Coordenadores
Carlos Miguel Aidar
Daniel Penteado de Castro
Estudos Gerais de Direito
Alexandre Lopez Rodrigues de Aguiar
João Biazzo Filho
Anna Paola de Souza Bonagura
Leonardo Romeiro Bezerra
Bruno Landini Dias de Lima Carvalho
Bruno Maglione Nascimento
Daniel Lagoa Rodrigues de Almeida
Eduardo Galan Ferreira
Liv Machado
Lucas Fossalussa Lisse
Paula A. Abi-Chahine Yunes Perim
Gilberto Costa Filho
Samuel de Abreu Matias Bueno
Gisele de Assis
Thiago Bernardo da Silva
Estudos Gerais de Direito
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Carlos Miguel Aidar
Daniel Penteado de Castro
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sem prévia autorização do AIDAR SBZ Advogados. A violação dos direitos autorais é
crime estabelecido na Lei n° 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal.
Capa e diagramação: Ladislau Lima
Revisão Técnica: Flávio Viana Filho
Imagem de capa: Thinz (www.shutterstock.com)
SUMÁRIO
PREFÁCIO............................................................................................................................................ 9
I. INDIVIDUALIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR NO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR
Leonardo romeiro bezerra..................................................................................... 11
1.Introdução ............................................................................................................................... 12
2. Solidariedade à luz da principiologia prevista no Código de Defesa do Consumidor... 13
3. Casos concretos de individualização da responsabilidade do fornecedor ...................... 17
4.Conclusão................................................................................................................................. 18
5.Bibliografia ............................................................................................................................... 19
II. RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES DE FUNDO DE INVESTIMENTO
IMOBILIÁRIO NO ÂMBITO JUDICIAL
Eduardo Galan Ferreira – Gisele de Assis........................................................ 21
1. Conceito de Fundo de Investimento Imobiliário................................................................ 22
2. O papel dos administradores.................................................................................................. 23
3. Da representação dos Fundos de Investimento Imobiliário pelas instituições administradoras no âmbito judicial..................................................................................................... 25
4. A responsabilidade dos administradores de Fundo de Investimento Imobiliário no
âmbito judicial.......................................................................................................................... 27
5.Conclusão................................................................................................................................. 28
6.Bibliografia................................................................................................................................ 29
8
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
III. PODERES INSTRUTÓRIOS NA AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
Bruno Landini Dias de Lima Carvalho................................................................ 31
1. A ação de prestação de contas................................................................................................ 32
2. Breves considerações sobre os poderes instrutórios do juiz.............................................. 33
3. Reflexões sobre a atuação do Estado-Juiz na instrução probatória da prestação de contas e comentários a casos práticos......................................................................................... 35
4.Conclusão................................................................................................................................. 38
5.Bibliografia................................................................................................................................ 38
IV. IMPACTOS DA LEI DE ENTREGA NA OPERAÇÃO DO E-COMMERCE: SUAS ALTERAÇÕES E ESTRATÉGIAS JURÍDICAS PARA QUESTIONAR A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI
Thiago Bernardo da Silva – Lucas Fossalussa Lisse....................................... 39
1.Introdução................................................................................................................................ 40
2. Contexto histórico................................................................................................................... 40
3. As modificações trazidas pela Lei Estadual 14.951/13 – Principais distinções e o conflito analítico com o Código de Defesa do Consumidor.................................................... 41
4. Os impactos da Lei de Entrega – Problemas logísticos, ambientais e o reflexo negativo
ao consumidor.......................................................................................................................... 43
5. A Lei de Entrega é constitucional?......................................................................................... 47
6.Conclusão................................................................................................................................. 50
7.Bibliografia................................................................................................................................ 51
V. DESCONSIDERAÇÃO TRADICIONAL E DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS DE RESPONSABILIDADE
LIMITADA
João Biazzo – Anna Paola de Souza Bonagura................................................. 53
1.Introdução................................................................................................................................ 54
2. Breve histórico da teoria da desconsideração da personalidade jurídica......................... 55
3. Distorções na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.......................... 58
4. Desconsideração inversa da personalidade jurídica........................................................... 61
9
Sumário
5.Conclusão................................................................................................................................. 62
6.Bibliografia................................................................................................................................ 63
VI. A POSSIBILIDADE DE REVISÃO DAS ASTREINTES: ASPECTOS OBJETIVOS
Bruno Maglione Nascimento – Samuel de Abreu Matias Bueno................ 65
1. Considerações iniciais sobre as astreintes: origem, natureza e conceito........................... 66
2. A possibilidade de revisão das astreintes............................................................................ 69
2.1. Aspectos objetivos a serem considerados pelo juiz na revisão das astreintes.......... 70
2.1.1. A recalcitrância do devedor................................................................................ 71
2.1.2. A inércia do credor (ou o dever de mitigar o próprio prejuízo).................... 73
2.1.3. Boa-fé processual e a justificativa plausível para o descumprimento ou parcial cumprimento da obrigação.......................................................................... 74
3. Considerações finais................................................................................................................ 75
4.Bibliografia................................................................................................................................ 76
VII. ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES: DIREITO DE VOTO SEGUNDO O VALOR
SUSTENTADO EM IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO
Liv Machado................................................................................................................ 79
1.Introdução................................................................................................................................ 80
2. Verificação de créditos na Recuperação Judicial................................................................. 82
3. O Voto na Assembleia Geral de Credores na Recuperação Judicial................................. 83
4. Credores titulares de créditos objeto de impugnação pendentes de julgamento............ 86
5.Conclusão................................................................................................................................. 88
6.Bibliografia................................................................................................................................ 88
VIII. ESTUDOS SOBRE A EXECUÇÃO COLETIVA DE TÍTULOS EXECUTIVOS EXTRAJUDICIAIS
Paula A. Abi-Chahine Yunes Perim....................................................................... 91
1.Introdução................................................................................................................................ 92
2.Generalidades........................................................................................................................... 92
10
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
3. Execução coletiva de título judicial e extrajudicial ............................................................. 93
4. Termo de ajustamento de conduta (TAC)............................................................................ 95
5. Efetivação judicial das decisões e compromissos do Conselho Administrativo de
Defesa da Concorrência (CADE).......................................................................................... 98
6.Conclusões................................................................................................................................ 103
7.Bibliografia................................................................................................................................ 104
IX. EXECUÇÃO NOS JEC’S: LIMITAÇÃO AO VALOR DE ALÇADA
Gilberto Costa Filho................................................................................................ 107
1.Introdução................................................................................................................................ 108
2. A execução nos JEC’s............................................................................................................... 109
3.As astreintes – Natureza e execução...................................................................................... 110
4.Conclusão................................................................................................................................. 114
5.Bibliografia................................................................................................................................ 115
X. A DISTINÇÃO ENTRE VÍCIOS E DEFEITOS DE PRODUTOS E SERVIÇOS E AS SUAS
CONSEQUÊNCIAS
Alexandre Lopez Rodrigues de Aguiar – Daniel Lagoa Rodrigues de
Almeida.......................................................................................................................... 116
1.Introdução................................................................................................................................ 118
2. Da distinção entre vício e defeito de produto ou serviço................................................... 118
3. Da distinção em relação aos prazos decadencial e prescricional...................................... 120
3.1. Do prazo para reclamar de vício no produto ou no serviço...................................... 120
3.2. Do prazo prescricional para pleitear a reparação de danos causados pela existência
de defeito em produto ou serviço.................................................................................. 121
4. Da divergência acerca da responsabilidade solidária do comerciante, quando da existência de defeito no produto................................................................................................... 122
5. Da necessidade de alegação pelo consumidor da existência de ameaça à sua segurança,
sob pena de presumir-se apenas a ocorrência de vício....................................................... 124
6.Conclusão................................................................................................................................. 125
7.Bibliografia................................................................................................................................ 125
PREFÁCIO
Desde sua criação, o escritório AIDAR SBZ não deixou para trás a preocupação em fomentar
a troca de conhecimento entre seus integrantes. O “SABER SBZ”, espaço dedicado à exposição de
temas de interesse geral, nasceu com o objetivo de possibilitar um intercâmbio de informações e
conhecimento destinado ao aprimoramento dos profissionais, mediante encontros periódicos realizados no auditório de nosso escritório.
Ao longo dos últimos 3 (três) anos foram várias palestras, debates e artigos produzidos e apresentados no “SABER SBZ”, enriquecendo e multiplicando o conhecimento, capacitando nossos
profissionais para atuar de modo multidisciplinar, oferecendo soluções completas e eficazes, possibilitando aos nossos parceiros alcançarem uma posição diferenciada dentro de um mercado corporativo altamente competitivo.
Nasce a primeira edição do “SABER SBZ: Estudos Gerais de Direito”, cuja temática neste primeiro volume aborda variados temas em torno de questões ligadas a advocacia contenciosa.
Os artigos que seguem não se prendem a discussões acadêmicas em profundidade, mas visam,
frente a realidade de uma advocacia mais moderna, transmitir conteúdo e informação acerca de
temas multidisciplinares de diversos seguimentos da ciência jurídica, porém sem perder sua excelência.
As matérias encontram-se sintetizadas no sumário (índice geral) deste volume, ao passo que
as qualificações dos autores acompanham a abertura de cada artigo.
O artigo redigido por Leonardo Romeiro Bezerra apresenta interessante visão crítica acerca da aplicação irrestrita da responsabilidade solidária prevista no Código de Defesa do Consumidor.
Eduardo Galan Ferreira e Gisele de Assis alertam sobre a fundamental distinção no
plano da responsabilidade dos administradores de fundo de investimento em relação à incomunicabilidade do patrimônio do fundo e patrimônio do administrador.
Bruno Landini Dias de Lima Carvalho examina, com propriedade, a dinâmica dos poderes instrutórios do juiz na ação de prestação de contas.
12
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
O trabalho de Thiago Bernardo da Silva e Lucas Fossalissa Lisse revela curial inquietação quanto à constitucionalidade da Lei de Entrega em vigor no Estado de São Paulo.
João Biazzo e Anna Paola de Souza Bonagura traçam o perfil atual da doutrina de desconsideração da personalidade jurídica e desconsideração inversa em sociedade empresária de responsabilidade limitada.
Bruno Maglione Nascimento e Samuel de Abreu Matias Bueno apontam critérios objetivos que devem ser observados na revisão judicial da multa cominatória (astreinte) frente ao perfil
da jurisprudência dos tribunais.
O artigo de Liv Machado apresenta relevante contribuição ao tecer comentários sobre o
direito de voto de credores na recuperação judicial em congruência ao valor apontado em impugnação de crédito.
Paula Aparecida Abi-Chahine sistematiza com maestria as questões envoltas à execução
coletiva de títulos executivos extrajudiciais.
Ao tratar do tema execução em Juizados Especiais, Gilberto da Costa Filho contribui com
artigo de destaque em torno da exigibilidade de astreinte frente às peculiaridades de referido procedimento sumaríssimo.
Por fim, Alexandre Lopez Rodrigues de Aguiar e Daniel Lagoa Rodrigues de Almeida revelam novas contribuições em torno do estudo do vício do produto e defeito do produto e
referidos impactos no plano material.
Agradecemos a todos os colaboradores, especialistas e mestres, por proporcionarem a oportunidade de estampar numa coletânea a excelência de textos objetivos, porém de amplo conteúdo
e propagação, demonstrando que o AIDAR SBZ é um escritório comprometido com a excelência
na prestação de serviços jurídicos, contribuindo de modo permanente e ativo com estudos que
integram a ciência do Direito e aguçam nossas inquietações. Boa leitura!
DANIEL PENTEADO CASTRO
Doutor e Mestre em direito processual pela Universidade de São Paulo
e advogado no Aidar Sbz Advogados
I
Individualização da
responsabilidade do fornecedor no
Código de Defesa do Consumidor
Leonardo Romeiro Bezerra
Pós-graduado em Direito Empresarial pela Escola de Direito de São Paulo
da Fundação Getúlio Vargas-FGV-Law. Advogado.
Resumo: Diferentemente das leis gerais, o Código de Defesa do Consumidor
possui acepção eminentemente principiológica, fato que o deixa praticamente
imune às legislações ordinárias que a ele sobrevenham. Nessa qualidade, destacamse positivamente tanto a boa-fé e o prestígio ao equilíbrio das relações de consumo,
como a ausência de rigidez na interpretação de determinados institutos. Com
objetivo de fortalecer a proteção do consumidor, em apreço à sua vulnerabilidade nas
relações de consumo, estabeleceu-se a regra da responsabilidade solidária na cadeia
de consumo, ou seja, todos os atores envolvidos no ciclo (fabricante, importador,
revendedor) podem ser responsabilizados solidariamente pelo defeito no produto
ou serviço. Diante da aplicação irrestrita da solidariedade, mesmo quando possível
individualizar o verdadeiro responsável, torna-se oportuna uma reflexão desse
instituto, a partir de princípios do próprio regramento legal e da jurisprudência.
Sumário: 1. Introdução – 2. Solidariedade à luz da principiologia prevista no Código
de Defesa do Consumidor – 3. Casos concretos de individualização da responsabilidade
do consumidor – 4. Conclusão – 5. Bibliografia.
14
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1.INTRODUÇÃO
Não obstante o atraso na tutela das relações de consumo, o Brasil concebeu, em 1990, um
dos sistemas mais modernos na proteção dos consumidores, subsidiado por sistemas igualmente
eficientes. Inspirado basicamente em regras europeias, o modelo brasileiro aperfeiçoou-se ao ponto de fomentar, inclusive, reformas em leis de proteção ao consumidor nos países integrantes do
MERCOSUL.
Dada a ascensão social de milhões de novos consumidores brasileiros e a revolução tecnológica ocorrida nas últimas décadas, o mercado consumidor se tornou visivelmente mais dinâmico,
possibilitando o acesso da população a produtos e serviços que demoravam anos para alcançar o
mercado local.
Porém, como não poderia deixar de ser, as novas formas de consumo são acompanhadas
de problemas de toda ordem, que tratam desde questões relacionadas ao privilégio de foro para
consumo internacional até responsabilização de anunciantes pela abusividade em campanhas
publicitárias.
Mesmo que o primeiro passo em defesa do consumidor brasileiro tenha demorado em demasia séculos – se comparado com os Estados Unidos, que buscou tutelar os direitos do consumidor
nos idos de 1890, com a Lei Sherman – o fato é que atualmente os Poderes Executivo e Legislativo
têm se preocupado em formular políticas e preencher com rapidez as lacunas nas relações de consumo.
Nesse sentido, basta notar a quantidade de anteprojetos para atualização do Código de Defesa
do Consumidor em trâmite no Congresso Nacional, bem como a atuação diuturna dos integrantes
do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, buscando sempre mitigar a vulnerabilidade do
consumidor e tornar mais efetiva a purificação do mercado.
Se por um lado o Código de Defesa do Consumidor buscou prestigiar políticas de prevenção,
perspectivas, princípios e diretrizes que devem permear as relações de consumo, por outro lado,
acredita-se que a redação de alguns dispositivos enrijeceu intepretações e tentou acertar casuisticamente todas as situações que poderiam afligir os atores da relação de consumo.
Dentre os pontos rígidos e que merecem uma melhor reflexão à luz principiológica e multidisciplinar, está a responsabilidade solidária atribuída a todos os envolvidos na cadeia de consumo, de
forma indistinta e praticamente automática, sem observar a efetiva participação de cada um deles
na eventual falha da prestação do serviço ou no defeito no produto.
Nesse cenário, observar-se-ão tímidos acenos do Superior Tribunal de Justiça quanto à atribuição irrestrita da responsabilidade solidária nas relações de consumo. No mesmo sentido, à
luz das diretrizes em que estão calcadas o Código de Defesa do Consumidor, notadamente a
harmonia nas relações de consumo, a atribuição de responsabilidade solidária demandará um
exame mais apurado do caso concreto, com vista a apenar o verdadeiro causador do dano ao
consumidor.
15
Individualização da responsabilidade do fornecedor no CDC
Em que pese o Código de Defesa do Consumidor ter adotado a teoria do risco da atividade1, a
imputação da responsabilidade solidária em prestígio à vulnerabilidade do consumidor, nos moldes e na frequência observadas na jurisprudência hodierna, pode estar se distanciando dos pilares
da boa-fé, do bom senso e principalmente da justiça.
Desse modo, o presente texto tem como objetivo lançar reflexões sobre a atribuição automática da responsabilidade solidária sobre a cadeia de fornecedores – fabricantes, importadores, produtores, construtores ou comerciantes – se o verdadeiro infrator e causador do dano ao consumidor
puder, de plano, ser identificado pela falha na prestação do serviço ou defeito no produto.
Em princípio, dentro da acepção de boa-fé e de equilíbrio nas relações entre consumidores
e fornecedores tratadas pelo Código de Defesa do Consumidor, não soa justa a responsabilização
irrestrita de todos partícipes do ciclo de fornecimento.
2. SOLIDARIEDADE À LUZ DA PRINCIPIOLOGIA PREVISTA NO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR
Nunca é demais lembrar que o Código de Defesa do Consumidor é uma lei principiológica,
pois prescreve em si princípios gerais cujo objetivo precípuo é o de abranger todas as situações envolvendo o consumo, sem, no entanto, especificar cada caso, como fazem as leis casuísticas2.
É, portanto, um sistema de cláusulas abertas no qual alguns dispositivos possuem rol meramente exemplificativo, dando margem interpretativa ao julgador quando da apreciação de ações
cujo objeto é afeto às suas disposições.
Igualmente, segundo José Geraldo Brito Filomeno3, o Código de Defesa do Consumidor tem
caráter multidisciplinar, ou seja, ao lado de princípios que lhe são próprios, no âmbito da ciência
consumerista, o Código relaciona-se com outros ramos do Direito, ao mesmo tempo em que atualiza e dá roupagem a antigos institutos jurídicos.
Dessa forma, sob o enfoque principiológico e multidisplinar, as regras de experiência motivam
uma nova reflexão sobre a responsabilidade solidária dos fornecedores no Código de Defesa do
Consumidor.
Para criticar a aplicação automática da responsabilidade solidária na cadeia de consumo, sob
o ponto de vista principiológico, por ora, acredita-se suficiente elencar os princípios do equilíbrio
nas relações de consumo e da boa-fé objetiva (art. 4º, inciso III4).
1. O CDC perfilhou a teoria do risco da atividade, segundo a qual aquele que explora atividade e obtém lucro com o
potencial de gerar danos a outrem deve ser responsabilizado, independentemente de haver vontade do fornecedor em
produzir o dano.
2. Leis casuísticas são motivadas por casos concretos, distanciando-a dos requisitos da abstração e generalidade, utilizadas para impor penalidades retroativamente ou perseguir determinados grupos.
3.Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2007, p. 20.
4. Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua
16
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Como o próprio Supremo Tribunal Federal afirmou, no julgamento sobre a inconstitucionalidade da CPMF (ADIn 939), os princípios têm prevalência sobre as normas positivas; os princípios
são em última análise a fonte da normas, eles as determinam, as derrogam ou as subjugam a uma
nova e atualizada interpretação5.
A equidade, compreendida tanto no sentido aristotélico de justiça como à luz do art. 3º, inciso
I da Constituição Federal6, “surge como corretivo ou impedimento das condições gerais iníquas
ou que provocam vantagem injusta ao predisponente em relação a qualquer aderente”, conforme
explica Rizzato Nunes.
Mirella D’Angelo Caldeira destaca que “a lei quer proteger os legítimos interesses e expectativas das partes. O que importa é o efeito do contrato. Se houve desequilíbrio, desigualdade entre as
partes, o contrato deverá ser revisto e até mesmo alterado”7.
Na esteira do citado desequilíbrio é que não soa justo imputar a responsabilidade solidária
inadvertidamente, apenando fornecedores que, embora tenham auferido lucro na operação e tenham participado da cadeia, não tenham contribuído para o defeito ou vício no produto ou serviço. Como vetor das relações consumeristas, a equidade deve ser útil para albergar tanto interesses
dos consumidores como dos fornecedores.
Da mesma forma, a boa-fé objetiva também deve servir de instrumento primário para interpretação da solidariedade, com vistas a examinar se consumidores e fornecedores em cadeia
agiram dentro de parâmetros aceitáveis de honestidade e lealdade no cumprimento do contrato.
Rizzato Nunes examina o funcionamento da boa-fé de maneira singular:
“(...) a intérprete lança dela mão, utilizando-a como um modelo, um standart (um topos) a ser
adotado na verificação do caso em si. Isto é, qualquer situação jurídica estabelecida para ser validamente legítima, de acordo com o sistema jurídico, deve poder ser submetida à verificação da
boa-fé objetiva que lhe é subjacente, de maneira que todas as partes envolvidas (quer seja credora,
devedora, interveniente, ofertante, adquirente, estipulante, etc.) devem respeitá-la. A boa-fé objetiva é, assim, uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal (justa), disposta como um
tipo ao qual o caso concreto deve se moldar. Ela aponta, pois, para um comportamento fiel, leal, na
atuação de cada uma das partes contratantes, a fim de garantir o respeito ao direito da outra. Ela é
um modelo principiológico que visa garantir a ação e/ou conduta sem qualquer abuso ou nenhum
qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(...) III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do
consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos
quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas
relações entre consumidores e fornecedores; (...).
5. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed.
São Paulo. Revista dos Tribunais. 2006, p. 937.
6. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa
e solidária; (...).
7. CALDEIRA, Mirella D’Angelo. O controle das práticas abusivas pelo princípio da boa-fé, p. 39.
17
Individualização da responsabilidade do fornecedor no CDC
tipo de obstrução ou, ainda, lesão a outra parte ou partes envolvidas na relação, tudo de modo a
gerar uma atitude cooperativa que seja capaz de realizar o intento da relação jurídica legitimamente
estabelecida”.8
O senso comum, em claro desuso nesse particular, recomenda que se faça a justa ponderação
de atitudes nas relações jurídicas, motivo pela qual a atribuição automática da responsabilidade
solidária se mostra inapropriada. Sob a ótica da boa-fé objetiva, quando for possível identificar
pontualmente o fornecedor infrator, o intérprete deve evitar a solidariedade.
Não obstante o Código de Defesa do Consumidor tenha estabelecido hipóteses excludentes
de responsabilidade, sabe-se que, na prática, o intérprete reluta em reconhecer a ilegitimidade de
fornecedores não participantes do fato ensejador da reclamação do consumidor.
Do ponto de vista multidisciplinar, dentro da amplitude que se pretende abordar, também é
possível traçar um paralelo da solidariedade prevista no Código de Defesa do Consumidor com a
descrita no Código Civil, dentro da acepção de conhecido “diálogo das fontes”, expressão visionária
do alemão Erik Jayme.
O Código de Defesa do Consumidor estabeleceu a regra da ampla solidariedade na responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pelo consumidor, deixando firmada a obrigação de todos os partícipes pelos danos causados, nos moldes também do Código Civil. Logo,
são solidariamente responsáveis todos os atores que tenham auferido lucro e que tenham intervido de alguma forma, direta ou indiretamente, na cadeia de consumo, seja na fabricação,
distribuição ou comercialização.
Havendo, portanto, mais de um fabricante para o mesmo produto, ou mais de um causador
do dano, todos respondem solidariamente pela reparação. Não por acaso, o Código de Defesa do
Consumidor trata da solidariedade em vários momentos9 (art. 7º, parágrafo único, art. 18 e art. 25,
§§ 1º e 2º10).
8. NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198.
9. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 494.
10. Art. 7º Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de
que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade. Parágrafo
único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas
normas de consumo. (...) Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se
destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes
do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. (...) Art. 25. É vedada a estipulação contratual
de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores. § 1º
Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista
nesta e nas seções anteriores. § 2º Sendo o dano causado por componente ou peça incorporada ao produto ou serviço,
são responsáveis solidários seu fabricante, construtor ou importador e o que realizou a incorporação.
18
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Igualmente, para que a proteção seja ainda mais ampla, o Código de Defesa do Consumidor
incluiu no rol dos responsáveis outros fornecedores que, sequer, participaram diretamente da cadeia. É o caso dos conglomerados que exploram o mercado e, simplesmente por esse fato, estão
passíveis de sofrer os efeitos da solidariedade.
Em outras palavras, como se vê, a regra do Código de Defesa do Consumidor é a proteção
ampla, dada a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor. Pouco importa, segundo o texto legal, quem será responsabilizado pelo dano ao consumidor, pois este deverá ser integralmente
indenizado.
Ao olhar para a responsabilidade solidária prevista no Código Civil, herança do Direito Romano, quando os credores ou devedores desejavam evitar inconvenientes na divisão da dívida,
ligavam-se por um vínculo particular por meio do qual um dos credores podia cobrar a integralidade da dívida de cada um dos devedores.
Tratando-se aqui exclusivamente da solidariedade passiva, que obriga todos os devedores ao
pagamento total da dívida, o objeto precípuo do instituto é facilitar o adimplemento da obrigação.
O raciocínio de facilitação do pagamento com a solidariedade, de acordo com o art. 275 do
Código Civil11, passa necessariamente pela possibilidade de um dos codevedores não ter condição,
quando acionado, de pagar inteiramente a dívida. Em suma, a ratio essendi quanto à solidariedade
passiva decorre da preservação do interesse do credor quando o devedor principal não tiver patrimônio suficiente para suportar a totalidade da obrigação.
Embora não seja nenhuma novidade, ao transpor ratio essendi das obrigações solidárias às regras consumeristas, acredita-se que a imputação reiterada da solidariedade nas condenações passa
pelo receio do não cumprimento pelo fornecedor principal. Numa relação em que há fabricante,
importador, transportador e revendedor, um eventual defeito de fabricação poderia alcançar toda
cadeia, independentemente do porte do fabricante.
Agora, indaga-se se seria medida de boa-fé e equidade atribuir a responsabilidade pelo vício
de fabricação a outros fornecedores da cadeia, se comprovado, no caso concreto, que eles não concorreram para o prejuízo ao consumidor? Sendo identificado o fabricante, e este podendo suportar
notoriamente o ônus da condenação, seria necessário estender a responsabilidade e manter os coobrigados na lide?
Não há a intenção militar para a flexibilização ou mitigação dos direitos dos consumidores,
notadamente porque a vulnerabilidade e a hipossuficiência para aferir e buscar o verdadeiro responsável é complexa e não seria justo atribuir tal encargo ao consumidor. Porém, se o Código de
Defesa do Consumidor é principiológico e tem como alvo a harmonia das relações de consumo,
é medida de bom senso que se faça a análise – casuisticamente, sempre que o contexto permitir –
11. Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida
comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.
Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos
devedores.
19
Individualização da responsabilidade do fornecedor no CDC
para atribuir a responsabilidade individualizada ao verdadeiro causador da falha ou dano. Inviável
a individualização da responsabilidade, permanece a solidariedade.
Ao longo da vigência do Código de Defesa do Consumidor, o procedimento de individualização da responsabilidade dos fornecedores já foi pontuado na jurisprudência em diversas oportunidades, mesmo que de forma excepcional.
3. CASOS CONCRETOS DE INDIVIDUALIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO
FORNECEDOR
Segundo os autores do anteprojeto, “o Código de Defesa do Consumidor não é uma panacéia
para todos os males que o afligem”12. Como se sabe, há muitas práticas não expressamente vedadas
pelo regramento, mas que permanecem prejudicando o consumidor.
Condutas como a renovação automática de serviços, contratações pelo controle remoto, fidelizações compulsórias, discrepâncias entre a oferta o valor do produto permanecem sendo objeto
de reclamações em massa nos PROCONs e nos juizados especiais, embora os fornecedores estejam
tentando cercar os consumidores de informações claras e precisas sobre as contratações.
Com efeito, na esteira dos preceitos da boa-fé e da harmonia que devem permear a relação
entre fornecedores e consumidores, mostra-se conveniente demonstrar algumas situações em que
a figura da solidariedade na cadeia foi mitigada, após o exame detalhado do caso concreto.
A primeira situação pode ser notada na relação entre consumidores, imobiliárias e construtoras
de imóveis. À oportunidade, foi reconhecida a responsabilidade solidária da imobiliária pelo atraso
na entrega das obras, com base na teoria da aparência.
Na visão da 6ª Turma Cível do TJDFT13, o fato de a proposta de compra ter sido entabulada em
documento da imobiliária, seria suficiente para indicar sua direta participação no negócio jurídico,
inclusive com o planejamento da forma de pagamento do contrato e recibo do valor do sinal.
Porém, ao analisar caso idêntico dias depois, a 2ª Turma Cível do TJDFT14 afastou a responsabilidade solidária da imobiliária, fundamentada novamente pela teoria da aparência, sob o argumento de que a prestação do serviço de corretagem pela imobiliária não se confunde com a
promessa de compra e venda entabulada entre o autor e a incorporadora, pois se tratou de simples
12. GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO,
José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; NERY JÚNIOR, Nelson e DENARI, Zelmo. Código de Defesa do Consumidor:
comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 18.
13. TJDFT, Acórdão n. 730416, 20120111919988APC, rel. Vera Andrighi, 6ª Turma Cível, j. 23/10/2013, Publicado no DJE:
05/11/2013, p. 160.
14. TJDFT, Acórdão n. 737057, 20110112115887APC, rel. Waldir Leôncio Lopes Júnior, 2ª Turma Cível, j. 30/10/2013,
Publicado no DJE: 26/11/2013, p. 105.
20
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
intermediação tendente à realização do negócio principal, nos termos do art. 722 e seguintes do
Código Civil.
Nessa linha, a 2ª Turma Cível concluiu que não se há como vindicar a responsabilidade solidária da imobiliária com a construtora, eis que inexiste nos autos prova que ateste ter a imobiliária
agido como se fosse a própria construtora.
A segunda situação diz respeito à relação entre consumidores, concessionárias e montadoras
de veículos. A jurisprudência recente da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça15, considerando o sistema de comercialização de automóveis através de concessionárias autorizadas, considera solidariamente responsáveis o fabricante e o comerciante que aliena o veículo com defeito.
Todavia, em outra oportunidade, a 4ª Turma16 acenou que, embora demandas desse jaez possam ser direcionadas contra qualquer dos coobrigados, nada impede que seja apurado, no caso
concreto, o nexo de causalidade entre as condutas dos supostos responsáveis para concluir-se pela
responsabilidade de apenas um deles.
O afastamento da solidariedade e a aferição da responsabilidade individual na cadeia de consumo, quando possível, perfilham interpretações outrora adotadas nas relações entre médicos e
hospitais17, assim como das empresas de publicidade de comunicação na veiculação de publicidade abusiva18.
Nota-se, portanto, que a jurisprudência, mesmo de forma embrionária e pontual, tem despertado para a individualização da responsabilidade de cada coobrigado na cadeia de consumo,
deixando de aplicar automaticamente a teoria do risco do empreendedor.
Em todos os casos citados, houve um juízo prévio da responsabilidade de cada ator, antes da
decretação da responsabilidade solidária.
4.CONCLUSÃO
Conforme se verificou nos tópicos anteriores, o objetivo do presente texto é despertar a atenção para a aplicação da responsabilidade solidária nas relações de consumo a todos os atores da
cadeia produtiva, quando é possível individualizá-la no caso concreto.
Mantida como regra, rígida e sem exceção, a solidariedade entre os partícipes da cadeia de
consumo, também estará à prova a relação comercial entre fabricantes, importadores e revendedores. O revendedor que sofra um impacto financeiro por conta de um defeito de fabricação, possi-
15.
16.
17.
18.
STJ, AgRg no REsp 863.919/MT, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 04/12/2012, DJe 11/12/2012.
STJ, REsp 402.356/MA, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, 4ª Turma, DJ 23/6/2003.
STJ, REsp 258.389-SP, 4ª Turma, j. 16/06/2006, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU 16/06/2005.
STJ, REsp 604.172-SP, 3ª Turma, j. 27/03/2007 – rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 21/05/2007, p. 568.
21
Individualização da responsabilidade do fornecedor no CDC
velmente terá um abalo de relacionamento comercial com o fabricante ou deverá suportar o ônus
em prol de tal relação.
Sem prejuízo aos direitos dos consumidores, que atingiram uma posição de relevo no mercado
e a quem o Código de Defesa do Consumidor alicerçou ao status de sujeito e não de objeto, por
certo que o melhor exame da responsabilidade solidária não lhes trará frustrações.
Assim, se a principiologia aponta para a boa-fé e harmonia, a individualização da responsabilidade não pode passar ao largo desses preceitos, tal como notado casuisticamente na jurisprudência moderna. De forma tímida e bem pontual, já é possível observar individualizações de responsabilidade em alguns segmentos de mercado.
Nas palavras da Min. Nancy Andrighi, “O CDC não é somente um conjunto de artigos que
protegem o consumidor a qualquer custo: antes de tudo, ele é um instrumento legal que pretende
harmonizar as relações entre fornecedores e consumidores, sempre com base nos princípios da
boa-fé e do equilíbrio contratual”19.
5.BIBLIOGRAFIA
CALDEIRA, Mirella D’Angelo. O controle das práticas abusivas pelo princípio da boa-fé. Monografia apresentada
no Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCSP, 1998.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; NERY JÚNIOR, Nelson e DENARI, Zelmo. Código de Defesa
do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2006.
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
OAB (autores diversos). O Código de Defesa do Consumidor 20 anos depois – Uma perspectiva de justiça.
Revista do Advogado n. 114. 2011.
19. OAB (autores diversos). O Código de Defesa do Consumidor 20 anos depois – Uma perspectiva de justiça. Revista do
Advogado n. 114. 2011.
II
Responsabilidade dos
administradores de fundo
de investimento imobiliário
no âmbito judicial
Eduardo Galan Ferreira
Pós-graduado em Direito Empresarial pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio VargasFGV-Law e Pós-graduando em Direito Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais –
IBMEC-RJ. Advogado.
Gisele de Assis
Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogada
Resumo: Os administradores de Fundo de Investimento Imobiliário são os res-
ponsáveis pelos Fundos perante os quotistas e os órgãos reguladores. Nesta medida,
representam os Fundos em todos os atos civis, comerciais e em juízo. Conquanto,
ainda é controverso o limite da responsabilidade dos administradores no âmbito
judicial, a qual deveria cingir-se ao mero ato de representação, mas não é assim que
os Tribunais vêm decidindo.
Sumário: 1. Conceito de Fundo de Investimento Imobiliário – 2. O papel dos administradores – 3. Da representação dos Fundos de Investimento Imobiliário pelas instituições administradoras no âmbito judicial – 4. A responsabilidade dos administradores de
Fundo de Investimento Imobiliário no âmbito judicial – 5. Conclusão – 6. Bibliografia.
24
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1. CONCEITO DE FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO
Os Fundos de Investimento Imobiliário – FII – podem ser conceituados “como uma comunhão de recursos, captados por meio do sistema de distribuição de valores mobiliários e destinados
à aplicação em empreendimentos imobiliários”, nos termos do artigo 2º da Instrução CVM 472,
de 31 de outubro de 2008, e em consonância com a Lei 8.668, de 25 de junho de 1993, que “dispõe
sobre a constituição e o regime tributário dos Fundos de Investimento Imobiliário e dá outras
providências.” São grupos de investidores que aplicam recursos, de forma solidária, em todo o tipo
de negócio de base imobiliária, tais como a construção e/ou a aquisição de imóveis para posterior
locação ou arrendamento.
O patrimônio de um Fundo pode ser integrado por um ou mais imóveis, parte de imóveis,
direitos a eles relativos etc. Sem prejuízo, podem integrar também o patrimônio dos FII, títulos e
valores mobiliários que tenham como objeto principal o mercado imobiliário de valores.
