PRÁTICAS CONTEMPLATIVAS APLICADAS A PACIENTES COM DOR CRÔNICA NO SUS Luciana Fernandes Marques – Professora do Programa de Pós-Graduação Ensino na Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, [email protected] Janete Mengue da Silveira – Mestre no Programa de Pós-Graduação Ensino na Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, [email protected] Resumo As Políticas Nacionais de Atenção à Saúde propostas nos últimos anos visam garantir a execução de estratégicas educativas que promovam o cuidado integral dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Este trabalho objetivou investigar os benefícios do uso da prática contemplativa em grupos de usuários com dor crônica e propor sua integração no serviço de atenção à saúde do SUS. O presente estudo foi uma intervenção utilizando a Prática Contemplativa durante 13 semanas em oito participantes com dores crônicas há mais de um ano. Foram utilizados o Questionário Biosociodemográfico, um questionário com questões relativas a dor a Escala de Consciência e Plena Atenção (MAAS) e a Escala Visual Analógica de intensidade de dor (EVA). Foram utilizados Questionários para avaliar os sintomas de dor (escala EVA) e nível de consciência e atenção plena (Escala de MAAS), bem como uma análise qualitativa de como a intervenção afetou os participantes no cuidado com os seus sintomas de dores crônicas. Os resultados deste estudo indicam que a Prática Contemplativa é uma prática complementar adequada ao Serviço Único de Saúde e promissora nos resultados já que tende a gerar maior autoconsciência e melhor manejo da dor pelo paciente com dor crônica. Palavras Chaves: prática contemplativa, meditação, plena atenção, dor crônica, autocuidado. Introdução A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem estimulando o uso das medicinas tradicionais/complementares/alternativas nos sistemas de saúde de forma integrada às técnicas da medicina ocidental moderna após constatação de que as terapias complementares estão cada vez mais procuradas no mundo todo. Também a Constituição Brasileira, no inciso II do art. 198 (BRASIL, 1988), dispõe sobre a integralidade da atenção à saúde como diretriz do Sistema Único de Saúde apontando para o princípio da prevenção sem o descuido da assistência. No início da década de 2000, ganhou destaque, no Brasil, o debate sobre a necessidade de se criar um ambiente inclusivo no campo da saúde, baseado no conceito de pluralismo terapêutico e na capacidade de inclusão. O resultado foi a proposta de incluir práticas integrativas no sistema de atendimento da saúde pública (BRASIL, 2006) que certamente irá gerar mudanças graduais nas categorias profissionais e procedimentos paradigmáticos do modelo biomédico. Nessa ampliação do campo, a proposta é valorizar os avanços da medicina convencional e ao mesmo tempo reconhecer e integrar outras práticas de cuidado baseadas em diferentes racionalidades de saúde. O alcance dessas visões mais integrais no campo da saúde ainda não está completamente identificado, mas o potencial é amplo na medida em se propõe a considerar o campo da saúde como algo mais vasto, incluindo à educação do ser e a formação do humano na sua integralidade. Assim, em 2006, garantindo a integralidade nas ações em saúde, o Ministério da Saúde publicou a portaria 971, instituindo a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no SUS, que faculta novas abordagens de intervenção (BRASIL, 2006). Esta política atende, sobretudo, à necessidade de se conhecer, apoiar, incorporar e implementar experiências e práticas neste âmbito. Os campos da PNPIC contemplam sistemas complexos e recursos terapêuticos, os quais são denominados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de “Medicina Tradicional e Complementar/Alternativa” (MT/MCA) (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2000). Tais abordagens promovem a visão ampliada do processo saúde-doença e a promoção global do cuidado humano, especialmente o que se refere ao autocuidado. Considerando a pequena representatividade no SUS nestas práticas e as avaliações iniciais positivas do Ministério da Saúde no Brasil, alguns serviços de saúde sugeriram a inserção de Medicinas Complementares, aprofundando os conhecimentos sobre estas práticas e seu impacto na saúde. Em termos da atuação do profissional de saúde, é sua função diminuir o desconforto e incrementar a qualidade de vida do paciente. O controle da dor por via medicamentosa nem sempre é eficiente e pode ocasionar efeitos colaterais. O uso de abordagens alternativas pode significar uma inovação no campo da saúde e um ganho da saúde global do paciente. Essas abordagens podem ser complementares e incluir massagens terapêuticas com uso de compressas quentes ou frias, relaxamento, musicoterapia, hipnose, evocação de imagens mentais, distração, entre outros (SALVADOR, RODRIGUES e CARVALHO, 2008). A dor crônica A não resolutividade terapêutica de serviços biomédicos em cuidados dos usuários com dores crônicas tem nos apontado a necessidade de repensar nossas práticas e ampliar o escopo de nosso trabalho. A dor crônica representa um problema de saúde pública e tem elevada prevalência mundial. As dores muscoloesqueléticas afetam milhões de