O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas anunciou no passado mês de Agosto o lançamento de uma campanha global contra o alastrar da intolerância, do extremismo, do racismo e da xenofobia. Para o Sr. Ban Ki-moon a educação é a solução para um problema cada vez mais ameaçador: “Se quiserem compreender o poder da educação, basta olhar para a forma como os extremistas combatem a educação.” Os exemplos invocados são os da jovem Malala no Paquistão, o rapto de 200 raparigas pelo Boko Haram, na cidade de Chibok, na Nigéria, ou o assassínio de jovens estudantes em Garissa (Quénia) e em Peshawar (Paquistão). “O que eles mais receiam é ver as raparigas e os jovens com manuais escolares”, reconhecia o Sr. Ban Ki-moon. Em 2012 a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) promoveu uma conferência sobre o papel da educação no combate à intolerância contra os muçulmanos onde foi apresentado o documento Guidelines for Educators on Countering Intolerance and Discrimination against Muslims: Addressing Islamophobia through Education. Desta conferência saíram um conjunto de recomendações subscritas por representantes das autoridades nacionais com tutela sobre a educação e apresentadas em conjunto pela OSCE, UNESCO e Conselho da Europa. Não seria difícil multiplicarmos os exemplos de como nas organizações internacionais e no discurso dos seus líderes é entendido o papel da educação na regulação dos valores e das condutas. À semelhança de muitos outros casos, a educação continua a ser, na cultura ocidental, o instrumento decisivo para mudar culturas e mentalidades, comportamentos e dinâmicas sociais que tendem a ser entendidas como patologias civilizacionais que importa combater. A esta crença moderna numa racionalidade despida de emoções, promovida pela escola e pela prática de ensino, costumo designar, recorrendo a Frédéric Rouvillois, por “mito da educação”. Esse “mito da educação” considera a escola como instrumento decisivo para nos conduzir ao aperfeiçoamento contínuo da humanidade e é um dos principais legados iluministas da modernidade. Através dela pudemos construir a ideia de liberdade, com ela aceitámos os constrangimentos de uma ordem social que deveria ser interiorizada através dos princípios e dos valores de uma moral cívica a que muitos chamam de “cidadania”, por ela convencemo-nos que esta marcha imparável da humanidade a que chamamos progresso se estenderia aos confins do mundo arrastando-nos na ambição de construir o paraíso na terra. A educação foi e continua a ser a grande esperança. O recurso inevitável e recorrente para combater a barbárie, o atraso, a tirania, a intolerância e todos os males, viessem de onde viessem. A civilização ocidental convenceu-se da supremacia dos seus valores e arreigou nas suas culturas esta nova crença na racionalidade e na ciência, consagrando-os como princípios universais, mesmo sem questionar até que ponto as outras civilizações e culturas as consideravam da mesma maneira. Por isso custa-nos compreender como é que os extremistas combatem a educação ou como receiam ver os jovens com manuais escolares na mão. Por isso temos dificuldade em perceber como após dois séculos de escolarização massificada ainda detetamos reações entre os ocidentais que facilmente catalogamos como islamofóbicas ou xenófobas. Por outro lado, continuamos a ignorar como em muitos países e não ocidentais o curriculum escolar está pejado de apelos à intolerância étnica e religiosa. Já deveríamos ter aprendido que a educação tem muitos fins, e nem sempre os melhores acabam por vingar. Em 1910 cerca de dois terços da população da Europa Ocidental completava a instrução primária. Era a região do globo com maior escolarização e as menores taxas de analfabetismo. Mas nem por isso evitámos uma das mais mortíferas guerras mundiais que se saldou por cerca de 19 milhões de baixas. Na década de 20 a Alemanha era considerada um dos cinco países mais escolarizados do mundo e tinha desenvolvido um modelo escolarização de massas que ao longo do século XIX foi sendo elogiado e imitado. Mas nem por isso se conseguiu evitar o desenvolvimento do nazismo