Ferro e Dadores: uma perspectiva preventiva da depleção das reservas de ferro Ana Paula Sousa RESUMO ABSTRACT Contexto: Os estabelecimentos de colheita de sangue devem adequar a avaliação laboratorial de forma a minimizar a deficiência de ferro nos dadores de sangue e a proteger a sua saúde. A Unidade de Aférese do Centro Regional de Sangue de Lisboa desenvolveu um protocolo de validação de um separador celular cuja primeira fase se descreve neste trabalho. O objectivo foi caracterizar e seleccionar a população de dadores com o perfil mais adequado à colheita dupla de eritrócitos. CONTEXT: The blood collecting facilities should adjust to the laboratory evaluation of blood donors in order to minimize iron deficiency and thus protect the health of the donors. The Aphaeresis Unit of the Lisbon Regional Blood Centre has developed a protocol for the validation of a cell separator, of which the first phase is considered here. The aim of this study was to characterise and select the population of blood donors Plano de Estudo: Seleccionaram-se três populações de dadores de sangue de acordo com o local de colheita (rural/ urbano) e o tipo de dádiva (sangue total/aférese) e realizou-se uma avaliação que incluía hemograma, ferritina e capacidade total de fixação do ferro. Os critérios para caracterização das reservas de ferro foram: reservas ausentes (ferritina<15ng/ mL), reservas reduzidas (ferritina>15 e <30 ng/mL) e reservas normais (ferritina>30 ng/mL). Resultados: As reservas de ferro estavam ausentes em aproximadamente 10% dos homens e 30% das mulheres. 5% dos homens e mais de 20% das mulheres têm reservas reduzidas. A população de dadores de sangue total em zonas rurais apresentava médias de ferritina mais elevadas e aproximadamente 80% apresentavam valores de ferritina normais. Da população de dadores por aférese, em zonas urbanas, 50% apresentavam as seguintes alterações: 25% com ausência de reservas de ferro, 25% com reservas reduzidas. Conclusão: Mesmo com valores de hemoglobina compatíveis com a dádiva de sangue, os dadores podem ter reservas de ferro deficitárias. A população rural apresenta o perfil mais adequado à colheita dupla de eritrócitos. Face ao número elevado de dadores com alterações nas reservas de ferro (reduzidas e ausentes) a Unidade de Aférese adoptou estratégias preventivas da depleção gradual das reservas de ferro nestes dadores. Palavras-Chave: aférese, ferro, dadores de sangue, hemoglobina, ferritina. with the best profile for double red cell aphaeresis collection. STUDY plan: Three blood donor populations were selected according to the geographical location of blood collection (rural/urban) and the type of collection (whole blood/aphaeresis). An evaluation was then carried out which included a haemogram, examined total iron binding capacity and determined ferritin levels. The iron stores were characterised as: depleted (ferritin levels <15ng/mL); reduced (ferritin levels >15 e <30 ng/ mL) and normal (ferritin levels >30 ng/mL). RESULTS: Iron depletion occurred in approximately 10% of the male donors and in 30% of the female donors. Reduced iron stores were found in 5% of the male donors and in over 20% of the female donors. The total number of blood donors in rural areas showed higher mean ferritin levels, and approximately 80% of them had normal ferritin levels. In the urban aphaeresis donor population, 50% showed the following changes: 25% with iron depletion and 25% with reduced stores. CONCLUSION: It was found that donors with normal haemoglobin values may have depleted iron stores. The rural donors show the most suitable profile for double red cell aphaeresis collection. Given the high number of aphaeresis donors with alterations in iron stores, the Aphaeresis Unit has chosen to adopt a preventive strategy against the gradual iron depletion in aphaeresis donors. KEYWORDS: Aphaeresis, iron, blood donors, haemoglobin, ferritin. Introdução De acordo com o Decreto-Lei n.