pessoas e são as principais causas de gastos em saúde. Quando se tornam crônicas, provocam um grande impacto sobre a vida cotidiana, podendo desencadear problemas psicológicos e diminuição da produtividade nas tarefas de casa e do trabalho, gerando impactos na qualidade de vida e na realização de tarefas. Num levantamento realizado por alunos do PET/Saúde/UFRGS, no distrito assistencial Glória-Cruzeiro-Cristal de Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil) em 2011/2012, as dores crônicas ocuparam o terceiro lugar na queixa dos usuários. Esse dado reflete uma demanda de melhora no serviço e para reverter esse quadro são necessárias ampliações de ofertas de prevenção de doenças e promoção de saúde, bem como abordagens para autocuidado. Alguns usuários do serviço de saúde com dores crônicas comentam que, à longo prazo, o esforço dedicado a se livrar do problema costuma piorá-lo. O esforço habitual e inconsciente de se livrar da dor muitas vezes é o que mantém as pessoas presas à experiência desagradável da qual desejam escapar, ou seja, o esforço contínuo em acabar com o problema pode tornar-se um problema e um fator estressor. Frente essas questões, surgem as seguintes perguntas: existe um caminho prático, algo que as pessoas com dor crônica possam incorporar ao seu dia a dia e realmente chegue ao âmago do problema? Os pacientes com dor crônica podem ampliar seu repertório de autocuidado de forma a precisar menos de intervenções de profissionais de saúde? O Sistema Único de Saúde pode oferecer práticas contemplativas como forma de prevenir o adoecimento? A dor é uma experiência individual, mediada por vários componentes biológicos, afetivos, cognitivos, sociais e comportamentais. A dor foi conceituada pela Associação Internacional para Estudos da Dor como “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a um dano real ou potencial dos tecidos, ou descrita em termos de tais lesões” (CARVALHO, 1999, p. 31). A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera crônica a dor que permanece continua por mais de três meses ou aquela que se manifesta com episódios de dor por um período superior a seis meses (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2003). Os aspectos emocionais também são fortemente influenciados pela dor crônica, sendo comum a presença de sentimentos tais como ansiedade e depressão (CARVALHO, 1999). Segundo Carvalho (1999): “Qualquer que seja a natureza da dor, dela resultam modificações do comportamento psíquico e, por mecanismos reflexos, hiperatividade do Sistema Nervoso Simpático (SNS) que libera noradrenalina e prostaglandinas nos tecidos aumentando o tônus muscular, sensibilizando os nociceptores com a consequente instalação de dor miofascial” (CARVALHO, 1999). Um estudo realizado por Castro et. al. (2011) mostrou que, de 400 pacientes com dores crônicas, 79% apresentavam sintomas como ansiedade ou depressão. O estudo mostra também que a ansiedade e a depressão aumentam a percepção da dor. Outros fatores como a personalidade e a maneira como o indivíduo lida com as situações do seu cotidiano também devem ser considerados, pois estes podem induzir a ocorrência da dor e agravar a enfermidade (TEIXEIRA et al., 2001). Entre os diversos tipos de dores crônicas, as musculoesqueléticas representam “[...] a maior causa de dor severa e persistente e de incapacidade física, afetando centenas de milhões de pessoas em todo o mundo” (MATA et al., 2011, p. 223). Essas dores podem derivar tanto de uma lesão traumática externa, quanto de uma sobrecarga funcional (TEIXEIRA et al., 2001). A dor é uma experiência universal, mas apesar de toda essa familiaridade, existem muitas coisas a seu respeito que ainda não compreendemos e, para as quais, os conceitos adequados ainda são escassos. Muitas das dificuldades de conceituar a dor surgem devido ao profundo dualismo do pensamento ocidental em que corpo-mente-espírito são separados e segundo o qual um espírito autônomo flutua livre, observando e organizando o corpo no qual ele oficialmente reside. Essa maneira de pensar dissemina e solapa uma compreensão integrada do ser humano em que corpo e mente são indissociáveis. Nas filosofias orientais, podemos descobrir maneiras mais eficazes de representar os processos extraordinariamente complexos e recorrentes subjacentes à experiência de dor. A dor surge de um sistema de alarme bastante eficiente, ela é imediata e exige a atenção de quem a sente. Mesmo assim, tal sistema não é apenas um equilíbrio entre os sinais do que está acontecendo fora e dentro do corpo e o que o cérebro julga ser prioridade digna de atenção. Como acontece com qualquer sistema complexo, esse equilíbrio pode ser rompido, gerando falsos alarmes, ampliando a dor, superestimando a ameaça, desviando a atenção para uma dor que já é demasiado familiar. A dor é absolutamente real, mas existe algum espaço de liberdade frente essa ameaça, da aflição e da insistência da experiência dolorosa. A questão principal é que a dor é uma experiência. Para uma pessoa que tem dor crônica, essa experiência é profundamente pessoal, e o modo como ela é vivenciada é influenciado por muitos fatores. Emoções, crenças e atitudes influentes na sociedade e na cultura, bem como