Em que pesem serem os investidores titulares das cotas dos FII, ao contrário do proprietário
de um imóvel, o quotista do Fundo não poderá exercer qualquer direito real sobre os imóveis e
empreendimentos integrantes do patrimônio do Fundo, mas somente direitos ligados ao título representativo de sua participação proporcional no Fundo, por meio de deliberações em assembleias
gerais de quotistas, as quais se dão em observância aos termos da Lei 8.668/93.
Nesta medida, embora sejam os Fundos de Investimentos destituídos de personalidade jurídica, por não possuírem um órgão jurídico interno, os FII aproximam-se muito mais da ideia de
empreendimento do que de uma propriedade em comum. Isto porque, a despeito de não possuírem um órgão interno, a norma já prevê a obrigatoriedade de realização de assembleia de quotistas,
auditoria externa, publicidade dos balanços, contratação de consultores, dentre outras características da governança corporativa.
Ainda sim, considerando-se a conceituação dos Fundos de Investimento como uma espécie
de condomínio, tal como prevê a Lei 8.668/93, por serem os FII constituídos sob a forma de condomínio fechado, não é possível o resgate de quotas, as quais correspondem a frações ideais do
patrimônio do Fundo e constituem valores mobiliários1, conforme estabelece o artigo 3º da mencionada Lei.
Portanto, o retorno do capital investido se dá por meio da distribuição de resultados, da venda
das quotas ou, quando for o caso, da dissolução do Fundo com a venda dos seus ativos e a distribuição proporcional do patrimônio aos quotistas.
1. José Eduardo Carneiro Queiroz define as características fundamentais para se conceituar valor mobiliário, são elas: (i)
investimento de dinheiro; (ii) empreendimento comum; (iii) expectativa de lucro; e (iv) gestão de empreendedor ou
de terceiros (O Conceito de valor mobiliário e a competência de Valores Mobiliários e do Banco Central do Brasil. In:
QUIROGA, Roberto (coord.). Aspectos atuais do direito do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Dialética, 1999,
v. I, p. 134.
25
Responsabilidade dos administradores de FII no âmbito judicial
Por outro lado, nos termos do artigo 5º da Lei 8.668/1993, os Fundos de Investimento são
geridos, obrigatoriamente, por um administrador/instituição administradora autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM.
Referida instituição é responsável, também, pela constituição do Fundo, a qual deverá ser autorizada pela CVM mediante aprovação do regulamento interno do Fundo.
Neste aspecto, insta salientar que os Fundos de Investimento Imobiliários, bem como a
atividade de seus administradores, são disciplinados, normatizados e fiscalizados pela CVM,
a qual tem como um de seus objetivos principais “criar condições para que o investidor possa
atuar nessa modalidade de investimento, limitando seus riscos àqueles característicos desse tipo
de investimento”2.
E, para tanto, a CVM impõe uma série de normas a serem seguidas pelas instituições administradoras, sempre com vistas a um melhor controle e acesso às informações por parte dos
quotistas.
2. O PAPEL DOS ADMINISTRADORES
A função do administrador dos Fundos de Investimento, nos termos do artigo 27 da Instrução
CVM 472/2008, é a de responsabilizarem-se pelos Fundos perante os quotistas e órgãos reguladores, bem como deter os poderes para praticar todos os atos necessários à administração dos Fundos, inclusive, exercendo os direitos inerentes à propriedade, aos títulos e aos valores mobiliários
que integram o patrimônio desses.
Trata-se de uma relação de fidúcia, na qual o administrador age em benefício dos quotistas
como garante de boa-fé, transparência, diligência e lealdade em todas as transações efetivadas em
nome do Fundo.
Desta forma, até mesmo para possibilitar essa administração plena, é que o patrimônio do
Fundo é mantido sob a propriedade fiduciária da instituição administradora, a qual, conquanto
homônima, não se confunde com aquela prevista no regramento civil (art. 1.361, CC/02 para bens
móveis e Lei 9.514/97 para bens imóveis) e, portanto, não há uma comunicação entre os ativos e
obrigações do Fundo com os da instituição administradora.
O instituto da propriedade fiduciária afasta-se da ideia tradicional de propriedade para se
aproximar da ideia de detenção qualificada, já que os direitos à posse são exercidos em cumprimento às ordens e instruções emanadas dos reais proprietários. Em verdade, as instituições
administradoras exercitam atos de posse em nome alheio, como mero instrumento da vontade
de outrem.
2. Comissão de Valores Mobiliários. Caderno CVM – Fundos de Investimentos. Disponível em: <www.cvm.gov.br>.
26
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Tanto é assim, que no caso de renúncia, descredenciamento ou destituição da instituição administradora, “a sucessão da propriedade fiduciária de bem imóvel integrante de patrimônio de
Fundo de Investimento Imobiliário não constitui transferência de propriedade”3.
Por esta razão, é que a Lei 8.668/1993, em seu artigo 7º, §§ 1º e 2º, determina que tanto no título aquisitivo, como na certidão de matrícula averbada no cartório de registro de imóveis, devem
constar, de forma expressa, as seguintes restrições e informações acerca dos ativos imobiliários dos
Fundos: (i) o patrimônio do Fundo não integra o ativo do administrador; (ii) não responde direta
ou indiretamente por qualquer obrigação do administrador; (iii) não compõe a lista de bens e direitos do administrador, para efeito de liquidação judicial ou extrajudicial; (iv) não pode ser dado
em garantia de débito de operação do administrador; (v) não é passível de execução por quaisquer
credores do administrador, por mais privilegiados que possam ser; e (vi) não pode ser objeto de
constituição de quaisquer ônus reais.
Com isso, o administrador poderá administrar os bens adquiridos em fidúcia e deles dispor,
tão somente, na forma e para os fins estabelecidos no regulamento interno do Fundo ou em assembleia de quotistas.
Vale consignar, que a legislação tributária imputa à instituição administradora o caráter de responsável tributário por substituição dos tributos afetados ao Fundo, sendo seu dever reter, cobrar
e recolher tais tributos, agindo como uma espécie de coletores dos tributos que são devidos, em
última instância, pelos quotistas do Fundo.
Isto porque, ainda que o artigo 126, inciso III, do Código Tributário Nacional, disponha que
“a capacidade tributária passiva independe (...) de estar a pessoa jurídica regularmente constituída,
bastando que configure uma unidade econômica ou profissional”, a legislação tributária não se
utiliza dessa prerrogativa prevista no CTN, para imputar aos Fundos a qualidade de “contribuinte”.
Note-se que o artigo 121 do CTN prevê duas modalidades de sujeitos passivos das obrigações
de pagar tributos ou penalidades pecuniárias, a de “contribuinte” e a de “responsável”. Àquela,
aplica-se quando o sujeito de direitos em questão “tenha relação pessoal e direta com a situação que
constitua o respectivo fato gerador”; ao passo que esta, é cogitada quando a pessoa, “sem revestir a
condição de contribuinte”, esteja obrigado em decorrência de disposição expressa de lei.
Assim, o responsável tributário é, nos termos da lei, a “terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação”, na qual a lei lhe atribuiu de modo expresso a responsabilidade pelo
crédito tributário, “excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter
supletivo”.
Neste panorama, a doutrina convencionou caber uma espécie de responsável, denominada
“substituto tributário”, a qual é conceituada como uma responsabilidade em que lei tributária atri-
3. Lei 8.668, de 25 de junho de 1993. Dispõe sobre a constituição e o regime tributário dos Fundos de Investimento Imobiliário e dá outras providências. Art. 11, § 4.º.
27
Responsabilidade dos administradores de FII no âmbito judicial
bui o dever jurídico de pagar o tributo a pessoa diversa daquela que deu origem ao fato gerador,
mas que com ela possui relação jurídica, assumindo o lugar do contribuinte efetivo.
No caso dos FII, são tidos como contribuintes os quotistas, por serem eles detentores das
riquezas tributáveis geradas pelo Fundo e por terem a relação pessoal e direta com a conduta tida
como fato gerador, enquanto aos administradores, compete o encargo de satisfazer outros deveres
jurídicos que não sejam o de suportar o ônus financeiro dos tributos, recolhendo-os na qualidade
de substituto tributário e apresentando as declarações fiscais pertinentes.
Portanto, mais uma vez, note-se que ainda que o administrador seja responsável por reter,
cobrar e recolher os tributos inerentes aos Fundos, tal obrigação não afeta o seu patrimônio.
Na realidade, referidos pagamentos são até mesmo passíveis de ação de regresso em face do
Fundo.
3. DA REPRESENTAÇÃO DOS FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO
PELAS INSTITUIÇÕES ADMINISTRADORAS NO ÂMBITO JUDICIAL
Como visto, em que pese os Fundos de Investimentos serem desprovidos de personalidade
jurídica, eles possuem “plena capacidade para adquirir e transferir direitos, estar em juízo e praticar
atos comerciais, embora sempre representados pela pessoa de seu administrador”4.
Explica-se, o essencial é a capacidade do Fundo para adquirir e transmitir direitos, atuar em
Juízo e praticar todos os atos da vida comercial, ainda que por intermédio do seu representante
legal (instituição administradora), cuja principal função é exprimir a vontade dos quotistas, deliberada em assembleia, e seguir com exatidão o quanto disposto no regulamento do Fundo.
Bem por isso, Silvio Venosa esclarece que “na chamada representação das pessoas jurídicas,
o que se intenta é provê-las de vozes que por elas possam falar, agir e praticar os atos da vida civil.
Há, pois, na pessoa jurídica, mais propriamente uma “presentação”, algo de originário na atividade dos chamados representantes, do que propriamente uma “representação”. A pessoa jurídica
presenta-se (ou se apresenta) perante os atos jurídicos, e não se representa como originariamente
se diz.”5
O administrador, em verdade, é o que a doutrina atual denomina de instrumento ou “órgão”
do Fundo de Investimento, devendo agir em nome do Fundo, não em nome próprio.
Nessa matéria, o pontificado na doutrina brasileira é de Pontes de Miranda, que assim tratou
do assunto:
4. FREITAS, Ricardo de Santos. A responsabilidade civil dos administradores de fundos de investimentos. In: QUIROGA, Roberto (coord.). Aspectos atuais do direito do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Dialética, 1999. v. I, p.
230-240.
5. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Parte geral, p. 239.
28
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
“De ordinário, nos atos da vida, cada um pratica, por si, os atos que hão de influir, ativa ou passivamente, na sua esfera jurídica. Os efeitos resultam de atos em que o agente é presente; pois que os
pratica, por ato positivo ou negativo. A regra é a presentação, em que ninguém faz o papel de outrem,
isto é, em que ninguém representa.
(...)
Quando o órgão da pessoa jurídica pratica o ato, que há de entrar no mundo jurídico como ato da
pessoa jurídica, não há representação, mas presentação. O ato do órgão não entra, no mundo jurídico,
como ato da pessoa, que é órgão, ou das pessoas que compõe o órgão. Entra no mundo jurídico como
ato da pessoa jurídica, porque o ato do órgão é ato seu. Ainda há presentação, e não representação,
conforme já aprofundamos no Tomo I, se a pessoa física ou órgão da pessoa jurídica pratica o ato,
através de mensageiro ou aparelho automático (...)”. 6
Ou seja, o administrador pratica os atos volitivos da assembleia geral de quotistas e em consonância com o quanto previsto no regulamento do Fundo.
Isto porque, o contrário seria intangível, já que como exposto, o patrimônio do Fundo não se
comunica com o patrimônio do administrador (art. 7º da Lei 8.668/1993), que o detém em caráter
meramente fiduciário, para possibilitar o exercício de sua administração, sendo certo que as dívidas e obrigações contraídas pelo Fundo serão arcadas, sempre, pelo patrimônio do próprio Fundo,
da mesma forma que o patrimônio do Fundo não responderá pelas dívidas do seu administrador.
Nesta linha de raciocínio, deveria ser incontroversa a ilegitimidade passiva das instituições
administradoras para figurarem no polo passivo das demandas judiciais, senão como meros representantes legais dos Fundos, consoante art. 30, inciso VI, da Instrução CVM 472/2008, e salvo se
tratar-se de ações decorrentes de culpa do administrador no exercício de sua função.
Com efeito, tal distinção mostra-se extremamente importante, eis que as consequências entre
a administradora figurar tão somente como representante do Fundo e como parte são extremamente sensíveis, principalmente no âmbito da responsabilidade patrimonial de um para com a
outra, quando, por outro lado, a própria legislação veda tal situação.
Todavia, não é isso que vem ocorrendo no Judiciário, à exceção das ações tributárias, que são
reguladas por legislação própria e a discussão processual acerca da legitimidade da administradora
esbarra no direito material, nas ações cíveis, as instituições administradoras estão figurando como
corrés dos Fundos, quando deveriam figurar tão somente como representantes legais destes, já que,
salvo os casos específicos, o patrimônio da instituição não poderá responder por obrigações dos
Fundos.
Acerca da exceção acima citada, importa explicar que apenas no caso de descumprimento da
obrigação de reter, cobrar e recolher os tributos inerentes aos Fundos é que responderá o administrador, já que referido dever não é passível de sucessão em hipótese alguma.
6. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi. Tomo III, p. 231 e 233.
29
Responsabilidade dos administradores de FII no âmbito judicial
No entanto, poderá o administrador debitar do Fundo, ou reclamar em ação de regresso, o
valor total da dívida, no caso de erro escusável na interpretação da legislação tributária ou qualquer
outra situação que se enquadre no âmbito dos riscos do negócio. Por outro lado, no caso de culpa,
deverá o administrador ser ressarcido apenas pelo valor da obrigação principal, arcando com as
multas de caráter moratório, juros de mora e penalidade cabíveis.
Destarte, se respeitada a singela divisão entre atuar como representantes e integrar o polo passivo da demanda, quando da hipótese de alteração na administração do Fundo, que pode ocorrer a
qualquer momento, inclusive por meio da deliberação dos quotistas em assembleia geral, bastaria
ser efetivada a mudança do representante legal do Fundo, não havendo necessidade de alteração no
polo passivo da demanda.
Todavia, o que se verifica é uma enorme dificuldade em se alterar o polo passivo de uma demanda na qual a instituição administradora acabou erroneamente por integrar, quando deveria
tão somente atuar como representante do Fundo. Afinal, não há confusão entre o patrimônio deste
com aquela, devendo cada um responder por suas respectivas obrigações.
4. A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES DE FUNDO DE
INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO NO ÂMBITO JUDICIAL
Portanto, a responsabilidade das instituições administradoras de Fundos de Investimentos
Imobiliários no âmbito judicial cinge-se à representação do Fundo em juízo, por meio da defesa
dos seus interesses da forma mais adequada e qualificada possível, visando sempre o meio menos
oneroso ao Fundo na condução das demandas.
Isto porque, o administrador não é o sujeito dos direitos e obrigações que dizem respeito ao
patrimônio do Fundo, uma vez que, como repetido à exaustão, o patrimônio do administrador não
se comunica com o patrimônio do Fundo e vice-versa.
Até mesmo a responsabilidade do administrador acerca da atuação processual do Fundo em
juízo não é exclusiva, visto que o advogado ou sociedade de advogados escolhida para a defesa dos
interesses do Fundo, também é elegido por meio de votação dos quotistas em assembleia geral.
Aliás, acerca das assembleias gerais dos Fundos, vale consignar que a CVM veda, expressamente, a possibilidade de o administrador, seu gestor ou qualquer sócio, diretor ou funcionário
de ambos votarem, o que implica uma administração ainda mais imparcial e, via de consequência,
diminui a responsabilidade do administrador para responder, em nome próprio, às demandas movidas contra o Fundo.
Porquanto, e para corroborar a tese de que o administrador atua em juízo tão somente como
representante do Fundo, não podendo arcar com as suas dívidas e obrigações, é que se verifica
na Instrução CVM 472, em seu artigo 47, inciso VII, que dentre os encargos do FII inclui-se
“honorários de advogados, custas e despesas correlatas incorridas em defesa dos interesses do
30
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Fundo, judicial ou extrajudicialmente, inclusive o valor de condenação que lhe seja eventualmente imposta”.
Note-se que se trata de um dos encargos do Fundo de Investimento arcar com eventual condenação em ação judicial, nem que para isso se faça necessária a penhora de um dos imóveis registrados em nome da instituição administradora na condição de proprietária fiduciária.
E isto somente é possível, pois, como dito, o administrador detém a propriedade dos bens do
Fundo em caráter meramente fiduciário, apenas para possibilitar o exercício da administração.
Trata-se de um órgão que centraliza e organiza os interesses e vontades de um grupo de pessoas que
se uniram para investir no ramo imobiliário.
A bem da verdade, somente será atribuída responsabilidade aos administradores em caso de
má gestão, gestão temerária, conflito de interesses, descumprimento do regulamento ou de determinação da assembleia geral de quotistas.
Trata-se de responsabilidade subjetiva, traduzida no direito brasileiro pelos artigos 927 e seguintes do Código Civil, na qual se faz necessária a existência de dolo ou culpa comprovado para
que o administrador tenha que responder com seu patrimônio pelo ressarcimento dos danos causados aos quotistas ou terceiros.
Sob este prisma, a Instrução CVM 472 exemplifica os atos de violação ao dever de lealdade do
administrador, elencando as seguintes hipóteses: “I – usar, em benefício próprio ou de outrem, com
ou sem prejuízo para o Fundo, as oportunidades de negócio do Fundo; II – omitir-se no exercício
ou proteção de direitos do Fundo ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem,
deixou de aproveitar oportunidades de negócio de interesse do Fundo; III – adquirir bem ou direito
que sabe necessário ao Fundo, ou que este tencione adquirir; e IV – tratar de forma não equitativa
os quotistas do Fundo, a não ser quando os direitos atribuídos a diferentes classes de cotas justificassem tratamento desigual”.7
Por outro prisma, não responde o administrador por resultados não alcançados pelo Fundo
no que diz respeito à rentabilidade das quotas. Não se trata de uma obrigação de efetivamente
alcançar os resultados, mas sim de despender os maiores e melhores esforços para tanto, já que a
própria CVM veda a promessa de rendimento aos quotistas.
Por isto, inaceitável se mostra o fato do administrador arcar com as obrigações do Fundo dispondo de seu próprio patrimônio para tanto.
5.CONCLUSÃO
Por todo o exposto, cumulando-se a obrigação imposta pelo artigo 30, inciso VI, da Instrução
CVM 472/2008, que prevê competir à instituição administradora representar o Fundo em juízo e
7. Instrução CVM 472, 31 de outubro de 2008, art. 33, § 1º.
31
Responsabilidade dos administradores de FII no âmbito judicial
fora dele, com o quanto disposto no artigo 7º da mesma instrução normativa, o qual deixa claro
não haver comunicação entre o patrimônio do Fundo e o patrimônio do administrador, é possível
concluir que tal representação aproxima-se do conceito dado por Pontes de Miranda e que a responsabilidade do administrador, no âmbito judicial, limita-se propriamente a uma “presentação”
do Fundo pelo administrador perante o juízo, já que todos os seus atos estão adstritos ao regulamento do Fundo e ao quanto deliberado em assembleia geral de quotistas.
Em sendo assim, há de ser reconhecida a ilegitimidade e a ilegalidade de todas as demandas
em que o administrador não estiver figurando como mero representante do Fundo ou que esteja o
seu patrimônio respondendo por obrigações oriundas do Fundo.
6.BIBLIOGRAFIA
DOTTA, Eduardo Montenegro. A responsabilidade dos administradores de fundos de investimento no novo Código Civil. São Paulo. Editora Texto Novo, 2005.
FREITAS, Ricardo de Santos. A responsabilidade civil dos administradores de fundos de investimentos. In:
QUIROGA, Roberto (coord.). Aspectos atuais do direito do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Dialética, 1999. v. I.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. Tomo III.
PACHECO, Alexandre Sansone. Responsabilidade tributária dos administradores de fundos de investimento.
In: QUIROGA, Roberto (coord.). O direito tributário e o mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Dialética, 2010.
QUEIROZ, José Eduardo Carneiro. O conceito de valor mobiliário e a competência de valores mobiliários e do
Banco Central do Brasil. In: QUIROGA, Roberto (coord.). Aspectos atuais do direito do mercado financeiro
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ROCHA, Tatiana Nogueira da. Fundos de investimento e o papel do administrador. São Paulo. Editora Texto
Novo, 2003.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Parte geral. 11. ed. São Paulo: Atlas.
III
Poderes instrutórios na ação
de prestação de contas
Bruno Landini Dias de Lima Carvalho
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Advogado.
Resumo: De forma recorrente, a ação de prestação de contas vem sendo utilizada
majoritariamente por clientes de instituições bancárias, objetivando esclarecimentos acerca da movimentação de suas contas vinculadas há considerável período de
tempo. Este direito muitas vezes encontra obstáculo na complexidade prática de arquivamento de documentos antigos, de maneira que muitos desses bancos réus têm
tido dificuldades em cumprir o exíguo prazo para a efetiva prestação de contas. Eis
então o contexto motivador do presente artigo, que buscará suscitar reflexões acerca
da atuação do Estado-Juiz de maneira imparcial, mas ao mesmo tempo ativa, com o
escopo de evitar o enriquecimento sem causa dos autores das demandas.
Sumário: 1. A ação de prestação de contas – 2. Breves considerações sobre os poderes
instrutórios do juiz – 3. Reflexões sobre a atuação do Estado-Juiz na instrução probatória da prestação de contas e comentários a casos práticos – 4. Conclusão – 5. Bibliografia.
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SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1. A AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
De início, cabível delimitar as características peculiares desta ação e consequente modus procedimental, os quais justificam a adoção de um trâmite especial pela própria necessidade de se
atender de maneira efetiva e eficiente suas particularidades.
Prevista no artigo 914 e seguintes do Código de Processo Civil, a ação de prestação de contas
encontra-se no rol de demandas que integram os chamados procedimentos especiais e basicamente
evidencia o dever obrigacional derivado de uma relação de administração de bens.
Nas palavras dos eminentes juristas Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini,
“sempre que alguém tiver a administração de bens de outrem, ou de bens comuns, surge a obrigação
de prestar contas, ou seja, demonstrar o resultado da administração, com a verificação da utilização
dos bens, seus frutos e rendimentos. Essa obrigação pode decorrer de lei ou contrato. (...) A iniciativa
da ação tanto pode caber a quem tem o direito de exigir as contas como àquele que tem a obrigação
de prestá-las. Por isso, pouco importa quem tome a iniciativa da demanda, se o credor ou o devedor”1.
Bem por isso, fala-se da natureza dúplice desta ação, valendo destacar que o provimento jurisdicional final, se verificado o dever de prestar as contas, haverá de apontar um saldo credor líquido
que poderá ser cobrado em execução forçada (artigos 917 e 918 do CPC), seja ele em benefício de
quem administra os bens ou de quem os bens são administrados (artigo 914 do CPC).
Explicando o conceito, o Professor Antonio Carlos Marcato aduz que:
“proposta a ação por um ou outro, o réu, tendo direito a deduzir em face do autor, não precisará valer-se da via reconvencional (na verdade, carecerá da ação reconvencional, por ausência de interesse de
agir), pois constatada, no curso do processo, a existência de saldo em favor de qualquer das partes, a
outra será condenada a pagá-lo. Por outras palavras, forma-se título executivo judicial em favor do
titular do crédito, mesmo não tendo sido ele o promovente da ação”2.
Voltando ao procedimento em si, a ação de prestação de contas é dividida em duas fases: a
primeira consiste na averiguação da existência ou inexistência do réu em prestar as contas (quando
proposta pelo titular dos bens administrados) ou do autor em poder prestá-las (quando proposta
pelo administrador). A decisão meritória é proferida através de sentença desafiável por apelação e
recebida no duplo efeito, tal como nos moldes ordinários.
1. WAMBIER, Luiz Rodrigues; CORREIA DE ALMEIDA, Flávio Renato e TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de
processo civil. Processo cautelar e procedimentos especiais. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003. v. 3, p. 173.
2. MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos especiais. 11. ed. ver. ampl. e atual. de acordo com o novo Código Civil. São
Paulo: Atlas, 2005, p. 136-137.
35
Poderes instrutórios na ação de prestação de contas
Iniciada a segunda fase da ação, dá-se início à prestação de contas na forma mercantil (artigo
917 do CPC), oportunidade em que, como dito alhures, será apurado saldo credor líquido em favor
de uma das partes (sob pena de a sentença ser declarada nula3), desencadeando, por fim, a execução forçada do crédito.
Elucidados os principais pontos de destaque a respeito da ação de prestação de contas em si,
passa-se a adentrar a seara que abrange o tema em questão.
2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ
De comum sabença que o juiz é um dos destinatários da prova. Nesse diapasão, o livre convencimento motivado, imprescindível para prolação de uma decisão válida, muitas vezes se concretiza
com um ativismo judicial na produção de provas.
O Professor Doutor José Roberto dos Santos Bedaque leciona que:
“(...), a atividade probatória também deve ser exercida pelo magistrado, não em substituição das partes, mas junto com elas, como um dos sujeitos interessados no resultado do processo. A maior participação do juiz na instrução da causa é uma das manifestações da postura instrumentalista que envolve
a ciência processual”. O eminente jurista ainda concluiu que “A tendência moderna de assegurar a
todos a solução jurisdicional, mediante o devido processo constitucional, compreende a garantia da
solução adequada, cuja obtenção pressupõe a ampla participação do juiz na construção do conjunto
probatório”4.
Tais assertivas foram igualmente abraçadas pelo legislador, quando da criação de diversos dispositivos elencados em nosso ordenamento jurídico positivado, tal como o artigo 130 do Código de
Processo Civil, que confere ao Estado-Juiz o poder-dever de “de ofício ou a requerimento da parte,
determinar as provas necessárias à instrução do processo”. Esta diretriz foi reiterada no procedimento especial de prestação de contas, o que será doravante melhor demonstrado.
Nesta esteira, em doutrina ímpar vinculada à dissertação de seu mestrado, o incipiente advogado Dr. Daniel Penteado de Castro ensina que:
“(...) se o juiz deve formar sua convicção livremente, adstrito apenas a motivar sua decisão e consoante critérios lógicos de raciocínio, cabe a ele trazer para o processo os elementos de prova de que
necessite para julgar o pedido, ainda que as partes não tenham proposto a produção de tais provas”.5
3.RT 695/159, JTA 108/121.
4. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 160-162.
5. CASTRO, Daniel Penteado de. Poderes instrutórios do juiz no processo civil: fundamentos, interpretação e dinâmica. São
Paulo: Saraiva, 2013, p. 303.
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SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Daí porque se concluir que a postura ativa do Estado-Juiz na formação do conjunto probatório dos autos, seja com auxílio das partes por meio de requerimentos formais ou não, somente
contribui para a prestação efetiva do serviço público na solução de conflitos jurisdicionalizados,
razão pela qual a consecução dos poderes instrutórios do juiz não pode ser vista como suspeita de
parcialidade ou afronta ao princípio dispositivo, dentre outros. Cabível trazer à baila precedente
proveniente do Superior Tribunal de Justiça, aplicável a quaisquer casos em que se verifique iniciativa probatória por parte do julgador, verbis:
“Processo civil. Agravo no recurso especial. Iniciativa probatória do juiz. Perícia determinada de ofício.
Possibilidade mitigação do princípio da demanda. Precedentes. – Os juízos de primeiro e segundo
graus de jurisdição, sem violação ao princípio da demanda, podem determinar as provas que lhes
aprouverem, a fim de firmar seu juízo de livre convicção motivado, diante do que expõe o art. 130 do
CPC. – A iniciativa probatória do magistrado, em busca da verdade real, com realização de provas de
ofício, é amplíssima, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça. Agravo no recurso
especial improvido”6.
Seguindo esse diapasão, a eminente autora Suzana Santi Cremasco, em sua obra sobre a distribuição dinâmica do ônus da prova, asseverou que:
“(...) pôr nas mãos de autor e réu toda a responsabilidade pela atividade probatória, não raras as vezes, culminava por deixar o magistrado, quando da decisão, completamente desguarnecido, carente
de elementos probatórios aptos a possibilitar a formação e a sustentação do seu convencimento e a
solucionar o conflito de interesses. E, diante, da impossibilidade de proferir o non liquet, o julgador
acabava por valer-se das regras de distribuição do ônus da prova, de forma a prolatar sua decisão. (...)
Desde então, o direito positivo dos diversos países – inclusive o do Brasil – passou a ‘reforçar os poderes do juiz na condução da causa, tanto na vigilância para que seu desenvolvimento fosse procedimentalmente correto, como no comando da apuração da verdade real em torno dos fatos em relação
aos quais se estabeleceu o litígio’”7.
A respeito de tal passagem, deve-se transcrever outro precedente, por meio do qual se ratifica
a necessidade de o juiz produzir provas, não podendo se escorar na omissão das partes em fazê-lo
para decidir o processo:
“Havendo sentença condenatória à prestação de contas e não tendo sido julgadas suficientes as contas
apresentadas pelo réu, a omissão dos autores de prestar contas não implica extinção do processo sem
julgamento do mérito: ou o juiz julga com os dados existentes nos autos ou determina produção de
provas, se julgá-las imprescindíveis à formação de seu convencimento”.8
6. STJ, AgRg no REsp 738576, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 12.09.2005.
7. CREMASCO, Suzana Santi. A distribuição do ônus da prova. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2009, p. 82.
8.JTJ 207/142.
37
Poderes instrutórios na ação de prestação de contas
Destarte, consoante será exposto no próximo tópico, o ativismo probatório motivado do magistrado trará benesses ao processo em si, de forma a permitir um julgamento mais próximo da
verdade real.
3. REFLEXÕES SOBRE A ATUAÇÃO DO ESTADO-JUIZ NA INSTRUÇÃO
PROBATÓRIA DA PRESTAÇÃO DE CONTAS E COMENTÁRIOS A CASOS
PRÁTICOS
Conforme exposto no resumo, este artigo busca tratar das nuances referentes à prestação de
contas propriamente dita, o que coaduna com a instrução probatória de 2ª fase ou nas hipóteses em
que o réu, de plano, já apresenta as contas sem impugnar o dever de fazê-lo, ambas com a presença
do administrador dos bens no polo passivo (art. 914, I, do CPC).
Sob este contexto, o art. 915 do Estatuto de Rito pormenoriza de forma objetiva que, julgada
procedente a 1ª fase, reconhecendo-se o dever de prestar as contas do réu, este terá o prazo de 48
(quarenta e oito) horas para ofertá-las de maneira mercantil. Este prazo exíguo é um dos pontos
que explicam a necessidade de o Estado-Juiz atuar de maneira mais incisiva neste procedimento
especial.
Somado o prazo prescricional ao tempo de tramitação e trânsito em julgado da 1ª fase, as
instituições financeiras muitas vezes se veem obrigadas a identificar e pesquisar internamente uma
infinidade de documentos, sem prejuízo de, após assim proceder, ter que contratar um especialista contábil ou alguém que faça as vezes para apresentar planilha descritiva das movimentações
financeiras. Entender que a instituição deve providenciar o necessário antes deste prazo traduziria
condenação prévia sem decisão transitada em julgado ou passível de exequibilidade, o que não se
pode cogitar.
O reflexo deste quadro é a recorrente revelia (não prestação de contas) destas entidades, de
sorte a se aplicar a parte final do art. 915, § 2º, do CPC, ou seja, não será permitido ao réu impugnar
as contas apresentadas pelo autor.
Aqui vale um destaque a uma solução adotada pela jurisprudência a requerimento destes réus:
a dilação do prazo expressamente previsto na lei. Os Tribunais, sensibilizados com a dificuldade
de se providenciar a documentação, vêm autorizando a extensão do prazo de 48 horas quando da
formulação de pedidos fundamentados, já que assim não imputará uma obrigação praticamente
impossível ao réu, mas, ao mesmo tempo, afastará intenções procrastinatórias de alguns deles.
Veja-se precedente de lavra da Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi, in verbis:
“Processo civil. Agravo de instrumento. Julgamento por decisão unipessoal. Cabimento. Impugnação via
agravo interno. Nulidade. Suprimento. Ação de prestação de contas. Prazo para prestar as contas. Flexibilização. Possibilidade. Revisão do prazo fixado na primeira fase da ação. Possibilidade. Ato judicial.
Anulação. Prejuízo. Necessidade. (...) 2. O prazo de 48 horas disposto no art. 915, § 2º, do CPC, não é
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SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
peremptório, permitindo flexibilização pelo julgador, conforme a complexidade das contas a serem
prestadas. 3. Admite-se a revisão da carga imperativa das decisões judiciais sempre que estas ofenderem os princípios da moralidade, legalidade, razoabilidade ou proporcionalidade, ou desafiarem a
realidade dos fatos A adequação dos termos do julgado, de modo a corrigir eventuais incoerências,
conferindo-lhe efeitos que guardem maior pertinência com o sistema jurídico, não implica ofensa à
coisa julgada. Nesse contexto, constatada a complexidade dos cálculos e a impossibilidade de prestação das contas no termo fixado na primeira fase da respectiva ação, agiu com acerto o Juiz ao admitir
fosse a obrigação cumprida num prazo maior, razoável e condizente com a realidade dos fatos”.9
Pode-se dizer se tratar de uma forma indireta de exercício do poder instrutório, haja vista que
a ampliação do prazo legalmente previsto eventualmente permitirá à respectiva parte produzir
prova que se mostrará essencial ao convencimento do julgador e consequentemente ao deslinde
do feito.
Todavia, não se procedendo com a prestação de contas, os autores das ações de prestação de
contas, com má-fé ou não, muitas vezes apresentam cálculos estratosféricos, somando créditos e
débitos, além de outras operações em conta, uma vez que, como dito, não será possível à instituição
financeira impugná-los.
Nesta esteira, talvez pelo volume de processos a encargo do Poder Judiciário, as contas ofertadas são simplesmente homologadas em sentença, permitindo patente enriquecimento sem causa
por parte dos supostos credores. De se observar que a reforma desta decisão se mostra tarefa árdua,
pois o Tribunal deverá analisar cálculos minuciosos e extensos, em procedimento que não é de sua
especialidade, já existindo um parecer (decisão) contrário do julgador que acompanhou toda a
demanda.
Felizmente, privilegiando a retidão no resultado do julgamento, decisões razoáveis e coerentes
têm sido proferidas, exaltando os poderes instrutórios do juiz na prestação de contas, já consagrados no art. 915, § 3º, do CPC. Chama-se a atenção para exemplos, in verbis:
“O simples fato de ser intempestiva a impugnação às contas apresentadas não significa que o Julgador
deva acatá-las de plano. Ao Magistrado são facultados amplos poderes de investigação, podendo ele,
a despeito do desentranhamento da resposta, instaurar a fase instrutória do feito, com a realização da
perícia e colheita de prova em audiência. Inteligência do art. 915, §§ 1º e 3º, do CPC”.10
“A perícia deverá esclarecer esse ponto e, se for o caso, distinguir a respeito, isto porque a penalidade
do § 2º do art. 915 do CPC (aceitação como boas das contas do autor, quando o réu não traz as suas
aos autos) ‘não inviabiliza o exame e o julgamento das contas de acordo com o seu valor intrínseco’”11.
