28 Opinião Desafios dos programas de combate à pobreza Pesquisadores discutem a relevância do foco dos programas e da seleção de seus beneficiários no sucesso de intervenções sociais Antônio Márcio Buainain e Hildo Meirelles de Souza Filho Governos de diversos países têm despendido, com baixa eficácia, recursos consideráveis em políticas sociais: a pobreza e a desigualdade social continuam elevadas e as demandas e necessidades superam muitas vezes a disponibilidade de recursos. No período recente, o Brasil transformou-se em verdadeiro laboratório de programas sociais, cobrindo diversas áreas, da saúde à reforma agrária, com modelos e concepções distintas e a cargo das várias esferas do governo, e os resultados ainda carecem de avaliações objetivas. A decisão de priorizar o social em um quadro de restrições de recursos coloca na ordem do dia o debate sobre a eficácia e eficiência dos programas de combate à pobreza. O objetivo deste texto é apontar alguns elementos para esse debate. Espera-se que os programas sociais alcancem de fato a população pobre e os objetivos propostos com eficácia e eficiência — atributos indispensáveis para o sucesso das ações. Enquanto a eficiência diz respeito à utilização dos recursos escassos, a eficácia refere-se à melhoria do nível de bem-estar da população meta. De pouco adiantaria atingir os objetivos de um programa com um custo elevado, desperdiçando recursos que faltariam em outro. A experiência acumulada tem demonstrado que o sucesso dos programas sociais depende diretamente do desenho e con- cepção das ações; do foco e seleção dos beneficiários; e do custo e sustentabilidade da intervenção e dos resultados obtidos. A seguir fazemos algumas reflexões sobre a questão do foco e da seleção. Foco e seleção são cruciais para o sucesso das ações sociais. Não se trata apenas de definir com clareza a quem as ações se dirigem (população de beneficiários potenciais), mas de Desafio é definir mecanismos que permitam eficácia no processo seletivo e eficiência no uso dos recursos maio|2003 Opinião Todos querem o benefício, mas cada indivíduo, ou cada família, atribui um grau de importância diferente a ele Antônio Márcio Buainain, docente do Instituto de Economia da Unicamp selecionar aqueles que participarão efetivamente do programa. Essa questão seria irrelevante caso os recursos fossem suficientes para atender a todos. Como este nunca é o caso, mesmo para políticas de alcance universal, como as de saúde e educação, coloca-se o dilema: quem participa e quem fica de fora, pelo menos no futuro imediato? Que critérios utilizar para escolher os beneficiários? O da fila? O da maior necessidade? O de quem tem mais chance de beneficiar-se de fato das ações previstas no programa? O da maior competência? Não é trivial tratar essas questões, e naturalmente não existe uma única resposta: os critérios são variados e dependem da natureza e objetivo de cada programa específico. Esses critérios não são, e nem devem ser, estabelecidos do ponto de vista exclusivamente técnico, pois os maio|2003 resultados não são neutros do ponto de vista social. As escolhas devem necessariamente passar por instâncias de decisão política, apoiadas, é claro, pela melhor avaliação técnica. Parece claro que um programa de combate à fome deve tomar como critério a maior vulnerabilidade alimentar da população, assim como também parece óbvio que um programa de reforma agrária deveria escolher aquelas famílias com maior aptidão para explorar a terra e com maiores possibilidades de viabilizarem-se como produtoras. Mas a aparente obviedade dos critérios não resolve a questão e dificilmente servirá de consolo para os pobres que ficarem de fora. A primeira dificuldade para a definição do foco é, portanto, de natureza política. Entretanto, dificuldades de natureza técnica também estão presentes, pois mesmo quando há consenso social com relação ao foco dos programas, não é trivial selecionar de forma eficaz e eficiente. A escolha de um ou outro mecanismo de seleção, ou mesmo a combinação de mecanismos em diferentes etapas do programa, deve ser feita levando em conta a eficiência da estrutura montada para executar o programa. Considerando apenas a questão do foco, essa eficiência diz respeito à capacidade do programa de incluir o maior número possível de indivíduos do público-alvo (maximizar o alcance) e excluir o maior número possível de indivíduos que não pertencem a esse grupo (minimizar vazamento de recursos para o público não necessitado), ao menor custo possível em termos de administração, burocracia, monitoramento etc. Os desafios não terminam aí. Não é suficiente que o programa defina claramente seu alcance e seu público-alvo (por exemplo, agricultores familiares, famílias pobres com filhos em idade escolar, população com defi- Hildo Meirelles de Souza Filho, docente do Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar 29 30 Opinião Processo apropriado reduz necessidade