e a tragédia de uma Segunda Guerra Mundial que quadruplicou o número de mortes da sua precedente. Se falamos de intolerância, a história do século XX europeu não é propriamente o melhor exemplo. Os sistemas educativos europeus foram construídos sobre o legado universalista do iluminismo, mas rapidamente se transformaram em instrumento de construção das nações e de endoutrinação dos nacionalismos. Quem conheça o que se ensinava nas escolas europeias da segunda metade do século XIX e na primeira do século XX, reconhecerá que o “espírito de nacionalidade” se construía sobre a ideia de supremacia étnica, a ameaça dos estrangeiros, a sacralização do solo pátrio e o ódio aos que na história ousaram violá-lo ou que ambicionavam ocupá-lo. As salas de aula, os programas e os manuais estavam repletos de símbolos de intolerância e de xenofobia. Muitos deles persistiram, resistiram ao avanço dos tempos e hoje ainda alimentam os novos focos de intolerância e de aversão aos estrangeiros. Hoje a Europa vive esmagada entre o medo do radicalismo religioso das crescentes comunidades de imigrantes e a ameaça do radicalismo político dos europeus que se lhe opõem. Terá a educação o poder de contrariar o medo e a intolerância dos dois lados da barricada? Atente-se no debate vivo que se trava no Reino Unido sobre o ensino nas comunidades de imigrantes. Paralelamente às escolas de ensino oficial, as últimas décadas assistiram à multiplicação das chamadas “escolas complementares”, umas com o apoio do Estado outras, de carácter informal, sem qualquer controlo por parte da inspeção de educação. Estima-se em cerca de 5.000 o número destas escolas, sendo a sua maioria de base confessional. Destas, mais de 2.000 são madraças que funcionam junto de comunidades islâmicas, a que se acrescentam um número não determinado de “yeshivas” judaicas ou as tradicionais “escolas dominicais” de orientação anglicana ou católica. A comunicação social inglesa tem vindo a realizar reportagens sobre o que se ensina, principalmente nas madraças, onde, para além da leitura do Corão, os alunos são sujeitos a palestras onde o extremismo e a intolerância religiosa dominam e onde se generalizou o castigo físico. O papel das madraças no Reino Unido foi mais recentemente enfatizado quando se compreendeu que algumas delas funcionavam como centros de endoutrinação e recrutamento do DAESH, mais facilmente reconhecido por Estado Islâmico. Numa recente alocução aos delegados do Partido Conservador, O Primeiro-ministro David Cameron anunciou medidas visando regular o que parece ser a nova ameaça ao Reino de Sua Majestade. Deixem-me ser claro: não há nada de errado com as crianças que aprendem sobre a sua fé, seja em madraças, escolas dominicais ou yeshivas judaicas. Mas em algumas madraças, temos crianças que estão a ser ensinadas que elas não se devem misturar com pessoas de outras religiões; estão a ser espancadas; engolindo teorias da conspiração sobre o povo judeu. Essas crianças devem ter as suas mentes abertas, os seus horizontes alargados, não tendo as suas cabeças cheias de veneno e os seus corações cheios de ódio. Hoje eu posso anunciar: se uma instituição ensina as crianças de forma intensiva, então, qualquer que seja sua religião, vamos, como qualquer outra escola, obrigá-la a registar-se para que possa ser inspeccionada. E não tenham dúvidas: se está a ensinar a intolerância, vamos fechá-la. Eu não sei se estas palavras poderão integrar-se no que o relatório anual da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância identifica como a “crescente tendência da islamofobia”, mas se quiséssemos multiplicar o exemplos de múltiplas intolerâncias, nos vários relatórios desta Comissão do Conselho da Europa encontraríamos decerto matéria-prima para sustentar a ideia da compressão europeia pelos extremismos: o antissemitismo expressa-se pelas várias tentativas de reescrever a história do século XX, especialmente antes e durante a II Guerra Mundial, por parte de forças populistas de extrema direita; a estas aliam-se muitas comunidades islâmicas na Europa, especialmente entre os mais jovens; as teses sobre a islamização