9. STJ, REsp 1194493, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 30/10/2012.
10. STJ, REsp 167718, 4ª Turma, rel. Min. Barros Monteiro, DJe 05/03/2001.
11. RJTJESP 114/205, precedente deste Tribunal coligido por Theotonio Negrão. Op. cit., p. 996.
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Poderes instrutórios na ação de prestação de contas
“Como doutrina Clóvis do Couto e Silva, com o § 3º do art. 915, procurou-se contrabalançar o § 2º
antecedente, antepondo à situação extremamente gravosa do réu da demanda “com o prudente arbítrio do juiz, conceito de conteúdo não inteiramente definido, mas que o submete a um ‘padrão de
conduta’ (standart), através do qual se procura evitar venha o réu, ainda que desidioso, sobre maiores
prejuízos. Dá-se-lhe, [ao juiz] inclusive, uma posição extremamente ativa no procedimento, tanto que
se lhe autoriza determinar o exame pericial contável, se não estiver apto a decidir. Ferese, no particular, o princípio de que as partes não se devem submeter a provas que não foram por elas requeridas”
(Comentários ao CPC, vol. XI, tomo I, ed. RT, 1977, p. 112)”.12
Imprescindível esclarecer que a inércia do réu em prestar as contas não o impossibilita de
participar da perícia eventualmente determinada pelo juiz. O fato de ter sido aberta instrução para
apuração do quantum debeatur evidencia a ineficiência das duas partes em convencer o julgado
acerca da retidão do valor devido. Bem por isso, ambos poderão indicar assistentes técnicos e ofertar quesitos, além de rebater o laudo pericial e solicitar esclarecimentos, ou seja, todas as prerrogativas de uma perícia regular. Neste sentido:
“Condenado a prestar contas, e permanecendo inerte, o réu não poderá impugnar as contas apresentadas pelo autor (CPC, art. 915, § 2º). Porém poderá participar da perícia, determinada pelo juiz, prevista na parte final do art. 915, § 3º, pois o órgão judiciário não se encontra constrangido a homologar
as contas do autor sem maiores exames”.13
Por fim, em que pese a prova pericial contábil ser inerente à prestação de contas (vide art. 915,
§ 3º, do CPC), de se notar que o juiz está calcado na possibilidade de produção de quaisquer provas que entenda necessárias à sua motivação e confiança na exaração do pronunciamento judicial.
Coaduna com tal assertiva novamente os ensinamentos de Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini, in verbis: “Assim ocorrendo [o réu não apresentar as
contas], o juiz julgará as contas de imediato, se não houver necessidade de provas, ou determinará
a realização de perícia contábil (art. 915, § 3º, in fine), ou, mesmo, de qualquer outra prova que
repute necessária para conhecimento dos fatos”14.
A jurisprudência corrobora tal conclusão: “Assim, cabe ao juiz avaliar a procedência do pleito.
É sabido que cabe ao julgador, de forma discricionária, analisar os autos e os atos praticados, inclusive, verificando as provas produzidas e, se for o caso, em razão de sua convicção íntima, determinar a produção de outras provas que entender necessárias para a elucidação do caso em concreto”.15
12. TJSP, Apelação 0016184-23.2003.8.26.0100, 10ª Câmara de Direito Privado, rel. Cesar Ciampolini, j. 24/09/2013.
13. RJ 233/72.
14. WAMBIER, Luiz Rodrigues; CORREIA DE ALMEIDA, Flávio Renato e TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de
processo civil. Processo cautelar e procedimentos especiais. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003. v. 3, p. 175.
15. TJSP, Agravo de Instrumento 0123266-10.2012.8.26.0000, 5ª Câmara de Direito Privado, rel. Christine Santini, j.
22/08/2012.
40
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
4.CONCLUSÃO
Diante das considerações teóricas e práticas trazidas acima, nota-se uma vez mais a importância da atuação do juiz não somente como aplicador da letra da lei a um caso concreto com base
nos atos praticados pelas partes, mas também de verdadeiro provedor de justiça, pois possui um
poder-dever igualmente previsto no ordenamento para o fim de amadurecer o processo a ponto de
prolatar decisão plenamente motivada e próxima da verdade real dos fatos.
A ação de prestação de contas possui uma gama de particularidades e necessita de razoabilidade e coerência de quem a julgar para o fim de evitar a criação de uma nova indústria financeira
que se alimenta do próprio Poder Judiciário, tal como as já institucionalizadas indústrias do dano
moral e das astreintes.
Quer-se dizer, portanto, que o Estado-Juiz deve estar atento às dificuldades encontradas, por
exemplo, pelas instituições financeiras, e não resumir o provimento jurisdicional à solução mais
breve prevista nos artigos específicos que tratam da ação de prestação de contas. Esta perspectiva
em muito tangencia os poderes instrutórios na fixação do quantum debeatur, ao passo que sobrepõe a justiça à formalidade processual, com segurança jurídica.
Em contrapartida, não se busca aqui uma conivência com a inércia, até porque o direito não
socorre aos que dormem. Cada caso deverá ser analisado com minúcia, permitindo ao julgador
identificar a verdadeira dificuldade no cumprimento da obrigação ou até mesmo a desídia de autores ao proverem cálculos absurdos tão somente pela “revelia” na prestação das contas, já que assim
o fazendo impedirá o enriquecimento sem causa e também a procrastinação dos feitos de prestação
de contas.
5.BIBLIOGRAFIA
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009.
CASTRO, Daniel Penteado de. Poderes instrutórios do juiz no processo civil: fundamentos, interpretação e dinâmica. São Paulo: Saraiva, 2013.
CREMASCO, Suzana Santi. A distribuição do ônus da prova. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2009.
MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos especiais. 11. ed. ver. ampl. e atual. de acordo com o novo Código
Civil. São Paulo: Atlas, 2005.
STJ. <www.stj.jus.br>. Acesso em 02.02.2014.
TJ/SP. <www.tj.sp.jus.br>. Acesso em 03.02.2014.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; CORREIA DE ALMEIDA, Flávio Renato e TALAMINI, Eduardo. Curso avançado
de processo civil. Processo cautelar e procedimentos especiais. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003. Vol. 3.
IV
Impactos da Lei de Entrega
na operação do e-commerce:
suas alterações e estratégias
jurídicas para questionar a
constitucionalidade da Lei
Thiago Bernardo da Silva
Pós-graduado em Processo Civil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Cursando MBA em Direito Eletrônico pela Escola Paulista de Direito. Advogado.
Lucas Fossalussa Lisse
Pós-graduando em Direito Empresarial pela Escola de Direito de São Paulo
da Fundação Getúlio Vargas-FGV-Law. Advogado.
Resumo: A Lei Estadual 13.747/09, posteriormente alterada pela Lei 14.951/13,
obriga os fornecedores de bens e serviços atuantes no Estado de São Paulo a fixar
data e turno para entrega dos produtos ou realização dos serviços aos consumidores.
Certo é que muito embora o objetivo do legislador fosse propiciar comodidade ao
consumidor e evitar arbitrariedades pelo fornecedor, a referida lei trouxe diversas
incongruências, tanto no âmbito jurídico, quanto no âmbito procedimental e de logística, como será demonstrado.
Sumário: 1. Introdução – 2. Contexto histórico – 3. As modificações trazidas pela Lei
Estadual 14.951/13 – Principais distinções e o conflito analítico com o Código de Defesa
do Consumidor – 4. Os impactos da Lei de Entrega – Problemas logísticos, ambientais e
o reflexo negativo ao consumidor – 5. A Lei de Entrega é constitucional? – 6. Conclusão
– 7. Bibliografia.
42
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1.INTRODUÇÃO
O Código de Defesa do Consumidor entrou em vigor em 1991, apresentando em seu bojo
normas de proteção ao consumidor e princípios que devem ser aplicados em qualquer relação de
consumo.
Por ser uma lei federal com característica principiológica, algumas situações específicas e conflituosas não foram regulamentadas (i) porque são supervenientes a promulgação do Código de
Defesa do Consumidor e (ii) diante da incerteza de ser um fenômeno jurídico que precisava de
regulamentação específica.
Nesse contexto foi promulgada a Lei 13.747/09, posteriormente alterada pela Lei 14.951/13,
para regulamentar a entrega dos produtos ou serviços pelos fornecedores.
O objetivo do presente artigo é apresentar os reflexos diretos e imediatos trazidos pela Lei de
Entrega, bem como a despeito do entendimento proferido pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São
Paulo em sede de Arguição de Inconstitucionalidade da referida Lei, ampliar a discussão acerca da
controversa constitucionalidade dessa Lei, abordando pontos que não foram analisados quando do
referido julgamento.
À obviedade que o tema não será esgotado nessa oportunidade, porém, visa fomentar essa
discussão que preocupa sobremaneira as empresas atuantes no comércio eletrônico no Estado de
São Paulo, quais sejam: fornecedores e seus parceiros.
2. CONTEXTO HISTÓRICO
No afã de se analisar os aspectos que permeiam a Lei 14.951/13, cumpre dar especial destaque
às peculiaridades que envolvem o comércio eletrônico.
O comércio eletrônico pelo B2C (Business to Consumer) surgiu no Brasil, em meados de 1995,
logo após a inserção da internet comercial.
O crescimento dos consumidores que passaram a optar pela aquisição de bens ou serviços por
meio dessa modalidade de comércio (i) resultado do sucesso fomentado pela comodidade e (ii)
disseminado, principalmente, pelo aumento das ofertas de velocidades de conexão oferecidas no
Brasil, além dos projetos de inclusão digital desenvolvidos pelo Governo Federal nos anos 2000,
resultaram em um faturamento de, aproximadamente, R$ 22,5 bilhões em 2012, segundo pesquisa
e-bit1.
Diante da ausência de legislação e obrigatoriedade para agendamento de data e hora para
entrega de mercadorias, as empresas do ramo varejista do e-commerce não se obrigavam e sequer
1. Disponível em: <http://www.ebitempresa.com.br/noticias-1.asp#>. Acesso em: 16/01/2013 às 11:58.
43
Impactos da Lei de Entrega na operação do e-commerce
estipulavam a data e o turno para entrega, ficando a seu bel prazer a entrega da mercadoria adquirida pelo consumidor.
Nesse contexto, a Deputada Estadual Vanessa Damo, apresentou à Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo, o projeto de Lei 298, de 2008, que posteriormente se transformou na Lei Estadual 13.747/2009, conhecida como a “Lei de Entrega”.
E para justificar a elaboração do referido Projeto de Lei, a Deputada Vanessa Damo entendeu que, à época, o consumidor estaria sendo prejudicado pela livre estipulação de data e horário
de entrega pelas empresas, uma vez que necessário seria que o consumidor ficasse à disposição
durante o horário comercial, obrigando-o a permanecer em sua residência até a efetivação da
entrega.
Como alicerce para elaboração da lei, levou em consideração a natureza principiológica do
Código de Defesa do Consumidor, o qual dispõe sobre preceitos gerais, fixando princípios que
envolvem a relação consumerista.
Buscou-se, ab initio, apresentar ao consumidor instrumentos para beneficiar sua comodidade
e conveniência, coibindo prática abusiva e unilateral de fornecedores.
Assim, em 7 de outubro de 2009, entrou em vigor a Lei Estadual 13.747/2009, tornando obrigatório que os fornecedores de produtos/serviços fixem data e turno para entrega dos produtos ou
realização dos serviços (artigo 1º).
Além disso, a Lei determinou que os fornecedores de produtos/serviços deveriam estipular,
no ato da contratação, o cumprimento das suas obrigações nos turnos da manhã (07h00 às 12h00),
tarde (12h00 às 18h00) e noite (18h00 às 23h00).
Pela análise literal da Lei, os fornecedores estavam obrigados a fornecer somente a entrega
agendada, extinguindo, deste modo, a possibilidade da oferta da entrega que não fosse agendada
(em horas, em dias corridos ou em dias úteis, por exemplo).
Todavia, visando suprir algumas lacunas existentes na Lei 13.747/2009, a Deputada Estadual
Vanessa Damo, apresentou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei 682/2012, que posteriormente
se transformou na Lei Estadual 14.951/2013, alterando alguns artigos da Lei de Entrega.
3. AS MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI ESTADUAL 14.951/13 – PRINCIPAIS
DISTINÇÕES E O CONFLITO ANALÍTICO COM O CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
Analisando as principais mudanças trazidas pela Lei Estadual 14.951/13, o que mais impactou
para a rotina dos fornecedores e prestadores de serviços foi, em suma, o rigorismo da legislação.
Houve uma expansão na área de abrangência da legislação, traduzida pela norma contida no artigo
1º, que consigna que os fornecedores, mesmo que sediados em outros Estados, mas com atuação no
44
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
âmbito do Estado de São Paulo, estarão obrigados a fixar data e turno para realização dos serviços
ou entrega de produtos.
Modificou-se, também, a necessidade de estipulação pelos fornecedores de bens e serviços,
antes da contratação e no momento da sua finalização e não mais somente no ato da contratação,
para cumprimento das suas obrigações nos turnos da manhã, tarde ou noite.
Outro ponto é que passou a ser considerado turno da manhã, o período entre 7h00 e 11h00 e
turno da noite 19h00 e 23h00. O ponto mais polêmico da referida Lei está no seu primeiro artigo.
Isto porque neste artigo é expressamente proibida a cobrança diferenciada de valor de frete
para a entrega agendada, disposição essa que, implicitamente, acaba por admitir o oferecimento de
outras possibilidades de entrega para que não seja gerado ônus adicional aos consumidores.
Afinal de contas, se os fornecedores de produtos e serviços não podem cobrar um valor adicional pela escolha da entrega agendada, subtende-se que há uma entrega além da agendada.
E essa é a interpretação dada pelas empresas para aplicação dessa Lei: oferecer obrigatoriamente a entrega agendada e, facultativamente, outros tipos de entrega.
O fato do novel legislativo não deixar claro a (im)possibilidade da oferta de entrega não agendada, acaba por admitir dupla interpretação dessa Lei o que, de per si, causa certa insegurança
jurídica aos fornecedores atuantes no comércio eletrônico.
Analisando-se a interpretação de que só se admite a entrega agendada, urge a seguinte questão: se o consumidor escolher a entrega de determinado produto em 24 horas, ou em X dias corridos (ou úteis), a empresa negará o pedido, sob a alegação de que não pode oferecer outro tipo de
entrega?
De certa forma, a obrigatoriedade de fixação de data e horário para a realização dos serviços
de entrega, infringe o artigo 6º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor, que assegura a
liberdade de escolha ao consumidor, certamente lesada no acaso de ser aplicada a lei de forma
irrestrita.
Outro ponto a ser destacado é que o artigo 39, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor
impede que os fornecedores de produtos/serviços deixem de estipular prazo para cumprimento de
sua obrigação ou deixem de fixar o seu termo inicial a seu exclusivo critério. Ou seja, isso não quer
dizer que os fornecedores de produtos ou serviços devem informar precisamente a data de entrega
do produto/serviço prestado.
Conforme entendimento do desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Rizatto Nunes2:
2. NUNES, Rizatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
45
Impactos da Lei de Entrega na operação do e-commerce
“Não há como deixar de colocar a data de entrega. Como já se viu, o princípio do dever de informar
faz com que o fornecedor tenha de dar informações cabais sobre as características de seu negócio
(prestador de serviços, produtor, construtor etc.), bem como é ele que detém o conhecimento técnico
a respeito. É desse princípio que decorre a norma ao art. 40. Cabe ao prestador do serviço, quando
não tiver certeza da data da entrega, estima-la, o que fará por sua conta e risco”.
E é nesse ponto que reside o confronto analítico entre o Código de Defesa do Consumidor
e a Lei Estadual 14.951/13 o que acaba, por si só, prejudicando os fornecedores: considerar uma
interpretação irrestrita, oferecendo um único tipo de entrega e impossibilitando ao consumidor
escolher outro tipo de entrega ou, considerar uma interpretação mais ampla e oferecendo a entrega
agenda e a não agendada?
Essa incerteza legislativa é extremamente prejudicial para os fornecedores, uma vez que a
aplicação irrestrita dessa Lei reflete diretamente na sua atividade, bem como dos seus parceiros
comerciais, fato esse que será abordado a seguir.
4. OS IMPACTOS DA LEI DE ENTREGA – PROBLEMAS LOGÍSTICOS,
AMBIENTAIS E O REFLEXO NEGATIVO AO CONSUMIDOR
Conforme exposto nos capítulos anteriores, o objetivo e os motivos que levaram à promulgação da Lei de Entrega foram minuciosamente delimitados. Não era certo fazer com que os consumidores ficassem por 1, 2 ou 3 dias inteiros à disposição das empresas responsáveis pelas entregas
dos produtos por eles adquiridos.
Esse ambiente de incerteza/indefinição prejudicava a parte mais vulnerável na relação de consumo. Por outro lado, as obrigações de fazer impostas por essa nova Lei, impactaram consideravelmente na atividade desenvolvida pelas empresas atuantes no varejo em geral e, principalmente, nas
empresas de logísticas.
Independentemente de qualquer interpretação que seja dada ao artigo 1º da Lei de Entrega uma vez que, conforme exposto, existem duas interpretações distintas: a primeira é que as
empresas somente deverão oferecer a entrega agendada e a segunda (que ficou mais forte com
o advento da Lei 14.951/2013) que entende que os fornecedores deverão oferecer a entrega
agendada (por força de lei) e, também, terão a faculdade de oferecer a entrega não agendada, o
reflexo imediato da Lei de Entrega é o aumento substancial da frota das empresas operadoras
de logística. Explica-se!
Em ambas as interpretações, as empresas de logística teriam que abrir mão da sua capacidade de otimizar os roteiros para atender uma entrega planejada, chegando-se a uma situação
um tanto quanto paradoxal, por exemplo: consumidores que moram na mesma rua e compraram produtos no mesmo dia, podem ser atendidos em horários, por pessoas e meios de
entrega, distintos.
46
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Além disso, a capacidade de entrega de um veículo está diretamente relacionada com o Raio
da Rota, tempo de deslocamento, tempos de carga e descarga, volumetria dos produtos para acomodação nos baús.
E o estudo desses fatores se tornou crucial para o desenvolvimento do e-commerce, já que a
logística do comércio eletrônico é totalmente distinta do varejo tradicional.
No varejo tradicional, a entrega dos produtos é realizada em grande parte no próprio ponto
de venda. Outro ponto de distinção das atividades é que os pontos de venda são abastecidos em
localizações conhecidas, bastando apenas que o consumidor se dirija a esses pontos para adquirir
o produto que tem interesse.
No varejo eletrônico, o ponto de venda é cada computador, smartphone ou tablet que o consumidor possui, ou seja, ele pode adquirir produtos/serviços de qualquer lugar do Brasil e a entrega
será realizada no local em que ele escolher. O consumidor poderá adquirir diferentes produtos para
serem entregues em lugares diversos.
Exemplo disso são os supermercados e as lojas de brinquedos, uma vez que é evidente que
grande parte dos produtos comercializados é entregue no momento da compra ao consumidor.
No entanto, adquirindo um produto via comércio eletrônico, eles são entregues na residência
ou no local escolhido pelos consumidores.
Logo, por isso é necessária a otimização do tempo, das rotas e veículos, estudar o tráfego local,
avaliar o horário de risco das regiões etc., para evitar que diversos veículos saiam no mesmo horário para entregar produtos em lugares próximos, evitando, deste modo, o aumento do trânsito nas
cidades paulistas.
São essas as dificuldades que as empresas de logísticas e, consequentemente, os fornecedores
de produtos/serviços enfrentam desde a promulgação da Lei de Entrega.
Um fato determinante para corroborar com essa assertiva é que, em 18/03/2011, por meio do
seu Blog Oficial, os Correios (empresa pública federal prestadora de serviço público) se manifestaram da seguinte forma:
“Lei da entrega na hora marcada
Posted on 18 de março de 2011 by Alex do Nascimento
(...)
Para atendimento da lei estadual, seria necessário repetir os trajetos diários em
cada turno ou estabelecer estrutura de tratamento e entrega especializada de encomendas para o e-commerce. Ambas as soluções demandam profundas alterações na
estrutura operacional dos Correios em São Paulo, resultando em aumento de custos,
inevitavelmente repassados ao consumidor. Além disso, a necessidade de entregar
numa data específica exigirá a guarda de encomendas nas unidades operacionais dos
Correios, o que será mais uma fonte de custos para o processo.
47
Impactos da Lei de Entrega na operação do e-commerce
(...)
O Estado de São Paulo tem uma logística complexa, com sérios gargalos de
transporte e significativa frequência de incidentes como enchentes e acidentes rodoviários. Estes são fatores complicadores para a aplicação irrestrita da lei da entrega
com hora marcada, na região com o maior volume de operações de e-commerce no
país.
As dificuldades apontadas não impedem a formatação de serviços para agendamento de encomendas por parte dos Correios. Contudo, entendemos que estes serviços
devem ser opcionais ao consumidor, pois cabe a ele decidir se deseja agendar ou não
a entrega. A decisão do comprador também deve levar em conta o pagamento deste
agendamento, pois gera custos adicionais ao processo logístico da operação de entrega.
No ambiente previsto pela lei citada, a adequação de empresas privadas, de venda ou
entrega, e da própria ECT, trará sensíveis incrementos nos custos, cujos efeitos prejudicarão exatamente o público alvo que a legislação quis beneficiar.”3 (G.N.)
Ou seja, considerando que os Correios são responsáveis por grande parte das entregas das
empresas atuantes no ramo eletrônico, as empresas que atuam no ramo de logística, deverão obrigatoriamente absorver toda a demanda que os Correios não conseguirem dar vazão.3
E para absorver toda essa demanda, é necessário investimento em aumento da frota de veículos porque será perdida parte da otimização das rotas, veículos e tempo, com a obrigatoriedade de
dar ao consumidor a opção de escolha de entrega agendada.
A propósito disso, a Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico divulgou em seu site que a
previsão é de que o comércio eletrônico cresça em 2013, 25% em relação a 20124, ou seja, se a Lei
de Entrega publicada em 2009, impactou consideravelmente na operação das empresas, conclui-se que 5 anos após, em tempos que demonstram que o e-commerce caminha a passos largos para
superar o varejo tradicional, o impacto na operação dessas empresas é maior ainda.
Qual o reflexo imediato do aumento da frota das empresas de logística? Trânsito!
Com o aumento do trânsito devido ao aumento do tráfego de veículos em um mesmo horário
e com o aumento da frota das empresas do setor de logística, a conclusão lógica é o aumento considerável de emissão de CO² no ar das cidades paulistas.
Além disso, devido à obrigatoriedade da entrega dos produtos adquiridos pelos consumidores
em determinados períodos, um veículo que poderia entregar produtos em horários e locais diferentes (otimizando o tempo e distribuindo esse custo à diferentes empresas), apenas atenderia uma
pequena parcela dos consumidores.
3. Disponível em: <http://blog.correios.com.br/comercioeletronico/?p=143>. Acesso em: 23/03/2013 às 16h31.
4. Disponível em: <http://www.camara-e.net/2013/03/21/m-commerce-tera-crescimento-significativo-em-2013/>.
Acesso em: 23/12/2013 às 15:14.
48
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Essas situações resultam em uma conclusão lógica: aumento de veículos = aumento de trânsito
= aumento da poluição.
Um contraponto que deve ser feito é que, uma entrega em que se pode conjugar o atendimento
a uma gama maior de consumidores, também se configura como uma entrega ecologicamente correta, eis que diminui a incidência de CO² na atmosfera, por aproveitar o mesmo veículo, no mesmo
lapso temporal, para centenas de entregas.
Conforme disposto no artigo 2º da Lei 14.951/2013, os turnos são divididos entre manhã (07h
às 11h), tarde (12h às 18h) e noite (19h às 23h). As áreas/horários de restrição de locomoção dos automóveis em determinadas cidades paulistas, por exemplo, acaba por desequilibrar a distribuição de
pedidos em determinados períodos. Por conta disso é necessário um aumento na frota de veículos
para atender períodos específicos que, por sua vez, nos outros períodos, ficam ociosos.
Por fim, o resultado dessa comunhão de fatores negativos, inevitavelmente atinge a parte mais
vulnerável na relação de consumo: o consumidor.
As empresas de Logística atendem diversas empresas atuantes no comércio eletrônico e cobrem determinadas regiões de cada cidade. Logo, os veículos que entregam as mercadorias, na
maioria das vezes, estão carregados com produtos de diferentes empresas, entregando produtos
para consumidores de diversas regiões da cidade.
Tudo isso é necessário para viabilizar a operação, barateando o serviço prestado com o compartilhamento de recursos entre empresas, em alguns casos, concorrentes5.
Todavia, com o advento da Lei de Entrega, considerando a possibilidade das empresas de Logística terem que disponibilizar um único veículo para entregar um produto em determinado dia/
período, obviamente que esse custo (combustível, mão de obra, manutenção etc.) que, se o veículo
estivesse cheio seria alocado em vários varejistas, será integralmente pago por um único varejista,
fazendo com que, em muitos casos, o valor pago pelo frete torne-se desproporcional ao valor do
produto comercializado.
E a conclusão é óbvia: nesse cenário, não há outra opção ao varejista a não ser (i) aumentar o
valor do produto, visando a diminuição do prejuízo suportado e (ii) aumentar o prazo de entrega
do produtos para que ele consiga “encaixar” entregas com o mesmo turno e localização.
À obviedade, o aumento do preço, do tempo para entrega dos produtos, reflete em um verdadeiro retrocesso ao e-commerce que conquistou a confiança dos consumidores ao longo dos últimos cinco anos.
E esse retrocesso impacta diretamente no bom andamento do competitivo mercado varejista,
uma vez que os principais atrativos do comércio eletrônico (comodidade e rapidez) perderiam espaço para a modalidade de comércio já enraizada em nossa sociedade: as lojas físicas.
5. Sem prejuízo de que, além dos pontos abordados no presente artigo, a operação de logística envolve também planejamento da jornada de trabalho dos funcionários, manutenção dos veículos etc.
49
Impactos da Lei de Entrega na operação do e-commerce
5. A LEI DE ENTREGA É CONSTITUCIONAL?
Percebemos que a Lei de Entrega impactou direta e imediatamente na operação de todas as
empresas atuantes no comércio eletrônico, desde os comerciantes, até as empresas de Logística.
Percebemos, também, que contemporâneo ao advento da Lei de Entrega, há (i) o aumento significativo das compras feitas pelo comércio eletrônico e (ii) o caótico e sem solução trânsito das
cidades paulistas.
No entanto, analisando pela ótica constitucional e considerando aspectos formais, é constitucional uma Lei Estadual que visa regular o comércio interestadual e sobre direito comercial? É
constitucional uma Lei Estadual que verse sobre produção e consumo?
Em contrapartida é, considerando aspectos materiais, constitucional uma Lei Estadual que
limite os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência?
Essas questões foram decididas no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade levantada pela 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo6.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente a Arguição de
Inconstitucionalidade entendendo que é competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre responsabilidade por dano ao consumidor, previsão essa, inclusive,
estabelecida pelo artigo 55 do Código de Defesa do Consumidor.
Demais disso, entendeu que “a autuação do princípio da livre concorrência está condicionada
à obediência às regras de proteção ao consumidor cujo cumprimento a Lei Estadual n. 13.747/09
pretendeu assegurar”.
Abaixo ementa da referida Arguição de Inconstitucionalidade7:
“Arguição de Inconstitucionalidade. Lei Estadual n. 13.749/09, que dispõe sobre a obrigatoriedade
dos fornecedores de bens e serviços, sediados no Estado, de fixarem data e turno para as respectivas
entrega ou realização para os consumidores – Alegada afronta ao disposto nos arts. 24, I e 170 caput
e inciso IV, ambos da CF/88 – Legislação local que não padece de quaisquer dos vícios apontados –
Arguição de inconstitucionalidade improcedente”.
No entanto, cabe fazer um breve contraponto a essa polêmica decisão.
Estamos diante de um controle difuso de constitucionalidade pelo incidente de Arguição de
Constitucionalidade, tendo como principal objetivo, diante da existência de dúvida sobre a constitucionalidade ou não de determinada lei, uniformizar entendimento dos órgãos fracionários da
6. Arguição de Inconstitucionalidade n. 0227995-87.2012.8.26.0000, j. 08/05/2013, rel. Alves Bevilacqua, arguida nos
autos da Apelação n. 0048313-81.2010.8.26.0053, 13ª Câmara de Direito Público, rel. Desembargador Borelli Thomaz.
7. Essa decisão já transitou em julgado.
50
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
corte, por meio do pronunciamento do pleno ou do órgão especial do tribunal, devido à “cláusula
de reserva de plenário”, estabelecida pelo artigo 97 da Constituição Federal de 1988.
A decisão do pleno ou do órgão especial no incidente de arguição de inconstitucionalidade
é irrecorrível, sendo que para que o Supremo Tribunal Federal analise a constitucionalidade ou
não da Lei de Entrega, a parte interessada deverá interpor Recurso Extraordinário contra o acórdão – que apenas ratifica a decisão do pleno ou órgão especial – da câmara que suscitou o referido
incidente.
Para rever essa decisão (i) o órgão fracionário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
deverá retomar essa discussão requerendo a revisão dessa decisão de forma fundamentada e levá-la
novamente ao Pleno/órgão especial ou (ii) por meio do ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade a ser ajuizada por entidade representativa de classe.
Embora o acórdão proferido em sede de Arguição de Inconstitucionalidade defenda que não
há inconstitucionalidade material e formal, uma vez que, em linhas gerais, o artigo 39, inciso XII,
do Código de Defesa do Consumidor prevê que “é vedado ao fornecedor de produtos e serviços
deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo
inicial a seu exclusivo critério”, o artigo 39, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor não
dispõe a respeito da obrigatoriedade de fixar precisamente as datas para o início e cumprimento de
determinado serviço.
Conforme apresentado no tópico 3 desse artigo, o Desembargador Rizzato Nunes entende que
basta ao fornecedor estimar a data da entrega, assumindo o risco pelo não cumprimento do prazo
previamente estipulado.
Ou seja, interpretando-se de forma ampla os artigos 39, inciso XII e 40, do Código de Defesa do Consumidor, é nítido o dever do fornecedor informar a data da entrega do produto ou
do serviço ao consumidor. Todavia, se, por diversas variáveis – algumas, inclusive, mencionadas nos capítulos anteriores – que possam ocorrer no processo de fabricação de determinado
produto, o fornecedor não conseguir “precisar” a data exata da entrega, mas estimá-la (5 dias
úteis, em até 8 meses etc.), o fornecedor de produtos estaria infringindo aos artigos acima
citados?
O Código de Defesa do Consumidor é silente quanto a essa indagação. Então, por qual motivo
obrigar os fornecedores a fixar data e turno para realização dos serviços de entrega dos produtos se
o próprio Código de Defesa do Consumidor não apresenta essa obrigatoriedade?
Se os fornecedores cumprem integralmente com o dever de informação e “estimam” a data de
entrega de determinado produto ou serviço, as obrigações nascidas com a famigerada Lei de Entrega tornam-se inócuas e, quiçá, inconstitucionais.
Outro aspecto é que não há como se negar que a Lei de Entrega ofende ao princípio da Livre
Iniciativa e da Livre Concorrência.
Conforme disposto no artigo 170 da Constituição Federal, in verbis:
51
Impactos da Lei de Entrega na operação do e-commerce
“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos a existêncai digna, conforme os ditames da justiça social, observandos os seguintes
principios: I – soberania social; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre
concorrência; (...)”.
O legislador constituinte determinou diretrizes basilares para a manutenção da ordem econômica, os conhecidos princípios gerais da atividade econômica. Ademais, no Título VII que dispõe
sobre a “Ordem Econômica e Financeira”, o legislador determinou a atuação do binômio intervenção/liberalismo nas relações financeiras e econômicas existentes.
O referido permissivo legal ao mesmo tempo em que dispõe sobre a intervenção estatal na
ordem econômica, reza sobre o liberalismo na existência de suas relações, uma vez que a livre
concorrência e iniciativa são fundamentais para o desenvolvimento econômico de um Estado Democrático de Direito.
A garantia constitucional da livre iniciativa e livre concorrência tem o condão de conferir ao
empresário ou a qualquer outra pessoa que deseje exercer atividade econômica a autodeterminação
em relação às suas atividades e somente pode ser tolhida por norma igualmente constitucional,
porquanto fundamento da ordem econômica. Qualquer lei editada no sentido de restringir essa
liberdade (fora dos ditames traçados pela própria Constituição) é materialmente inconstitucional.
A preservação da liberdade contratual se insere nesse contexto de não intervenção do Estado
na liberdade econômica e contratual entre as partes, a não ser nos casos em que isso se faça absolutamente necessário.
Como se vê, a intervenção se faz, tão somente, por lei, sendo o planejamento apenas indicativo
para o setor privado. Esta atuação do Estado como agente normativo ou regulador é de ser concretizada com respeito aos princípios que regem a ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, visando assegurar a todos uma existência digna, conforme os
ditames da justiça social (art. 170 da CF).
E o Supremo Tribunal Federal assim entendeu quanto à restrição a livre iniciativa e concorrência:
“Recurso extraordinário. Constitucional. Lei 10.991/91, do Município de São Paulo. Fixação de distância para a instalação de novas farmácias ou drogarias. Inconstitucionalidade. 1. A Constituição Federal
assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização do
Poder Público, salvo nos casos previstos em lei. 2. Observância de distância mínima da farmácia ou
drogaria existente para a instalação de novo estabelecimento no perímetro. Lei Municipal 10.991/91.
Limitação geográfica que induz à concentração capitalista, em detrimento do consumidor, e implica
cerceamento do exercício do princípio constitucional da livre concorrência, que é uma manifestação da liberdade de iniciativa econômica privada. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE
193749, rel. Min. Carlos Velloso, rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em
04/06/1998, DJ 04-05-2001).
52
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Ao obrigar que os fornecedores de produtos/serviços ofereçam somente a entrega agendada
ao arrepio da própria Lei que dispõe sobre o assunto, o legislador estadual “igualou” os varejistas
eletrônicos por meio de uma padronização da prestação de serviços, afrontando, assim, o princípio
da livre iniciativa.
Outro ponto a ser discutido é que o Estado tem competência concorrente para legislar dentro
de algumas matérias (aquelas enumeradas taxativamente nos incisos do artigo 24 da Constituição
Federal), porém, o exercício dessa competência deve se restringir aos limites e interesses locais do
Estado.
O artigo 2º da Lei 14.951/13 dispõe que “Ficam os fornecedores de bens e serviços que atuam
no mercado de consumo, no âmbito do Estado, obrigados a fixar data e turno para a realização dos
serviços ou entrega dos produtos, sem qualquer ônus adicional aos consumidores”. Ou seja, a Lei
de Entrega gera consequências fora do âmbito local e não trata apenas de interesse dos consumidores residentes no Estado de São Paulo, bem como atinge empresas sediadas em outros Estados
e, inclusive, países.
Por fim, é notória a intenção da Deputada Vanessa Damo em beneficiar o consumidor com
a elaboração do Projeto da Lei de Entrega, no entanto, fato que talvez não tenha sido observado é
que o Estado está regulando a atividade dos fornecedores de produtos via e-commerce, a usurpar a
competência exclusiva da União para legislar acerca de direito comercial.
Nos limites de sua competência concorrente prevista no artigo 24 da Constituição Federal, e
nas hipóteses em que autorizado pela Carta Magna, o Estado de São Paulo não poderia estender os
efeitos de uma Lei paulista para além do seu território, fosse para atingir fornecedores estabelecidos
fora de seus limites territoriais, fosse para interferir, como de fato o fez, no comércio interestadual.
E esses são alguns exemplos de formas de abordar e discutir novamente a constitucionalidade
da Lei de Entrega, pontos esses que não foram apreciados quando do julgamento da Arguição de
Inconstitucionalidade levantada pela 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
6.CONCLUSÃO
A defesa dos direitos do consumidor representa um avanço social que encontra seu nascedouro na Constituição Federal de 1988. Nota-se o aumento considerável de Projetos de Lei tramitando
em todas as Casas Legislativas brasileiras visando tutelar o direito dos consumidores e, consequentemente, impondo diversas obrigações aos fornecedores de produtos/serviços.