as experiências passadas, desempenham um papel na forma como se percebe a experiência rotulada como “dor”. A dor crônica, também chamada de Dor Persistente ou de Longo Prazo pode ser investigada por meio de exames de escaneamento de imagens. Nos últimos anos, técnicas de diagnóstico por imagem, como a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) e a Ressonância Magnética Funcional por Imagem (FMRI), tornaram possível o escaneamento do cérebro por cientistas, durante experimentos ativos. Com esses exames é possível ver imagens do cérebro no momento exato em que alguém recebe um estímulo doloroso, e os resultados mostram que a percepção da dor é muito complexa. O cérebro dá sentido aos estímulos do corpo criando uma imagem ou representação, que os cientistas chamam de “neuromatriz”, e compara os sinais (que vêm de fora) com o que é presumível. Os cientistas usam a neuromatriz como guia para identificar a localização, o tipo e o grau de ameaça que os sinais oferecem, enquanto ignora sensações familiares, como o contato com as roupas e a pele. Mas a dor não é uma experiência normal, ela arrebata a atenção do cérebro prevalecendo sobre outras demandas. Isso afeta as sensações, a discriminação e as emoções. Os escâneres mostram inclusive mudanças no cérebro de alguém que tem dor crônica associada à sensibilidade aumentada. Esse conhecimento mais complexo da dor questiona a validade de muitas hipóteses. Por exemplo, é de se supor que, se uma pessoa tem dor nas costas, varreduras detalhadas de ressonância magnética permitirão encontrar a causa do problema. Mas, na verdade, em uma pesquisa em diversas pessoas sem dor nas costas, das que foram escaneadas, 64% apresentavam anormalidades nos discos intervertebrais, ao passo que, em outro estudo do mesmo gênero, 85% delas não apresentavam lesões óbvias. Ao que se compreendeu que dois indivíduos que recebem os mesmos estímulos dolorosos enquanto monitorados no escâner podem mostrar atividade cerebral com diferenças variadas (JENSEN, 1994). Uma teoria bem estabelecida sobre a dor é a “teoria do portão para controle da dor”, desenvolvida na década de 1960 por Patrick Wall, neurocientista que se especializou no estudo da dor, e seu colaborador, Ronald Melzack (WALL e MELZACK, 1982). Eles sugerem que há “portões” nas junções dos nervos, na medula espinhal e nos centros de dor no cérebro. Assim, para que ocorra a experiência da dor, esses “portões” precisam ser abertos e é isso que acontece quando uma pessoa saudável se machuca. As mensagens de dor são um sinal para proteger aquela parte do corpo. Esses portões também podem se “fechar”, o que significa que a dor é reduzida ou pode até mesmo cessar. A abertura e o fechamento destes portões são um processo complexo, que é afetado por estados emocionais, pela atividade mental e pelo local de foco de atenção. O fato de o cérebro esperar a dor ou estar pronto para detectar qualquer dano ou lesão também causa impacto. Então os trajetos da dor ocorrem (os portões se abrem) de modo que o cérebro não deixe escapar nada, e a experiência da dor é ampliada. As pessoas com dor crônica geralmente relatam lidar bem com a dor menos intensa, mas diante de um aumento repentino e inesperado de dor elas parecem sentir-se muito pior, por causa do medo de que ele seja causado por nova lesão. A ansiedade faz que os portões se abram ou permaneçam abertos por mais tempo. Uma área de interesse de investigação é como fechar os portões em pessoas que vivem com dores crônicas, de modo que seu sistema nervoso possa retornar ao funcionamento normal. A dor envolve complexos mecanismos fisiológicos e psicológicos, e para intervir de forma resolutiva, o profissional de saúde necessita da combinação de intervenções clínicas e psicológicas para sua resolução (Sloman, 1995). O treinamento da atenção plena pode ser um dos instrumentos para isso, pois acalma todo o sistema nervoso, mental, físico e emocional, permitindo que ele retorne a um estado de equilíbrio e relaxamento. Alguns estudos mostram que a técnica de relaxamento pode aliviar a dor (PAULA, CARVALHO e SANTOS, 2002). A técnica de relaxamento se assemelha com a meditação e a prática de atenção plena, embora seja mais focada no relaxamento corporal. Práticas contemplativas Baseado nos temas acima se pode investigar a possibilidade de manipular a atenção à dor de modo a não sucumbir ao estresse e ao sofrimento que dela derivam. Algumas abordagens podem enfocar o trabalho com a consciência e a atenção, que ensinam às pessoas a mudar a sua forma de se relacionar com a dor em vez de prometer que ela vai cessar. Essas abordagens mostram que o problema não é a dor em si, mas a maneira como reagimos a ela, isto é, que apesar do desconforto e do sofrimento, a pessoa possui recursos de enfrentamento e uma margem de autonomia pra lidar com o fenômeno da dor. Ao invés de fugir da dor e permanecer numa busca infindável de cura e ausência de dor, pretende-se trabalhar sob a premissa de convívio harmonioso com a dor e observar as possibilidades dessa abordagem. Nesse sentido as práticas contemplativas podem significar um recurso promissor e complementar no enfrentamento da dor crônica. Tais abordagens contemplativas podem contribuir para