º 267/2007, de 24 de Julho, que estabelece a responsabilidade do Instituto Português do Sangue, IP (e dos Centros Regionais de Sangue) como entidade promotora da Saúde Pública, e conforme o ponto 2, do Capítulo 7, do Guide to the Preparation, Use and Quality Assurance of Blood Components (Conselho da Europa, Número 36 Out/Dez 2008 17 uma perspectiva preventiva da depleção das reservas de ferro 12.ª edição), que enfatiza a necessidade de os estabelecimentos de colheita de sangue adequarem a avaliação laboratorial de forma a minimizar a deficiência de ferro nos dadores de sangue e a proteger a sua saúde, a Unidade de Aférese do Centro Regional de Sangue de Lisboa (CRSL) desenvolveu um protocolo de validação do separador celular Alyx® (Fenwall), realizada em duas fases. A primeira fase consistiu na definição dos critérios de selecção de dadores para a colheita de dois concentrados eritrocitários e, de acordo com estes critérios definidos, seleccionou-se a população de dadores com o perfil hemato-bioquímico mais adequado a esta colheita. Foram envolvidos 106 dadores Rh negativos, 58 homens e 48 mulheres, que compareceram em cada um dos locais para realizar dádiva de sangue. Materiais e Métodos Selecção dos Dadores de Sangue Os critérios utilizados para selecção dos dadores de sangue na primeira fase de validação do separador celular, foram os seguintes: Volume sanguíneo do dador ≥ 5L; Hemoglobina ≥ 15 g/dL; [concentração da ferritina sérica e Capacidade Total de Fixação de Ferro / Total Iron Binding Capacity (TIBC)]. O hemograma realizou-se utilizando o analisador automático Abbott Cell-Dyn 3500. Os valores de ferritina sérica determinaram-se por Enzyme-Linked Fluorescent Assay (ELFA) e a TIBC por método espectrofotométrico (Ferene). Considerando os valores da ferritina sérica, definiu-se ausência de reservas de ferro como valores inferiores a 15 ng/ mL, reservas reduzidas de ferro como valores entre 15 e 30 ng/mL e reservas de ferro normais como valores situados acima de 30 ng/mL1. Usaram-se os índices eritrocitários para detectar uma eritropoiese deficiente em ferro. A nálise Estatística Recolheram-se os dados relativos à colheita e aos doseamentos da ferritina e da hemoglobina em suporte digital com o apoio do programa Microsoft Office Excel. A análise estatística (estatística descritiva e inferência estatística) realizou-se com recurso ao programa SPSS 13.0. A grande variabilidade dos valores da ferritina (coeficiente de variação de 0,96) obrigou à utilização dos percentis, em vez da média e do desvio-padrão, como ferramenta para análise dos dados. Hematócrito ≥ 45%; Resultados Ferritina sérica ≥ 30ng/mL. Características dos Dadores 18 Estiveram envolvidos neste estudo 106 dadores de sangue regulares, Rh negativo, 58 homens e 48 mulheres. De acordo com o local da dádiva, caracterizaram-se três diferentes populações de dadores: 33 dadores oriundos de sessões móveis de colheita de sangue (em zona rural); 36 dadores do posto fixo do CRSL e 37 dadores de componentes da unidade de aférese, considerados dadores de zona urbana. Registaram-se, acerca de cada um dos dadores, a idade, o peso e o número total de dádivas. Obteve-se, previamente, o consentimento informado de cada um deles. A nálise Hemato-Bioquímica As amostras de sangue foram colhidas previamente à dádiva de sangue ou à colheita multicomponente, para determinação dos parâmetros hematológicos e bioquímicos Nos três grupos analisados observa-se uma distribuição uniforme dos dadores, por sexo (Quadro 1). As médias de idades, entre homens e mulheres, não revelam diferenças estatisticamente significativas para cada uma das populações, sendo que as dadoras das sessões móveis de colheita têm uma média de idade mais elevada. Verificam-se diferenças estatisticamente significativas no número total de dádivas, entre homens e mulheres, das populações do posto fixo e da unidade de aférese (p<0,05). Os valores de ferritina, por local de colheita (Quadro 2), são significativamente diferentes (p<0,05). Os valores de ferritina apresentam diferenças estatisticamente significativas entre dadores do sexo feminino e masculino, nas três populações analisadas (p<0,05). Verifica-se uma associação fraca entre o número total de dádivas e o doseamento da ferritina (r2=0,007). Número 36 Out/Dez 2008 uma perspectiva preventiva da depleção das reservas