Todavia, por vezes, certa Lei não necessariamente atinge o fim a que se destina. Ou melhor,
atinge, porém os meios aplicados e sua efetividade não justificam o fim alcançado.
E é nesse tipo de Lei que incluímos a Lei Estadual 13.747/2009 (com a redação alterada pela
Lei 14.951/2013). Uma Lei cujas intenções e objetivos são nobres, porém não foi elaborada com a
53
Impactos da Lei de Entrega na operação do e-commerce
devida cautela, uma vez que impôs ônus desproporcional aos fornecedores, bem como fomentou
diversos problemas sociais existentes nas cidades paulistas.
Considerando a atual malha rodoviária brasileira, o trânsito caótico habitual, a logística extremamente complexa do varejo eletrônico, a Lei de Entrega tal qual como posta, não poderia impor
uma série de obrigações aos fornecedores fora do contexto abordado nesse artigo.
Em tempos em que o atual prefeito da cidade de São Paulo8, implantou faixas exclusivas de
corredores de ônibus nas principais ruas e avenidas na Capital do Estado de São Paulo para desmistificar e incentivar o uso do transporte público em detrimento do transporte particular, a Lei de
Entrega caminha na contramão de tudo isso ao “obrigar” que as empresas de logística aumentem a
sua frota para atender a crescente demanda do comércio eletrônico.
Ademais, desrespeitou a repartição constitucional de competência legislativa entre os entes da
Federação ao dispor sobre matéria de competência da União.
E esses são alguns pontos sensíveis que precisam ser repensados pelos Poderes Legislativo e
Judiciário paulistas.
Não se quer no presente artigo, defender os fornecedores como se a atividade deles fosse pautada na excelência e no cumprimento integral das Leis, mas que o equilíbrio da Lei deverá imperar
na elaboração de uma norma, para que no afã pela busca do equilíbrio nas relações de consumo,
não acabe por prejudicar diametralmente aquela que sempre deverá ser protegida: a sociedade.
7.BIBLIOGRAFIA
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Senado, 1988.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor. São Paulo. Atlas, 2008.
GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; NERY JÚNIOR, Nelson e DENARI, Zelmo. Código de Defesa
do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
NUNES, Rizatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
RAGAZZI, José Luiz; HONESKO, Raquel Schlommer e HONESKO, Vitor Hugo Nicastro. Código de Defesa do
Consumidor comentado. 2. ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2010.
8. Gestão 2012/2016, prefeito Fernando Haddad.
54
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Outras fontes:
http://www.ebitempresa.com.br/noticias-1.asp#, acessado em 16/01/2013 às 11:58.
http://blog.correios.com.br/comercioeletronico/?p=143 acessado em 23/03/2013 às 16h31.
http://www.camara-e.net/2013/03/21/m-commerce-tera-crescimento-significativo-em-2013/, acesso em 23/12/2013
às 15:14.
V
Desconsideração tradicional
e desconsideração inversa da
personalidade jurídica nas
sociedades empresárias de
responsabilidade limitada
João Biazzo
Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Advogado.
Anna Paola de Souza Bonagura
Mestranda em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Advogada.
Resumo: A questão do desenvolvimento histórico do instituto da desconsideração
da personalidade da pessoa jurídica, desde sua concepção tradicional até o surgimento da tese da desconsideração inversa da personalidade jurídica. Debate-se o
uso abusivo do instituto na práxis jurídica brasileira, especialmente no que tange às
sociedades limitadas e as implicações decorrentes dessa utilização equivocada.
Sumário: 1. Introdução – 2. Breve histórico da teoria da desconsideração da per-
sonalidade jurídica – 3. Distorções na aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica – 4. Desconsideração inversa da personalidade jurídica – 5. Conclusão – 6. Bibliografia.
56
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1.INTRODUÇÃO
O Código Civil vigente não cuidou de definir o conceito de pessoa jurídica. Na falta de um
conceito legal surgiram os conceitos doutrinários, dentre os quais podemos destacar o de Carlos
Roberto Gonçalves1, que define pessoa jurídica como o “conjunto de pessoas ou de bens, dotado
de personalidade jurídica própria e constituída na forma da lei, para a consecução de fins comuns”
e o de Fábio Comparato2, que define a pessoa jurídica como “a unidade de pessoas naturais ou de
patrimônios que visa a consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de
direitos e obrigações”.
Extrai-se daí que, como todo ser dotado de personalidade jurídica, as sociedades empresárias
possuem capacidade para serem sujeitos de direitos e obrigações3.
Dentre todas as espécies de pessoas jurídicas existentes, são as sociedades empresárias de responsabilidade limitada (Limitadas e Sociedades Anônimas) que efetivamente nos interessam neste trabalho.
A característica principal destas pessoas jurídicas e que merece especial destaque na análise
do presente tema é a da autonomia patrimonial4. Segundo ensina Clóvis Beviláqua “a consequência
imediata da personificação da sociedade é distingui-la, para efeitos jurídicos, dos membros que a
compõem, pois cada um dos sócios é uma individualidade e a sociedade uma outra, não há como
lhes confundir a existência 5”.
Rubens Requião complementa o ensinamento lecionando que “uma das mais decisivas consequências da personalidade jurídica, outorgada pela lei, todos o sabemos, é a sua autonomia patrimonial, tornando a responsabilidade dos sócios estranha à responsabilidade social e mesmo quando
se trate de sócio com responsabilidade ilimitada e solidária é sempre ela subsidiária6”.
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica como se verá corresponde à relativização da autonomia patrimonial das sociedades empresárias de responsabilidade limitada e como
toda relativização há de ser aplicado com parcimônia. É o que defenderemos neste trabalho.
1. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 2. ed. v. I, p. 182.
2. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 1983 apud PEREIRA, Valter Gondim. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, Fortaleza, v. 13, p. 11-38, 2004.
3. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, p. 287.
4. Marcella Blok publicou interessante estudo sobre o princípio da autonomia patrimonial em que concluiu “ser de fundamental importância esclarecer que a teoria da desconsideração da pessoa jurídica não é uma teoria contra a separação
subjetiva entre a sociedade empresária e seus sócios. Muito ao contrário, ela visa preservar o instituto, em seus contornos fundamentais, diante da possibilidade do desvirtuamento vir a comprometê-lo. Surgiu da inexistência de um critério de orientação a partir do qual os julgadores pudessem reprimir fraudes e abusos perpetrados através da autonomia
patrimonial, podendo eventualmente redundar no questionamento do próprio instituto, e não do seu uso indevido”
(Desconsideração da personalidade jurídica: uma visão contemporânea. Revista de Direito Bancário e do Mercado de
Capitais. v. 59, p. 91. São Paulo: RT, 2013).
5. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, Apud PEREIRA, Valter Gondim.
Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, v. 13, Fortaleza, p. 11-38, 2004.
6. REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). RT, v. 410.
57
Desconsideração da personalidade jurídica nas Sociedades Limitadas
2. BREVE HISTÓRICO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA
A desconsideração da pessoa jurídica é instituto que encontra raízes do common law (disregard of legal entity) e surge a partir da necessidade de reação aos abusos praticados pelos empresários sob o véu da autonomia patrimonial das sociedades.
O leading case ocorreu na Inglaterra em 1897 e é conhecido como Salomon vs. Salomon e Co7.
Diz-se que Aaron Salomon constituiu sociedade juntamente com seis familiares atribuindo a cada
um deles uma ação da sociedade, ao passo que ele próprio ficou como controlador das vinte mil
ações restantes. O juiz de primeira instância ao observar que a empresa havia sido criada para que
Aaron Salomon usufruísse da limitação da responsabilidade da sociedade em benefício próprio,
condenou-o a pagar as dívidas da empresa com seus bens pessoais.
A decisão foi reformada pela House of Lords que reconheceu a personalidade jurídica da sociedade empresária. Mas, ainda que a sentença tenha sido reformada o case foi responsável pela
difusão da teoria da desconsideração.
No Brasil a teoria foi acolhida pela primeira vez nos anos 60 por Rubens Requião8 que reconheceu o instituto como mecanismo hábil a impedir a utilização da autonomia patrimonial como
prerrogativa para prática de ilícitos ou de condutas abusivas.
Segundo Rui Stoco9 a teoria entrou na legislação brasileira por meio do art. 135 do Código
Tributário Nacional10. Há quem afirme, entretanto, que o instituto foi inserido no ordenamento
jurídico pelo Código de Defesa do Consumidor, pois foi a primeira vez que se viu a expressão “desconsideração da personalidade jurídica” constar de um dispositivo de Lei11.
7. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2004, v. II.
8. “E assim, tanto nos Estados Unidos, na Alemanha ou no Brasil, é justo perguntar se o juiz, deparando-se com tais
problemas, deve fechar os olhos ante o fato de que a pessoa jurídica é utilizada para fins contrários ao direito, ou se
em semelhante hipótese deve prescindir da posição formal da personalidade jurídica e equiparar o sócio e a sociedade
para evitar manobras fraudulentas. São tais indagações que levam os tribunais norte-americanos a consagrar e aplicar
a doutrina, tal como ocorreu no julgamento do caso ‘Montgomery Web Company vs. Dieniel’, na qual o tribunal indagou de si próprio ‘se o direito há de fechar seus olhos diante da realidade de que a diferença (entre a pessoa jurídica e
o sócio) é um mero jogo de palavras’. Respondeu, sem vacilações, que a solução há de ser sempre a de que ‘nada existe
que nos obrigue a semelhante cegueira jurídica’. ‘Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade
jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de
direito, ou se deva desprezar a personalidade, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro
dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos’”. REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade
jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, v. 410.
9. STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: RT, 2013. Tomo I, p. 225.
10. “São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados
com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I – as pessoas referidas no artigo anterior; II –
os mandatários, prepostos e empregados; III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito
privado”.
11. Art. 28 CDC: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica, quando, em detrimento do consumidor, houver
abuso de direito, excesso de poder, infração a lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A des-
58
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
A regra geral está prevista no art. 50 do Código Civil12. Encontramos ainda previsão do instituto na Lei 8.884/1994 (posteriormente substituída pela Lei 12.529/2011) que dispõem sobre a
repressão às infrações contra a ordem econômica13, na Lei 9.605/98 que trata da tutela do meio
ambiente14 e, indiretamente, na Consolidação das Leis Trabalhistas15, que prevê a responsabilidade solidária entre empresas integrantes do mesmo grupo econômico para efeitos de relação de
emprego.
Da leitura dos referidos dispositivos legais extraem-se duas concepções acerca da desconsideração da personalidade jurídica: a concepção subjetiva e a concepção objetiva.
De acordo com a concepção subjetiva16 para que se desconsidere a personalidade jurídica há a
necessidade de ocorrência de fraude17, sendo imprescindível, para tanto, o animus fraudandi, assim
entendido o intuito de fraudar, de abusar, de desviar a finalidade da pessoa jurídica.
De acordo com a concepção objetiva18 a simples ocorrência das hipóteses de abuso da
personalidade (confusão patrimonial ou desaparecimento do objeto social ou obstáculo ao
consideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da
pessoa jurídica provocados por má administração. § 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre
que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo de ressarcimento de prejuízos”.
12. “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode
o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos
de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios
da pessoa jurídica”.
13. Art. 18, Lei 8.884/94 (revogado): “A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou
ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver
falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
Atual Art. 34 da Lei 12.529/2011: “A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou
ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada
quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má
administração”.
14. Art. 4º da Lei 9.605/98: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.
15. Art. 2º, § 2º, da CLT: “Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica
própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de
qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas”.
16. Encontra previsão no art. 50 do Código Civil, no art. 135 do Código Tributário Nacional, no art. 28, primeira parte, do
Código de Defesa do Consumidor, art. 4º da Lei 9.605/98, e art. 2º, § 2º, da Consolidação das Leis Trabalhistas.
17. COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. “Pressuposto inafastável da despersonalização episódica da pessoa jurídica, no entanto
é a ocorrência da fraude por meio da separação patrimonial. Não é suficiente a simples insolvência do ente coletivo,
hipótese em que não tendo havido fraude na utilização da separação patrimonial, as regras de limitação da responsabilidade dos sócios terão ampla vigência”.
18. Prevista no Código de Defesa do Consumidor, artigo 28, parte final.
59
Desconsideração da personalidade jurídica nas Sociedades Limitadas
ressarcimento de prejuízos) basta para que a personalidade jurídica da sociedade seja desconsiderada19.
A partir daí Fábio Ulhoa Coelho, cuja teoria é amplamente seguida pela jurisprudência, desenvolveu as denominadas Teoria Maior e Teoria Menor.
Para o autor a Teoria Menor define que “está configurada hipótese de desconsideração da personalidade jurídica pelo simples inadimplemento de obrigações por parte da sociedade”, pois, neste
caso, “o simples prejuízo do credor já possibilita afastar a autonomia patrimonial”.
Esclarece ainda que “nos demais ramos do direito, especialmente no direito societário e no direito civil, utiliza-se a teoria maior que significa que o reconhecimento de uma situação que enseje
desconsideração deve conter, também, a comprovação da ocorrência de abuso do direito, confusão
patrimonial etc.”.20
Daí pode-se concluir que a desconsideração da personalidade jurídica somente encontra espaço em situações excepcionais e deve ser aplicada, em regra, sob a égide da Teoria Maior21. Já nos
campos do Direito do Consumidor e do Direito Ambiental, incide a Teoria Menor da Desconsideração22. Esta diferenciação se justifica porque estes ramos do direito difuso surgiram apenas muito
recentemente e foram criados pela lei como forma de combater em caráter de urgência os abusos
perpetrados ao consumo e ao meio ambiente. As regras a eles aplicáveis, portanto, são muito mais
rígidas do que as aplicadas às relações de direito civil.
19. “O elemento intencional, de ordem subjetiva, já não tem a mesma importância. Com efeito, a experiência tem demonstrado que a prova de um elemento subjetivo é ônus exagerado que se impõe, às vezes desnecessariamente, a quem o
direito afirma querer tutelar” (REQUIÃO, Rubens. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: RT, 1989, p.
61-62).
20. Sobre o tema interessante a leitura do acórdão da Min. Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça, que como
estudiosa do tema apreciou bem a questão no julgamento do REsp 970.635/SP. “Processual civil e civil. Recurso especial. Ação de execução de título judicial. Inexistência de bens de propriedade da empresa executada. Desconsideração
da personalidade jurídica. Inviabilidade. Incidência do art. 50 do cc/02. Aplicação da teoria maior da desconsideração
da personalidade jurídica. – A mudança de endereço da empresa executada associada à inexistência de bens capazes
de satisfazer o crédito pleiteado pelo exequente não constituem motivos suficientes para a desconsideração da sua
personalidade jurídica. – A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro é aquela prevista no art. 50 do
CC/02, que consagra a Teoria Maior da Desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na objetiva. – Salvo
em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato
intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a
confusão patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração), demonstrada pela inexistência, no campo dos
fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. Recurso especial provido para afastar a
desconsideração da personalidade jurídica da recorrente (...) (REsp 970635/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma,
j. 10/11/2009, DJe 01/12/2009).
21. REsp 1325663/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 11/06/2013, DJe 24/06/2013), REsp 1233379/SP, rel. Min.
Sidnei Beneti, 3ª Turma, j. 02/10/2012, DJe 11/10/2012).
22. REsp 737.000/MG, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 01/09/2011, DJe 12/09/2011; REsp
279273/SP, rel. Min. Ari Pargendler, rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 04/12/2003, DJ 29/03/2004,
p. 230.
60
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Embora a doutrina seja firme no sentido da excepcionalidade da medida ora tratada, encontramos na prática forense a sua aplicação desmedida e desarrazoada, o que traz reflexos importantes às relações jurídico-negociais.
3. DISTORÇÕES NA APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Não há dúvidas de que as sociedades empresárias representam elementos essenciais à consecução do desenvolvimento econômico e social e que concorrem para o crescimento da economia
global, afinal, é justamente por meio delas que se realizam as atividades que dificilmente seriam
atingíveis individualmente.
Dentro desta perspectiva, a sociedade exige progressivamente posturas mais éticas na realização das atividades societárias. Por isso mesmo é que se entende que as sociedades empresárias
devem atender ao princípio da função social23.
Contudo, encontramos hipóteses de atingimento dos bens dos sócios por dívidas da sociedade em situações além daquelas em que seria razoável, de modo a desnaturalizar24 as sociedades de
responsabilidade limitada.
23. PEGUINI, César Calo. A função social da empresa: análise de sua extensão aplicada à desconsideração da personalidade jurídica. Direito processual empresarial, p. 129.
24.“Tributário e processual civil. Execução fiscal. Débitos para com a seguridade social. Sociedade anônima. Redirecionamento. Responsabilidade dos administradores. Solidariedade. Previsão pela lei 8.620/93, art. 13. Necessidade de
lei complementar (CF, art. 146, III, b). Interpretações sistemática e teleológica. CTN, arts. 124, II, e 135, III. Código
Civil, arts. 1.016 e 1.052. (...) 7. Não há como se aplicar à questão de tamanha complexidade e repercussão patrimonial, empresarial, fiscal e econômica, interpretação literal e dissociada do contexto legal no qual se insere o
direito em debate. Deve-se, ao revés, buscar amparo em interpretações sistemática e teleológica, adicionando-se
os comandos da Constituição Federal, do Código Tributário Nacional e do Código Civil para, por fim, alcançar-se
uma resultante legal que, de forma coerente e juridicamente adequada, não desnature as Sociedades Limitadas e,
mais ainda, que a bem do consumidor e da própria livre iniciativa privada (princípio constitucional) preserve os fundamentos e a natureza desse tipo societário. 8. O princípio normativo e geral é de que a responsabilidade dos sócios
de sociedade limitada ou dos acionistas de sociedade anônima é restrita à participação que possuam na empresa.
No primeiro caso, pelo montante representado pelas quotas, no segundo, pela expressão financeira do valor acionário no capital social, exceção que se faz, tão-somente, a casos de constatada ocorrência de culpa ou dolo. 9. Na
espécie, a execução fiscal foi ajuizada em face de uma sociedade anônima, e não contra uma sociedade limitada.
Todavia, essa particularidade da controvérsia em nada altera os fundamentos de direito expendidos. Cabe assinalar que o parágrafo único do art. 13 da Lei 8.620/93 é expresso ao consignar que os acionistas controladores,
os administradores, os gerentes e os diretores respondem solidaria e subsidiariamente, com seus bens pessoais,
quanto ao inadimplemento das obrigações para com a Seguridade Social, por dolo ou culpa. Observando-se que o
caput desse dispositivo (art. 13) já faz referência, especificamente, às sociedades limitadas, é legítima a exegese de
que a regra acessória do parágrafo único somente autorize o redirecionamento à integrante de sociedade anônima
quando patente a existência de culpa ou dolo. 10. Recurso especial improvido” (REsp 701680/RS, rel. Min. José
Delgado, 1ª Turma, j. 07/04/2005, DJ 19/12/2005, p. 239).
61
Desconsideração da personalidade jurídica nas Sociedades Limitadas
Percebemos estas distorções especialmente nos casos de encerramento irregular da sociedade
e de responsabilização de empresas integrantes de grupos econômicos.
25-26
Quando o Superior Tribunal de Justiça, ao editar a Súmula 435, menciona que “presume-se
dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente” está em verdade a aplicar às relações de direito civil a teoria menor da desconsideração da
personalidade jurídica, por meio da qual, como já se viu, “o simples prejuízo do credor já possibilita
afastar a autonomia patrimonial” mesmo sem que haja o animus fraudandi.
Como já defendemos neste trabalho, a interpretação sistemática dos dispositivos de lei que
tratam do tema, leva à conclusão de que a teoria menor apenas incide em matéria de direito do
consumidor e direito ambiental.
Entendemos que “não basta, contudo, apenas a ocorrência de confusão patrimonial ensejada
pelos sócios (ou sócio único) para se desconsiderar a pessoa jurídica27”. Isto porque “é preciso, pois,
verificar se a personalidade do ente abstrato foi usada de sorte a encobrir atos praticados pelos seus
sócios (ou sócio único) ao arrepio da lei, desviando-a da finalidade atribuída ao fenômeno da personificação dos entes abstratos28”.
Por outro lado, embora o Enunciado nº 406 do Conselho da Justiça Federal defina que “A
desconsideração da personalidade jurídica alcança os grupos de sociedade quando estiverem presentes os pressupostos do art. 50” encontramos na jurisprudência diversas hipóteses em que foram
atingidos os bens de uma empresa por dívidas de outra sob o fundamento da teoria menor e dispensando por consequência a existência do ânimo de fraude.
Para que se possa analisar o referido enunciado, fulcral a compreensão do conceito de grupo
de sociedades que se encontra disposto no art. 265 da Lei das S/A (Lei 6.404/1976)29. Interpretando
aquele diploma legal Gustavo Tepedino afirma que:
25. Súmula 435 do STJ “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal,
sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.
26.“Processual civil e civil. Recurso especial. Ação de execução de título executivo judicial. Desconsideração da personalidade
jurídica. Viabilidade. Art. 50 do CC/02. 1. A desconsideração da personalidade jurídica é admitida em situações excepcionais, devendo as instâncias ordinárias, fundamentadamente, concluir pela ocorrência do desvio de sua finalidade ou
confusão patrimonial desta com a de seus sócios, requisitos objetivos sem os quais a medida torna-se incabível. 2. Do
encerramento irregular da empresa presume-se o abuso da personalidade jurídica, seja pelo desvio de finalidade, seja
pela confusão patrimonial, apto a embasar o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica da empresa,
para se buscar o patrimônio individual de seu sócio. 3. Recurso especial não provido” (REsp 1259066/SP, rel. Min.
Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 19/06/2012, DJe 28/06/2012).
27. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, p. 53.
28. Idem, p. 54.
29. “A sociedade controladora e suas controladas podem constituir, nos termos deste Capítulo, grupo de sociedades, mediante convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a
participar de atividades ou empreendimentos comuns”.
62
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
“configura-se o grupo de sociedades a partir da subordinação de determinadas sociedades à sociedade comum que, na qualidade de controladora, é titular, direta ou indiretamente, dos direitos
de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e
do poder de eleger a maioria dos administradores das controladas. Sujeita-se, pois, o grupo de
companhias a controle comum, tendo por fonte de legitimidade a convenção, com vistas a concentrar na sociedade controladora a política de administração, os fatores de produção, o patrimônio
e os resultados, embora cada sociedade mantenha sua personalidade jurídica. Há que se verificar,
desse modo, a participação de uma sociedade em outra ou outras, de tal maneira que essas sociedades, preservando sua personalidade jurídica própria, celebrem negócio pelo qual se obriguem
a conjugar esforços ou recursos para a realização de seus objetos ou execução de empreendimentos
comuns”30.
Vê-se, pois que segundo definido pela lei específica é grupo econômico o agrupamento de
empresas que por convenção estejam submetidas a controle comum. Tal delimitação, contudo nem
sempre é observada pela jurisprudência, que rotineiramente desconsidera a personalidade jurídica de uma empresa para atingir os bens de outra simplesmente porque ambas integram o mesmo
conglomerado econômico – assim entendidas as empresas em que há coincidência de sócios ou
administradores31-32.
30. TEPEDINO, Gustavo. Grupo econômico e desconsideração da personalidade jurídica. Soluções Práticas, v. 3, São Paulo: RT, 2012, p. 151.
31.“Desconsideração da personalidade jurídica. Requisitos. Grupo econômico. Empresa agravante com atividade relacionada
a grupo de consórcio. Quadro societário, formado por integrantes da família, semelhante à da administradora de consórcio
contratada pela agravada. Transferência à empresa suplicante do veículo da administradora contratada-executada. Confusão administrativa e patrimonial das empresas caracterizada. Desconsideração da personalidade jurídica mantida.
Agravo de instrumento improvido. Penhora – Ativos financeiros – Desconsideração da personalidade jurídica Inclusão
de empresa integrante de grupo econômico – Citação inocorrente – Bloqueio de bens – Possibilidade – Intimação ou
citação do executado ou sócio representa risco para a eficácia da medida, uma vez que poderia ensejar a dilapidação do
patrimônio do sócio – Contraditório e ampla defesa garantidos após a realização da penhora (art. 668 do CPC). Agravo
de instrumento improvido” (TJ/SP, AI 991090472919-SP, rel. Ricardo Negrão, j. 26/01/2010, 19ª Câmara de Direito
Privado, DJ 12/02/2010).
32.“Agravo de instrumento. Ação de cumprimento de sentença arbitral. Desconsideração da personalidade jurídica da
executada – Inclusão dos sócios e de outra pessoa jurídica ante o reconhecimento de grupo econômico – Insurgência.
Ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa – Alegada nulidade da sentença arbitral – Não acolhimento. art. 50, CC – Hipóteses de desconsideração – Análise da prova documental – Abuso de direito – Desvio de
finalidade – Locação de bem imóvel em nome da executada, mas em benefício de outra empresa – Inadimplemento
total dos encargos locatícios – Grupo econômico – Identidade de sócios, sede e objeto social – Inclusão no polo
passivo – Possibilidade. sócia que deixou o quadro societário – Responsabilização – Art. 1.032, CC. 1. ‘Evidenciado
que as empresas pertencem ao mesmo conglomerado econômico, estando localizadas em endereço idêntico, exercendo o mesmo segmento de atividade, com razões sociais idênticas e quadro societário composto pelos mesmos
sócios, correto o reconhecimento do grupo econômico e a consequente desconsideração da personalidade jurídica,
para que a execução alcance os bens das demais empresas pertencentes ao conglomerado econômico’ (TJ/PR, 10ª
C.Cível, AI 891358-8, rel. Luiz Lopes, v.u., DJ 12.07.2012). 2. Recurso conhecido e desprovido” (TJ/PR, Ação Civil
de Improbidade Administrativa 10088692-PR (1008869-2 – Acórdão), rel. Ruy Muggiati, j. 05/06/2013, 11ª Câmara
Cível, DJ 16/06/2013).
63
Desconsideração da personalidade jurídica nas Sociedades Limitadas
Segundo entendemos a hipótese deve ser aplicada com parcimônia e apenas e tão somente
quando preenchidos os requisitos legais, isto é, quando se trata de grupo econômico conforme
conceito da Lei 6.404/1976 e quando se observar a ocorrência de fraude e abuso de direito.
Para Fábio Ulhoa Coelho, posicionamento com o qual concordamos, “a melhor interpretação
judicial dos artigos sobre a desconsideração é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita
o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades
econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessária
à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica”.33
Defendemos, pois que em qualquer hipótese, quando se esteja diante de relações de direto
civil , apenas há que se cogitar a desconsideração da personalidade jurídica quando presente o
animus de fraude35-36, sob pena de se descaracterizar o instituto e esvaziar a essência das empresas
de responsabilidade limitada.
34
4. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Encontramos ainda na jurisprudência situações em que, reconhecendo-se o animus fraudandi, decide-se pela possibilidade de atingirem-se os bens da empresa por dívidas do sócio37. É a chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica definida por Fábio Ulhoa Coelho como
“o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a
sociedade por obrigação do sócio38”.
Este fenômeno passou a ser admitido porque a desconsideração da personalidade jurídica tradicional não foi suficiente para coibir práticas lesivas. Em determinados casos, ao invés de realizar
atos ilegais acobertando bens da sociedade em seu patrimônio pessoal, muitos sócios começaram
a realizar práticas inversas: seus bens pessoais passaram a ser transferidos para o patrimônio da
empresa de modo que acabavam por ficar isentos de execuções pessoais porque seus bens compunham os acervos patrimoniais da empresa e não mais os acervos individuais.
33. Curso de direito comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, p. 54.
34. “Nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no artigo 50 do Código Civil: o desvio de finalidade social ou confusão patrimonial”. Enunciado 146 do Conselho
da Justiça Federal.
35. AgRg no AREsp 16.808/GO, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, j. 19/02/2013, DJe 28/02/2013. AgRg no
REsp 1173067/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 12/06/2012, DJe 19/06/2012.
36. Enunciado n. 406 CJF: “A desconsideração da personalidade jurídica alcança os grupos de sociedade quando estiverem
presentes os pressupostos do art. 50”.
37. Enunciado 283 CFJ: “Art. 50. É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para
alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.
38. Curso de direito comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, p. 46.
64
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Caso paradigma foi julgado pela Ministra Nancy Andrighi da 3ª Turma do STJ em 22 de junho
de 2010, em cujo acórdão constou: “a utilização indevida da personalidade jurídica da empresa
pode, outrossim, compreender tanto a hipótese de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica
para fraudar terceiros, quanto no caso de ele esvaziar o seu patrimônio pessoal, enquanto pessoa
natural, e o integralizar na pessoa jurídica, ou seja, transferir seus bens ao ente societário, de modo
a ocultá-los de terceiros”.39
Similarmente ao entendimento posto anteriormente, defendemos que a hipótese de desconsideração inversa deve ser aplicada com parcimônia e apenas e tão somente quando em caso de
fraude e abuso de direito.
Fábio Ulhoa Coelho40 afirma que “pressuposto inafastável da despersonalização episódica da
pessoa jurídica, no entanto é a ocorrência da fraude por meio da separação patrimonial. Não é
suficiente a simples insolvência do ente coletivo, hipótese em que não tendo havido fraude na utilização da separação patrimonial, as regras de limitação da responsabilidade dos sócios terão ampla
vigência”.
5.CONCLUSÃO
A intenção principal da relativização da autonomia patrimonial-existencial das pessoas jurídicas em relação a seus sócios é a defesa das relações jurídico-negociais, preservando-se os interesses
do terceiro de boa-fé.
Passou-se, então, por construção jurisprudencial, que houvesse o levantamento da personalidade da pessoa jurídica procurando o ressarcimento no patrimônio pessoal do sócio.
39.“Processual civil e civil. Recurso especial. Execução de título judicial. Art. 50 do cc/02. Desconsideração da personalidade
jurídica inversa. Possibilidade. (...) III – A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por
obrigações do sócio controlador. IV – Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização
indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu
patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02,
ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. V – A desconsideração
da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem
atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02.
Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, “levantar o véu” da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. VI – À luz das provas
produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela
ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular. (...)” (REsp 948117/MS, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 22/06/2010,
DJe 03/08/2010).
40. Curso de direito comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, p. 46.
65
Desconsideração da personalidade jurídica nas Sociedades Limitadas
Ao mesmo tempo em que a teoria ganhava força, diminuíram as reações contra sua existência,
novos fatos sociais começaram a ocorrer criando novas lacunas aparentes no sistema estabelecido
pelo Direito.
A consequência disso é que o desvio patrimonial começa a ser realizado de modo invertido:
ao invés de esconder bens em seu patrimônio pessoal, o sócio passa a esvaziar seu próprio patrimônio transferindo bens para a pessoa jurídica da qual é controlador e, portanto, continua a usufruir livremente dos mencionados bens sem correr riscos de que eventual credor encontre alguma
propriedade em seu nome.
Para evitar tais situações, a jurisprudência brasileira começou a aceitar a tese da desconsideração inversa da personalidade jurídica, a despeito da inexistência de norma clara a esse respeito.
Contudo há que se considerar que a desconsideração da pessoa jurídica vem sendo utilizada
de forma desarrazoada o que pode implicar a desnaturação das sociedades de responsabilidade
limitada e a dificuldade de composição dos órgãos de administração das sociedades.
Enxergamos nessa prática o excesso de influência do Poder Público (no caso o Poder Judiciário) sobre questões de ordem econômica, dentre elas livre iniciativa e livre concorrência, princípios
essenciais da pessoa jurídica.
A insegurança da atual disciplina gera dificuldades de captação de investimentos nacionais e
estrangeiros, o que, portanto, pode ser um desserviço à relevância social e econômica da empresa.
Por isso tudo, a nosso ver “a melhor interpretação judicial dos artigos sobre a desconsideração
é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua
importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do
princípio da autonomia patrimonial quando necessária à repressão de fraudes e à coibição do mau
uso da forma da pessoa jurídica”41.
Por outro lado, parece-nos inevitável uma revisão dos dispositivos legais que tratam do tema.
Ao lado do projeto de Código de Processo Civil que cria o incidente processual de desconsideração da personalidade jurídica, outras reformas são necessárias, inclusive para que haja previsão
expressa da desconsideração inversa da personalidade jurídica e para que possam ser aclarados os
postulados jurídicos de concessão da medida em ambas as modalidades.
6.BIBLIOGRAFIA
ARRUDA ALVIM, Eduardo e GRANADO, Daniel Willian. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica. Direito processual empresarial, 2012.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. Direito de empresa. 24. ed. São Paulo: Saraiva.
­­_______. Curso de direito comercial. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
41. Curso de direito comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, p. 54.
66
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. I.
LOPES, João Batista. Desconsideração da personalidade jurídica no novo Código Civil. RT, v. 818, p. 36, 2003.
NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica, 2010.
PEGUINI, César Calo. A função social da empresa: análise de sua extensão aplicada à desconsideração da personalidade jurídica. Direito processual empresarial, 2012.
PEREIRA, Valter Gondim. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, v. 13, Fortaleza.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva.
_______. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). RT, v. 410.
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: RT, 2013.
TEPEDINO, Gustavo. Grupo econômico e desconsideração da personalidade jurídica. Soluções práticas. São
Paulo: RT, 2011. v. 3.
VI
A possibilidade de revisão das
astreintes: aspectos objetivos
Bruno Maglione Nascimento
Pós-Graduado em Contratos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Advogado.
Samuel de Abreu Matias Bueno
Mestrando em Processo Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Advogado.
Resumo: Os meios de coerção das decisões judiciais se apresentam como ferra-
mentas essenciais para efetividade da tutela jurisdicional. A multa periódica é importante mecanismo de apoio ao cumprimento das obrigações de fazer e não fazer.
Embora exista a previsão legal acerca da possibilidade de revisão do valor da multa,
nas hipóteses em que ela se mostrar irrisória ou excessiva, o ordenamento não traz
critérios objetivos a serem utilizados pelo juiz nesta tarefa. Ao longo dos anos, a doutrina e a jurisprudência têm estabelecido alguns parâmetros pautados na conduta da
parte e que devem ser considerados na alteração do valor das astreintes.
Sumário: 1. Considerações iniciais sobre as astreintes: origem, natureza e conceito –
2. A possibilidade de revisão das astreintes: 2.1 Aspectos objetivos a serem considerados
pelo juiz na revisão das astreintes: 2.1.1 A recalcitrância do devedor; 2.1.2 A inércia do
credor (ou o dever de mitigar o próprio prejuízo); 2.1.3 Boa-fé processual e a justificativa
plausível para o descumprimento ou parcial cumprimento da obrigação – 3. Considerações finais – 4. Bibliografia.
68
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE AS ASTREINTES: ORIGEM, NATUREZA E
CONCEITO
O atual contexto da ciência processual orbita em torno da ideia central de que o ordenamento
efetivamente considerado como jurídico deve assegurar a atuação das regras que estabelece, assim o
fazendo por meio de um sistema eficaz de tutela destinado a garantir o interesse de quem se encontra
em situação de vantagem, mas que não obteve o reconhecimento voluntário de seu direito subjetivo.1
Embora este raciocínio tenha se revelado ao final do século passado, hoje ele se apresenta
ainda mais fortalecido e sintetiza, perfeitamente, o cenário das mudanças que vêm sendo sugeridas para a sistemática do processo civil brasileiro. Não por acaso é que se diz que a tendência do
Processo Civil Contemporâneo é a de conferir a materialização do direito em espécie àquele que se
apresenta em juízo com plausibilidade de razão.2
Nesta ordem de ideias é que a disponibilização de ferramentas eficazes para o alcance de tal
escopo tem dado o tom das reformas incutidas no processo civil brasileiro, especialmente desde o
advento da Lei 8.952/94, que introduziu o sistema de antecipação de tutela.