ampliação da corresponsabilidade dos indivíduos por sua saúde levando a uma maior autonomia e autoconhecimento em termos individuais e, coletivamente, levar à diminuição da demanda excessiva ao sistema de saúde. Entre as racionalidades já contempladas no Sistema Único de Saúde se destacam aquelas no âmbito da Medicina Tradicional Chinesa, salientando as práticas corporais e mentais (meditação). Estas abordagens alternativas podem ser usadas como complemento ou de maneira integrada à Medicina Convencional do ocidente no manejo da dor. O termo latino contemplatio, que deu origem à palavra contemplação, corresponde à palavra grega theoria. Ambas referem-se a uma lealdade para com a noção de revelar, esclarecer e tornar manifesta a natureza da realidade. O principal elemento envolvido no conceito “contemplação” é a percepção silenciosa da realidade. Ao compormos a prática contemplativa, construímos uma visão dinâmica da meditação. Por meio dela e de seus diferentes aspectos é que surge a visão pura da mente. Essa visão permite a integração da fonte de nossa natureza fundamental com a nossa prática, surgindo assim o campo em que se desenvolverá o estado meditativo. Vindo de uma tradição milenar oriental, a prática da meditação invadiu no fim do século XX a psicologia ocidental. Dois campos foram particularmente afetados: a psicologia clínica e a psicologia positiva. Sobre o emprego de técnicas de relaxamento no manejo da dor, Salvador, Rodrigues e Carvalho (2008) encontraram numa revisão sistemática grande parte dos estudos nos Estados Unidos e consideram essa uma técnica cognitivo-comportamental. A meditação budista vipassana é uma matriz das meditações básicas e avançadas. Nela encontramos os fundamentos da prática da meditação que inspirou as técnicas que estão sendo utilizada na saúde. Onde duas técnicas de meditação tornaram-se importantes para a revisão deste estudo: Mindfulness e Loving-Kindness. Mindfullness é um termo em inglês que pode ser traduzido como “plena atenção” e como um conjunto de práticas de integração mente-corpo baseadas na experiência do momento presente através de uma atitude aberta e não julgadora. A meditação Mindfulness propõe uma conexão com a experiência vivida aqui e agora, com aceitação e sem julgamento. Num primeiro momento, a concentração e atenção são treinadas usando a respiração. Quando pensamentos e sensações aparecerem, orienta-se o sujeito que torne a sua atenção para a sua consciência e a respiração. Dessa maneira, os participantes vão treinando sua atenção ao momento presente. Outra visão sobre a meditação vem da psicologia positiva. Essa corrente, fundada por Martin Seligman, aborda os aspectos virtuosos da experiência humana. A técnica loving-meditation também é um tipo de meditação que passou a ser investigada na psicologia positiva como fonte de emoções positivas. Foram encontrados resultados que indicaram que métodos preventivos podem ser criados através da identificação e incremento das virtudes e dos aspectos positivos, voltados para uma plena saúde mental (FREDRICKSON, 2001). O Mindfulness envolve a atenção no momento presente, de forma aberta, sem julgamento, sem intencionalidade, com um padrão que indica um estado de prontidão lúcido e constante, já o Loving-Kindness Meditation visa propositadamente cultivar pensamentos positivos. Todavia, Loving-Kindness Meditation se aproxima do conceito de Mindfulness por ter como foco a auto regulação da atenção no momento presente. Algumas práticas da psicologia clínica contemporânea também incluem no treino de Mindfulness ensinamentos como compaixão, gentileza amorosa, confiança, solidariedade, imparcialidade e a aceitação de si e dos outros. Utilizando estas qualidades, pode-se cultivar a atenção no momento presente de maneira gentil, aberta a todas as experiências sensórias, mentais e emocionais (SHAPIRO et al., 1998). Neste aspecto em especial, o treino de Mindfulness se aproxima do treino de Loving-Kindness meditation por ter um foco na auto regulação. Aprende-se a respeitar tanto os pensamentos positivos quanto os negativos, assim como a vivenciar o momento, sem tentativas de fuga ou esquiva dos problemas ou ainda sem criar explicações literais pautadas no processo da designação conceitual, procurando perceber o que realmente poderia ser feito para resolvê-los (VANDENBERGHE e SOUSA, 2006). O termo Mindfulness tem suas origens no budismo, mas já encontra programas de intervenção conhecidos e bem estruturados com bases psicológicas e científicas como o Mindfulness-Based Stress Reduction (Programa de Redução de Estresse baseado em Mindfulness) do professor da Universidade de Massachusetts, Estados Unidos, Jon Kabat-Zinn (Kabat-Zinn, 1990b). Foi ele o responsável pela ampla divulgação atual do termo Mindfulness no ocidente, inserido em um contexto científico, bem como o desenvolvimento da técnica de redução de estresse baseada neste processo meditativo. Em 1979, na Universidade de Massachusetts, Kabat-Zinn começou a realizar pesquisas cientificas sobre a meditação Mindfulness e, em 1982, criou o programa de redução de estresse. A partir daí, a meditação Mindfulness começou a estar cada vez mais presente na medicina comportamental, e hoje contamos com