de ferro quadro 1: Dados demográficos por população de dadores POSTO FIXO SESSÕES MÓVEIS AFÉRESE N 20 16 18 15 20 17 Idade* 41,6±13,8 (22-65) 38,0±10,8 (23-56) 40,7±11,3 (23-60) 47,1±11,7 (27-64) 36,7±6,8 (28-49) 38,9±9,8 (23-59) Peso (kg)* 74,7±10,3 (57-91) 69,4±10,0 (52-88) 83,2±12,7 (63-120) 71,9±14,7 (54-98) 80,2±14,8 (56-113) 65,6±14,0 (52-108) Total dádivas* 11,1±11,5 (2-38) 4,9±3,2 (2-14) 10,4±9,5 (1-39) 9,7±6,9 (1-26) 13,2±8,9 (3-34) 5,9±4,2 (2-18) * [média±desvio-padrão (mínino-máximo)] Quadro 2: Valores hemato-bioquímicos por população POSTO FIXO SESSÕES MÓVEIS AFÉRESE N 20 16 18 15 20 17 Hb (g/dL)* 14,52±0,93 13,18±0,79 15,38±0,78 13,74±0,74 15,18±0,70 13,10±0,71 Hct (%)* 43,0±2,7 39,2±1,9 45,4±2,7 41,5±2,4 44,3±2,4 38,6±2,1 VCM (fL)* 90,27±3,22 90,53±2,85 90,98±4,51 90,97±5,37 90,56±4,87 86,77±4,13 Ferritina (ng/mL)* 104,15±86,53 44,92±40,27 115,92±67,54 60,36±63,22 57,09±40,96 19,83±15,21 CTFF (µg/dL)* 369±185 334±85 318±42 348±86 332±71 377±75 * [média±desvio-padrão] Analisando a ferritina por sexo do dador (Quadro 3), nas três populações, é notória a discrepância entre as reservas de ferro: 1) A ausência de reservas de ferro incide em apenas 5% dos homens, contra aproximadamente 35% das mulheres. 2) Mais de 20% das mulheres têm reservas de ferro reduzidas, contra 5% dos homens. 3)Em 10% dos homens as reservas de ferro estão alteradas (ausentes ou reduzidas) face a mais de 50% de mulheres nas mesmas circunstâncias. Comparando os valores de ferritina por local de colheita (Quadro 4), verifica-se que: 1) 20% dos dadores do posto fixo, 10% dos dadores das sessões móveis e 25% dos dadores da unidade de aférese têm ausência de reservas de ferro, embora sem alterações dos índices hematológicos eritrocitários. 2) 5% dos dadores do posto fixo, 10% dos dadores das sessões móveis e 25% dos dadores da unidade de aférese têm reservas reduzidas de ferro. 3) 75% dos dadores do posto fixo, 80% dos dadores das sessões móveis e 50% dos dadores da unidade de aférese têm reservas normais de ferro. Aplicando os critérios de selecção do Guia do Conselho da Europa, 12.ª edição, para a colheita dupla de eritrócitos (Hb≥14g/dL; Hct≥42%) constatam-se os seguintes resultados (Quadro 5): 1) Aproximadamente 10% dos dadores têm ferritina inferior a 15 ng/mL e mais de 15% têm ferritina compreendida entre 15 e 30 ng/mL. 2) Aproximadamente 75% dos dadores têm reservas de ferro normais. Caso se considerasse uma Hb≥15 g/dL e um Hct≥45% como critério de selecção de dadores para esta colheita dupla (Quadro 5), resultaria que: 1) Aproximadamente 5% dos dadores teriam reservas de ferro inferior a 15 ng/mL e 5% teriam ferritina compreendida entre 15 e 30 ng/mL. 2) Aproximadamente 90% dos dadores teriam reservas de ferro normais. Confirmou-se também (Figura 1) que o valor da hemoglobina é inadequado para a detecção de deficiência das reservas de ferro e correlaciona-se fracamente com a concentração de ferritina (coeficiente de correlação: r=0,072 para o sexo masculino e r=0,261 para o sexo feminino). Número 36 Out/Dez 2008 19 uma perspectiva preventiva da depleção das reservas de ferro quadro 3: Análise estatística dos valores de ferritina por sexo do dador quadro 5: Análise estatística dos valores da ferritina por hemoglobina do dador Ferritina Masculino Feminino Ferritina Hb <14 Hb <15 Hb ≥14 Hb ≥15 N 58 48 N 46 75 60 31 Média 91,6 40,9 Média 41,7 49,0 89,2 116,1 Desvio-padrão 37,9 39,8 74,9 89,2 Desvio-padrão 71,2 45,5 Mínimo 6,0 4,8 Máximo 382,4 250 P5 11,6 5,5 P10 18,7 6,4 P15 30,1 8,5 P20 41,6 9,6 P25 45,8 11,1 P30 54,5 P35 Mínimo 4,8 4,8 6,0 11,7 Máximo 143,2 143,2 382,4 382,4 P5 5,5 6,0 10,2 13,3 P10 6,4 8,0 16,0 21,7 P15 8,3 9,6 19,2 41,4 P20 9,3 12,4 28,3 47,6 P25 11,9 15,8 38,0 61,6 P30 13,6 18,7 47,3 68,2 13,3 P35 16,5 20,6 56,3 74,8 60,4 16,3 P40 20,4 25,6 61,0 75,4 P40 65,3 18,5 P45 22,7 33,0 65,3 77,1 P45 72,3 20,4 P50 29,5 37,0 75,1 88,5 P50 75,4 22,0 P75 63,4 66,7 114,5 152,8 P75 116,2 56,7 (cinzento: ausência das reservas de ferro; branco: reservas de ferro reduzidas; preto: reservas de ferro normais) (cinzento: ausência das reservas de ferro; branco: reservas de ferro reduzidas; preto: reservas