Certamente que de nada ou pouco serviria a possibilidade de se antecipar os efeitos de uma
eventual sentença favorável ao autor, se tal ferramenta processual não viesse acompanhada de outros mecanismos hábeis a efetivar o direito no plano fático. Neste contexto é que se encaixa o
complemento do conceito de poder jurisdicional, inserindo-se nele a ideia de sanção, sem a qual a
decisão poderia ficar ineficaz.3
Daí porque hoje se afirma que a garantia fundamental de acesso à jurisdição se traduz como
direito de acesso à efetiva tutela jurisdicional, não bastando mais a mera tutela formal dos direitos
se esta estiver desacompanhada dos seus respectivos efeitos práticos, produzidos tempestivamente.4
Atento a este argumento, o legislador cuidou de aparelhar o instituto da antecipação da tutela
tanto com mecanismos de coerção quanto com meios sub-rogatórios de efetivação da tutela específica ou obtenção de resultado prático equivalente, a teor do que prevê o art. 461, § 5º, do Código de
Processo Civil vigente, tudo a fim de conferir ao processo o caráter máximo de alcance do seu fim
constitucional. Afinal, se o processo constitui instrumento para a realização do direito material, a
sua atuação só deve ser enquadrada como eficaz quando ele for capaz de instrumentalizar resultado
igual ao que se produziria se o direito material fosse espontaneamente observado.5
1. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. São Paulo:
Malheiros, 1998, p. 10.
2. BUENO, Cássio Scarpinella. Tutela antecipada e ações contra o poder público (reflexão quanto a seu cabimento como
consequência da necessidade de efetividade do processo). In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Aspectos polêmicos da antecipação de tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
3. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 125.
4. WAMBIER, Luiz Rodrigues e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários à 2ª fase da reforma do Código de
Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 19-20.
5. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A tutela específica do credor nas obrigações negativas. São Paulo: Saraiva, 1980.
69
Possibilidade de revisão das astreintes
Com efeito, um dos artifícios dispostos à consecução de um chamado “processo de resultados”, por assim dizer, consiste na multa que ora se denomina de astreintes. Em síntese, trata-se de
uma ferramenta de coerção do réu a fim de propiciar a efetivação da tutela específica.
Interessante anotar que, desde a Idade Média, para superar a resistência ou inércia do devedor
ao cumprimento de ordens judiciais, já eram empregados meios de pressão, gradual e progressivamente agravados.6 No arco da história, foi o direito francês que mais absorveu o conceito da sanção
gradual e progressiva contra o devedor, a fim de satisfazer o credor7, e foi graças à criação jurisprudencial que as astreintes8 se consolidaram naquele país no início do século XIX, contrariando a
doutrina que a interpretava como contra legem.9
Num primeiro momento, e talvez justamente por força do repúdio doutrinário, o peso da
astreinte foi mitigado de modo a agregar a sua incidência ao montante da indenização por perdas
e danos. Vale dizer, por mais de um século, as astreintes consistiam tão somente numa espécie de
indenização adiantada das perdas e danos, no caso de descumprimento de determinado comando
judicial.10
Com o passar do tempo, a posição da doutrina mudou e se tornou simpática à medida, tendência que foi acompanhada pelos juízes de instâncias inferiores e que, ao fim, foi confirmada pela
Corte de Cassação que determinou que as astreintes, cujo único objetivo é vencer a resistência do
devedor, constituem medida distinta das perdas e danos, não tendo por objeto compensar prejuízos sofridos pelo credor em decorrência do atraso no descumprimento de determinada condenação pelo réu.11
6. SILVA, João Calvão da. Cumprimento e sanção pecuniária compulsória. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 223. Ao
comentar detalhadamente a influência desta época nos dias de hoje, destaca o estudioso português: “São de enfatizar
e reter, neste período, duas notas que sobreviveram e fazem parte do nosso tempo: a primeira, a condenação gradual
e progressiva numa quantia por cada período de atraso no cumprimento – nota marcadamente presente no sistema
francês da astreinte e na nossa sanção pecuniária compulsória; a segunda, a concepção de que a acção contra a resistência do devedor recalcitrante às ordens do juiz é ainda e também uma defesa do prestígio do próprio tribunal – nota
caracteristicamente presente no ‘contempt of Court’ do direito inglês”.
7. Obviamente, não se olvida que já no direito romano haviam mecanismos coercitivos de cumprimento de sentença
(manus injectio e actio iudicati), contudo, dadas as características diferentes da multa periódica objeto deste estudo,
concentraremos a análise da origem histórica no âmbito do direito francês.
8. Segundo Eduardo Talamini, a expressão vem do latim, ad-stringere (Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer:
CPC, art. 461; CDC, art. 84. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 50). Entretanto, como adverte Francisco Antônio
de Oliveira: ‘O vocábulo ‘astreinte’ é de origem francesa e tem sido mantido nos outros idiomas, porque ‘no es de traducción fácil; por otra parte, el uso de la misma se há generalizado em nuestro léxico jurídico’, como observa Santiago
Cunchilos y Manterola, tradutor da obra de Josserrand. Couture também não conseguiu vocábulo na língua castelhana:
‘astreintes’ – Definición: Voz francesa que se usa como sinónimo de compulsión, constricción – Traducción – ‘omissis’”
(As astreintes e sua eficácia moralizadora. RT, v. 508, p. 35).
9. “[...] a medida não logrou, a princípio, entre os doutrinadores, acolhimento unânime, porque a muitos pareceu que a
separação dos Poderes em províncias estanques do Estado despojou o Judiciário do ‘imperium’, além de constituir a ‘astreinte’ uma pena que não poderia ser imposta sem uma lei que expressamente a autorizasse” (PORTO, Mário Moacyr.
Astreinte. RT, v. 394, p. 35).
10. CHABAS, François. L’astreinte en droit français. Revista de Direito Civil, n. 69, p. 50.
11. Idem, p. 51.
70
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
A despeito da evolução jurisprudencial, o Direito francês só positivou as astreintes em 1972,
por meio da Lei 72-626, sob o título “Da astreinte em matéria civil”. Posteriormente, leis datadas
dos anos de 1991 e 1992 reformaram as disposições inaugurais de sorte que hoje a Lei 91-650 é o
diploma que regula, de forma geral, o instituto.
Aliás, sobreleva destacar que a atual sistemática legislativa francesa não vincula, necessariamente, a aplicação das astreintes a algum tipo de obrigação. Aliás, a lei estabelece a possibilidade de
fixação de astreinte de ofício, pelo juiz, ainda que simplesmente a fim de assegurar o cumprimento
de sua decisão.
Destarte, a sistemática da astreinte francesa serviu como modelo inspirador de medida coercitiva judicial para vários ordenamentos jurídicos contemporâneos, mormente o brasileiro12, que, no
entanto, guarda suas próprias peculiaridades.
Dispensando-se a incursão detalhada ao histórico de medidas coercitivas previstas no ordenamento brasileiro, destaca-se que foi o Código de Processo Civil de 1973 – suas respectivas alterações13 bem como as leis especiais14 –, que consagrou a utilização da multa periódica como
ferramenta de efetivação da tutela específica das obrigações de fazer e de não fazer, e, ainda, como
alternativa ao cumprimento das obrigações de entrega de coisa.
Muitos são os dispositivos que constam na atual redação da lei processual e que se referem,
direta ou indiretamente, à possibilidade de aplicação de multa diária hábil a compelir o devedor a
adimplir com sua obrigação ou cumprir determinada decisão judicial. Sem prejuízo, para os propósitos deste artigo cumpre restringir a atenção às astreintes destinadas especificamente ao cumprimento da tutela antecipada, conforme as previsões contidas no art. 273, § 3º, que remetem ao
art. 461, §§ 4º, 5º e 6º, do Código de Processo Civil.
Destacada a previsão legal atual acerca das astreintes no Código de Processo Civil em vigor,
naturalmente brota a necessidade de correta interpretação de sua natureza, qual seja, a de, em resumo, exercer função eminentemente coercitiva. Neste ponto, ganha relevo a imprescindível diferenciação entre a multa cominatória (astreinte) e a indenização por perdas e danos.
De fato, a astreinte tem por objetivo forçar o réu ao adimplemento da obrigação, enquanto as
perdas e danos se destinam ao ressarcimento dos danos porventura sofridos com o atraso no cumprimento da obrigação.
Vale dizer, a astreinte tem natureza processual na medida em que se revela como um “meio
coercitivo que visa superar a renitência do demandado em cumprir com a conduta prevista, não se
confundindo, mas antes, sendo cumulativa com eventuais perdas e danos”15.
12.
13.
14.
15.
GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 108.
Leis 10.352/01, 10.358/01, 10.444/02, 11.232/05 e 11.382/06.
Lei da Ação Civil Pública, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor.
RODRIGUES NETO, Nelson. Tutela jurisdicional específica: mandamental e executiva lato sensu. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 139.
71
Possibilidade de revisão das astreintes
Complementa-se, a astreinte não tem natureza repressiva nem reparatória, isto porque enquanto a indenização representa uma contrapartida devida em razão da produção do dano, a multa
referida no art. 461 do CPC tem por objetivo garantir a efetividade da sentença e da tutela antecipatória, fazendo com que a ordem de fazer ou de não-fazer nelas contidas sejam efetivamente
observadas.16
A guisa destas reflexões pode-se afirmar que “a decisão que fixa as astreintes, seja ela final ou
interlocutória, constitui técnica de tutela, meio para o cumprimento efetivo da função jurisdicional
lato sensu e, portanto, manifestação do poder de imperium do juiz”.17
Concatenando natureza e arrematando o seu conceito, diz-se que a astreinte constitui técnica
de tutela coercitiva e acessória, que visa a pressionar o réu para que este cumpra mandamento judicial, sendo a pressão exercida através de ameaça ao seu patrimônio, consubstanciada em multa
periódica a incidir em caso de descumprimento.18
2. A POSSIBILIDADE DE REVISÃO DAS ASTREINTES
Superadas as principais noções do instituto, com destaque ao fato de que hoje as astreintes
se apresentam como ferramenta quase que indispensável à efetividade da tutela jurisdicional, no
campo prático cada vez mais se discute a questão da valoração da multa coercitiva e, consequentemente, da possibilidade de sua revisão.
Esta discussão decorre essencialmente diante de casos em que o valor fixado se mostra insuficiente para o convencimento do devedor ou abusivo a ponto de gerar enriquecimento ilícito ao
credor. Ainda, há situações em que determinadas particularidades sugerem a exclusão da multa
aplicada, incluindo as parcelas já vencidas.
Além desse ponto, questões como o momento processual em que se admite a revisão (para
menos ou para mais), e se isto seria possível de ofício pelo juiz ou somente mediante requerimento
da parte interessada, também se apresentaram controversas ao longo dos anos.
16. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica. Arts. 461, CPC e 84, CDC. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001,
p. 105-106.
17. AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do artigo 461 do CPC e outras. 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 70.
18. Idem, p. 101. Por oportuno, vale anotar que o Projeto de Novo Código de Processo Civil confirma a intenção do legislador em expressar, sem margens para possíveis interpretações dissonantes, a possibilidade da aplicação das astreintes
a qualquer tempo do processo, isto é, tanto na fase de conhecimento, quanto em antecipação de tutela ou mesmo na
execução, podendo se dar de ofício pelo juiz ou em atenção ao requerimento do credor. Ressalte-se que tais normativas
não se encontram assim previstas no código processual vigente, embora a doutrina e a jurisprudência tenham cuidado
de sedimentar estas premissas ao longo dos últimos anos, quando as astreintes passaram a figurar como uma das ferramentas processuais mais utilizadas pelos magistrados, como técnica de tutela das suas decisões.
72
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
O certo é que desde a positivação das astreintes no sistema processual brasileiro, a jurisprudência e a doutrina é que foram responsáveis por formatar a sua aplicabilidade cotidiana. Assim,
coube – e ainda cabe – aos tribunais e aos processualistas a tarefa de examinar e conferir a melhor
interpretação às questões acima destacadas19.
Isso nada obstante o fato da redação do atual Código de Processo Civil trazer expressamente
em seu art. 461, § 6º a possibilidade de o juiz, de ofício, modificar o valor e a periodicidade da multa
caso verifique que ela se tornou insuficiente ou excessiva. Vale dizer, sobre este ponto é mínima a
margem para interpretação diversa, sendo assente a possibilidade, embora não expressa legalmente, da parte interessada requerer sua revisão.20
Aliás, os mesmos precedentes listados na referência feita no parágrafo anterior também confirmam o entendimento de que a revisão do valor da multa é possível mesmo após transitada em
julgado a sentença, de modo que não se opera a preclusão a este respeito.
Por oportuno, convém anotar que quaisquer alterações quanto aos valores e à periodicidade
das multas só surtirão efeitos ex nunc, não podendo, portanto, retroagir em prejuízo do devedor
porquanto, se assim fosse, estar-se-ia dando azo à sua punição o que, como cediço, foge à característica essencial das astreintes.21
2.1Aspectos objetivos a serem considerados pelo juiz na revisão das astreintes
Conforme já destacado, a legislação pátria prevê expressamente a possibilidade de fixação de
astreinte como técnica de tutela coercitiva e acessória visando pressionar a parte a cumprir determinado mandamento judicial, sendo a pressão exercida por meio de ameaça direta ao seu patrimônio, consubstanciada em multa periódica a incidir em caso de descumprimento22.
Embora o Código de Processo Civil traga expressamente em seu artigo 461, § 6º a possibilidade de o juiz, de ofício, modificar o valor da multa inicialmente aplicada, não há na legislação
qualquer regulamentação quanto aos parâmetros objetivos que deveriam nortear a revisão das astreintes, o que resulta, em alguns casos, na utilização de critérios subjetivos (valor insuficiente ou
excessivo) que muitas vezes, por si só, não se mostram razoáveis ou mais precisos para tal mister.
A ausência de tal regulamentação, portanto, impõe à doutrina e ao judiciário a necessidade de
se esforçar na busca de alguns aspectos objetivos que sejam capazes de orientar tal revisão e, nesta
19. Importante observar que o Projeto de Novo Código de Processo Civil traz em seu texto a expressa previsão de possibilidade de revisão das astreintes em casos de comprovada insuficiência ou excessividade do seu valor ou, ainda, caso o
devedor apresente motivos de parcial cumprimento ou de justa causa para o descumprimento.
20. Neste sentido, vide os seguintes julgados: AgRg no REsp 1381624/SP, 3ª Turma, rel. Sidnei Beneti, DJe 08.10.2013;
AgRg no REsp 1361225/MG, 3ª Turma, rel. Sidnei Beneti, DJe 13.06.2013, e; AgRg nos EDcl no AREsp 126389/SP, 2ª
Turma, rel. Castro Meira, DJe 04.02.2013.
21. AMARAL, Guilherme Rizzo. Op. cit., p. 162.
22. Idem, p. 101.
73
Possibilidade de revisão das astreintes
senda, nada melhor e mais coerente do que utilizar a própria postura das partes como elemento
central hábil a sugerir os parâmetros para a possível revisão dos valores inicialmente fixados23.
Seguindo este trilho, quando se fala em “postura” das partes como critério balizador para a
formação de qualquer juízo, há uma evidente tendência natural em dividi-la entre a postura (i)
processual e a (ii) extraprocessual.
Na “postura” extraprocessual, há de se considerar o princípio da boa-fé objetiva fundado na
preposição da nova ordem constitucional, “em que o princípio da dignidade humana ganha contornos de norma irradiadora e delimitadora de direitos”24.
A boa-fé objetiva é, há tempos, considerada como standard ético-jurídico a ser observado pelas partes envolvidas em todas as fases contratuais. Em outras palavras, durante toda a relação contratual a conduta dos envolvidos deverá ser sempre guiada pela probidade, cooperação e lealdade.
Como fonte de obrigação que permeia a conduta das partes, a boa-fé objetiva25 faz com que a
relação obrigacional seja desenvolvida de maneira que as partes se ocupem em preservar mutuamente os direitos ali envolvidos pela relação jurídica criada, evitando a infração aos preceitos éticos
insertos no ordenamento jurídico.
Evidente que a “postura” extraprocessual das partes já está devidamente parametrizada para
que toda e qualquer conduta que rompa com a harmonia desejada seja imediatamente reprimida.
Sem prejuízo, é na conduta processual desleal que será encontrado o critério objetivo complementar que irá interferir diretamente na revisão da astreinte inicialmente fixada26.
Em outras palavras, o judiciário deverá, em regra, levar em consideração três aspectos objetivos básicos quando do juízo de revisão do valor das astreintes, a saber: (a) a recalcitrância (desobediência), (b) inércia e a (c) boa-fé processual das partes.
2.1.1 A recalcitrância do devedor
É necessário considerar, inicialmente, que em certas situações excepcionais a sanção imposta
ao devedor não cumpre o objetivo preconizado inicialmente pelo legislador, como nos casos em
que o devedor possui recursos patrimoniais consideráveis, fazendo com que não se sinta, muitas
vezes, compelido a obedecer à determinação imposta pelo magistrado.
23. “La giustificata aspettativa che il diritto stesso non sarebbe più stato fatto valere” (RANIERI, Filippo. Rinuncia tacita e
Verwirkung. Padova: Cedam, 1971, p. 1).
24. DIDIER JR., Fredie. Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio: aplicação do duty to mitigate the loss no processo
civil. Revista de Processo. Ano 34, 1.171, maio de 2009, p. 48.
25. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina Tema, 2007, p. 801.
26. CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno – Contraditório, proteção da confiança e validade prima
facie dos atos processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 63.
74
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Situações como estas ou, ainda, situações em que o devedor simplesmente opta pelo descumprimento de determinação judicial por mero descaso ou desídia, são sinais objetivos que deverão
ser utilizados como critério de majoração da multa27.
A regra, conforme já elucidado, é a de que a multa deve ter caráter coercitivo e, paralelamente,
não pode representar um enriquecimento sem causa.
Em outras palavras, a multa visa obrigar o réu a cumprir determinada obrigação, sendo que
esta não pode ter um caráter irrisório, que na prática não “incomode” o devedor, sob pena de não
pressioná-lo de modo algum a obedecer ao comando judicial. Nem poderá ser demasiada a ponto
de alcançar um quantum superior ao patrimônio tido pelo devedor28.
Assim, evidente que se a conduta do devedor deixar claro que o descumprimento se deu em
virtude de mera recalcitrância, seja porque o valor fixado é irrisório ou pelo simples fato de que
não há nenhum interesse no cumprimento da obrigação, o juízo29 deve considerar tal conduta para
majorar o valor da multa visando pressionar o devedor a cumprir a determinada obrigação.
É exatamente nesse contexto que o Superior Tribunal de Justiça30 procurou encontrar um meio
termo entre redução da multa (valor exorbitante) e recalcitrância da parte que não se dispunha a
cumprir a obrigação fixada.
Fato é que em ambos os casos a relatora Ministra Nancy Andrighi seguiu a mesma linha de
raciocínio para considerar que, se o caso for rico em argumentos para demonstrar o exagero da
multa, mas for pobre em justificativas quanto aos motivos da resistência do devedor em cumprir a
ordem judicial, não haveria razão para a revisão da multa, pois, do contrário, dar-se-ia um sinal de
que as astreintes não são sérias, mas apenas figuras que não necessariamente se tornam realidade.
Para a Ministra do STJ, em casos como tais a procrastinação sempre poderia acontecer sob a
crença de que, caso o valor da multa se torne elevado, o inadimplente poderia reduzi-lo no futuro
contando simplesmente com a complacência do Poder Judiciário.
Assim, se o único obstáculo ao cumprimento da decisão judicial for a resistência injustificada
ou descaso da parte condenada, o valor acumulado da multa não deve ser reduzido, mas sim majorado, já que o objetivo central visualizado pelo legislador não encontrará seu alvo que é a coercitividade da medida.
27. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Op. cit., p.111-112.
28. Idem, p. 113.
29. A possibilidade de fixação de multa, em caso de descumprimento de liminar ou de sentença, independentemente de
pedido do devedor, já constava do art. 461, § 4º (que, aliás, continua em vigor). Na verdade, o § 5º apenas acabou por
acrescentá-la aos outros expedientes (métodos) de que o juiz pode se valer para tornar mais “vantajoso”, aos olhos do
réu, cumprir a obrigação in natura do que se sujeitar à execução indireta (às consequências do não cumprimento das
ordens judiciais), ipsis litteris leciona Wambier. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Op. cit.
30. Neste sentido, vide os seguintes julgados do STJ: REsp 1.026.191 e REsp 681.294.
75
Possibilidade de revisão das astreintes
2.1.2 A inércia do credor (ou o dever de mitigar o próprio prejuízo)
Por outro lado, seguindo a mesma linha de raciocínio que busca no comportamento das partes
critérios objetivos para majoração, redução ou exclusão da multa, a conduta do autor (aquele que
será beneficiado com o cumprimento da decisão) também é essencial e deve ser analisada com
critério e rigor.
Há tempos a doutrina já consagrou o dever das partes de mitigar o próprio prejuízo duty to
mitigate the loss31, conceito que pode ser resumido no dever das partes em tomar todas as medidas
necessárias e cabíveis para que o dano não seja agravado.
Paralelamente e de forma complementar, outro instituto igualmente consagrado é o da proibição do venire contra factum proprium, que representa as situações em que uma pessoa, por um
considerável período de tempo, comporta-se de determinada maneira gerando expectativas em
outra de que este mesmo comportamento permanecerá inalterado.
Quer dizer, é certo que se espera das partes não apenas o dever te mitigar o próprio prejuízo,
mas também uma conduta coerente que não rompa com a boa-fé objetiva que das partes é esperada, tampouco, seja contrária a um determinado comportamento adotado e praticado durante certo
e significativo tempo.
Se o fundamento do duty to mitigate the loss possui em sua essência o princípio da boa-fé, que
rege o direito processual como decorrência do devido processo legal, pode-se perfeitamente admitir a sua existência no direito processual brasileiro.
Assim, ao não exercer a pretensão em ver cumprida a obrigação fixada pela decisão judicial,
deixando com que o valor da multa aumente consideravelmente em razão do não cumprimento da
obrigação pela parte adversa, o autor comporta-se abusiva e negativamente, de sorte que tal inércia
deve ser interpretada como verdadeira violação ao princípio da boa-fé, cabendo ao juízo reduzir ou
até mesmo excluir a multa pecuniária inicialmente fixada.
Por óbvio, o Judiciário não pode ser conivente com a conduta daquele que não tem interesse
em ver cumprida uma determinação judicial que lhe favorece, principalmente quando este sujeito
é, em essência, o principal interessado em ver satisfeito um direito seu e que, portanto, deveria diligenciar para que a decisão fosse cumprida o mais rápido possível ou ao menos diligenciar para que
seus prejuízos fossem minimizados.
31. De acordo com a sugestão consagrada por Menezes Cordeiro, a sistematização procedida pela doutrina alemã divide
em quatro os casos de aplicação da boa fé ao processo: (a) proibição de criar dolosamente posições processuais, ou
seja, proibição de agir de má-fé; (b) a proibição de venire contra factum proprium; (c) a proibição de abuso de poderes
processuais; (d) Verwirkung (supressio): perda de poder processual em razão do seu não-exercício por tempo suficiente
para incutir no outro sujeito a confiança legítima de que esse poder não mais seria exercido (CORDEIRO, António
Manuel da Rocha e Menezes. Litigância de má-fé, abuso do direito de acção e culpa “in agendo”. Coimbra: Almedina,
2006, p. 51).
76
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Resumindo, a inércia e o silêncio daquele que se beneficia da multa e quem é o titular do direito subjetivo protegido pela ordem judicial, representam condutas que devem ser reprimidas pelo
judiciário e que, bem por isso, devem ser consideradas objetivamente pelo julgador quando do exame acerca da possibilidade e necessidade de minoração ou exclusão da multa inicialmente fixada.
Desse modo, a parte que se vale da aplicação da multa não pode permanecer deliberadamente
inerte, já que sua inércia imporá gravame desnecessário e ao mesmo tempo evitável ao patrimônio
da outra, circunstância que infringe os deveres de cooperação e lealdade, constituindo conduta
contrária e incompatível com a intenção do legislador e que, bem por isso, deve servir como critério objetivo para que a multa seja reavaliada pelo Juízo.
2.1.3
Boa-fé processual e a justificativa plausível para o descumprimento ou parcial
cumprimento da obrigação
Finalmente, o último critério objetivo que se sugere seja levado em consideração para balizar
eventual revisão do valor das astreintes inicialmente fixadas, consiste na justificativa apresentada
pela parte que descumpriu ou cumpriu apenas parcialmente a obrigação decorrente da determinação judicial que lhe foi imposta.
Não se olvida da importância que deve ser dada aos fatos concretos de cada caso, vez que, em
certas situações, a impossibilidade de cumprimento integral de decisão judicial foge à capacidade
de ingerência da parte que deve cumprir com a obrigação que lhe foi atribuída.
Em outras palavras, muitas vezes o autor atua visando mitigar o próprio prejuízo, bem como o
réu se esforça arduamente para cumprir determinação judicial e, mesmo assim, por razões alheias
à sua vontade e atitude, a obrigação não pode ser integralmente cumprida.
Evidente, portanto, que em tais situações a manutenção da multa nos moldes inicialmente
apresentados se mostrará incompatível com o intuito original do legislador, razão pela qual cabe ao
juiz reduzir ou excluir, sempre conforme as peculiaridades do caso concreto, a aplicação da multa
com base em tal critério objetivo.
Não por acaso este o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, recentemente foi verbalizado na voz da ministra Nancy Andrighi quando do julgamento do caso Bunge – que pode ser o
maior valor já fixado em astreintes no Brasil –, que a condenação deve ser apta a influir concretamente no comportamento do devedor, diante de sua condição econômica, vantagens obtidas com
o atraso e capacidade de resistência32.
É exatamente por existirem situações fáticas que “isentariam”, ou ao menos diminuiriam a
culpa do réu, que essa justificativa precisa ser levada em consideração e analisada com cuidado pelo
32. Neste sentido, vide os seguintes julgados do STJ: REsp 1.026.191 e REsp 681.294.
77
Possibilidade de revisão das astreintes
juiz, já que as razões fáticas do caso concreto podem revelar direta interferência no motivo pelo
qual a decisão foi descumprida ou parcialmente cumprida.
Bem por isso, no mesmo julgado do Superior Tribunal de Justiça33, o Ministro Carlos Alberto
Menezes Direito deixou claro que “existem situações onde a alteração da multa é pedida com base
em alegações muito mais complexas, como pode acontecer, por exemplo: i) quando se constata
posteriormente a existência de óbices práticos não previstos pelo juízo e que causam atraso na realização da conduta exigida; ii) no surgimento de eventual conflito com alegados direitos de terceiros que se dizem indevidamente afetados pela tutela cominatória; ou iii) quando, posteriormente,
descobre-se que a prestação é materialmente impossível.”
Destarte, evidente que tais fatores hão de ser considerados na revisão ou exclusão da multa
periódica, especialmente se, diante das peculiaridades do caso concreto, restar comprovado que
a parte descumpriu ou cumpriu parcialmente determinada decisão judicial apenas e tão somente
porque lhe era impossível efetuar o seu integral cumprimento.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todas as anotações até aqui traçadas de maneira breve e, acima de tudo, expositiva,
parece livre de dúvidas que o instituto das astreintes tem representado significativa importância
dentro do ordenamento pátrio, mormente se considerado como uma técnica de tutela, isto é, um
verdadeiro meio acessório ao cumprimento efetivo da função jurisdicional.
Não há dúvidas que a prática processual brasileira acolheu o instituto em consonância com
a sua relevância, sendo certo que a doutrina e a jurisprudência contribuíram seriamente para sua
larga utilização e formatação, na medida em que a legislação atual apenas traz regras gerais sobre
sua aplicabilidade.
Neste trilho, constatou-se já haver séria preocupação em balizar o valor das astreintes dentro
dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, permitindo a revisão da multa a qualquer
tempo e fase do processo, de ofício ou a requerimento da parte, com vistas a se evitar enriquecimento sem causa da parte credora.
Contudo, é oportuno que se estabeleçam alguns critérios objetivos que possam servir de norte
ao magistrado quando do juízo acerca da possibilidade de revisão, para mais ou para menos, ou
mesmo de exclusão do valor das astreintes. E, para tanto, a postura extra e, principalmente, a postura endoprocessual das partes devem ser consideradas pelo julgador.
Com efeito, aspectos como a recalcitrância injustificada da parte devedora, a inércia da parte
credora em não se manifestar sinalizando a insatisfação com o não cumprimento da obrigação que
lhe favorece – em cumprimento ao dever de mitigar o próprio prejuízo –, e as justificativas apre33. REsp 681.294.
78
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
sentadas no caso concreto para o descumprimento ou parcial descumprimento da determinação
judicial, são elementos que necessariamente devem ser ponderados em conjunto pelo magistrado.
Nada obstante, é certo que neste mister não pode o juiz olvidar da premissa maior de que, se
por um lado a multa não se confunde com indenização e, ainda, não pode servir de enriquecimento
sem causa para o titular do direito subjetivo cuja astreinte pretende forçar a parte contrária a respeitar, por outro, também não pode ser minorada à míngua de um dos critérios até aqui sugeridos, sob
pena de se descreditar por completo este verdadeiro mecanismo acessório de tutela jurisdicional.
Nesta ordem de ideias, cumpre destacar os mais recentes precedentes do Superior Tribunal de
Justiça sobre o tema, os quais notadamente ratificam em pormenores e com riqueza argumentativa
os parâmetros objetivos mencionados neste artigo.
De toda forma, como visto, somente o caso concreto reunirá elementos a partir dos quais
poderá o juiz se valer para minorar, majorar ou mesmo excluir as astreintes inicialmente fixadas, o
que confirma e reforça o fato de que, ao fim e ao cabo, cabe ao Poder Judiciário o papel principal
da consolidação justa e eficaz deste importante instituto.
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como consequência da necessidade de efetividade do processo). In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Aspectos polêmicos da antecipação de tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
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79
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WAMBIER, Luiz Rodrigues e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários à 2ª fase da reforma do
Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
VII
Assembleia Geral de credores:
direito de voto segundo o valor
sustentado em impugnação
de crédito
Liv Machado
Pós-graduada em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e
Mestranda em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Advogada.
Resumo: A averiguação dos créditos é fundamental para evitar fraudes, má-fé e
conluios, garantindo o tratamento proporcional dos créditos. Todos os credores admitidos na recuperação judicial têm, em princípio, direito a voz e voto na assembleia. De acordo com o artigo 39 da Lei, têm direito a voto as pessoas arroladas no
Quadro Geral de Credores (QGC). A Lei prevê que, idealmente, a Assembleia Geral
de Credores (AGC) deve ser realizada após a consolidação do quadro e finalização
da verificação de créditos, ou seja, após o julgamento das impugnações de crédito
eventualmente apresentadas pelos credores. Todavia, muitas vezes a AGC é realizada
antes da consolidação do QGC, ensejando a possibilidade do exercício de voto por
valor e classificação não condizentes com o crédito do titular, sendo necessária a
análise dos meios cabíveis para assegurar a proporcionalidade entre o direito de voto
e o crédito.
Sumário: 1. Introdução – 2. Verificação de créditos na Recuperação Judicial – 3. O
Voto na Assembleia Geral de Credores na Recuperação Judicial – 4. Credores titulares de
créditos objeto de impugnação pendentes de julgamento – 5. Conclusão – 6. Bibliografia.
82
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1.INTRODUÇÃO
A Lei 11.101/2005 substituiu o sexagenário Decreto-lei 7.661/1945, o diploma falimentar mais
duradouro na legislação brasileira. A falência e a concordata estruturadas pelo Dec.-lei 7.661/45
não permitiam ao, até então, comerciante – hoje empresário e sociedade empresária – a possibilidade de soerguimento do estado de crise. Tratava-se de favor legal concedido ao comerciante honesto
e de boa-fé, em virtude dos riscos que envolvem a atividade mercantil. Havia uma preocupação
primordial de arrecadar os bens para a liquidação do passivo, ínfima participação dos credores, e
amplos poderes aos magistrados na condução dos procedimentos.
De acordo com o Professor Rubens Requião, “esse diploma, que apresentou muitas inovações,
reforça os poderes do magistrado, diminuindo a influência dos credores, pois começou por abolir
a assembleia geral de credores, a concordata, tanto preventiva quando suspensiva, deixou de ser
um contrato, para se tornar um benefício concedido pelo Estado, através do juiz ao devedor infeliz
e honesto”.1
Nesse contexto, conforme pontua o Professor Manoel Justino Bezerra Filho, “o que se verificava é que o sistema do Dec.-lei 7.661/45 não conseguia proteger os credores da empresa concordatária ou falida e não conseguia também, por outro lado, preservar a atividade empresária,
apresentando-se como sistema incapaz de preservar qualquer tipo de interesse, atendendo apenas,
na grande maioria das vezes, ao empresário oportunista e desonesto”.2
O Decreto-lei 7.661/45 encontrava-se desatualizado em face das grandes mudanças socioeconômicas ocorridas ao longo de sua vigência. Nesse cenário, após 11 anos de tramitação de seu
respectivo projeto no Congresso Nacional, entrou em vigor em 9 de junho de 2005, a Lei 11.101.
Referida Lei manteve o instituto da falência, sob uma nova roupagem, extinguiu a figura da
concordata preventiva e suspensiva, instituiu a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial.
Um dos princípios mais relevantes e basilares trazidos pela atual Lei é o princípio da preservação da empresa economicamente viável, o qual se encontra esculpido no seu artigo 47, definindo
o objetivo da recuperação judicial, que consiste no remédio jurídico destinado a viabilizar a superação de crise econômico-financeira do devedor. O dispositivo, como salientado pela doutrina e
pela jurisprudência, elenca alguns dos princípios norteadores da atual Lei: (i) manutenção da fonte
produtora; (ii) do emprego dos trabalhadores; e, (iii) dos interesses dos credores. A aplicação desses princípios, ainda segundo o artigo 47 da LFR, deve promover a preservação da empresa, da sua
função social e o estímulo à atividade econômica.
Ou seja, a Lei busca estabelecer um equilíbrio entre a superação do estado de crise pela Recuperanda e os interesses dos credores e dos demais interesses que gravitam em torno do processo de
recuperação judicial.
1.Curso de direito falimentar. 16 ed. São Paulo: Saraiva: 1995. v. I, p. 24.
2.Nova Lei de Recuperação e Falências comentada: Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, comentário artigo por artigo. 8. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 49.
83
Assembleia geral de credores: direito de voto segundo o valor sustentado em impugnação de crédito
É nessa toada que a Lei trouxe o incentivo à participação ativa dos credores no procedimento
da recuperação judicial. A esse respeito o professor Manoel de Queirós Pereira Calças observa que
“a participação efetiva dos credores na falência e na recuperação judicial é incentivada, pois, sendo
eles os maiores interessados na defesa de seus direitos e no recebimento de seus créditos, poderão
otimizar os resultados a serem obtidos com o processo e, especialmente, terão condições de reduzir
a “possibilidade de fraude ou malversação dos recursos da empresa ou da massa falida”3.