de monitoramento e prejuízos associados a erros de seleção ciência nutricional, grupos raciais etc.). A adequação a esses critérios gerais de seleção de beneficiários não elimina uma clara realidade: as diferenças entre os indivíduos que compõem um mesmo grupo. Essas diferenças referem-se a atributos pessoais, familiares e às condições socioeconômicas. Todos são pobres, mas uns são mais pobres do que os outros; todos são sem-terra, mas alguns têm mais aptidão para o trabalho no meio rural do que outros; todos querem o benefício, mas cada indivíduo, ou cada família, atribui um grau de importância diferente ao benefício recebido. O fato de ser pobre, por exemplo, não implica automaticamente ter carências nutricionais. Coloca-se, portanto, a questão de identificar, nos indivíduos do público-alvo, alguns atributos-chave para selecionar os beneficiários efetivos. A identificação desses atributos tampouco é tarefa trivial. O sucesso de alguns programas depende apenas da identificação de atributos explícitos que, com maior ou menor dificuldade, podem ser apontados: por exemplo, em um programa de combate à fome, deveria ser suficiente identificar os grupos que têm carência alimentar e assegurar-lhes acesso ao alimento. Se fosse possível a perfeita identificação desses grupos, não haveria motivos para supor que os beneficiários desviariam os alimentos para outros fins que não o de nutrir-se. Nesse caso, o problema de seleção diz respeito a como identificar de forma eficiente (com custos e eficácia adequados) esse grupo vulnerável. Há um claro trade off (situação de escolha conflitante) entre eficácia e custo - para identificar perfeitamente esse grupo, pode ser necessário realizar uma pesquisa sobre o status nutricional, o que asseguraria uma seleção perfeita, mas teria um enorme custo financeiro e de tempo. O desafio é definir mecanismos que permitam compatibilizar eficácia do processo seletivo e eficiência do uso dos recursos. Em alguns tipos de programas, não é suficiente identificar os atributos explícitos dos indivíduos; o sucesso da intervenção também depende de características e atributos que não são aparentes, como, por exemplo, disposição para trabalhar e dedicar-se ao trabalho na terra. Como identificar, ex-ante, essa disposição? É óbvio que todos os candidatos declararão a maior disposição para o trabalho e mostrarão grande entusiasmo em relação ao programa. Como identificar aqueles que de fato estão dispostos e preparados para enfrentar o desafio? Uma focalização inadequada pode gerar problemas que comprometem, na origem, a possibilidade de sucesso da in- maio|2003 Opinião tervenção social. De um lado, introduz distorções de naturezas diversas, como o desincentivo para o trabalho após a seleção; a atração de famílias de outras regiões para áreas que estão sendo assistidas por um programa social, comprometendo o orçamento e a possibilidade de manter a qualidade da ação; o vazamento para não beneficiários, como no caso de não negros que se definem negros apenas para ter as vantagens oferecidas pelo programa etc. De outro lado, também há um trade off entre seleção e custos de supervisão do uso dos recursos (monitoramento), seja o uso por parte dos executores seja o uso por parte dos beneficiários. Uma seleção apropriada reduz tanto a necessidade de monitoramento quanto os prejuízos associados a erros de seleção, como, por exemplo, a concessão de auxílio-alimentação a quem não tem carência nutricional. Pelo exposto acima, percebe-se que não é tarefa simples estabelecer um programa de combate à pobreza, a começar Universidade pode desempenhar papel relevante, contribuindo para a formulação e avaliação dos programas maio|2003 pela definição e seleção dos beneficiários. Não bastam recursos financeiros disponíveis, pois um programa mal formulado pode esgotar rapidamente seus recursos sem atingir seus objetivos. Por mais boa vontade que tenham os gestores públicos, fatores como custos burocráticos, monitoramento, corrupção, vazamento de benefícios para grupos não alvos etc. podem exaurir as fontes de recursos, reduzindo a eficiência e a capacidade dos programas de realmente atingir os pobres. A universidade pode desempenhar um papel relevante, contribuindo tanto para a formulação como para a avaliação dos programas de combate à pobreza; pode desenvolver melhores metodologias, estudar mecanismos de monitoramento, avaliar os impactos, prover insumos para o redesenho e refletir sobre as concepções mais eficazes e que dão melhor resposta para atacar determinado problema. Para tanto, é fundamental colocar de lado as idéias pré-concebidas, que, em alguns casos, têm influenciado negativamente o trabalho acadêmico. Não se trata de evitar um posicionamento político, mas de realizar trabalhos científicos com o máximo rigor científico. Só assim será possível contribuir para desenvolver programas sociais eficazes e que contribuam para a redução da pobreza no Brasil. 31