projeto que deu origem a esta investigação o
termo inclusão me pareceu vago. Ora tal operador se referia a projetos
oficiais, ora a experiências escolares específicas, ora a aspectos dessas
experiências, ora a projetos de sociedade. Talvez tenha sido exatamente
sua vaguidão que o atraiu para o centro desta experiência de análise de
304
discursos, em que três instâncias discursivas, organizando-se em torno da
inclusão, dão-lhe contorno e criam-lhe uma identidade.
Entendendo inclusão como representação do real, aquelas
oscilações semânticas a que me referi podem fazer pensar que não é um
termo adequado, na linha de reflexão de Abbagnano: “numa época em
que os conceitos são frequentemente confusos e equívocos a ponto de se
tornarem inutilizáveis, a exigência de uma definição rigorosa dos conceitos
e de suas articulações internas adquire importância vital” (ABBAGNANO,
2003, p.V).
No entanto, se inclusão for pensada como operador, seus
deslizamentos de sentido ganham razão de ser: o fato de inclusão
aparecer como força que faz mudar os modos de pensar, os modos de
agir; como mecanismo de ocultação das relações de poder, como
militância, como imposição, como prática educativa, em cada discurso, e
apresentar sentidos contraditórios dentro de um mesmo discurso, o real
se reconfigurando a cada novo uso do conceito, faz com que se possa
dizer que inclusão, ao transitar entre diferentes campos de sentidos,
assume
como
característica
central
exatamente
a
polissemia,
a
capacidade de deslizamento.
Diz Bourdieu que “é a própria estrutura do campo em questão
que rege a expressão, regendo então o acesso a expressão e a forma de
expressão” (2001, p.110)79 . Para entender inclusão, é fundamental ir
além de sua configuração como conceito. É preciso entendê-la como
operador, o qual atua articulando determinados campos, eu creio, para
dimensionar a complexidade das relações que estabelece. Só assim pode
ser analisada a dimensão do ideológico, que é dada pelas relações de
79
Es la propia estructura del campo en cuestión la que rige la expresión, rigiendo a la vez el acceso a la
expresión y la forma de expresión.
305
poder,
pela
capacidade
de
mobilização
de
crenças,
práticas
e
representações.
No campo sócio-econômico, dentro do estudo das relações entre
capital e trabalho, que Tedesco (2002) descreve e que resumo no primeiro
capítulo, inclusão se opõe a exclusão, a qual vem a substituir a relação de
exploração. As lutas dos grupos oprimidos deixam de ser contra a
exploração capitalista, esta restrita a um grupo reduzido da sociedade
(exploração passa a ser luxo de poucos) e passam a se concentrar na
redução da exclusão. Esse processo de redução da exclusão é o que se
chama inclusão; o “incluso” é o que passa a ter o direito a participar das
relações de exploração.
Transposta para o campo educacional, e chegando a esse campo
através da educação especial, o termo carrega consigo a idéia de
mudança (sair de uma posição no mundo social para outra), mas tal idéia
ganha
dimensões
outras:
aplicada
à
situação
das
pessoas
com
necessidades educacionais especiais, vem a querer dizer o acesso à
convivência com os outros, ao aprender, ao ocupar espaços sociais antes
restritos; aplicada à educação em geral, passa a significar o acesso de
todos
os
que
estavam
alijados
aos
espaços
e
às
possibilidades
educacionais. Os contornos do real que a idéia de inclusão quer configurar
se modificam nessa transposição, tornando-se mais restritos por um lado,
(porque a escola não deixa de ser um espaço de trabalho, também
explicável pelas relações sócio-econômicas) e mais amplas por outro
(porque o aspecto educacional abrange muito mais do que relações de
trabalho).
Como as teorias educacionais não estão descoladas dos modos
de pensar a sociedade, a idéia de inclusão se expande e se contrai: em
alguns
discursos,
representa
uma
mudança
localizada
que
necessariamente se articula com as mudanças necessárias para superação
do modo de vida capitalista; em outros, uma mudança no interior da
educação que mostra a possibilidade de se criar consenso dentro desse
306
mesmo modo de vida, melhorando as relações gerais no mesmo processo
em que são reduzidas as hostilidades e preconceito entre pessoas e
grupos; em outro ainda, uma pseudo-mudança que serve para que tudo
continue como está (o movimento necessário para que nada mude).