A Lei 11.101/2005 atribuiu à Assembleia Geral de Credores função relevante no processo de
falência e, principalmente, no de recuperação judicial. A aprovação, rejeição ou modificação do
plano de recuperação judicial é realizada por meio de deliberação exclusiva dos credores, divididos
em três classes (trabalhistas, com garantia real e quirografários). O voto do credor será proporcional ao valor de seu crédito, conforme estabelece o caput do artigo 38 da Lei 11.101/2005. Todas
as classes de credores deverão aprovar a proposta. Em cada uma das classes II (garantia real) e III
(quirografários), a proposta deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade do
valor total dos créditos presentes à assembleia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes. Na classe I (trabalhistas), a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos
credores presentes, independentemente do valor de seu crédito.
Nesse passo, exsurge a relevância quanto à verificação dos créditos da recuperação judicial,
que exercerá influência determinante no resultado da votação do plano de recuperação judicial,
seja em relação ao valor, seja em relação à classificação do crédito.
Outros princípios caros à falência e à recuperação judicial e relevantes ao tema em questão,
conforme trataremos adiante, são a celeridade e eficiência dos processos judiciais. O parágrafo
único do artigo 75 prevê expressamente que “O processo de falência atenderá aos princípios da
celeridade e da economia processual”. Quanto à recuperação judicial, a Lei determina prazos exíguos para cada etapa do procedimento, estatuindo no § 4º do artigo 6º que o prazo de suspensão
do curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos
credores particulares do sócio solidário, em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de
180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação. A despeito de
a rigidez do dispositivo legal vir sendo flexibilizado pelos tribunais pátrios,4 sua previsão detona o
cuidado do legislador em relação à matéria em questão.
3. A nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências: repercussão no direito do trabalho (Lei 11.101, de 9 de fevereiro
de 2005). Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, v. 73, n. 3, p. 37-52, jul.-set. de 2007, p. 44.
4. Nesse sentido: “Comercial e processual civil. Agravo regimental. Conflito de competência. Recuperação judicial. Lei
11.101/2006, art. 6º, § 4º. Suspensão das ações e execuções. Prazo de 180 dias. Homologação do plano de recuperação.
Prova do retardamento. Ausência. Flexibilização. Possibilidade. Improvimento. I. O deferimento da recuperação judicial
carreia ao Juízo que a defere a competência para distribuir o patrimônio da massa falida aos credores conforme as
regras concursais da lei falimentar. II. A extrapolação do prazo de 180 dias previsto no art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005
não causa o automático prosseguimento das ações e das execuções contra a empresa recuperanda, senão quando comprovado que sua desídia causou o retardamento da homologação do plano de recuperação. III. Agravo regimental improvido” (AgRg no CC 113.001/DF, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Segunda Seção, j. 14/03/2011, DJe 21/03/2011).
84
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
No parecer elaborado sobre o projeto em tramitação, o Senador Ramez Tebet esclareceu, em
relação ao primeiro, que “é preciso que as normas procedimentais da falência e da recuperação de
empresas sejam, na medida do possível, simples, conferindo-se celeridade e eficiência ao processo
e reduzindo-se a burocracia que atravanca seu curso”, e, quanto ao segundo, que “é desejável que
os credores participem ativamente dos processos de falência e de recuperação, a fim de que, diligenciando para a defesa de seus interesses, em especial o recebimento de seu crédito, otimizem os
resultados obtidos com o processo, com redução da possibilidade de fraude ou malversação dos
recursos da empresa ou da massa falida”.5
2. VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A averiguação dos créditos é fundamental para evitar fraudes, má-fé e conluios, garantindo o
tratamento proporcional dos créditos. A Lei estatui uma etapa de verificação extrajudicial e outra
etapa judicial, garantindo a higidez da verificação dos créditos.
Uma vez publicado o edital contendo a relação nominal de credores “Primeira Lista”, em que
se discrimine o valor atualizado e a classificação de cada crédito, os credores terão o prazo de
15 (quinze) dias para apresentar ao administrador judicial suas habilitações ou suas divergências
quanto aos créditos relacionados. Trata-se da chamada fase extrajudicial do procedimento, na medida em que os incidentes são direcionados ao administrador judicial, e não ao magistrado. Não
observado o prazo, as habilitações serão consideradas retardatárias e serão recebidas pelo juízo
como impugnações de crédito.
Nos termos do caput do artigo 7º da Lei, a verificação dos créditos será realizada pelo administrador judicial, com base nos livros contábeis e documentos comerciais e fiscais do devedor e nos
documentos que lhe forem apresentados pelos credores nas habilitações de crédito e divergências.
Na sequência, o administrador elaborará o edital contendo a relação de credores no prazo a que se
refere o artigo 7º, § 2º, da Lei. Uma vez publicada a relação do administrador judicial, inicia-se o
prazo para que os credores ofereçam eventual impugnação, no prazo de 10 dias (dez dias) contados
da data de publicação do edital, a ser endereçada ao juízo da recuperação judicial. Caso não sejam
apresentadas impugnações, o juiz homologará como quadro geral de credores a “Segunda Lista”.
Na hipótese de serem apresentadas impugnações, o administrador judicial será responsável
pela consolidação do quadro geral de credores com fulcro na relação do artigo 7º, § 2º e nas decisões proferidas no âmbito das impugnações, desde que a sentença tenha transitado em julgado ou
haja determinação do Tribunal competente. Após, o quadro que deverá ser homologado pelo juízo
da recuperação judicial. Ao quadro geral de credores serão acrescidos, por meio de simples despacho ordinatório, os créditos que forem sendo julgados de forma definitiva (impugnações de crédito
e habilitações retardatárias). Note-se que o quadro pode ser homologado antes mesmo do julgamento de todas as impugnações, prestigiando a celeridade e eficiência no trâmite do procedimento.
5. Diário do Senado Federal de 10 de junho de 2004, p. 17856-17941.
85
Assembleia geral de credores: direito de voto segundo o valor sustentado em impugnação de crédito
3. O VOTO NA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES NA RECUPERAÇÃO
JUDICIAL
Estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, em regra, os créditos existentes na data do
pedido, ainda que não vencidos. Desta feita, não se submetem à recuperação os créditos constituídos após a data do pedido, de modo que seus titulares não possuem direito a voto.
Ainda, prevê a Lei expressamente que estão excluídos da recuperação judicial, nos termos do § 3º,
do artigo 49, o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de
arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio. Do mesmo modo, os
titulares de créditos consubstanciados em Adiantamento de Contrato de Câmbio – ACC, de acordo
com a redação do § 4º do artigo 49. É por essa razão que o § 1º do artigo 39 prevê expressamente
que os titulares dos aludidos créditos não terão direito a voto.
Todavia, vem se tornando comum a previsão de possibilidade de adesão ao plano de recuperação judicial pelos credores não sujeitos na forma dos §§ 3º e 4º do artigo 49 da Lei 11.101/2005,
desde que haja anuência expressa dos respectivos credores.
A esse respeito observa Modesto Carvalhosa que “a Lei de Recuperação e Falências, ao mencionar que tais créditos não se submetem à recuperação judicial, não vedou a sua inclusão no plano
apresentado pelo devedor. Assim, se houver a anuência desses credores, seus créditos poderão ser
incluídos na recuperação e, conseqüentemente, poderão seus titulares participar da Assembléia
Geral. Fica claro, portanto, que a Lei de Recuperação e Falências, apenas e tão-somente, deixou
de submetê-los obrigatoriamente aos processos de recuperação judicial e extrajudicial. Com isso,
caberá aos titulares desses créditos – fundamentalmente instituições financeiras – decidir se é mais
conveniente ingressar na recuperação ou executar as garantias, desde que ultrapassado o prazo
de carência de 180 (cento e oitenta) dias estabelecido pela Lei Falimentar e conhecido na prática
norte-americana como ‘stay period’. Com isso, o legislador atribui uma posição dominante a tais
credores, decorrentes dos privilégios legais que lhes foram concedidos e que os leva a liderar o plano de recuperação”.6
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já admitiu o cômputo de voto de credor não
sujeito à recuperação judicial, desde que haja anuência do credor e nenhum outro credor tenha
apresentado impugnação:
“O agravo de instrumento. Recuperação judicial. Decretação de falência. Pretensão à anulação da assembleia geral de credores que fundamentou a quebra. Credor com garantia real que participou da
assembleia geral de credores. Possibilidade. – Os credores com garantia real não terão direito de voto,
6. CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; MOURÃO, Corrêa-Lima Sérgio (coords.). Comentários à nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 28.
86
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
bem como não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial (arts. 39, § 1º e 49, 3º da Lei 11.101/05)
– Contudo, a Lei de Recuperação e Falências, ao mencionar que tais créditos não se submetem à recuperação judicial, não vedou a sua inclusão no plano apresentado pelo devedor, desde que haja
anuência desse credor, a ausência de qualquer impugnação dos demais credores ou manifestação
contrária da empresa recuperanda. – Em razão destas ausências de impugnações os créditos poderão
ser incluídos na recuperação e, consequentemente, poderão seus titulares participar da assembleia
geral com direito a voto. Recurso não provido”7.
É pertinente anotar que o artigo 45, § 3º, da LFR preceitua que “o credor não terá direito ao
voto e não será considerado para fins de verificação de quorum de deliberação se o plano de recuperação não alterar o valor ou as condições de pagamento de seu crédito”.
Comentando referido § 3º, Jorge Lobo afirma: “Estão impedidos de votar os credores não
atingidos diretamente pelo plano de recuperação, o que pode abarcar classes inteiras, não obstante
o plano, embora sem ‘alterar o valor ou as condições originais de pagamento’ de seus créditos, conforme dispõe o art. 45, § 3º, possa afetar ou pôr em risco os direitos e interesses do credor, quando,
por exemplo, estabelecer a alienação de estabelecimento e a venda parcial de bens (art. 50, VII e
XI). O credor, que se sentir prejudicado, por considerar que a diminuição de bens do ativo desfalca
as garantias gerais, embora não possa votar na assembleia geral, está legitimado a ‘manifestar ao
juiz sua objeção ao plano’ (art. 55, caput)”.8
“Agravo. Recuperação judicial. Credor não incluído no plano de recuperação judicial que apresenta objeção. Juiz que não convoca Assembleia-geral de credores e concede a recuperação judicial. Inteligência do
art. 55 “caput” que outorga, a qualquer credor, o direito de manifestar objeção ao plano. O credor cujo
crédito não for alterado no valor e na forma de pagamento pelo plano não terá direito a voto e não
será considerado para fins de quorum de deliberação. A apresentação de objeção ao plano por credor
não afetado pelo plano impõe ao juiz a obrigação de convocar a Assembleia geral prevista no art. 56.
Agravo provido”.9
Não possuem direito a voto os credores de obrigações a título gratuito, na medida em que a Lei
prevê expressamente a sua exclusão.
Na recuperação judicial, os titulares de créditos retardatários, excetuados os titulares de créditos derivados da relação de trabalho, não terão direito a voto nas deliberações da assembleia geral
de credores, conforme estatui o artigo 10, § 1º, da Lei 11.101/2005.
Todos os credores admitidos na recuperação judicial têm, em princípio, direito a voz e voto
na assembleia. De acordo com o artigo 39 da Lei, têm direito a voto as pessoas arroladas no qua 7. TJ/SP, AI 02711971720128260000, rel. Mac Craken, j. 20.05.2013.
8. TOLEDO, Paulo F. C. Salles de e ABRÃO, Carlos Henrique (coords.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e
Falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 103.
9. TJ/SP, AG 990101427389-SP, rel. Pereira Calças, j. 06/07/2010, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, DJ
29/07/2010.
87
Assembleia geral de credores: direito de voto segundo o valor sustentado em impugnação de crédito
dro geral de credores. Nota-se, portanto, que a Lei prevê que, idealmente, a Assembleia Geral deve
ser realizada após a consolidação do quadro e finalização da verificação de créditos, ou seja, após
o julgamento das impugnações de crédito eventualmente apresentadas pelos credores. Cumpre
observar que, mesmo após a homologação do quadro, podem restar pendentes de apreciação impugnações e habilitações retardatárias, representando risco de serem computados votos de forma
inconsistente em relação à natureza e valor.
Ainda, há que se salientar que a decisão que julga a impugnação de crédito desafia recurso de
agravo de instrumento, a teor do artigo 17 da Lei. De acordo com o parágrafo único do aludido dispositivo, “recebido o agravo, o relator poderá conceder efeito suspensivo à decisão que reconhece
o crédito ou determinar a inscrição ou modificação do seu valor ou classificação no quadro-geral
de credores, para fins de exercício de direito de voto em Assembleia-geral”, buscando conceder ao
credor o direito de voto na proporção de seu crédito.
É possível que a Assembleia seja realizada antes mesmo da consolidação do quadro. Nesta hipótese, os credores hábeis ao exercício de voto serão aqueles relacionados no edital publicado pelo
administrador, nos termos do § 2º do artigo 7º da Lei (segunda lista). Há riscos de serem computados votos que poderiam ser modificados, seja quanto ao valor, seja quanto à natureza, em sede
de impugnação.
Pode ocorrer que ainda não tenha sido elaborada a relação pelo administrador judicial de que
trata o § 2º do artigo 7º da Lei quando da realização da assembleia geral de credores. Nesse caso,
a Lei estatui que terão direito a voto os credores constantes da relação apresentada pela própria
recuperanda. Referida relação, por ser elaborada unilateralmente pela recuperanda, pode conter
inúmeras inconsistências, ensejando riscos ainda maiores em relação à votação assemblear, possibilitando até mesmo a manipulação de votos.
Na opinião do Professor Fábio Ulhôa Coelho, “além dos créditos que constam das listas publicadas no decorrer da verificação de crédito, também o credor que fez a apresentação de crédito ao
administrador judicial (ou impugnou a relação com o objetivo de aumentar ou reclassificar para
cima seu crédito) é considerado admitido e pode participar da Assembleia, mesmo que ainda não
decidido seu pleito. É suficiente a prova da apresentação de crédito (ou da impugnação da relação
de credores feita com aqueles objetivos) para o habilitante (ou impugnante) ter direito de ingresso
no recinto em que se realiza o encontro assemblear, discutir e votar as matérias10”.
Observe-se que as deliberações da assembleia geral não serão invalidadas em razão de posterior decisão judicial acerca da existência, quantificação ou classificação de créditos, visando conferir maior segurança jurídica às decisões assembleares. Garantindo a realização da Assembleia,
o artigo 40 estatui que não será deferido provimento liminar, de caráter cautelar ou antecipatório
dos efeitos da tutela, para a suspensão ou adiamento da assembleia geral de credores em razão de
pendência de discussão acerca da existência, da quantificação ou da classificação de créditos.
10. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 101.
88
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
4. CREDORES TITULARES DE CRÉDITOS OBJETO DE IMPUGNAÇÃO
PENDENTE DE JULGAMENTO
Como observamos acima, é possível que, quando da realização da Assembleia Geral de Credores, ainda não tenham sido julgadas as impugnações de crédito apresentadas pelos credores, de
modo que será utilizada a lista de que trata o § 2º do artigo 7º da Lei.
A impugnação de créditos pode ser apresentada pelo próprio titular do direito. Nessa hipótese,
se posiciona Fábio Ulhôa Coelho no sentido de que “o impugnante deve ter o mesmo tratamento
do credor que habilita o crédito. Isto é, ele participa da Assembleia, com direito a voz e voto – este
último na proporção e classe que ele pretende alcançar com a impugnação – enquanto o juiz não
decide seu pleito”. Nesse mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manifestou
entendimento em duas oportunidades:
“Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Credor em virtude de novação de obrigação. Direito
de participar da Assembleia-Geral de Credores com voz e voto, este na proporção do valor do crédito
que foi objeto da novação, bastando, para tanto, que tenha pedido sua habilitação, formulado divergência ou deduzido impugnação judicial, até que esta seja definitivamente julgada. Agravo provido” (grifos
nossos.)11.
“Recuperação judicial. Voto na assembleia. Crédito sub judice, com sentença favorável e trânsito em julgado, mas representando ainda obrigação ilíquida. dependente de liquidação. A impugnação à relação
de credores pode ser feita pelo próprio titular do crédito objeto da medida. Nesse caso, a finalidade
será o aumento do valor ou a reclassificação para cima do crédito. Nesse caso, o impugnante deve ter
o mesmo tratamento do credor que habilita o crédito. Isto é, ele participa da Assembléia, com direito a
voz e voto – este último na proporção e classe que ele pretende alcançar com a impugnação –, enquanto
o juiz não decide seu pleito. Agravo de instrumento provido” (grifos nossos.)12
Ainda, a impugnação pode ser apresentada por terceiro que não seja titular do crédito, por
outro credor, pelo devedor ou pelo Ministério Público, com o propósito de reduzir o seu valor ou
reclassificá-lo para baixo. Nesse cenário, Fábio Ulhôa Coelho entende que “enquanto não for julgada procedente a impugnação, o titular do crédito impugnado participa com direito a voz e voto da
Assembleia dos Credores na proporção e classe da relação impugnada13”.
Destoando dos entendimentos acima expostos, do voto do Min. Massami Uyeda em AgRg na
MC 17.840/SP de sua relatoria, julgado em 14/04/201114, extrai-se o seguinte posicionamento:
11. AI 429.621-4/7-00, rel. Pereira Calças, Câmara Esp. de Falências e Recuperações Judiciais, Data de registro: 19/01/2007.
12. TJ/SP, AG: 990100363174 SP, rel. Romeu Ricupero, j. 06/07/2010, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, DJ
20/07/2010.
13. Op. cit., p. 102.
14. Do qual se extrai a seguinte ementa: “Agravo regimental. Medida cautelar. Atribuição de efeito suspensivo a recurso
especial ainda não submetido ao juízo de admissibilidade do tribunal a quo. Possibilidade, excepcionalmente. Fumus
boni iuris e periculum in mora. Caracterização, na espécie. Recuperação judicial. Credor que efetiva objeção ao plano
de recuperação e impugnação ao quadro de credores, com pedido de imediata designação de assembléia geral de credores.
89
Assembleia geral de credores: direito de voto segundo o valor sustentado em impugnação de crédito
“Na verdade, somente a partir do reconhecimento judicial (em caráter liminar ou definitivo)
da existência e titularidade de crédito no incidente de impugnação é que caberá ao juiz determinar
a inscrição ou modificação do seu valor ou classificação no quadro-geral de credores, para fins de
exercício de direito de voto em assembléia, conforme preceitua o artigo 17, ou determinar, para
fins de rateio, a reserva de valor para a satisfação do crédito impugnado, nos termos do artigo 16,
ambos da Lei 11.101/2005. Assim, dos artigos que regem a matéria (arts. 8º, 13, 15, 16, 17e 39 da
Lei 11.101/2005) extrai-se que a alteração do valor ou classificação do crédito no quadro geral de
credores, para efeito de exercício de direito a voto, depende de decisão judicial nesse sentido no
incidente de impugnação. A pretensão da supracitada alteração veiculada no incidente de impugnação, isoladamente considerada (é dizer, sem determinação judicial nesse sentido), não autoriza o
exercício do direito de voto, nos termos pretendidos”.
Assim, para o Ministro Massami Uyeda, não basta a alegação em sede de impugnação de
crédito, mas deve haver, necessariamente, decisão judicial, ainda que em caráter liminar que tenha
apreciado o pleito.
Já o Professor Manoel Justino aponta que “a única solução possível seria o credor pedir para o
juiz colher seu voto em separado e, se houver recusa, agravar com pedido de efeito ativo, para que
seu voto possa ser colhido em separado. Feito isto, se for suficiente para alterar de forma substancial o resultado, só restará ao juiz determinar a suspensão dos efeitos daquela decisão até que haja
decisão final sobre o valor, já que a lei proíbe a invalidação da deliberação e suspensão ou adiamento da AGC.15”
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem manifestado entendimento no sentido de
que, uma vez presente a verossimilhança das alegações do credor, deve ser concedido o direito a
voto no valor ou classe pleiteados, por meio de decisão judicial:
“Recuperação judicial. Assembleia geral de credores. Participação do credor, com direito de voto e pelo
valor do crédito quirografário requerido, enquanto pendente de julgamento definitivo a impugnação de
crédito por ele formalizada em juízo. Concessão do pedido liminar. Presença dos requisitos da plausibilidade do direito invocado e do real perigo de sofrer dano irreparável ou de incerta reparação decorrente
da demora na prestação jurisdicional. Urgência em obter a tutela postulada para exercer a defesa de
seus interesses e influir nas deliberações que, nos termos do § 2º do artigo 39 da Lei nº 11.101/05,
permanecerão válidas independentemente das ulteriores decisões judiciais acerca dos créditos. Precedentes deste E. Tribunal de Justiça. Agravo de instrumento provido”.16 (grifos nossos.)
Decisão que defere o pleito, determinando, ainda, o exercício do direito a voto nos termos pretendidos (sem a correspondente decisão judicial no incidente de impugnação). Disposição de ofício, em tese. Possível preponderância do
credor-impugnante. Pedido cautelar deferido. Recurso improvido” (AgRg na MC 17840/SP, Rel. Ministro Massami
Uyeda, 3.ª Turma, j. 14/04/2011, DJe 27/04/2011).
15. Op. cit., p. 126.
16. TJ/SP AI 0059135-26.2012.8.26.0000. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. José Reynaldo, j. 04/12/2012.
90
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
“Recuperação judicial. Credor que apresenta divergência no prazo estabelecido no art. 7.º, § 1.º, mas
não observa o estabelecido no art. 8.º para a impugnação do resultado daquela. Processamento admitido como divergência retardatária. Recuperação Judicial Assembléia de credores. Credor relacionado pelo devedor e pelo administrador. Participação assegurada, mesmo tendo apresentado divergência intempestiva. Recuperação Judicial. Assembléia de credores. Participação do credor, pelo valor e
classificação de crédito por ele pretendidos, concedida em tutela antecipada, à vista da verossimilhança
de suas alegações, mesmo diante da intempestividade de sua divergência. Recurso não provido”.17 (grifos
nossos.)
Como expusemos supra, é possível que a Assembleia seja realizada antes mesmo da apreciação das habilitações/divergências de crédito pelo Administrador Judicial. Nessa hipótese, Erasmo
Valladão A. e N. França observam que “(...) se por ocasião da Assembléia, não foi o juiz ainda, mas
sim o administrador judicial que não reconheceu o crédito, na relação de que trata o art. 7º, § 2º
(...) Entendemos que a mesma providência – inscrição ou modificação do valor ou classificação do
crédito, ‘para fins de exercício de voto em Assembléia-Geral’ – pode ser requerida cautelarmente
ao juiz18”.
5.CONCLUSÃO
Entendemos que deve prevalecer o valor pleiteado pelo credor, impugnante de seu crédito, até
que a impugnação seja julgada em primeira instância, ou, se fora caso, em sede de divergência ou
habilitação do crédito para efeito de quóruns de instalação e deliberação da Assembleia Geral de
Credores, buscando assegurar a proporcionalidade entre o crédito e o voto, nos termos do artigo
38 da Lei 11.101/2005.
Entretanto, a solução da questão ainda não foi pacificada pela jurisprudência, de modo que,
conservadoramente, deve ser formulado pedido judicial, seja pedido liminar nos autos da própria
impugnação, seja pedido acautelatório quando se tratar de habilitação ou divergência, garantindo
a proporcionalidade entre o crédito e o direito de voto.
6.BIBLIOGRAFIA
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova Lei de Recuperação e Falências comentada: Lei 11.101, de 9 de fevereiro
de 2005, comentário artigo por artigo. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. A nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências: repercussão no direito do trabalho (Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005). Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília,
v. 73, n. 3, p. 37-52, jul.-set. de 2007, p. 41.
17. TJ/SP, AI 0014339-18.2010.8.26.0000, rel. Araldo Telles, j. 06/07/2010.
18. SOUZA JR., Francisco Satiro de; e PITOMBO, Antonio Sérgio A. de M. (coords.). Comentários à Lei de Recuperação de
Empresas e Falências: Lei 11.101/2005. Artigo por artigo. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 210.
91
Assembleia geral de credores: direito de voto segundo o valor sustentado em impugnação de crédito
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2007.
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; MOURÃO, Corrêa-Lima Sérgio (coords.). Comentários à nova Lei de Falência e
Recuperação de Empresas: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
DE LUCCA, Newton (coord.). Comentários à nova Lei de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo:
Quartier Latin, 2005.
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2008.
SOUZA JR., Francisco Satiro de e PITOMBO, Antonio Sérgio A. de M. (coords.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências: Lei 11.101/2005. Artigo por artigo. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007.
TOLEDO, Paulo F. C. Salles de e ABRÃO, Carlos Henrique (coords.). Comentários à Lei de Recuperação de
Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2005.
VIII
Estudos sobre a execução coletiva de
títulos executivos extrajudiciais
Paula A. Abi-Chahine Yunes Perim
Mestranda em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP.
Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Advogada.
Resumo: Execução Coletiva de Títulos Executivos Extrajudiciais. Implicações dos
Termos de Ajustamento de Conduta assinados pelos particulares em relação a determinados órgãos públicos e relaciona o núcleo central do artigo proposto às decisões
proferidas pelo CADE.
Sumário: 1. Introdução – 2. Generalidades – 3. Execução coletiva de título judicial
e extrajudicial – 4. Termo de ajustamento de conduta (TAC) – 5. Efetivação judicial
das decisões e compromissos do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência
(CADE) – 6. Conclusões – 7. Bibliografia.
94
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1.INTRODUÇÃO
Tem o presente estudo o objetivo de abordar a temática da execução coletiva de títulos executivos extrajudiciais, demonstrando sua importância no ordenamento jurídico como um mecanismo
de efetivação de direitos e interesses transindividuais.
Escassos são os trabalhos acerca da execução coletiva no sistema processual civil coletivo. É
sabido que o processo de execução é aquele que viabiliza a satisfação material do direito resistido
do credor, ante a inadimplência do devedor, pela certeza alcançada na sentença judicial, civil ou
penal, ou pelo reconhecimento do direito em título executivo extrajudicial.
Ocorre que a execução coletiva não recebeu trato mais aprofundado nos próprios instrumentos de tutela coletiva, sendo necessário valer-se do sistema ortodoxo do Código de Processo Civil
para cumprimento da obrigação prevista no título.
Partindo-se dessas premissas, as considerações a respeito do tema justificam-se não só pela
sua relevância social, na medida em que o direito a ser tutelado na via executiva possui caráter
coletivo, mas, principalmente, em razão da ausência de tratamento legislativo específico para a
execução coletiva e da pouca atenção destinada ao assunto no campo doutrinário.
2.GENERALIDADES
É verdade que, recentemente, a execução vem recebendo mais atenção e importância nas inúmeras reformas legislativas realizadas para seu aperfeiçoamento.
Especificamente no plano do processo de execução, a doutrina1 confere destaque especial à
Lei 10.444/2002 que, além de outras alterações, eliminou o processo de execução como processo
autônomo em relação às obrigações de fazer ou não fazer (artigo 461 do CPC) e às obrigações de
dar coisa certa ou incerta (artigo 461-A do CPC).
A segunda onda de inovações surgiu com o advento da Lei 11.232/2005, que produziu várias
alterações no CPC e, ainda, eliminou, a partir da nova regra estabelecida para o sistema processual
brasileiro, o processo de execução como processo autônomo em relação às obrigações de dar quantia, inserindo no Livro I, Título VIII, do Código de Processo Civil, o Capítulo X, denominado de
cumprimento de sentença (artigos 475-I a 475-R).
A Lei 11.382/2006 também é objeto de especial atenção no sistema processual, vez que produziu o maior número de reformas no Livro II do Código de Processo Civil, com alterações estru-
1. THEODODO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.
105-107. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Execução coletiva em relação aos direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos. Algumas considerações reflexivas. Temais atuais da execução civil. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 303-305.
95
Estudos sobre a execução coletiva de títulos executivos extrajudiciais
turais, redacionais e pontuais, com destaque para as várias modificações no sistema de defesa dos
embargos do executado2.
Apesar das inúmeras reformas sofridas pelo nosso ordenamento jurídico para o aperfeiçoamento do processo de execução, nenhuma delas tratou especificamente da execução coletiva de
direitos ou interesses metaindividuais (difusos e coletivos stricto sensu). Nem mesmo o texto do
novo Código de Processo Civil, ainda em votação no Congresso Nacional, aborda a questão.
Embora exista menção à execução coletiva de direitos individuais homogêneos nos artigos
95 a 100 do Código de Defesa do Consumidor, não há, atualmente, disciplina normativa própria e
específica em relação à execução de direitos difusos e coletivos, salvo as disposições previstas nos
artigos 5º, § 6º, 13 e 15 da Lei da Ação Civil Pública.
No entanto, a falta de corpo legislativo próprio e a insuficiência do Código de Processo Civil
para reger a execução coletiva não podem servir como obstáculo para a efetivação dos interesses ou
direitos coletivos. Sendo assim, a execução coletiva deverá ser promovida como atividade complementar ao processo de conhecimento, nos casos em que a obrigação estiver fixada em sentença, ou
mediante processo de execução autônomo, nos casos dos títulos executivos extrajudiciais.
A execução coletiva não deve se limitar à satisfatividade meramente econômica. As prestações
específicas, especialmente as preventivas ou as ressarcitórias na forma específica, são fundamentais
para a tutela adequada e efetiva dos direitos massificados. Nesse contexto é que a execução coletiva
assume um importante papel no ordenamento jurídico, justificando-se em razão do caráter extrapatrimonial dos direitos ou interesses metaindividuais tutelados3.
3. EXECUÇÃO COLETIVA DE TÍTULO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
As execuções coletivas podem ter por fundamento título executivo judicial ou extrajudicial.
A execução coletiva fundada em título executivo judicial segue, em linhas gerais, o regramento
descrito no Código de Processo Civil4, reformado pela Lei 11.232/2005, por meio do qual a execu-
2. Nesse sentido, Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Medina, discorrem sobre as mudanças introduzidas pela Lei 11.382/2006, sintetizando as alterações sofridas no sistema dos embargos do executado
em: Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 21-22.
3. Para Elton Venturi: “A técnica da tutela executiva indireta, que se socorre dos meios de coerção sobre a pessoa ou sobre
o patrimônio do executado, pressionando-o ao adimplemento específico da obrigação, é de extrema relevância para o
processo coletivo, na execução dos direitos metaindividuais que, essencialmente, apresentam-se com caráter extrapatrimonial” (Execução da tutela coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 160).
4. O presente estudo toma como base as disposições atualmente previstas no Código de Processo Civil. Muito embora
esteja em votação, no Congresso Nacional, o texto do novo Código de Processo Civil, não se fará menção a ele neste
artigo, mesmo porque, pelo que se pôde verificar até o momento, a parte referente ao processo executivo não sofreu significativas alterações, de modo que o conteúdo aqui exposto deve manter-se inalterado pós vigência do novo Código.
96
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
ção deve ocorrer como fase de um único processo sincrético, iniciado mediante requerimento do
credor e caso o devedor não tenha adimplido espontaneamente a condenação5.
A inovação introduzida pela Lei 11.232/2005 transformou o antigo processo de execução
em mera fase de processo de conhecimento, denominada de cumprimento de sentença e regulada pelo artigo 475-I e seguintes do Código de Processo Civil. A partir dessa mudança – que já
não é mais tão recente, mas convém ser lembrada – passou-se a oferecer ao autor, que teve seu
direito reconhecido em sentença, a possibilidade de exigir diretamente o cumprimento da decisão adjudicada.
A execução das sentenças de fazer, não fazer e entregar coisa (de cunho mandamental) far-se-á na forma prevista pelos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil; e a efetivação das
sentenças pecuniárias deverá observar as disposições relacionadas ao cumprimento da sentença,
conforme as regras dos artigos 475-I e 475-R do mesmo diploma processual.
A execução coletiva fundada em título executivo extrajudicial que reconheça direitos ou interesses difusos, diante da falta de procedimento específico no sistema processual, seguirá, via de
regra, o quanto disposto no Livro II do Código de Processo Civil, que trata do processo de execução de caráter privatista. Essa execução coletiva seguirá o procedimento previsto para a respectiva
obrigação a ser executada.
Para a execução autônoma de obrigação de fazer ou não fazer, o procedimento a ser seguido é
do artigo 632 e seguintes do Código de Processo Civil. Nas obrigações de dar quantia certa, o procedimento será o do artigo 646 e seguintes e, finalmente, para as obrigações de dar coisa certa ou
incerta, o exequente deverá valer-se do procedimento previsto no artigo 621 e seguintes do mesmo
diploma processual. Vale mencionar que não cabe cumulação de obrigações de naturezas diversas
em um mesmo procedimento, não obstante constem de um mesmo título executivo, em razão do
princípio da especialidade dos procedimentos executivos.
Como destacado acima, apesar da existência em nosso ordenamento jurídico de um microssistema de direito coletivo6, o Código de Processo Civil continua tendo ampla aplicabilidade no
campo da execução coletiva de títulos judiciais ou extrajudiciais.
5. Nas ações civis públicas e coletivas em sentido amplo, em regra, os recursos terão somente efeito devolutivo (art. 14
da Lei 7.347/85; art. 85 da Lei 10.741/03 e art. 198, VI, da Lei 8.069/90), ficando facultado ao juiz, apenas se houver
probabilidade da ocorrência de dano de difícil reparação à parte, conceder também o efeito suspensivo. Nesse aspecto
o processo coletivo se diferencia do processo individual, no qual, à exceção dos recursos elencados no artigo 497 do
Código de Processo Civil, todos os demais possuem efeito suspensivo. Assim sendo, via de regra, torna-se possível a
execução provisória de sentença coletiva pendente de recurso.
6. Elton Venturi defende a necessidade de implementação de uma tutela executiva diferenciada para tratamento dos direitos transindividuais: “Parece lícito reclamar-se pela implementação de uma tutela executiva diferenciada dos direitos
metaindividuais que permita, em cada situação concreta, o exato e imediato cumprimento do provimento judicial, uma
vez que, consoante Federico Carpi, há ‘estrema difficoltà di utilizzare forme esecutive uniche per tutti i tipi di situazioni
Che debbano essere realizzate in via diretta’. Nada mais certo, pois, que se propugnar, ‘de lege ferenda’, pela criação de
um procedimento específico, adequado às aspirações de funcionalidade dos direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos.” (Execução da tutela coletiva. Malheiros, 2000, p. 90).
97
Estudos sobre a execução coletiva de títulos executivos extrajudiciais
Feitas estas breves considerações introdutórias, passemos a tratar do assunto central objeto
deste trabalho.
4. TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA (TAC)
Entende-se por Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou compromisso de ajustamento de
conduta, o instrumento por meio do qual o Ministério Público, União, Estados e Municípios “tomam dos interessados a obrigação à determinada conduta, mediante cominação, com eficácia de
título executivo extrajudicial, tendo por escopo a proteção de direitos transindividuais ou coletivos
lato sensu”7.
De acordo com a dicção do § 6º, artigo 5º da Lei 7.347/85, “os órgãos públicos legitimados
poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais,
mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”. Assim, da assinatura do
TAC nasce um título executivo extrajudicial de obrigação de fazer, não fazer ou indenizar, por meio
do qual a parte interessada assume o dever de adequar sua conduta às exigências previstas no título.
Nas palavras de Hugo Nigro Mazzili8:
“O compromisso de ajustamento de conduta não foi introduzido no Direito brasileiro pela Lei da
Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), mas sim surgiu alguns anos depois, já no início da década de
1990, primeiro quando da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente e, em seguida, foi generalizado pelo Código de Defesa do Consumidor. Por meio desse instrumento, os órgãos públicos
legitimados à ação civil pública ou coletiva passaram a poder tomar do causador de danos a interesses
difusos e coletivos, o compromisso escrito de que estes adequassem sua conduta às exigências da lei,
sob pena de cominações, previstas no próprio termo. Por força das leis que o instituíram, em caso de
descumprimento das obrigações nele assumidas, o compromisso passa a constituir título executivo
extrajudicial.”