três décadas de atuação. São encontradas aplicações a variados problemas como depressão, ansiedade e dor crônica, além de muitos outros. Alguns estudos evidenciam a diminuição de sintomas físicos e psicológicos, aumento da habilidade de relaxar, melhor habilidade em lidar com a dor, assim como sua redução, além de mais energia e entusiasmo para a vida, aumento da autoestima e maior habilidade de lidar com situações estressantes. Também na Europa, estudos de Mindfulness-Based Cognitive Therapy (Terapia cognitiva baseada em Mindfulness) são difundidos, como nas pesquisas do professor da Universidade de Oxford, Reino Unido, Mark Williams (SEGAL, WILLIAMS e TEASDALE, 2002) e o Mindfulness-Based for Pain and Illness (Mindfulness para dor e doenças) de Vidyamala Burch (BURCH, 2010) do Instituto Breathworks, Reino Unido. O método da Breathworks consiste em aceitar a experiência e não reagir a ela. Aceitando as condições presentes e buscando maneiras criativas de lidar com o sofrimento. Para isso é necessário aprender a estar atento e consciente (mindful) às reações internas e respostas condicionadas. Além destes métodos, que são os mais conhecidos na comunidade científica nacional e internacional, existem outros que ainda estão em processo de investigação. Os protocolos de intervenção que utilizam a técnica de Mindfulness como prática complementar para tratamentos de saúde já estão bastante consolidados fora do Brasil, especialmente no Reino Unido e nos Estados Unidos. No Brasil, há estudos do uso da meditação por Elisa Kozasa (KOZASA et al, 2012a e 2012b) formada no programa Cultivating Emotional Balance, desenvolvido por B. Alan Wallace e Paul Ekman. As suas pesquisas, de certa forma, abriram as portas da comunidade científica nacional para a meditação. Especificamente sobre a meditação Mindfulness, é importante citar o pioneirismo do irlândes radicado no Brasil Stephen Little (LITTLE et al., 2010). Capacitado no programa da BreathWorks, Stephen foi um dos pioneiros no Brasil na utilização dos modelos de protocolos internacionais. No momento, Stephen é um dos responsáveis pela integração das práticas de Mindfulness no Hospital Albert Einstein - SP. Mais recentemente também no meio acadêmico, os trabalhos de Demarzo (2011), docente do Departamento de Medicina Preventiva da UNIFESP, pós-doutorado no Grupo de Salud Mental en Atención Primaria Universidad de Zaragoza, tendo feito cursos de Mindfulness na Universidade de Massachusetts e professor de Meditação Mindfulness para Saúde pelo Instituto Breathworks de Manchester, no Reino Unido. Demarzo coordena um grupo de Mindfulness na comunidade científica brasileira, sendo coordenador do Programa de Extensão Universitária da UNIFESP “Mente Aberta”, voltado à divulgação, pesquisa e promoção do Mindfulness no Brasil. Na maioria dos programas de Mindfulness, os exercícios envolvem concentração na respiração, vários tipos de meditação (atenção nas sensações físicas, sons, emoções e pensamentos) e escaneamento corporal. Com foco nos mais variados problemas de saúde, que vão desde doenças crônicas, estresse, depressão entre outros, faz com que os programas sejam adaptados as diferentes condições e populações. Além disso, foram detectados, em meditadores, efeitos puramente fisiológicos, como a redução da taxa metabólica (a produção de dióxido de carbono diminui significativamente o consumo de oxigênio durante a meditação), redução na frequência cardíaca quando comparado com os participantes do grupo controle ou mesmo com pranayama (exercícios respiratórios) sem meditação, alterações da atividade eletroencefalográfica e modificações nas concentrações de neurotransmissores (Danucalov et al., 2008). Alguns pesquisadores relataram que a meditação diminuía a reação do corpo à norepinefrina1, um hormônio liberado em reação ao estresse. Verificou-se, ainda, que a pressão sanguínea mantevese mais baixa por longos meses e até por dois ou três anos após o rompimento da prática da meditação (WALSH e VAUGHAN, 1995). Outros estudos também sugerem benefícios como a redução da excitação, modificação da atividade relativa dos hemisférios cerebrais, modificação no equilíbrio entre os componentes ativadores do sistema nervoso autônomo e alteração do fluxo sanguíneo do cérebro (WALSH e VAUGHAN, 1995). Os mecanismos químicos apresentados identificaram reduzido nível sanguíneo de lactato2 e do hormônio cortisol vinculado com a resposta à tensão. Aplicações clínicas com MBSR (Mindfulness-Based Stress Reduction) partiram dos primeiros estudos bem sucedidos de Stress Reduction and Relaxation Program (SR e RP) no contexto da dor crônica. Os dados obtidos durante três ciclos com 10 semanas de treinamento deste programa, para todas as categorias de dor crônica, indicaram que 60% dos 51 participantes obtiveram uma considerável melhora com redução da dor, dado que foi mantido no follow-up 2.5, por cerca de 4 a 7 meses (KABAT-ZINN, 1982). Outros estudos realizados com o programa evidenciaram que um intensivo treino em meditação Mindfulness e yoga poderia ser aceito por um grande número de pacientes com problemas médicos físicos no contexto clínico aliado ao estresse (KABAT-ZINN e CHAPMAN-WALDROP, 1988). A intervenção também convida