da Europa fazem o seu caminho com um número crescente de adeptos; as reações racistas contra imigrantes africanos são igualmente referenciadas em vários países; a repulsa e discriminação em relação aos ciganos é referenciada um pouco por todo o lado; as ações contra os refugiados têm enchido recentemente os noticiários e as páginas de jornais. É razão suficiente para voltarmos a questionar: terá a educação o poder de contrariar o medo e a intolerância dos dois lados da barricada? Num relatório da RAND Corporation, publicado em 2014, chama-se a atenção para o facto de a relação positiva entre educação e intolerância não ser universalmente verificada. De uma forma geral, populações mais educadas tendem a ser mais tolerantes, mas em muitos casos, nomeadamente na Europa de Leste, essa relação não é tão evidente. As variações nesta relação são geralmente atribuídas a fatores culturais tais como a tradição democrática ou a diversidade religiosa. O caso de Portugal é precisamente um dos países que foge a essa regra: sendo um dos mais tolerantes com minorias étnicas – à exceção dos ciganos! – nem por isso se conta entre os países de maior escolarização, nem se pode contar entre os que apresentam maior rendimento por habitante, outro dos factores que tende a aumentar os preconceitos para com os estrangeiros. Um terceiro factor associado à tolerância é a confiança: ora, também neste caso, Portugal é dos países que apresenta dos mais baixos índices de confiança interpessoal na Europa. Por último tentarei responder à questão que me foi colocada e que está implícita no título desta minha contribuição: serão as escolas portuguesas instituições marcadas pela intolerância? Permitam-me, à falta de estudos sistemáticos e rigorosos sobre esta temática, que recorra à minha experiência pessoal e profissional. - Fui durante oito anos Vereador numa Câmara onde o fenómeno degradante das barracas onde residiam milhares de portugueses, imigrantes das excolónias e algumas centenas de ciganos, também eles de nacionalidade portuguesa. Fui o responsável pela realojamento das 3.165 famílias recenseadas e, não obstante alguns episódios que guardo carinhosamente na minha memória, posso dizer que o processo se desenvolveu de forma pacífica, sem discriminações nem ressentimentos. Hoje o Concelho de Oeiras apresenta uma das mais baixas taxas de criminalidade participada, os conflitos étnicos não existem e a escolarização das novas gerações de filhos de imigrantes tem crescido de forma sustentada. - Acompanho desde há oito anos uma rede de escolas onde parte delas tem presença alargada de crianças e jovens filhos de emigrantes e minorias étnicas e não creio que exista um problema grave de discriminação para com esses estudantes. Sem querer negar a existência de fenómenos de discriminação e de intolerância, não creio que essa se expresse com a dimensão e o impacto que é conhecido em vários países europeus que tive oportunidade de estudar e de visitar. Neste contexto, julgo que as escolas portuguesas não se desviam dos indicadores que apresentámos para o caso Português e estão a fazer um considerável esforço de integração e de qualificação dessas novas gerações. Por último, permitam-me que conclua que somos um país tolerante mais por cultura do que por condição socioeconómica, ..., mesmo que nas nossas escolas e para tristeza minha, não se ensine e discuta a Declaração Universal dos Direitos do Homem, nem a Constituição da República Portuguesa. O problema não estará no muito ou pouco que se ensina, mas antes na natureza do que se ensina. Referimo-nos objectivamente ao currículo. Nele poderemos encontrar ainda muitos símbolos associados a valores eivados de nacionalismo e de heróis que se afirmaram na história pelo combate aos infiéis ou aos nossos vizinhos que pretendemos manter à distância, mesmo que entre eles se tenham abatido fronteiras e silêncios. O problema é que à capacidade reflexiva e eventualmente crítica sobre o que fomos e o que somos nem sempre corresponde, do outro lado, idêntica capacidade. Por isso vale sempre a pena questionar: até onde poderemos ser tolerantes com a intolerância?