Para ser devidamente caracterizado como título executivo extrajudicial, o compromisso de
ajustamento de conduta deverá apresentar obrigações líquidas, certas e exigíveis, devendo o órgão
tomador do termo ter a máxima cautela, porque não raramente verifica-se em alguns compromissos a iliquidez da conduta, como a ausência de especificação de como uma obrigação deverá ser
realizada9.
7. SHIMURA, Sérgio. Título executivo. 2. ed. São Paulo: Método, 2005, p. 529, apud SILVA, Nelson Finotti. Execução de
compromisso de ajustamento de conduta ambiental, Direito ambiental e as funções essenciais à justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 752-753.
8. As vedações do compromisso de ajustamento de conduta. Disponível em: <http://www.planetaverde.org/artigos/
arq_12_17_28_09_10_09.pdf>. Acesso em: 18 de junho de 2012.
9. SILVA, Nelson Finotti. Execução de compromisso de ajustamento de conduta ambiental. Direito ambiental e as funções
essenciais à justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 759.
98
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Como adverte Marcelo Abelha Rodrigues10 em sua obra sobre o assunto, “o que se observa na
prática é que a conduta é prevista, mas não especificada no compromisso, porque dependeria da
realização de projeto que não estaria contido no próprio compromisso. Tal fato desnatura a natureza executiva do título, porque deve ter o cuidado de colocar no TAC a obrigação com todas as suas
especificações, de forma que a sua efetivação não dependa de nenhum ato posterior ou existente
fora do corpo do termo de ajuste”.
Desta forma, contendo todos os elementos necessários à sua caracterização como título executivo extrajudicial, qualquer que seja a modalidade de obrigação prevista no TAC, o artigo 585,
VIII, do Código de Processo Civil11, autoriza o ajuizamento de processo de execução autônomo,
podendo o magistrado valer-se dos poderes previstos nos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil para dar maior efetividade à prestação jurisdicional executiva12.
Importante destacar que não se aplicam os dispositivos relativos à liquidação de sentença aos
títulos executivos extrajudiciais, cuja liquidez é essencial à sua força executiva13.
É comum que o compromisso de ajustamento de conduta contenha mais de uma obrigação
nele prevista, inclusive de naturezas diversas. Nesse caso, importante frisar que somente será possível a cumulação de pedidos em uma única execução quando as obrigações a serem executadas
forem de mesma natureza, não sendo possível a cumulação de obrigações de naturezas diversas por
incompatibilidade procedimental.
Em que pese a lei tenha atribuído apenas a alguns órgãos legitimidade para firmar o compromisso, o título gerado pelo TAC não é constituído em benefício do ente público que o toma,
mas em prol de toda coletividade lesada. Tanto é assim que a sua execução poderá ser promovida
por todos os legitimados ao ajuizamento de ação civil pública que detenham condição de órgão
público14. Nesse caso, deve-se levar em consideração o fato de que o direito contido no título não
10. Manual de direito ambiental e legislação aplicável. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 190, apud SILVA, Nelson
Finotti. Execução de compromisso de ajustamento de conduta ambiental. Direito ambiental e as funções essenciais à
justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 759.
11. De acordo com Leonardo Greco (Execução nas ações civis públicas, p. 57): “(...) quando o compromisso for tomado pelo
Ministério Público, poderá constituir título executivo da parte final do inciso II do artigo 585 do CPC (transação referendada pelo MP), se dois ou mais interessados, em posições divergentes, participarem da celebração do compromisso e os
interesses forem disponíveis. Se tomado pelo MP unilateralmente de um só interessado, ou tomado por qualquer outro
órgão legitimado, que não esteja legalmente autorizado a transigir com o interesse em jogo, poderá configurar o título
previsto na primeira parte do inciso II do artigo 585 (documento público de confissão de dívida assinada pelo devedor)”.
12. Nesse sentido é a posição de Sérgio Shimura: “o compromisso de ajustamento de conduta, sendo título executivo extrajudicial, qualquer que seja a modalidade de obrigação envolvida, é um dos que permitem a abertura de um processo
de execução autônomo, no qual o juiz estará dotado dos poderes instituídos nos arts. 461 e 461-A, CPC, com vistas à
maior efetividade da prestação jurisdicional” (Tutela coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006, p. 133).
13. Patrícia Miranda Pizzol refere-se à possibilidade de que o termo de ajustamento de conduta, título executivo extrajudicial, enseje liquidação. Segundo a autora, no sistema de tutela de direitos coletivos, deve ser permitida a existência
de títulos executivos extrajudiciais ilíquidos. Justifica-se essa medida em razão da natureza dos interesses tutelados
(Liquidação nas ações coletivas. São Paulo: Lejus, 1998, p. 183).
14. O Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão proferida pelo Min. Benedito Gonçalves, pronunciou-se no sentido
de que apenas os legitimados ao ajuizamento de ação civil pública que detenham condição de órgão público poderão
99
Estudos sobre a execução coletiva de títulos executivos extrajudiciais
pertence individualmente ao ente legitimado, mas a toda coletividade, motivo pelo qual todos os
colegitimados estão obrigados a iniciar a execução, ainda que não figurem como credores do título
executivo extrajudicial (art. 5º, § 6.º, Lei 7.347/85)15.
As associações civis, fundações privadas ou sindicatos, portanto, embora possam ajuizar ações
civis públicas ou coletivas para a defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos,
não poderão, sob hipótese alguma, tomar compromisso de ajustamento de conduta e, consequentemente, proceder à sua execução, já que não assumem a condição de órgão público a que a Lei
7.347/85 faz referência.
Quanto às autarquias, empresas públicas, fundações públicas e sociedades de economia mista, no entendimento de Edis Milaré e Hugo Nigro Mazzili16, nada obsta que tais órgãos tomem
compromissos de ajustamento de conduta quando atuarem na qualidade de entes estatais, como
prestadores de serviços públicos, nos termos do artigo 173, § 1º, I e II, da Constituição Federal, o
que lhes confere a possibilidade de executá-los.
Geísa de Assis Rodrigues17 posiciona-se contra a legitimidade ativa dos entes paraestatais, sob
o fundamento de que, ao escolher uma instituição privada para prestar serviços públicos, o Estado
se despe de sua personalidade pública, recebendo o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas de direito privado, ressalvadas as normas de controle dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e eficiência.
No que tange à possibilidade de execução individual do termo de ajustamento de conduta, a
jurisprudência tem considerado legítimas apenas as partes que figuraram expressamente no título.
Terceiros alheios ao vínculo obrigacional estipulado no TAC, ainda que o direito ali previsto lhes
aproveite, devem propor ação própria para constituir o título executivo que não possuem18.
15.
16.
17.
18.
tomar das partes termo de ajustamento de conduta, sendo também apenas estes órgãos os legitimados à execução do
termo, em caso de descumprimento do nele avençado (REsp 1.020.009-RN, 1.ª Turma, DJe 09.03.2012).
Especificamente sobre a legitimidade para execução de compromisso de ajustamento de conduta ambiental, cita Fernando Reverendo Vidal Akaoui: “(...) abre-se, assim, o único posicionamento coerente com a tutela dos bens difusos e
coletivos, a saber, a legitimidade para que qualquer um dos colegitimados possa executar o título executivo pelo outro
obtido, pois, reafirmamos, o direito ali contido não é seu, mas da coletividade, motivo pelo qual a exclusividade seria
absolutamente contrária ao espírito criado pelo legislador” (Compromisso de ajustamento de conduta ambiental. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, p. 162).
Mencionados autores entendem que, para aqueles órgãos dos quais o Estado participe, concorrendo na atividade econômica em condições empresariais, não é possível conceder-lhes a prerrogativa de tomar compromissos de ajustamento de conduta, sob pena de serem estimuladas desigualdades afrontosas à ordem jurídica (Notas sobre o compromisso
de ajustamento de conduta. Direito, água e vida. São Paulo, julho de 2003. v. 1 – Livro de trabalhos acadêmicos apresentados no 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental –, p. 572).
Ação Civil Pública e Termo de Ajustamento de Conduta. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 161.
No julgamento do recurso de apelação oriundo de ação de obrigação de não fazer, o Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo considerou parte ilegítima para a execução de TAC terceiro que não constava no título objeto da ação executiva. De acordo com o Tribunal, o credor, “para efeito do art. 566, I do CPC, é aquele a quem o título executivo confere
direito de exigir de outrem a obrigação. Os autores, terceiros interessados, não têm legitimidade para executar em
nome próprio obrigação ajustada entre a ré e o Ministério Público. (...) A execução forçada depende da apresentação de
um título executivo judicial ou extrajudicial, e pode promovê-la o credor, a quem a lei confere título executivo (CPC,
100
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
O produto da execução coletiva, no caso de obrigações de dar quantia certa ou de conversão
da obrigação em perdas e danos, será revertido ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, criado
pelo artigo 13 da Lei 7.347/85 e regulamentado pela Lei 9.008/95. Os recursos obtidos por meio da
execução coletiva serão destinados preferencialmente à reconstituição dos bens lesados.
Quanto à competência para a execução coletiva do compromisso de ajustamento de conduta,
esta será do juízo da localidade onde ocorreu o dano, de acordo com o quanto disposto no artigo 2º,
da Lei 7.347/85. Tratando-se de execução individual, esta terá processamento no juízo da condenação19 ou no foro do domicílio do exequente, por força dos artigos 98 e 101-I do Código de Defesa
do Consumidor, aplicado subsidiariamente à Lei n. 7.347/85.
5. EFETIVAÇÃO JUDICIAL DAS DECISÕES E COMPROMISSOS DO CONSELHO
ADMINISTRATIVO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA (CADE)
São considerados títulos executivos extrajudiciais, por força de lei, as decisões do Plenário do
CADE que imponham multa ou obrigação de fazer ou não fazer (art. 93, Lei 12.529/12) e o compromisso de cessação de prática, documento por meio do qual o próprio representado reconhece a
obrigação de fazer cessar a prática investigada ou seus efeitos lesivos (art. 85, § 8º, Lei 12.529/12).
Essas decisões não estão sujeitas a recurso no âmbito do Poder Executivo, pelo que a execução
nelas fundada será definitiva. Isso não significa dizer, evidentemente, que o seu conteúdo não possa
ser objeto de controle pelo Poder Judiciário.
Para que sejam considerados como títulos executivos extrajudiciais, ambos devem estar incorporados em documento revestido das formalidades previstas na Lei 12.529/12 e no Código
de Processo Civil. A expressão “título executivo” é utilizada para designar tanto o ato (decisão ou
compromisso) como o documento que o incorpora20.
art. 566, I). O título executivo apresentado foi firmado entre a Scorpn e o Ministério Público; estabeleceu o vínculo
individual entre ambos, de modo a poderem se exigir mutuamente as obrigações assumidas. Os autores não são parte
no título e não são, com base nele, ‘credores’ como entendido pela lei processual e material. Em palavras simples, não
podem executar título firmado por terceiros e do qual não fizeram parte. A sentença, ao afirmar que somente o Ministério Público pode executar as obrigações relacionadas no Termo de Ajuste, está correta, e a execução já foi proposta,
conforme se verifica a fls. 104/117 (...).Os autores podem exigir da ré o respeito à lei e a cessação dos ruídos excessivos,
com base nos direitos de vizinhança; mas para isso devem propor ação própria e constituir o título executivo que no
momento não possuem. Não podem ‘aproveitar’ o termo de ajuste e executar obrigação constituída em favor de outrem, ainda que interessados nela” (Apelação n. 699.514-5/8-00, Câmara Especial do Meio Ambiente, rel. Torres de
Carvalho, j. 27/03/2008).
O Tribunal de Justiça do Rio de Grande do Sul reconheceu a legitimidade de pessoa física para postular a execução
individual de obrigação prevista em TAC firmado entre o Estado e o Ministério Público. Nesse caso, o próprio TAC
havia convencionado que o cidadão, individualmente, poderia promover a execução da obrigação ali prevista, quando
constatasse o seu descumprimento (não oferecimento de fármacos) (Apelação n. 70035043488, rel. João Carlos Branco
Cardoso, 4.ª Câmara Cível, j. 19/05/2010).
19. Local onde seria proposta ação a ação condenatória.
20. MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A execução das decisões do CADE. Revista Forense, v. 344, p. 112.
101
Estudos sobre a execução coletiva de títulos executivos extrajudiciais
Assim, da decisão proferida pelo Plenário do CADE ou do compromisso de cessação devem
constar perfeitamente definidos o ato de que o infrator deverá praticar ou se abster, assim como o
prazo dentro do qual a obrigação deverá ser cumprida.
A execução fundada em mencionados títulos executivos pode ter por objeto obrigações de
pagar quantia certa e obrigações de fazer ou não fazer.
As execuções que tenham por objeto exclusivamente a cobrança de multas (sanções pecuniárias) serão processadas de acordo com o procedimento previsto na Lei 6.830/1980. Conforme
regra descrita no artigo 94 da Lei 12.529/2011, a condenação pecuniária arbitrada pelo Plenário do
CADE será objeto de inscrição na dívida ativa. Trata-se de crédito pecuniário exigido por autarquia
em virtude de autuação essencialmente pública, enquadrando-se, portanto, nas hipóteses previstas
nos artigos 1º e 2º da Lei 6.830/198021.
Além da aplicação de sanções pecuniárias, o CADE poderá aplicar multas de caráter coercitivo, a fim coibir a continuação ou reiteração de práticas indevidas ou determinar a adoção de
condutas destinadas a desfazer consequências de anterior infração.
Sobre a execução das multas punitivas e coercitivas, Eduardo Talamini, em obra publicada
ainda sob a vigência da Lei 8884/94, faz a seguinte distinção:
“Quando só houver créditos pecuniários a executar, proceder-se-á por meio de execução fiscal. Isso
vale tanto para a multa com caráter punitivo pelas infrações cometidas antes do julgamento quanto
para a multa coercitiva quando não houver necessidade de imposição judicial do dever de fazer (hipótese que se terá quando, depois de uma resistência inicial, acarretadora da incidência da multa, o
representado cumpre o dever ainda antes de ser promovida a ação).
(...)
Por isso, quando houver necessidade do processo dos arts. 62 e seguintes [que tratam da execução
de obrigação de fazer e não fazer], os créditos decorrentes da multa coercitiva não serão objeto de
execução fiscal. Serão cobrados através de execução comum por quantia certa, a desenvolver-se de
modo incidental, porém autônomo, em relação ao processo dos arts. 62 e seguintes. (...) No art. 61
está previsto que se observará o regime da execução fiscal apenas quando o processo executivo tiver
‘por objeto exclusivamente a cobrança de multas pecuniárias’. Isso significa que, quando o crédito pecuniário estiver vinculado à efetivação do dever de fazer ou não fazer, não terá vez a execução fiscal.”22
O mesmo raciocínio se aplica ao compromisso de cessação de conduta, no qual esteja prevista
multa diária no caso de descumprimento (art. 85, § 1º, II, Lei 12. 529/11).
21. TALAMINI, Eduardo. Efetivação judicial das decisões e compromissos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (Lei 8.884/94). In: DIDIER JR., Fredie e CHAVES FREITAS, Cristiano (coord.). Procedimentos especiais
cíveis – Legislação extravagante. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1188.
22. TALAMINI, Eduardo. Idem, p. 1189. De acordo com a nova Lei do CADE (Lei 12.529/11), o artigo 94 trata das execuções pelo procedimento da Lei 6.830/1980, enquanto que o artigo 95 e seguintes referem-se às execuções das obrigações
de fazer e não fazer.
102
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Nos demais casos (obrigação de fazer e não fazer), a execução obedecerá ao quanto previsto
no Código de Processo Civil, respeitadas as disposições específicas da própria Lei 12.529/11. As
obrigações de não fazer são as de maior expressão no elenco das decisões proferidas pelo Plenário
do CADE, pois quase todas as infrações por ele analisadas se consubstanciam em práticas que o
infrator deveria se abster. E é natural que assim seja, em razão do próprio objeto das decisões do
CADE, que não têm por finalidade a solução de conflitos entre empresas ou indivíduos, mas a preservação da ordem econômica23.
O procedimento da ação de execução é similar ao previsto no Código de Processo Civil. Proposta a petição inicial, o magistrado examinará a presença dos requisitos do título executivo e, ato
contínuo, expedirá mandado de citação ao réu, citando-o e ordenando-lhe o cumprimento dos
deveres de fazer ou não fazer previstos no título, em prazo compatível com as circunstâncias concretas.
A ordem poderá ser acompanhada da cominação de multa por dia ou outro período de descumprimento. É facultado ao juiz adotar outras medidas para induzir o réu ao cumprimento da
obrigação de fazer ou não fazer (medidas coercitivas).
Pode também o magistrado, desde logo, ditar providências destinadas à produção do resultado almejado na ação, as quais serão implementadas caso não haja o cumprimento espontâneo da
obrigação no prazo estipulado. Entre essas medidas, está a intervenção judicial na empresa que se
negou a cumprir espontaneamente a obrigação (art. 96, Lei 12.259/11).
No que tange à execução específica de obrigações de fazer, importante distinguir os atos que
visam concretizá-la. Esses atos podem ser “atos materiais” de cumprimento da obrigação, como o
de dar continuidade ou desenvolvimento a relações comerciais de prazo indeterminado indevidamente rompidas, ou podem ser “negócios jurídicos”, como o distrato, cisão de sociedade, venda de
ativos ou transferência de controle societário24.
Se a execução tiver por objeto apenas atos materiais, a execução específica se realizará por ato
do próprio infrator executado, podendo incidir a penalidade de multa diária, ou por ato do interventor nomeado pelo juiz. Optando o juiz por essa última modalidade, deixa de haver fundamento
para a incidência da multa diária, que só tem por finalidade promover o cumprimento da obrigação por ato do próprio executado e não de terceiro.
Caso a execução tenha por objetivo a conclusão de negócio jurídico, poderá a parte valer-se do
quanto disposto nos artigos 466-B e 466-C, do Código de Processo Civil. Nesse caso, será necessária a obtenção de sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado ou da declaração
a ser emitida. Afirma José Ignácio Botelho de Mesquita25 que “para que esta sentença seja obtida,
será necessário que da decisão do Plenário do CADE já constem todos os elementos do negócio
23. MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A execução das decisões do CADE. Revista Forense, v. 344, p. 113.
24. MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Idem, p. 115.
25. Idem, ibidem.
103
Estudos sobre a execução coletiva de títulos executivos extrajudiciais
jurídico a ser concluído, porque o negócio jurídico não pode ser criado pelo juiz; o que é dado à
sentença é apenas substituir a declaração de vontade do infrator, pressuposto que seja ela o único
elemento faltante para que o negócio se aperfeiçoe”.
A Lei 12.259/11 não prevê prazo para oposição de embargos à execução. Desta forma, aplica-se, subsidiariamente, o artigo 738, IV, do Código de Processo Civil, contando-se o prazo de dez
dias a partir da juntada aos autos do mandado de citação.
A legitimação ativa para a ação de execução compete ao próprio CADE, por intermédio de sua
Procuradoria Jurídica, a pedido do Presidente da autarquia (art. 81, Lei 12.529/11). É importante
salientar que a Procuradoria do CADE apenas se torna legitimada mediante solicitação de seu Presidente, fundada em decisão ou autorização do Plenário.
Ao promover a execução de suas decisões ou dos compromissos de cessação, o CADE estará
agindo em nome próprio e no exercício de um poder também próprio e exclusivo, já que movimenta a máquina judiciária para perseguir a realização prática de seus objetivos institucionais26.
A ação de execução também poderá ser promovida pelo Ministério Público Federal, a pedido
do CADE (art. 9º, § 2º, Lei 12.529/11), ou no caso de omissão da referida autarquia.
Evidentemente que a efetivação judicial das decisões e compromissos descumpridos não se
trata de mera faculdade do CADE, mas de dever institucional, na medida em que exerce a função
pública de zelar pela ordem econômica. Se não o fizer em prazo razoável, o Ministério Público
Federal encontra-se autorizado a iniciar a execução, independentemente de solicitação, já que a
promoção de ações em defesa da ordem econômica e financeira está entre suas atribuições (Lei
Complementar n. 75/93, art. 6º, XIV, “b”).
Ainda, diante da omissão do CADE e do Ministério Público Federal, entende Eduardo Talamini que as associações – que detenham entre seus fins institucionais a defesa da ordem econômica –
são também legitimadas a promover a efetivação judicial das decisões do Plenário do CADE, assim
como dos compromissos de cessação assumidos perante aquele órgão27.
Segundo o autor, “a solução é consentânea com o espírito das Leis 8.884 e 7.347. É que, se associação em discurso pode promover ação coletiva e depois a efetivação do provimento favorável,
não faria sentido negar-lhe a legitimidade para já promover desde logo esta ‘execução’, se título para
tanto já existe e os órgãos estatais estão se omitindo”.28
26. Sobre o assunto, José Ignácio Botelho de Mesquita: “Dispondo a lei que a ‘coletividade é a titular dos bens jurídicos’ por
ela protegidos, leva a pensar que a legitimação ativa do CADE seria uma legitimação extraordinária, apresentando-se
a autarquia em juízo como substituto processual da coletividade, agiria em nome próprio mas na defesa de um direito
alheio. A regra, no entanto, não tem esse sentido, mas apenas o de enfatizar que o CADE não tem por função a solução
de conflitos de interesses entre empresas ou entre indivíduos, mas a defesa da ordem econômica, que interessa a todo
o povo” (A execução das decisões do CADE. Revista Forense, v. 344, p. 112-113).
27. TALAMINI, Eduardo. Efetivação judicial das decisões e compromissos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (Lei 8.884/94). In: DIDIER JR., Fredie e CHAVES FREITAS, Cristiano (coord.). Procedimentos especiais
cíveis – Legislação extravagante. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1191.
28. Idem, Ibidem.
104
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
No tocante à execução individual das decisões do Plenário ou compromissos de cessação, afirma Eduardo Talamini29 não ser possível ao particular promover individualmente seu cumprimento. O interesse resguardado pelas decisões e compromissos do CADE é sempre de caráter público e
transindividual (art. 1º, parágrafo único, Lei 12. 529/11), motivo pelo qual os interesses puramente
particulares não possuem legitimidade individual para o ajuizamento das execuções. Tratando-se
de interesses eminentemente particulares, os indivíduos devem promover as ações próprias para a
defesa dos direitos que julgam possuir.
O legitimado passivo é aquele contra quem a decisão do Plenário houver imposto as sanções
ou aquele que assumiu o compromisso de cessação de conduta.
Caso o infrator da ordem econômica seja uma pessoa jurídica, respondem solidariamente seus
dirigentes ou administradores e, no caso de desconsideração da personalidade jurídica da empresa,
respondem pelo ato infracional ou lesivo os seus sócios ou acionistas.
Em relação a estes terceiros, para que contra eles possa ser promovida a execução, é imprescindível que figurem no título executivo. Os motivos que determinam sua responsabilidade solidária
devem ter sido previamente apurados no processo perante o CADE, mediante contraditório regular e direito à ampla defesa, sob pena de não valer como título executivo contra eles.
Sobre o assunto, Eduardo Talamini30 leciona que:
“(...) a decisão do Plenário só poderá servir de título executivo contra pessoas ou entes que efetivamente figuraram como representados no processo administrativo desenvolvido perante o CADE.
Perante terceiros, aos quais não houve sido dada a oportunidade de exercício do contraditório no
processo administrativo, o provimento em exame não terá força de título executivo, ainda que lhe
pretenda impor sanções. (...)”
A execução das decisões do CADE é de competência da Justiça Federal, conforme prevê o artigo 97 da Lei 12. 529/11, regra essa válida tanto para a execução fiscal quanto para o processo do
artigo 94 e seguintes (execuções de obrigação de fazer e não fazer).
A competência da Justiça Federal para as execuções promovidas pelo próprio CADE (por
meio de sua Procuradoria) ou pelo Ministério Público Federal já se encontrava definida no Texto
Constitucional (art. 109, I, Constituição Federal). No caso do ajuizamento de execução por uma
associação privada, hipótese que não se enquadra em nenhuma das previsões constitucionais de
competência da Justiça Federal, entende-se que a competência recai nas Justiças Estaduais (competência residual). Mas, uma vez intervindo o CADE na condição de assistente (art. 89, CPC), a
competência desloca-se novamente para a Justiça Federal.
29. Idem, Ibidem.
30. Idem, ibidem.
105
Estudos sobre a execução coletiva de títulos executivos extrajudiciais
Feitas estas breves considerações, de se notar que o ordenamento jurídico brasileiro detém instrumentos aptos à execução coletiva de títulos executivos extrajudiciais, os quais podem – e devem
– ser utilizados para a efetiva garantia dos direitos metaindividuais ali resguardados.
6.CONCLUSÕES
As considerações acima expendidas constituem um primeiro ensaio na tentativa de sistematização das questões processuais que gravitam em torno da execução coletiva de títulos executivos
extrajudiciais. É ainda muito escassa a experiência jurídica sobre o tema examinado, o que naturalmente impõe limites às perspectivas aqui traçadas.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, que a todo o momento enseja novas reflexões, e lamentando que, não obstante o tempo já decorrido desde o advento dos principais sistemas normativos
de tutela coletiva (Lei 7.347/85 e Lei 8.078/90), poucos casos concretos tenham chegado à análise
da jurisprudência dos tribunais, aqui fica a conclusão de que, apesar da complexidade das questões
ou da carência de normas específicas, o Direito brasileiro oferece instrumentos jurídicos aptos a
assegurar a eficácia da execução dos títulos extrajudiciais.
Fazendo-se referência ao quanto mencionado nos itens anteriores, é possível concluir que a
execução coletiva, diante do vazio legislativo sobre o assunto, deve ser regida subsidiariamente pelas regras previstas no Código de Processo Civil.
O termo de ajustamento de conduta, as decisões proferidas pela Procuradoria do CADE e o
compromisso de cessão de prática são considerados, pela lei, títulos executivos extrajudiciais, comportando execução coletiva.
A execução coletiva do compromisso de ajustamento de conduta pode ser promovida por todos os legitimados ao ajuizamento da ação civil pública e que detenham, ao mesmo tempo, condição de órgão público. As autarquias, empresas públicas, fundações públicas e sociedades de economia mista também ganham legitimidade quando estiverem atuando na qualidade de entes estatais.
A competência para a execução coletiva do TAC será do juízo da localidade onde ocorreu o
dano, de acordo com o previsto no artigo 2º da Lei 7.347/85.
Já a legitimidade para a execução coletiva das decisões proferidas pelo Plenário do CADE ou
dos compromissos de cessação é exclusiva do próprio CADE, por meio de sua Procuradoria, ou do
Ministério Publico, no caso de eventual omissão por parte da referida autarquia. Há quem defenda
que as associações que detenham entre seus fins institucionais a defesa da ordem econômica também se encontram legitimadas a promover a execução judicial dos mencionados títulos.
Por fim, cumpre repisar que a execução das decisões do CADE é de competência da Justiça Federal, conforme previsão expressa do artigo 97 da Lei 12.529/11, que deve ser aplicada tanto para os
casos de execução fiscal (sanções pecuniárias) quanto para o procedimento do artigo 94 e seguintes
da Lei do CADE (obrigações de fazer e não fazer).
106
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
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IX
Execução nos JEC’s: limitação ao
valor de alçada
Gilberto Costa Filho
Pós-graduado em Direito Empresarial com ênfase em contratos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Pós-graduado em Project Finance pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ).
Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes.
Resumo: A despeito dos mecanismos criados pela Lei 9.099/95 para evitar que
os valores cobrados nas ações processadas sob o rito dos Juizados Especiais Cíveis
excedam o limite de alçada de quarenta salários mínimos, verifica-se, na prática,
situações que, tal como no caso da execução das astreintes, acabam não sendo alcançadas por esses mecanismos, ensejando, por conseguinte, a prolação de decisões que
se contrapõem e que, por sua vez, são objeto de análise deste breve artigo.
Sumário: 1. Introdução – 2. A execução nos JEC’s – 3. As astreintes – Natureza e execução – 4. Conclusão – 5. Bibliografia.
110
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1.INTRODUÇÃO
Visando à prestação de uma justiça acessível, gratuita, célere e de baixo custo, o legislador
pátrio criou os Juizados de Pequenas Causas, que, devidamente, recepcionados pela Constituição
Federal de 1988 (artigo 98, inciso I), acabaram absorvidos pelos Juizados Especiais (JEC’s – Cíveis
e Criminais), mediante a promulgação da Lei 9.099, de 26.09.1995.
Tais Juizados Especiais foram concebidos, em última análise, com os mesmos objetivos daqueles outros, intitulados de “Juizados de Pequenas Causas”, quais sejam, o de permitir que causas de
menor complexidade pudessem ser julgadas – leia-se, resolvidas – de forma bastante célere, objetiva, informal e, acima de tudo, eficaz.
Nas palavras de Luiz Cláudio Silva1, os juizados especiais representaram “uma grande evolução do Poder Judiciário pela eficácia imediata da prestação jurisdicional, tendo em vista o dinamismo do procedimento, como também a facilidade de acesso a essa prestação”.
Para tanto, além de estabelecer que os processos em curso perante os JEC’s devem ser orientados pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade e economia processual, o legislador
estipulou que a competência destes seria fixada em razão da matéria, do foro, e ainda, do valor de
alçada da demanda (ex vi dos arts. 2º e 3º da Lei 9.099/95).
No tocante a esse último requisito, o mesmo artigo 3º prevê que o valor de alçada2 não poderá
exceder a quantia equivalente a quarenta 40 (quarenta) vezes o salário mínimo3 vigente à data do
ajuizamento da ação, devendo sua apuração levar em conta a soma do pedido principal com os seus
acessórios.
E, para que não houvesse dúvidas com relação à alternativa a ser adotada quando o valor da
causa viesse a superar o valor da alçada dos JEC’s, a própria lei, por meio do § 3º inserto no dispositivo legal supracitado e do art. 15, ressalvou que, nessas hipóteses, deverá haver uma espécie
de renúncia automática do crédito excedente, salvo nos casos de conciliação, em que tal limite de
alçada não precisa ser respeitado.
Dada a importância conferida pelo legislador pátrio ao limite de alçada estabelecido para os
JEC´s, há, ainda, quem entenda que, diante da possibilidade de perda do direito excedente, essa
renúncia não pode nem ser presumida, devendo, ao contrário, ser informada ao demandante pelo
magistrado4.
1.Os Juizados Especiais na doutrina e na prática forense. Rio de Janeiro. Forense, 1997, p. 4.
2. Enunciado 39 do FONAJE: “Em observância ao art. 2º da Lei 9.099/1995, o valor da causa corresponderá à pretensão
econômica objeto do pedido”.
3. Enunciado 50 do FONAJE: “Para efeito de alçada, em sede de Juizados Especiais, tomar-se-á como base o salário mínimo nacional”.
4. CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública: uma abordagem crítica. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. v. 2, p. 30.
111
Execução nos JEC’S: limitação ao valor de alçada
De um modo ou de outro e em virtude justamente desse limite é que o artigo 39 da Lei 9.099/95
preceitua, textualmente, que “é ineficaz a sentença condenatória na parte que exceder a alçada nesta lei”.
Assim, de acordo com os mecanismos criados pela Lei 9.099/95, qualquer valor que exceda ao
limite de alçada dos JEC’s será objeto de renúncia automática, quando identificado no ato do ajuizamento da ação, ou ainda, considerado ineficaz, caso venha a constar de sentença condenatória
que não atente para isso.
O problema, contudo, surge a partir do momento em que a referida lei não dispõe de qualquer
regra no tocante ao limite de alçada nas execuções, restringindo-se à previsão de que compete ao
JEC’s promover a execução dos seus julgados (§ 1º, inciso I, do art. 3º e do art. 52).
2. A EXECUÇÃO NOS JEC´S
Diz-se isso porque não raras são as vezes em que, proferida sentença, a simples adição dos valores devidos a título de correção monetária, juros e demais ônus da sucumbência, ou ainda, o cômputo
de determinada multa diária imposta a uma das partes para entregar, fazer ou deixar de fazer algo
durante o curso da demanda já são, por si só, suficientes para elevar o valor exequendo em patamar
superior ao da alçada dos JEC’s, ou seja, ao equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos.
Dessa maneira, a pergunta mais óbvia e direta que exsurge daí é: nas execuções processadas
nos JEC’s (também) há que se respeitar o valor de alçada previsto no art. 3º da Lei 9.099/95?
Para se responder a essa indagação com precisão, impõe-se, antes de mais nada, perquirir qual
a natureza da execução a que se está referindo, vez que esta pode ser (i) de título extrajudicial, (ii)
de título judicial calcado em condenação que abarque, tão somente, a procedência do pedido inicial e os consectários da sucumbência, ou (iii) de título judicial que, abrigando ou não tais verbas,
ainda abranja eventual multa imposta a uma das partes, ou seja, as chamadas astreintes.
Ora, tratando-se de título extrajudicial, o art. 53 da Lei 9.099/95 não deixa qualquer margem
de dúvidas ao dispor, expressamente, que a sua execução deve respeitar o valor máximo equivalente
a quarenta salários mínimos.
Noutros termos, significa que, nas execuções de títulos extrajudiciais, a competência dos JEC’s
(também) é fixada ratione valoris e, desse modo, há, sim, que observar dita alçada.
Já, quanto ao título judicial cujo valor ultrapasse o teto de quarenta salários mínimos, em virtude exclusivamente do acréscimo dos encargos decorrentes da própria condenação, tais como juros, correção monetária e honorários advocatícios de sucumbência, entende-se que a sua execução,
ainda assim, pode ser processada perante os JEC’s, não havendo motivos para o afastamento de sua
competência, ou ainda, para a renúncia da parte que exceder o valor de alçada.
Afinal, se a fixação da competência do juizado especial dá-se na origem, quando do ajuizamento da ação, pouco importa se o valor exequendo ultrapassar o da alçada em razão da cominação daquelas verbas, inerentes à condenação e à própria sucumbência, posto que, nesta hipótese, o
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SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
cumprimento da decisão exequenda constitui mero desdobramento do processo que lá já está em
curso.
Tal entendimento foi consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual “compete ao próprio juizado especial cível a execução de suas sentenças, independentemente do valor
acrescido à condenação (...)” (STJ, 4ª Turma, RMS 27.935/SP, rel. Min. João Otávio de Noronha, j.
8/6/2010, DJ 16/06/2010).
Dessa decisão, vale transcrever trecho do voto proferido pelo E. Ministro Luiz Fux quando
ainda tinha assento na Corte Especial, extraído do RMS 17.524/BA, em que pontifica, in verbis:
“Deveras, tratando-se de execução de sentença dos julgados não influi o valor da condenação que
se vai acrescendo, porquanto a ele o legislador somente se refere quando versa a execução de título
extrajudicial. É dizer que a competência dos Juizados Especiais quanto às execuções de títulos extrajudiciais é fixada ratione valoris, diversamente daquelas fundadas em títulos judiciais, cuja tramitação
será sempre uma continuação do mesmo processo em que se produziu a sentença condenatória, perfazendo mera fase de execução de sentença.
Portanto, segundo a lição de Alexandre Freitas Câmara, em sua obra ‘Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais – uma abordagem crítica’, sendo a execução da sentença um prolongamento do
mesmo processo em que se proferiu a condenação, não há que se pensar em fixação de competência
para tal execução, pois evidentemente o processo continuará a se desenvolver perante o mesmo juízo
em que se desenvolvia desde sua origem.’