os pacientes participantes a encararem o estresse como um desafio em vez de uma ameaça. A maioria deles alcançou uma melhora de saúde (KABAT-ZINN, 1990a). Miller, Fletcher, e Kabat-Zinn (1995) demonstraram que houve manutenção do incremento clínico positivo com redução da ansiedade nos três anos seguintes em um grupo de pacientes que participaram do estudo original. Os dados mostraram fortes evidências de que uma prática intensiva da intervenção Mindfulness baseado na redução do estresse mostrou-se um efetivo tratamento clínico para pacientes médicos com desordens de ansiedade e depressão. Kabat-Zinn (1990a) sugere que a exposição prolongada às sensações de dor com habilidade em observá-las sem julgamento, embora consciente de suas sensações e das respostas de stress, pode ser capaz de levar a uma dessensibilização com redução da ansiedade associada à dor e levar à capacidade de experimentar sensações de dor sem reatividade excessiva. No tratamento de pacientes com dores crônicas, os instrutores de MBSR encorajam os pacientes a direcionar a atenção ao local ou músculo em que se tem a sensação de dor. O paciente é incentivado a assumir uma atitude de não realizar qualquer julgamento acerca dessas sensações, bem como em relação a várias cognições e emoções como ansiedade e raiva e impulsos de trocar de posição quando se é acometido pela sensação de dor. Em 2004 um estudo divulgado pela Universidade de Manchester, no Reino Unido, pessoas que praticam meditação com regularidade tendem a suportar melhor a dor, pois seus cérebros são capazes de antecipar a sensação desconfortável a que serão submetidos (BROWN, 2004). A maior parte dos pacientes entra num ciclo vicioso, pois as dores crônicas levam à contração muscular que, por sua vez, piora a percepção dolorosa, informa a anestesiologista Fabíola Peixoto Minson, diretora da SBED (Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor) e coordenadora dos centros de tratamento de dor dos Hospitais Albert Einstein e São Luiz, em São Paulo (SP, Brasil) (MINSON, 2006). Sabe-se hoje que a dor tem um componente afetivo e, por isso, tentar tratá-la apenas com analgésicos nem sempre dá certo. Segundo Elisa Harumi Kozasa, bióloga e pesquisadora do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), os benefícios proporcionados pela meditação à saúde podem ser explicados a partir de basicamente dois aspectos: fisiológico e psicológico. “O primeiro tem a ver com a liberação de neurotransmissores, como a endorfina, que ajudam a reduzir a sensação de desconforto. Já o segundo está relacionado à forma como a pessoa encara a dor, passando da rejeição a uma postura de compreensão e acolhimento” (KOZASA et al., 2012b). Considerando que pessoas inquietas e preocupadas tendem a exacerbar a percepção dolorosa, outro ponto que merece ser destacado é justamente o efeito da meditação na redução da ansiedade. “Calmos, os pacientes colaboram mais com o tratamento indicado”, observa Fabíola, diretora da SBED (Sociedade Brasileira Estudos da Dor) (MINSON, 2006, p. 81). Para Little et al. (2010), um dos pioneiros na aplicação das práticas meditativas na área da saúde no Brasil, o segredo é o paciente perceber que não precisa tentar controlar ou fugir da dor, e sim conviver com essa sensação de forma gentil e criativa. Embates paradigmáticos na prática do cuidado O contexto atual deste século XXI vem revelando importantes embates epistêmicos vinculados com a organização dos discursos sobre a vida e a morte. No plano do poder, este embate revela, por um lado, as resistências da biomedicina cartesiana ou da clínica médica que, segundo Foucault, teve um lugar determinante no complexo e elaborado conjunto das ciências humanas modernas, por ser ela o discurso mais próximo da disposição antropológica que sustenta o conjunto de disciplinas humanas da modernidade (FOUCAULT, 2000). Por outro lado, o atual contexto testemunha a emergência de um conjunto de saberes, práticas e tecnologias muito variadas, de origens históricas e geográficas e de relação com o transcendental. Esses saberes oferecem caráter multicultural, ganhando crescente aceitação no ocidente, ocupando espaços de práticas que pretensamente haviam se tornado monopólio da biomedicina ocidental. Por conseguinte, para algumas associações médicas oficiais e, também, para muitos dos médicos diplomados nos cursos regulares universitários (que aprenderam a valorizar o saber alopático), o conjunto de sistemas terapêuticos alternativos apresentaria uma ambivalência contrária ao preconizado pelo rigor científico (LUZ, 1997). Há um embate entre narrativas variadas presentes no campo das práticas de cuidado que foram radicalizadas com o investimento na área do capitalismo biomédico, e estão gerando resistências e mobilizações importantes desde vários lugares (MARTINS, 1999), abrindo perspectivas para uma mudança de paradigma sobre os cuidados e sobre a enunciação racional da relação entre vida e morte. O discurso oficial, canonizado pelos cursos de medicina e pelas associações médicas, sustenta que faltaria a estas “outras terapias” a exatidão e precisão científicas dadas pela pesquisa em laboratórios. Também faltaria a elas a legitimidade científica fornecida pela carreira