Dessa forma, os contornos, as zonas de conflito e de estabilidade
do conceito, nos discursos vinculados à educação, se situam nas
contradições entre os efeitos de sentido que cria.
Quando tais efeitos de sentido se vinculam com uma concepção
dos aspectos do real como recortados e separados, as contradições sendo
referidas aos modos de pensar e não às condições de produção da vida
concreta, então é possível pensar na escola como espaço das contradições
sociais.Vista assim, a noção de inclusão é um operador poderoso, no
sentido de uma ideologia do consenso. Pode criar o efeito de mobilizar
crenças contraditórias, agrupar num mesmo conceito modos de agir e
pensar em conflito; pode tornar-se bandeira de projetos de sociedade que
precisariam superar um ao outro para poder se concretizar.
Por outro lado, certos efeitos de sentido produzidos nessa
capacidade de deslizamento do operador remetem a uma ideologia da
transformação. Imaginar essa inclusão como algo mais do que acesso aos
mesmos padrões educacionais oferecidos às classes populares implica em
querer ampliar para além da escola a responsabilidade pela inclusão.
Nesse
caso,
a
desresponsabilização
governamental
precisará
ser
combatida, os mecanismos produtores de exclusão também. A ilusão de
ascensão social baseada no domínio dos saberes precisará ser contraposta
a análise da distribuição social dos tipos de saber que busca adequar cada
um e cada grupo ao seu lugar na sociedade, assim como um estudo da
cisão entre prática e discurso, que elege determinadas instâncias como
produtoras de discurso válido e outras como consumidoras desse discurso.
À caracterização da desigualdade como fenômeno de origem pessoal, e às
tentativas de corrigir esse fenômeno, no caso da escola, através da
formação dos professores, contrapor projetos de formação que permitam
307
um pensar/fazer críticos. Implica aos professores recusar a obrigação de
ser bons em tudo, de forma fragmentada, assim como a obrigação de
formar pessoas para caber no mundo tal como ele se apresenta.
O desencontro entre escola, projetos oficiais e universidade, que
me incomodou sempre e que ajudou a criar a lacuna na qual esta
investigação ganhou sentido, tem vínculos com essas crenças, práticas e
representações que emergem dos discursos cujos efeitos de sentido
analisei. Quero crer que as resistências da escola em aplicar projetos que
são gestados externamente a ela , quando ocorrem, tem a ver com uma
certa saúde do coletivo escolar. No entanto, devo dizer que, no caso
presente, a parte da escola cujos discursos analisei não resiste nem se
recusa ao processo, pelo contrário, coloca-se resolutamente como a
responsável pela inclusão. Cobra providências, exige condições para que o
projeto se concretize. Isso me faz pensar que a descrição da resistência
da escola seja gestada fora dela e inclusive se antecipe à sua ação, nas
caracterizações do lugar do professor e do aluno, da definição de um lugar
subordinado para a prática e da escola como o lugar da prática, e não do
pensar. Ou, por outra, talvez não seja aos projetos que a escola se
recusa, mas a seu lugar neles.
Eu desejava, afirmei, acompanhar as caretas do menino no
próprio esforço/resistência de beber o remédio. Como não pude analisar a
escola como um todo, mas um certo recorte dos discursos que se
entrecruzam nela, não posso dar uma descrição mais consistente do
processo. Só posso dizer, que, no que se refere ao discurso dos
professores especializados que atuam como formadores no processo de
inclusão, eu estava enganada: o menino não faz caretas, e sim reclama do
pouco efeito do remédio, ou reclama do diagnóstico.