É que para a sujeição da causa aos Juizados Especiais o que importa é o valor da ação ab origine. Assim,
a competência do Juizado Especial Cível firma-se pelo valor que os autores atribuem inicialmente à
causa, que em regra corresponde à pretensão econômica objeto do pedido (art. 2º, da Lei 9.099/95)”.
Com esses argumentos, verifica-se que a definição da competência dos JEC’s para processamento, tanto da execução de título extrajudicial, quanto a de título judicial, dar-se-á na origem,
quando do ajuizamento das respectivas ações, pelo que eventual acréscimo ao valor de alçada em
virtude dos encargos inerentes à condenação (como juros, correção monetária e ônus da sucumbência), não será capaz de alterar a sua competência para execução da obrigação reconhecida
pelo título.
3. AS ASTREINTES – NATUREZA E EXECUÇÃO
Todavia, no que se refere à execução das astreintes ou multas cominatórias, a questão torna-se mais delicada e controversa, na medida em que seus valores e, portanto, eventuais excessos em
relação à alçada fixada para os JEC’s só serão identificados na própria fase de execução destas.
Como é cediço, as astreintes constituem, de forma bem objetiva, medida cominatória imposta
pelo Estado-Juiz contra o devedor de obrigação de fazer, não fazer, ou dar coisa, sem caráter com-
113
Execução nos JEC’S: limitação ao valor de alçada
pensatório, indenizatório ou sancionatório, cuja incidência se dá, em regra, por dia de descumprimento, e serve como uma espécie de medida “intimidatória”.
Nesse sentido é que, por ocasião do julgamento do REsp 699.495/RS, a 1ª Turma da Corte
Especial assentou o entendimento de que “a função das astreintes é vencer a obstinação do devedor
ao cumprimento da obrigação de fazer ou de não fazer, incidindo a partir da ciência do obrigado e
da sua recalcitrância” (DJ de 05.09.05).
Sob esse prisma, Cassio Scarpinella Bueno5 leciona que tal multa não pode ser insuficiente a
ponto de não criar no obrigado qualquer receio quanto às consequências de seu não-acatamento.
E acrescenta, na mesma obra citada, que:
“Não pode, de outro lado, ser desproporcional ou desarrazoada a ponto de colocar o réu em situação
vexatória. O Magistrado, assim, deve ajustar o valor e a periodicidade da multa consoante as circunstâncias concretas, com vistas à obtenção do resultado específico da obrigação reclamada pelo credor”.
Sobre o cômputo das astreintes, a mesma Corte Especial estabeleceu que este terá início após
“(i) a intimação do devedor, por intermédio do seu patrono, acerca da execução provisória e (ii) o
decurso do prazo fixado para o cumprimento voluntário da obrigação” (EAg 857758/RS).
Enfim, nessa mesma toada, o STJ pontuou que, quando lastreadas em título executivo provisório, as astreintes podem ser revogadas, bastando que posterior sentença torne sem efeito a decisão
que, proferida em sede de liminar ou de concessão antecipatória da tutela, tenha lhes conferido
aplicação, hipótese em que seus valores devem, inclusive, ser devolvidos por quem os recebeu (ex
vi dos AgRg no Ag 1383367/PB, REsp 1.059.478/RS, REsp 988.171/RS, EDcl no REsp 1138559/SC
e AgRg no REsp 1094296/RS).
Posteriormente, em especial homenagem aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o Tribunal Superior definiu que os valores das astreintes poderiam ser alterados – quando
insuficientes ou excessivos – mesmo depois de transitada em julgado a sentença, como se observa,
por exemplo, do julgamento do Agravo Regimental interposto nos autos do Agravo de Instrumento 1143766/SP.
Ocorre que, mesmo sendo reduzidas quando tidas como excessivas, é certo que, ainda assim,
as astreintes podem ultrapassar o referido valor de alçada, caso em que se levantam vozes contra e
a favor da possibilidade de se processar a respectiva execução perante os JEC’s.
Quem é a favor dessa possibilidade, advoga a tese de que “compete ao Juizado Especial Cível a
execução de seus julgados, pouco importando se a quantia equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos é ultrapassada em razão da pretensão executória de multa cominada por descumprimento
de determinação judicial”6.
5.Código de Processo Civil interpretado. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 1474.
6. TJ/RJ, MS 0010397-02.2012.8.19.0000, 14ª Câmara Cível, rel. Des. Gilberto Campista Guarino, DO 14/11/2012.
114
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Em amparo a essa tese, alegava-se que qualquer raciocínio contrário faria com que o credor
de quantia superior àquele teto se visse obrigado a, de duas, uma: ou a recorrer a outros órgãos da
Justiça Comum para executar a parte excedente; ou a abrir mão desse excedente, o que, em ambas
as hipóteses, acarretaria não só um grande benefício para o devedor, mas também uma evidente
violação aos princípios balizadores dos JEC’s, quais sejam, os princípios da simplicidade, da economia processual e da celeridade.
E, nesse caminhar, vinha se sedimentando a jurisprudência pátria. Tanto assim, que, além de
alguns julgados proferidos pela Corte Superior nesse mesmo sentido, com inúmeros precedentes
da 3ª e 4ª Turmas (REsp 691.785/RJ, AgRg no RMS 32032/BA e RMS 27935/SP), a própria Presidência do TJ/RJ, por meio do Enunciado 14.2 do Aviso 23/2008, declarou, textualmente, que “a
multa cominatória, cabível apenas nas ações e execuções que versem sobre o descumprimento de
obrigação de fazer, não fazer e entrega de coisa, não sofre limitação de qualquer espécie em seu
valor total”.
Quando, entretanto, essa questão parecia gozar de relativa estabilidade, sem maiores debates
em seu entorno, o STJ, em meados de 2011, no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança
33.155/MA (2010/0189145-8), de Relatoria da E. Ministra Maria Isabel Gallotti, proferiu decisão,
cuja ementa está vazada nos seguintes termos:
“Processo civil. Mandado de segurança. Juizado especial. Competência. Cumprimento de sentença. Multa cominatória. Alçada. Lei 9.099/1995. Recurso provido. 1. (...). 2. Dispõe o art. 3º, §1º, inciso I, da
Lei 9.099/95, que compete ao Juizado Especial promover a “execução dos seus julgados”, não fazendo
o referido dispositivo legal restrição ao valor máximo do título, o que não seria mesmo necessário,
uma vez que o art. 39 da mesma lei estabelece ser “ineficaz a sentença condenatória na parte em que
exceder a alçada estabelecida nesta lei”. 3. O valor da alçada é de quarenta salários mínimos calculados na data da propositura da ação. Se, quando da execução, o título ostentar valor superior, em
decorrência de encargos posteriores ao ajuizamento (correção monetária, juros e ônus da sucumbência), tal circunstância não alterará a competência para a execução e nem implicará a renúncia aos
acessórios e consectários da obrigação reconhecida pelo título. 4. Tratando-se de obrigação de fazer,
cujo cumprimento é imposto sob pena de multa diária, a incidir após a intimação pessoal do devedor
para o seu adimplemento, o excesso em relação à alçada somente é verificável na fase de execução,
donde a impossibilidade de controle da competência do Juizado na fase de conhecimento, afastando-se, portanto, a alegada preclusão. Controle passível de ser exercido, portanto, por meio de mandado
de segurança perante o Tribunal de Justiça, na fase de execução. 5. A interpretação sistemática dos
dispositivos da Lei 9.099/95 conduz à limitação da competência do Juizado Especial para cominar – e
executar – multas coercitivas (art. 52, inciso V) em valores consentâneos com a alçada respectiva. Se a
obrigação é tida pelo autor, no momento da opção pela via do Juizado Especial, como de “baixa complexidade”, a demora em seu cumprimento não deve resultar em execução, a título de multa isoladamente
considerada, de valor superior ao da alçada. 6. O valor da multa cominatória não faz coisa julgada material, podendo ser revisto, a qualquer tempo, caso se revele insuficiente ou excessivo (CPC, art. 461,
§6º). Redução do valor executado a título de multa ao limite de quarenta salários mínimos. 7. Recurso
provido”. (Grifou-se.)
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Execução nos JEC’S: limitação ao valor de alçada
Com efeito, a parte destacada acima é suficiente para se perceber a guinada de direção dada ao tratamento da execução de valores das astreintes quando superiores ao da alçada prevista na Lei 9.099/95.
Explorando-se a referida decisão em toda a sua amplitude, observa-se que essa brusca mudança de tratamento decorre de uma interpretação sistemática daquela Lei, que tem, como pedra de
toque, a premissa de que, se o valor da alçada lá estabelecido (quarenta salários mínimos) constitui
o fator eleito pela norma para determinação das causas tidas como de “menor complexidade”, a
execução de multa superior a esse valor de alçada faria com que a causa não pudesse mais ser considerada como de “baixa complexidade”.
Nessa esteira de ideias, aduz a E. Relatora que, “Se a multa até esse limite não for suficiente para
constranger o devedor a cumprir a sentença, restará ao credor, que livremente optou pela via do
Juizado, valer-se de outros meios, como, por exemplo, notitia criminis por desobediência à ordem
judicial ou ajuizamento de nova ação perante a Justiça Comum, caso o inadimplemento retardado
tenha dado origem a outros danos posteriores ao ajuizamento da ação no Juizado (...)”, sendo, pois,
“(...) instaurada, então, nova fase de conhecimento para apurar fatos posteriores (embora ligados
ao alegado descumprimento da decisão do juizado) que possam ensejar outra indenização”.
Sob esse enfoque, vale lembrar, que, de fato, conforme ressaltado pela E. Relatora, ao optar,
livremente, pela via do Juizado Especial, por considerar, justamente, que sua causa não apresenta
complexidade que justifique a escolha pela Justiça Comum, o jurisdicionado, ao mesmo tempo
em que se beneficia, por exemplo, do não recolhimento de custas e de uma maior celeridade, abre
mão de algumas garantias processuais, tais como a possibilidade de se valer de uma prova pericial,
de uma futura ação rescisória, ou, até mesmo, de uma gama maior de recursos, seja no âmbito do
segundo grau de jurisdição, seja no acesso à Corte Especial.
Via obliqua, não seria razoável, sob determinada ótica, sujeitar a parte sucumbente, que, em
princípio, não teve a oportunidade de fazer essa opção entre um e outro rito, aos pesados ônus de
uma execução, que, a despeito dos altos valores envolvidos, é processada sob a batuta do JEC.
Por outro lado, há firme posição no sentido de que a prevalência desse argumento poderia servir de estímulo ao descumprimento de ordens judiciais, bem como de fragilizar os próprios JEC’s,
na medida em que já se saberia, antecipadamente, que quaisquer astreintes lá fixadas ficariam reféns do valor de alçada de 40 salários mínimos.
Não obstante outras discussões de menor relevo que seguiram daí, fato é que, ao que consta,
o STJ acabou por sufragar a orientação de que a multa cominatória, mesmo que tenha atingido
patamar superior ao teto de 40 (quarenta) salários mínimos, deve ser executada no próprio Juizado
Especial, como se infere da ementa abaixo, extraída do julgamento do Recurso em Mandado de
Segurança 38.884-AC (2012/0175027-3), realizado em 07/05/2013:
“Processo civil. Recurso ordinário em mandado de segurança. Competência. Juizado especial. Execução de seus julgados. Valor superior a 40 salários mínimos. Possibilidade. 1. A jurisprudência do STJ
admite a impetração de mandado de segurança perante os Tribunais de Justiça desde que o objetivo
116
SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
seja unicamente o de exercer o controle da competência dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais,
vedada a análise do mérito do processo subjacente. 2. A competência do Juizado Especial é verificada
no momento da propositura da ação. Se, em sede de execução, o valor ultrapassar o teto de 40 salários mínimos, em razão do acréscimo de encargos decorrentes da própria condenação, isso não será
motivo para afastar a competência dos Juizados e não implicará a renúncia do excedente. 3. A multa
cominatória, que, na hipótese, decorre do descumprimento de tutela antecipada confirmada na sentença, inclui-se nessa categoria de encargos da condenação e, embora tenha atingido patamar elevado,
superior ao teto de 40 salários mínimos, deve ser executada no próprio Juizado Especial. 4. Recurso
ordinário em mandado de segurança desprovido”.
Dessa decisão, de Relatoria da E. Ministra Nancy Andrighi, vale transcrever trecho do voto em
que há ressalva no sentido de que:
“Não se desconhece que, em sede do RMS 33.155/MA, a 4ª Turma desta Corte entendeu que ‘o valor
da alçada previsto no art. 3º, inciso I, da Lei 9.099, o qual tem em mira o valor da obrigação principal
na data do ajuizamento da ação (quarenta salários mínimos), deve ser aplicado por analogia, como o
valor máximo a ser executado contra o devedor, a título de multa cominatória’.
Entretanto, com o devido respeito, o art. 52 da Lei 9.099/95 é expresso ao dispor que a execução da
sentença processar-se-á no próprio Juizado. A norma não faz limitações, como ocorre no art. 3º, que
fixa a competência no momento da propositura da ação, ou no art. 53, que trata dos títulos executivos
extrajudiciais. E onde a própria lei não faz restrições, não cabe ao intérprete fazê-las”.
Com isso, a Corte Especial perdeu valiosa oportunidade de, pautando o seu entendimento em uma
interpretação, puramente, sistemática da Lei 9.099/95, estabelecer, de uma vez por todas, que o valor
da multa cominatória verificado no momento de sua execução, também, deveria ficar adstrito ao valor
de alçada dos JEC´s, seja porque, não sendo acobertado pelo manto protetivo da coisa julgada, pode, a
teor do disposto no art. 461 do CPC, ser revisto a qualquer tempo, sempre que se revelar insuficiente ou
excessivo, seja porque ainda restariam, ao exequente, outros meios, tais como a notitia criminis por desobediência ou o ajuizamento de nova ação perante a justiça comum, para, em suma, fazer valer a ordem
judicial cujo descumprimento tenha dado causa às astreintes determinadas em seu favor7.
4.CONCLUSÃO
Ante o exposto e muito embora, dentre as situações mais corriqueiras, haja hipóteses em que
é mais vantajoso ao devedor resistir ao cumprimento da obrigação e brigar pelo não pagamento
das respectivas astreintes, os casos que mais saltam aos olhos e que, via de consequência, reclamam
uma resposta mais rápida e contundente do Poder Judiciário são aqueles em que o credor, propositalmente, mantém-se inerte, com o único objetivo de ver crescer o valor da respectiva multa.
7. LOURENÇO, Haroldo. Manual de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 1011.
117
Execução nos JEC’S: limitação ao valor de alçada
Isso, além de promover o seu enriquecimento ilícito, causa, nas palavras do E. Ministro Salomão, uma disfunção processual, que, ombreando a chamada indústria do dano moral, fomenta um
novo tipo de indústria, agora nomeado por ele de “indústria das astreintes”.
Dessa maneira, seja porque o Poder Judiciário deixa o cumprimento da obrigação da qual
decorrem as astreintes a cargo exclusivo de uma das partes, que, portanto, torna-se refém de toda
sorte de percalços e rotinas burocráticas de estilo, seja porque, ao estipular o cumprimento de
determinada obrigação, não toma as cautelas necessárias para evitar que o seu credor seja ainda
mais beneficiado pela desídia e leniência com que alguns órgãos (públicos ou não) vêm tratando
o cumprimento de determinadas decisões judiciais, ou ainda, porque há evidente má-fé do credor
em locupletar-se às custas do devedor, certo é que, invariavelmente, o cômputo total desse tipo de
multa cominatória imposta no decorrer do processo em curso no JEC acaba – de modo indevido –
por ultrapassar dito valor de alçada, previsto no art. 3º da Lei 9.099/95.
Nesse cenário e com todas as vênias em relação às opiniões contrárias, não parece razoável ou,
quiçá, justo que, depois da escolha pelo JEC, pautada, invariavelmente, pela ideia de que a causa lá
proposta é de baixa complexidade, possa o demandante, já beneficiado pelo não recolhimento de
custas e que tais, receber novo benefício, decorrente, em um segundo momento, da execução das
astreintes em face do demandado, que, apesar das altas cifras envolvidas, não pode se valer de todas
as armas previstas no rito comum ordinário, a exemplo do recurso de agravo de instrumento, para
se defender dos mais variados tipos de abuso.
Logo, em que pese a jurisprudência dominante, ao que tudo indica, estar se guiando para outra direção, entendemos que, para o bem do próprio Estado Democrático de Direito, melhor seria
se a execução nos JEC’s, mesmo tratando de valores relacionados às astreintes, fosse pautada pelo
entendimento firmado no julgamento do Mandado de Segurança 33.155-MA (2010/0189145-8),
de Relatoria da E. Ministra Maria Isabel Gallotti.
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SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor e a defesa do
fornecedor. 3. ed. São Paulo. Saraiva, 2010.
SILVA, Luiz Cláudio. Os Juizados Especiais na doutrina e na prática forense. Rio de Janeiro. Forense, 1997.
X
A distinção entre vícios e defeitos
de produtos e serviços e as suas
consequências
Alexandre Lopez Rodrigues de Aguiar
Pós-graduado em Direito Civil pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-Law.
Pós-graduado em Direito Civil pela Escola Paulista da Magistratura – EPM. Advogado.
Daniel Lagoa Rodrigues de Almeida
Pós-graduando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Especialista em Direito do Consumidor pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-Law. Advogado.
Resumo: Com a finalidade de definir os conceitos de vício e defeito de produto
e serviço, dispostos nos arts. 12 e 18 do Código de defesa do Consumidor, bem
como demonstrar as consequências da aludida diferenciação no mundo jurídico,
baseando-se em doutrina e casos práticos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.
Sumário: 1. Introdução – 2. Da distinção entre vício e defeito de produto ou serviço
– 3. Da distinção em relação aos prazos decadencial e prescricional: 3.1 Do prazo para
reclamar de vício no produto ou no serviço; 3.2 Do prazo prescricional para pleitear a
reparação de danos causados pela existência de defeito em produto ou serviço – 4. Da
divergência acerca da responsabilidade solidária do comerciante, quando da existência
de defeito no produto – 5. Da necessidade de alegação pelo consumidor da existência
de ameaça à sua segurança, sob pena de presumir-se apenas a ocorrência de vício – 6.
Conclusão – 7. Bibliografia.
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SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
1.INTRODUÇÃO
Em que pese o Código de Defesa do Consumidor apresentar distinção expressa entre vício
e defeito de produtos e serviços, corriqueiramente há decisões proferidas pelos Tribunais Pátrios
que confundem os conceitos, de modo que aplicam equivocadamente os efeitos decorrentes desta
diferenciação.
A Seção II do Código de Defesa do Consumidor, cujos artigos lá constantes são aplicáveis
quando há defeito no produto ou no serviço, define claramente a responsabilidade dos fornecedores pelo fato do produto e do serviço e os efeitos decorrentes da existência do aludido defeito.
Por sua vez, a Seção III do mesmo Código, a qual contém artigos aplicáveis quando não há
defeitos, mas vícios em produto ou serviço, define a responsabilidade dos fornecedores por tais
vícios, incluindo aí os efeitos decorrentes da existência do vício.
Ou seja, definir-se incorretamente a existência de um vício ou defeito de um produto ou serviço implica consequências graves para os sujeitos da relação de consumo, uma vez que o Código
de Defesa do Consumidor diferencia os conceitos e prevê consequências diversas na hipótese da
ocorrência de cada um deles, sendo certo que eventual definição e, consequentemente, aplicação
indevida, causará impactos em relação ao prazo para o consumidor reclamar, à solidariedade ou
subsidiariedade do comerciante, dentre outros.
Verifica-se, assim, que, embora nomear o problema do produto ou do serviço como vício ou
defeito pareça um mero detalhe, o fato é que a correta definição é essencial, para aplicar-se corretamente o direito do consumidor no caso concreto.
Portanto, o presente artigo tem o condão de definir detalhadamente os conceitos de vício e
defeito, bem como demonstrar os impactos que a distinção entre ambos causa na esfera jurídica.
2. DA DISTINÇÃO ENTRE VÍCIO E DEFEITO DE PRODUTO OU SERVIÇO
Inicialmente, cumpre definir exatamente o conceito de vício de produtos ou serviços.
São considerados vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos
ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor,
nos termos dos arts. 181 e 202, do Código de Defesa do Consumidor.
1. “Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de
qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam
o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas”.
2. “Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes
diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária (...)”.
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Distinção entre vícios e defeitos de produtos e serviços
Ou seja, há vício quando o produto ou serviço não atende à qualidade ou adequação esperada
pelo consumidor, de forma que o torne impróprio ou inadequado. Independente de tais hipóteses,
o vício também é caracterizado se o produto ou o serviço tiver a sua qualidade ou quantidade afetadas, fazendo com que diminuam o seu valor.
Segundo a definição utilizada por Rizatto Nunes3, os vícios fazem com que o produto ou o
serviço: (i) não funcione adequadamente, como um refrigerador que não resfria; (ii) funcione mal,
como a televisão que não emite som; (iii) diminua o seu valor, como uma mancha no terno; (iv)
não esteja de acordo com as informações fornecidas, como um caderno de 200 páginas que possui
apenas 180 páginas, dentre outros inúmeros exemplos.
Em todos esses casos utilizados exemplificativamente, configura-se a existência de um vício
no produto ou no serviço, que fará com que o fornecedor responda por eles.
Portanto, nota-se que o vício afeta única e exclusivamente o produto ou o serviço, não havendo nenhum dano direto ao consumidor decorrente dele, diferentemente do defeito, conforme se a
seguir.
O defeito, por sua vez, pressupõe a existência de um vício, com uma peculiaridade que o torna
mais grave, a ponto de caracterizá-lo como defeito. Em outras palavras, um produto ou um serviço
defeituoso também possui um vício, somado a um problema extra, mais sério.
Segundo o art. 12, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor, “o produto é defeituoso quando
não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I – sua apresentação; II – o uso e os riscos que razoavelmente dele
se esperam; ou III – a época em que foi colocado em circulação”.
Na mesma esteira, o art. 14, § 1º, preceitua que “o serviço é defeituoso quando não fornece
a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias
relevantes, entre as quais: I – o modo de seu fornecimento; II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III – a época em que foi fornecido”.
Ou seja, além da presença do vício, que torna o produto ou o serviço inadequado ou impróprio à utilização ou que lhes diminuam o valor, para ser considerado um defeito é essencial que
haja algum aspecto que afete a segurança do consumidor.
O defeito, então, ultrapassa o produto, atingindo de alguma forma o consumidor. Assim, temos que todo o defeito, necessariamente, da mesma forma, é um vício. Todavia, nem todo vício
será considerado um defeito, conforme ilustra a figura a seguir:
3. NUNES. Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: Saraiva, p. 229.
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SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
Vício
Defeito
De acordo com Rizatto Nunes4, “o defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma
coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não-funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago – já que o produto
ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício,
outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem
do consumidor. Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao
consumidor, é mais devastador. Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço,
jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou
do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material,
estético ou da imagem). Por isso, somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente de
consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido”.
Assim, verifica-se que o defeito é extrínseco ao produto ou serviço, na medida em que causa
um dano maior ao consumidor, do que simplesmente um problema inerente ao bem ou ao serviço
contratado.
O defeito, destarte, além de conter o vício no produto, deve apresentar uma ameaça ao patrimônio jurídico do consumidor, ameaçando a sua segurança ou violando-a diretamente.
3. DA DISTINÇÃO EM RELAÇÃO AOS PRAZOS DECADENCIAL E
PRESCRICIONAL
3.1Do prazo para reclamar de vício no produto ou no serviço
Como dito, a importância da distinção entre vício e defeito não é apenas conceitual, uma vez
que implica diversas consequências jurídicas para ambos os casos, dentre as quais o prazo para
reclamar pela existência do vício e/ou do defeito.
4. NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Idem, p. 181.
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Distinção entre vícios e defeitos de produtos e serviços
O prazo para reclamar, quando da existência de vício no produto ou no serviço de 30 (trinta)
dias, para produtos ou serviços não duráveis, e de 90 (noventa) dias para produtos ou serviços não
duráveis, nos termos do art. 26 do Código de Defesa do Consumidor5:
Vale salientar que o prazo, neste caso, é decadencial, conforme consta expressamente do § 1º,
do mesmo dispositivo6, iniciando-se a partir da entrega do produto ou do término da execução do
serviço.
Outro detalhe importante diz respeito à expressão utilizada pelo dispositivo, no sentido de que
o prazo decadencial é para “reclamar”, e não para ajuizar eventual ação judicial, tanto é que o § 2º
determina como fatos obstativos da decadência “a reclamação comprovadamente formulada pelo
consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente,
que deve ser transmitida de forma inequívoca” ou “a instauração de inquérito civil, até seu encerramento”.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial de relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cuevas, firmou entendimento pacificado, ao decidir que “(...) A decadência é
obstada pela reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de
produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca (art. 26, § 2º, inciso I, do CDC) (...)”7.
Em suma, o prazo decadencial para o consumidor reclamar de vício no produto ou no serviço
é de 30 (trinta) dias, em caso de produto não durável, e de 90 (noventa) dias, em caso de produto
não durável, a partir da entrega do produto ou do término da realização do serviço, obstando o prazo a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor ou a instauração de inquérito civil.
3.2Do prazo prescricional para pleitear a reparação de danos causados pela existência
de defeito em produto ou serviço
Diferentemente do prazo para reclamar de vício em produto ou serviço, o Código de Defesa
do Consumidor, no art. 278, estabeleceu o prazo de 5 (cinco) anos, para o consumidor reclamar de
eventuais danos sofridos pela existência de defeito em produto ou serviço.
Verifica-se que, neste caso, trata-se de prazo prescricional expressamente previsto no dispositivo, cujo termo inicial se dá pelo conhecimento do dano e de sua autoria.
5. “O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I – trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II – noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos
duráveis”.
6. “(...) § 1º Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução
dos serviços”.
7. REsp 1161941/DF, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3.ª Turma, j. 05/11/2013, DJe 14/11/2013.
8. “Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na
Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria”.
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SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
A distinção entre os prazos previstos para os casos de vício ou defeito do produto ou do serviço
é claramente exposta no Recurso Especial, de relatoria da Min. Nancy Andrighi9, em que se decidiu
que “o CDC apresenta duas regras distintas para regular o direito de reclamar, conforme se trate
de vício de adequação ou defeito de segurança. Na primeira hipótese, os prazos para reclamação
são decadenciais, nos termos do art. 26 do CDC, sendo de 30 (trinta) dias para produto ou serviço
não durável e de 90 (noventa) dias para produto ou serviço durável. A pretensão à reparação pelos
danos causados por fato do produto ou serviço vem regulada no art. 27 do CDC, prescrevendo em
05 (cinco) anos”.
Portanto, verifica-se a importância da distinção entre vício ou defeito em produto ou serviço,
para definir exatamente o prazo para o consumidor reclamar da sua ocorrência.
4. DA DIVERGÊNCIA ACERCA DA RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO
COMERCIANTE, QUANDO DA EXISTÊNCIA DE DEFEITO NO PRODUTO
O Código de Defesa do Consumidor estabeleceu, tanto para os casos de vício, quanto para as
hipóteses de defeito no produto ou no serviço, que a responsabilidade dos fornecedores é objetiva,
isto é, independentemente da existência de culta.
No que tange à solidariedade, o CDC também foi expresso, ao mencionar que, nos casos em
que há vício em produto ou serviço, os fornecedores são solidariamente responsáveis.
Ora, o legislador optou por utilizar o termo “fornecedores” de forma genérica, sendo responsáveis diretos, todos aqueles partícipes do ciclo de produção, seja fabricante, produtor, revendedor
etc., sem realizar qualquer distinção entre eles. Assim, observado o vício, o consumidor poderá
acionar qualquer dos envolvidos, a seu critério.
Essa responsabilidade “generalizada” foi imposta visando facilitar o contato do consumidor
com o responsável pelo vício no produto ou serviço, sendo que o prazo para tentativa de reparo do
bem já iniciará o seu curso, tão logo o consumidor busque a solução por parte de um dos agentes
da cadeia de consumo10.
Contudo, ao tratar da solidariedade nas hipóteses de defeito no produto, o Código não se
manifestou de forma expressa em relação ao comerciante, o que causou uma divergência acerca
da solidariedade ou subsidiariedade deste, em responder pelo fato do produto, quando os demais
agentes da cadeia forem identificados.
9. REsp 967.623/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 16/04/2009, DJe 29/06/2009.
10. “§1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua
escolha: I – a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II – a restituição
imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III – o abatimento
proporcional do preço”.
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Distinção entre vícios e defeitos de produtos e serviços
Isto porque, além de o art. 12 do CDC não mencionar expressamente a solidariedade do comerciante, na medida em que o omite do rol dos fornecedores, o art. 13, inciso I, é claro ao definir
que o “comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior, quando o fabricante,
o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados”. Ou seja, contrario sensu,
remete-se à ideia de que, caso o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador puderem ser
identificados, o comerciante não responde igualmente, isto é, a sua responsabilidade seria subsidiária, e não solidária.
Ademais, parece claro que o legislador optou por responsabilizar o fabricante, o produtor, o
construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador, conforme descrito no artigo 12 do Código
de Defesa do Consumidor11. A intenção do legislador foi justamente buscar o efetivo causador do
acidente de consumo.
Ada Pellegrini Grinover12 é adepta da teoria de que os comerciantes respondem tão somente
subsidiariamente, na medida em que os fornecedores elencados no art. 12 seriam os principais
responsáveis por vício em produto.
Contrariamente, Rizatto Nunes13 defende que a responsabilidade é solidária, em razão da existência da expressão “igualmente” no art. 13, que determinaria que o comerciante tem as mesmas
responsabilidades previstas no art. 12 e que é solidariamente responsável com os agentes constantes
deste dispositivo.
O Superior Tribunal de Justiça, em Embargos de Divergência no Recurso Especial 422778/
SP , de relatoria do Min. João Otávio de Noronha, se manifestou, no sentido de que “não podendo ser identificado o fabricante, estende-se a responsabilidade objetiva ao comerciante (CDC, art.
13)”. Ou seja, caso o fabricante pudesse ser identificado, a responsabilidade não poderia ser estendida ao comerciante.
14
Portanto, embora se trate de matéria absolutamente divergente, tem-se que, em princípio, a
responsabilidade do comerciante é solidária, tendo em vista que é igual à responsabilidade dos demais agentes elencados no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor. Porém, caso o fabricante
seja identificado, a responsabilidade do comerciante não será mais igual a dos agentes, motivo pelo
qual conclui-se que, neste caso, existirá a subsidiariedade.
11. “Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto,
fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos”.
12. GRINOVER, Ada Pellegrini et all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto.
7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 172.
13. NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 173.
14. EREsp 422.778/SP, rel. Min. João Otávio de Noronha, rel. p/ acórdão Min. Maria Isabel Gallotti, 2.ª Seção, j. 29/02/2012,
DJe 21/06/2012.
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SABER SBZ – Estudos Gerais de Direito
5. DA NECESSIDADE DE ALEGAÇÃO PELO CONSUMIDOR DA EXISTÊNCIA
DE AMEAÇA À SUA SEGURANÇA, SOB PENA DE PRESUMIR-SE APENAS A
OCORRÊNCIA DE VÍCIO
Por vezes, o consumidor é exposto a riscos de segurança, por força da aquisição de um produto ou da contratação de um serviço, o que, indubitavelmente, configura-se um defeito no aludido
produto ou na prestação do serviço.
No entanto, ao propor a demanda em face do fornecedor, é essencial que o consumidor exponha, nos fatos, a insegurança à qual se submeteu, por conta da utilização do produto ou do serviço,
sob pena de presumir-se única e exclusivamente a existência de um vício.
Exemplificativamente, em ação judicial promovida pelo adquirente de veículo automotor, em
face da fabricante, motivada pela existência de defeito no freio do automóvel, o consumidor pleiteou a restituição da quantia paga e indenização por perdas e danos, alicerçado no art. 18 do CDC.
Assim, verifica-se que o consumidor baseou o seu pedido na preexistência de um vício no
produto, em que pese o problema no caso concreto se tratar de um defeito no freio, fato este que
claramente ameaça a segurança do consumidor.
O Superior Tribunal de Justiça, nos Embargos de Declaração opostos no Recurso Especial
567.333/RN15, de relatoria do Min. Raul Araújo, partindo da premissa de que “a autora nunca argumentou sobre (...) questão referente a eventuais danos ao consumidor por defeito no produto (fato
do produto, CDC, art. 12) decorrentes do problema no sistema de freio do automóvel, delimitando
seu pedido na restituição de valores pagos pelo bem e por conserto deste” decidiu que “embora o
defeito no sistema de freio de um automóvel configure defeito de segurança, com potenciar para
acarretar dano ao consumidor, isto é, acidente de consumo, conforme previsto no art. 12 do Código, quando inexistir alegação de tal dano ao consumidor, ter-se-á a responsabilidade do fornecedor
por mero vício do produto, por inadequação deste, de acordo com o art. 18, do CDC, e não por
fato do produto”.
Ou seja, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a existência de problema no sistema
de freio de veículo automotor configura defeito do produto, entretanto, deixou de considerá-lo,
tratando-o apenas como vício, em razão da narração fática do consumidor, que deixou de mencionar a ameaça à sua segurança.
A situação tratada no acórdão proferido no aludido Recurso Especial, portanto, demonstra
a obrigatoriedade de o consumidor alegar a ocorrência de problema que ameace a sua segurança,
sob pena do enquadramento do fato somente na existência de vício. Assim, o defeito, ainda que
reconhecido, não é presumido.
Tal constatação é de suma importância, para definir o prazo para o consumidor reclamar,
isto é, se existe a alegação do defeito, com o seu respectivo reconhecimento, este será prescricional
15. EDcl no REsp 567.333/RN, rel. Min. Raul Araújo, 4.ª Turma, j. 20/06/2013, DJe 28/06/2013.
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Distinção entre vícios e defeitos de produtos e serviços
de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 27 do CDC, ao passo que, ainda que se trate de defeito, se o
consumidor não for expresso no ponto que afeta a sua segurança, aplicar-se-á o prazo decadencial
atinente ao vício, disposto no art. 26 do mesmo Código.
6.CONCLUSÃO
Como visto, a distinção entre vício e defeito de produto ou serviço não se trata apenas da
simples análise de conceitos, haja vista que para cada um dos casos há diferentes consequências no
mundo jurídico.
Ao consumidor que busque reparação cabe observar, primeiramente, se o produto por ele
adquirido ou o serviço contratado ameaçou a sua segurança, para definir exatamente o prazo estipulado para reclamar, bem como quais agentes da cadeia de consumo efetivamente respondem
pelos vícios.
Caso conclua-se pela inexistência de ameaça à segurança do consumidor, configura-se somente o vício, cujo prazo para reclamar é inferior, porém, o consumidor poderá demandar solidariamente contra todos os agentes da cadeira, dentre eles o comerciante.
Em contrapartida, se, além do vício, o produto ou serviço ameaçar a segurança do consumidor, o defeito resta caracterizado, o que aumenta o prazo para reclamar, contudo, limita o consumidor a demandar o comerciante, caso os demais agentes da cadeia produtiva sejam identificados,
pois a responsabilidade daquele é apenas subsidiária.
Conclui-se, pois, que efetivamente a correta diferenciação dos conceitos (vício e defeito dos
produtos/serviços) é de suma importância para determinar a responsabilidade civil dos fornecedores.
7.BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990).
GRINOVER, Ada Pellegrini et all. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
NUNES. Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
__________. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.
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