profissional, pelo diploma de “doutor” e pelo credenciamento oficial dos conselhos científicos. Para o discurso oficial, as outras medicinas não têm como comprovar sua eficácia desde a perspectiva da legitimidade científica. No máximo, podem ser incorporadas como “complementares” em função de sua funcionalidade técnica. Com a medicina biocartesiana, que prioriza o biológico como causa do adoecimento e foco de tratamento, a relação médico-paciente passou a ser vista como dispensável para o sucesso da “cura”, o que levou a certa indiferença sentimental do profissional com o padecer do enfermo. Nos dias atuais, com a entrada da lógica mercadológica no setor de saúde, o argumento técnico passou a ser substituído por um jogo pragmático. Vale mais o ganho financeiro em consultas e cirurgias em um tempo mais curto do que o cuidado, a escuta atenciosa e o tratamento mais humanizado ao paciente. A apropriação dos bens da vida (isto é, das “energias” que fazem cultivar a vida) por uma minoria motivada pelos interesses utilitários e mercantis, reflete-se no plano cultural pelo enfraquecimento da solidariedade coletiva e pelo favorecimento do individualismo dentro e fora da organização hospitalar. Esta disputa no campo das práticas em saúde é complexa e não apresenta solução simples, embora seja do interesse de todos que o sistema de saúde não emperre. Há motivos corporativistas, econômicos e religiosos a considerar quando se deseja aprofundar o entendimento deste poder simbólico (BOURDIEU, 1998) e das múltiplas racionalidades médicas (LUZ, 1997; 1988), ainda mais quando se propõe a analisar a perspectiva de mudanças de paradigmas no campo da saúde. Em primeiro lugar, vale lembrar a importância de se obedecer as regras que delimitam e estruturam a prática das categorias profissionais provindas dos Conselhos Regionais e Federais. Entretanto, como bem descreveu Foucault, são estes discursos de verdades com suas batas brancas, diplomas e títulos, protocolos hospitalares e postulados científicos que não surgem do nada ou do acaso, mas de estratégias de poder e controle social (FOUCAULT, 2000). Em segundo lugar, temos que considerar os motivos econômicos. A biomedicina cartesiana de base funcional e mecânica, que organizou o imaginário do corpo, saúde e da doença nos últimos dois séculos, foi capturada progressivamente pelo capitalismo médico nas últimas décadas. No sistema capitalista, a morte e doença são ameaças que revertem à acumulação de bens, o que significa investimentos crescentes no setor da saúde. Esta tendência da privatização da biomedicina com vistas à acumulação econômico-financeira já estava embutida no modelo da saúde empresarial norteamericana, mas se expandiu fortemente desde os anos 80 em outros lugares e também na América Latina pelas indústrias farmacêuticas e de equipamentos, pelos planos de saúde e pelos hospitais privados (MARTINS, 1999). Em terceiro lugar, há o elemento religioso, de importância crucial neste embate entre racionalidades médicas diferentes. De fato, como aponta Foucault (2000), foi decisivo para a cultura ocidental que o primeiro discurso científico do indivíduo moderno passou pela morte e pela doença com relação à metafísica do mal, que tinha uma elaboração simbólica forjada pela religião cristã, na Europa. Como consequência, se organizou um mundo técnico e positivo que conjurou o tempo infinito da morte para eleger a medicina como a arquitetura do conjunto das ciências humanas que vai evitar a doença e postergar ao máximo a morte. Ora, aqui se estabeleceu necessariamente uma importante disputa no plano do simbolismo, na medida em que as outras medicinas, tidas como alternativas foram construídas historicamente não pela recusa do invisível, mas pela valorização de uma metafísica do bem e passaram a constituir uma ameaça concreta ao edifício da modernidade médica eurocêntrica. Essas, ao invés de atacarem a doença e a morte, promovem equilíbrio e promoção de saúde e dificilmente se adaptam aos testes de validade da ciência tradicional. Mas, na medida em que elas se abrem a outros critérios, como a intuição ou a fé, que são vistos como atitudes suspeitas pela biomedicina ocidental, elas correm o risco de serem desacreditadas. Para alguns, esta ambivalência simbólica entre o discurso cientifico e o discurso simbólico seria mesmo a prova de charlatanismo, ao não se enquadrar nos cânones da biociência médica moderna. Aquelas que conseguem construir um discurso técnico relativamente coerente como a homeopatia ou acupuntura são “toleradas”. Mas as que fazem apelo mais forte a elementos ditos “mágicos” são vistas com suspeição por extrapolarem os limites da racionalidade instrumental e laica predominante no seio do campo oficial. A tradição do campo da saúde no Ocidente, iniciada no século XIX, vem construindo modos de olhar a problemática do sofrimento humano, a partir de um lugar que é reconhecido por muitos (DONNANGELO e PEREIRA, 1976, ILLICH, 1975) como a produção de um processo histórico e social nominado “medicalização da existência e da vida individual e coletiva”, sobretudo a partir do século XX. Quando vemos um sofrimento como resultado de uma doença e a clínica como um saber que nos permite vê-la no corpo biológico