de ferro normais) Discussão Quadro 4: Análise estatística dos valores da ferritina sérica por população de dadores Ferritina PF* AF* N 36 33 37 Média 77,8 90,7 40,0 Desvio-padrão 75,2 70,4 36,6 Mínimo 5,7 6,5 4,8 4,8 Máximo 20 SM* A determinação da hemoglobina é um parâmetro laboratorial utilizado como critério de selecção de dadores de sanTotal gue que não exclui os dadores com redução ou ausência de 106 reservas de ferro. A falta de especificidade da hemoglobina, relativamente a uma deficiência ferro, traduz-seeno Figura de correlação entre de a hemoglobina a apaferritina, no 68,6 1: Coeficiente tardio de anemia (Figura 1). feminino e norecimento masculino 65,8 382,4 337 177 382,4 P5 6,0 7,7 5,3 6,4 P10 8,6 15,0 8,7 9,4 P15 10,3 19,2 9,8 12,3 P20 15,1 24,0 12,4 16,0 P25 22,9 36,5 15,1 20,1 P30 33,2 58,3 16,0 22,6 P35 42,9 63,7 17,9 32,4 P40 47,6 70,6 20,9 37,5 P45 57,3 75,7 22,7 45,1 P50 60,9 77,9 27,7 55,4 P75 110,2 116,3 54,1 99,3 (cinzento: ausência das reservas de ferro; branco: reservas de ferro reduzidas; preto: reservas de ferro normais) •PF=Posto Fixo, SM=Sessões Móveis, AF=Aférese Figura 1: Coeficiente de correlação entre a hemoglobina e a ferritina, no sexo feminino e no masculino Número 36 Out/Dez 2008 uma perspectiva preventiva da depleção das reservas de ferro Convém realçar que esta consequência hematológica, a anemia, é antecipada por outros efeitos clínicos adversos, secundários a uma redução das reservas de ferro, tais como redução da resistência a infecções por defeitos na imunidade de mediação celular, Síndrome das Pernas Pesadas, redução da capacidade de concentração e diminuição da tolerância ao exercício físico2,3. Bruce Newman, no seu artigo recente, descreve exaustivamente as potenciais consequências clínicas atrás referidas e, entre outras, releva os efeitos adversos da depleção de ferro em dadoras que engravidam (partos prematuros, recémnascidos com baixo peso e atrasos do desenvolvimento)4. A dádiva de sangue diminui as reservas de ferro no organismo desde a primeira dádiva e, especialmente, em dadores que doam sangue várias vezes ao ano5. Reactivamente, estes dadores aumentam progressivamente a capacidade de absorção de ferro à medida que as concentrações de ferritina diminuem, até atingirem um ponto de equilíbrio em que a absorção de ferro entre as dádivas compensa a perda de ferro associada à dadiva de sangue e às perdas naturais6. Este facto, eventualmente, previne a manifestação de uma anemia por deficiência de ferro e contribui para que os dadores não sejam rejeitados na triagem clínica, embora apresentem reservas de ferro reduzidas. Esta circunstância é relevante e potencialmente limitativa da colheita dupla de eritrócitos, uma vez que a perda de ferro é o dobro da perda que ocorre numa dádiva de sangue total ( =213 mg e =236 mg, por dádiva de sangue total) 1,7. Por este facto, considerou-se importante definir outros critérios laboratoriais de selecção de dadores para este tipo de colheita, de forma a minimizar uma depleção severa das reservas de ferro, com a determinação da ferritina sérica como indicador indirecto das mesmas. O presente estudo encontrou uma grande variabilidade individual nas reservas de ferro entre as três populações estudadas e entre homens e mulheres. Mais de 50% das mulheres do estudo apresentavam reservas de ferro alteradas (reduzidas ou ausentes). Várias razões concorrem para estes resultados porque, mesmo antes da primeira dádiva de sangue, existe já risco de redução das reservas de ferro (período menstrual e número de gestações) e o impacto da perda de ferro associado a uma dádiva de sangue é maior nas mulheres, pela menor volémia e massa muscular4,8,9. Relativamente aos dadores por aférese, os valores de ferritina encontrados nos 37 dadores revelaram 25% com ausência das reservas de ferro e 25 % com redução das reservas. Neste tipo de colheita, a obtenção de componentes com uma concentração de hemoglobina padronizada10 – independentemente do valor basal da hemoglobina do dador –, as colheitas de amostras de sangue prévias à dádiva e o volume de sangue residual no kit de colheita resultam numa maior perda de sangue por dádiva