O lugar da escola nos discursos acerca da inclusão, desenhado
como o lugar da prática, esboça uma escola como deficiente, no sentido
de que ela é negada como é para ser projetada como ideal (da mesma
forma como o movimento por inclusão denuncia que é feito com o aluno
308
deficiente). É a escola que é “portadora” de métodos inadequados, de
preconceito, de valores inadequados. O modelo clínico/médico é aplicado
à escola no mesmo movimento em que ele é recusado com relação ao
aluno. Assim, as práticas (modos de dizer, pensar e agir articulados) que
já ocorrem no interior da escola são recusadas por sua deficiência, e em
seu lugar são sugeridas novas práticas, inspirados em modos de dizer e
pensar externos a ela. Eu diria que ocorre um deslocamento de modelos
de uma instância menos abrangente (o individuo) para uma mais
abrangente (escola) no processo mesmo de buscar a superação desses
modelos. A visão atomizante parece ter sido superada quando ela foi
apenas deslocada de um âmbito para outro mais abrangente.
Considero muito ilustrativo dessa questão o trecho que AMARAL,
(in SILVA E VIZIM, 2001, p. 156) extrai de Memórias póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis, para retratar a recusa do outro por suas
diferenças:
Cap XXXI: ...entrou no meu quarto uma borboleta (...) depois de
esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a,
ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu
dali e veio parar em cima de um retrato de meu pai. Era negra
como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a
mover as asas, tinha um certo ar de escarninho, que me aborreceu
muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos
depois, e achando-a no mesmo lugar, senti um repelão dos
nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.(...) a infeliz
expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido,
incomodado. _Também, porque diabos não era ela azul? disse
comigo.
“Porque diabos a escola não é azul?” _ também parecem dizer os
defensores de uma inclusão na qual a escola não se encaixa do jeito que
é,
mas
também
não
parece
servir
como
matéria-prima
para
à
transformação .
Considerar a escola como é (multicolorida, multifacetada), e
descrevê-la em seus movimentos de reprodução e de transformação, de
produtividade e de criatividade exige entender o pensar, o dizer e o fazer
humano como processos interconstituidos e interconstituintes. Na escola
309
como na análise do discurso, creio que é tempo de juntar os cacos do
espelho, lembrando a outra metáfora, que adotei como título deste
trabalho: considerar o fazer pedagógico como instância válida de produção
de discurso, considerar a possibilidade de se trabalhar o reconhecimento
critico dos discursos alheios, ao invés do mero consumo, reconhecer a
produção discursiva da escola como arena de disputa. Enfim, considerar
as práticas discursivas, principal atividade do mundo pedagógico, como
históricas, culturais, e o professor como agente capaz de voltar-se sobre
as próprias práticas e as práticas dos outros, reconfigurando as
disposições
que
constituem
o
habitus
escolar.
São
essas
as
“recomendações” que faço como resultado de meu trabalho, no que se
refere à atividade pedagógica.
Quanto à proposição de novas pesquisas, este trabalho permitiu
que eu detectasse certos vácuos, e construiu, ele próprio, outros vácuos
que podem se constituir em projetos de pesquisa. Fica em aberto uma
análise dos discursos dos alunos, dos professores de salas regulares.
Uma análise mais abrangente dos projetos de formação nos municípios,
organizados a partir de propostas locais, federais e estaduais também
poderia fornecer dados que enriqueceriam este trabalho. Um estudo das
concepções de educação presentes nos textos governamentais mais
recentes também se faz necessário, assim como um estudo das relações
entre universidade e projetos oficiais no campo da educação. Num campo
mais propriamente teórico, faz falta um estudo histórico e epistemológico
das
releituras de
Vigotski
em
terras
brasileiras,
assim
como
do
distanciamento entre as apropriações de Bakhtin no campo das letras e da
lingüística e as apropriações de Vigotski no campo da psicologia e da
sociologia da educação.
Concluir é tão difícil quanto começar. Mas, lembrando mestre
Guimarães Rosa, o real se dispõe para nós não é na chegada nem na
partida: é no meio do caminho. Assim, começar e terminar são só pontos
310
de um bordado, os quais desaparecem quando ele é dado por concluído:
fica valendo o bordado.
Hildete Pereira dos Anjos
Salvador, 12 de dezembro de 2006.