genérico, passamos a ver qualquer adoecimento com uma expressão particular das leis gerais científicas do processo saúde doença. Mesmo na perspectiva mais ampla que a saúde coletiva tem sobre esse processo, quando remete o olhar sobre a doença para o processo (histórico/social) saúde-doença, há uma aposta de que este olhar é científico e de são necessárias novas ciências que expliquem esse fenômeno que está sempre mudando. Mas o fenômeno do processo saúde-doença é ao mesmo tempo universal (acontece com muitas pessoas da mesma forma) e particular (guarda particularidades em cada pessoa). É isso que faz com que, em muitas situações no campo da saúde atual, persista a afirmação de que cada caso é um caso, mas sempre esse caso é um caso já conceituado e estudado. Cabe aqui uma observação quanto ao que diz respeito ao reconhecimento de que essa medicina hegemônica, mesmo estando aliada a estratégias de disciplinarização da vida (como o conhecido fenômeno da medicalização, já apontado), é capaz também de produzir resultados positivos e ser bem sucedida. Há muitas situações que respondem bem nesse sistema. Porém, há também indícios de muitos problemas como os efeitos colaterais ou dificuldades de lidar com certas doenças e restabelecer o equilíbrio. Por um lado, a extrema objetivação e a focalização do olhar e da ação sobre o corpo biológico deixam de lado muitos outros elementos que são constitutivos da produção da vida e que não são incluídos ou trabalhados, tanto na tentativa de compreender a situação como nas intervenções para enfrentá-la. Mas ainda, a redução da visão enfocando apenas o problema biológico tem levado a ações profissionais centradas em procedimentos técnicos, esvaziadas de interesse pelo outro e com a escuta empobrecida. Assim, as ações de saúde têm perdido sua dimensão cuidadora e, apesar dos contínuos avanços científicos, elas têm perdido potência e eficácia.Essa relação empobrecida, em que o outro é tomado como simples corpo biológico e objeto da ação, e que o deslegitima de todos os outros saberes sobre saúde, é vertical, unidirecional, como se prescindisse da ação/cooperação de quem está sendo “tratado”. Ou como se a cooperação fosse obtida automaticamente a partir da “iluminação” técnica sobre o problema e as condutas para enfrentá-lo. Não é assim que as coisas funcionam na prática e por isso mesmo tem sido tão difícil ‘conquistar’ a adesão às propostas terapêuticas, sobretudo nas situações crônicas (MERHY et al., 2010). O cuidar põe em cena um tipo de saber que se distingue da universalidade da técnica e da ciência. O cuidar se apoia na tecnologia, mas não se limita a ela; considera o saber do outro, revalorizando a dignidade dessa sabedoria prática (MERHY e FEUERWERKER, 2009). Nesse sentido, parece oportuno introduzir as práticas integrativas e complementares para sensibilizar os profissionais e facilitar o processo de autocuidado dos usuários, pensando em fortalecer a compreensão da relação de saúde integral, em direção à educação do Ser. A defesa no uso das práticas contemplativas como ferramenta de complementação ao tratamento médico tradicional visa educar a atenção e a percepção do sujeito usuário, confirmando a necessidade de fomento e ampliação de práticas complementares integrativas ao SUS. Pesquisa-intervenção A partir dos conceitos e fundamentos acima expostos, foi confeccionada uma pesquisa-intervenção utilizando Práticas Contemplativas durante 13 semanas em oito usuários do SUS que relatam dores crônicas há mais de um ano. Foram utilizados o Questionário Biosociodemográfico, um questionário com questões relativas a dor a Escala de Consciência e Plena Atenção (MAAS) e a Escala Visual Analógica de intensidade de dor (EVA), bem como uma análise qualitativa de dados coletados em entrevista sobre como a intervenção afetou os participantes no cuidado com os seus sintomas de dores crônicas. A intervenção já foi finalizada e todas as observações foram registradas em diário de campo que será analisado juntamente com os dados qualitativos advindos das questões abertas do questionário e de uma entrevista final realizada após o término dos grupos. Os resultados parciais obtidos até este momento permitem indicar que a prática contemplativa é totalmente viável de ser inserida no sistema público de saúde, complementar ao tratamento tradicional e alopático. Da mesma forma, a partir dos relatos dos participantes e das respostas nos questionários, pode-se observar melhora da atenção ao longo do processo e melhores formas de lidar com a dor. Esses dados deverão ser confirmados após análise do material coletado. O desenrolar do processo aponta para uma maior autoconsciência e melhor manejo da dor pelo paciente com dor crônica. REFERÊNCIAS BOURDIEU, P. 1998. O poder simbólico. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1998. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação Brasileira). BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria MS/GM n. 971, 3 de maio de 2006, Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema único de Saúde, Diário Oficial da República Federativa do Brasil – Ed. n. 84, p. 20-24. Brasília, DF, de 4 de maio de 2006. 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