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ANEXO - Normas para transcrição de textos orais
OCORRÊNCIAS
Incompreensão de
palavras ou segmentos
Hipótese do que se
ouviu
Truncamento (havendo
homografia,usa-se
acento indicativo da
tônica e/ou timbre
Entonação enfática
Prolongamento de
vogal e consoante
Silabação
SINAIS
( )
(hipótese)
/
MAIÚSCULA
::podendo aumentar
para ::: ou mais
-
Interrogação
Qualquer pausa
?
...
Comentários descritivos
do transcritor
((minúscula))
Comentários que
quebram a seqüência
temática da exposição;
desvio temático
Superposição;
simultaneidade de
vozes
-- --
Indicação de que a fala
foi tomada ou
interrompida em
determinado ponto.
Não no seu início, por
exemplo.
Citações literais ou
leitura de textos,
durante as gravações
Ligando as
[
linhas
(...)
“mm”
EXEMPLIFICAÇÃO
do nível de renda...(...)
nível de renda nominal
(estou) meio
preocupado (com o
gravador)
fomos/eles foram...
porque você vai ter que
entenDER
fale::i...falei...
e questão de res-ponsa-bi-li-da-de
e assim... certo?
São três motivos...ou
três razões...
no estado ((nas escolas
estaduais))... em
Marabá
Essa situação- - foi o
caso que te contei- -é
muito difícil...
e pra não ferir a outra
pessoa...
[
e
não...não
ferir
alguém...
quanto mais tempo
de... (...) porque lá
ninguém me conhece...
já chegaram até pra
mim a dizer “olha...
pelo amor de Deus”...
Observações80:
Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas.
80
Normas extraídas e adaptadas de PRETI (1997, p.11-12).
326
Fáticos: ah, éh, oh, ahn, ehun, uhn, tá? (não do verbo estar, mas como
finalização da frase)
Números: por extenso.
Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa).
Não se anota o cadenciamento da frase.
Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::... (alongamento e pausa).
Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto-e-vírgula,
ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa.
AUTORIZAÇÃO PARA COMUTAÇÃO
ANJOS, Hildete Pereira dos. O espelho em cacos: análise dos discursos
imbricados na questão da inclusão. 2006. 327 f. Tese (Doutorado em
Educação) – Programa de Pós Graduação em Educação da Faculdade de
Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
Autorizo a reprodução [parcial ou total] deste trabalho para fins de
comutação bibliográfica.
Salvador, 12 de dezembro de 2006
Hildete Pereira dos Anjos
328
Hildete Pereira dos Anjos, baiana de São Gabriel, foi professora
de ensino fundamental e médio e supervisora de ensino na educação
pública, assim como dirigente sindical, no interior do Pará (município de
Xinguara). De 1995 até os dias atuais, é professora de Psicologia da
Educação, Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem,
Psicogênese da Linguagem Oral e Escrita e Fundamentos da Educação
Especial no Campus Universitário do Sul e Sudeste, da Universidade
Federal do Pará. Pedagoga pela própria UFPA (1992), especializou-se em
Supervisão Educacional pela PUC-MG (1995) e fez Mestrado em Psicologia
da Educação pela PUC SP (1999), defendendo a dissertação intitulada A
professora que trabalha/a criança que trabalha: um diálogo possível, sob
a orientação da Profa. Dra. Maria Laura Puglisi Barbosa Franco. Coordenou
o Curso de Pedagogia do Campus Universitário do Sul e Sudeste/UFPa
(2001/2003). No doutorado (2006), na FACED/UFBA, dedicou-se a
analisar, dentro das concepções da análise de discurso, os discursos
governamental, acadêmico e escolar acerca da inclusão, trabalho que
resultou na tese O espelho em cacos: análise dos discursos imbricados na
questão da inclusão, orientada pela Profa. Dra. Theresinha Guimarães
Miranda. Integra o Grupo de Estudos em Educação Inclusiva e
Necessidades Educacionais Especiais (GEINEE), da FACED/UFBA,
cadastrado no CNPq.
Contato: [email protected] ou [email protected]
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Hildete dos Anjos - RI UFBA