efectuada, comparativamente às dádivas de sangue total. Outra circunstância concorrente é a calendarização da dádiva seguinte, com uma periodicidade de três e quatro meses, para homens e mulheres, respectivamente, e que é efectuada antes de o dador abandonar a unidade de aférese. Esta constatação impôs a necessidade de se alargar a avaliação do perfil bioquímico dos dadores regulares da unidade de aférese11, com a introdução de dois novos parâmetros: concentração de ferritina e capacidade total de fixação de ferro, tendo em vista a aplicação das seguintes estratégias preventivas: a) Todos os dadores com valores de ferritina inferiores a 15ng/ mL são enviados ao respectivo médico de família e podem doar plaquetas, desde que os valores de hemoglobina sejam compatíveis com a dádiva. b) Aos dadores com valores de ferritina entre 15 e 30 ng/mL é sugerido o reforço da dieta em ferro, continuando a doar plaquetas desde que os valores de hemoglobina sejam compatíveis com a dádiva. Contudo, a variação dos valores de ferritina seis meses depois deste reforço é mínima, o que compromete a eficácia desta medida. Relativamente às sessões móveis de colheita de sangue, a calendarização ocorre duas vezes ao ano. Demonstra-se que, para uma menor frequência de dádivas ao ano, encontramos uma média de valores de ferritina superior à das outras duas populações consideradas (80% dos dadores rurais avaliados apresentavam reservas de ferro normais). A selecção desta população para implementação de colheita dupla de eritrócitos permitiria optimizar a dádiva, com a obtenção de 4 concentrados eritrocitários de aférese ao ano por dador. Na sequência dos resultados obtidos, considerou-se a introdução da avaliação das reservas de ferro como um parâmetro a considerar na selecção de dadores para colheita dupla de eritrócitos. Caso se não pretenda ter em linha de conta as reservas de ferro, mas variar o limite inferior da hemoglobina como critério de selecção de dadores para colheita dupla de eritrócitos, por exemplo, alterando de 14g/dL para 15g/dL, teremos que as reservas de ferro estarão reduzidas aproximadamente em 5% e ausentes em 5% (Quadro 5). Perante este cenário, equacionam-se as seguintes questões: - Devem as reservas de ferro ser avaliadas antes de se implementar a tecnologia disponível para colheita dupla de eritrócitos nos centros de colheita? Número 36 Out/Dez 2008 21 uma perspectiva preventiva da depleção das reservas de ferro - Quais as consequências para um centro regional da quantificação das reservas de ferro em dadores? - Criar-se-á um dilema adicional, convertendo dadores aparentemente saudáveis em “doentes” e reduzindo o pool de dadores disponíveis para colheita de sangue? - Os dadores com ferritina inferior a 30ng/mL, mas com valores de hemoglobina normais, devem ser orientados para o médico de família? - Deve aconselhar-se e prescrever o suplemento em ferro até se atingirem reservas normais? - Os dadores com reservas alteradas e a fazerem suplemento de ferro não devem interromper o processo de dádiva, como sugere Alvarez-Ossorio1? Os dados deste estudo, bem como de outros já publicados12, são suporte para uma discussão posterior de critérios de selecção de dadores. Conclusão A grande variabilidade nas reservas individuais de ferro reflecte a frequência anual da dádiva de sangue, podendo haver outros factores relevantes como os demográficos, socio-económicos e dietéticos. Consideramos que os critérios de selecção de dadores propostos para colheita dupla de eritrócitos previnem que dadores regulares com hemoglobina compatível, mas com as reservas de ferro reduzidas ou ausentes, sejam submetidos a esta colheita. De acordo com os resultados obtidos, esta colheita deve ser realizada, preferencialmente, em dadores de zonas consideradas rurais. 22 Dada a escassez de informação acerca das reservas de ferro nos dadores de sangue e de acordo com os resultados obtidos na avaliação de três populações diferentes, a unidade de aférese adoptou estratégias minimizadoras da depleção severa das reservas de ferro, nomeadamente a avaliação hemato-bioquímica a todos os dadores por aférese e a orientação para o médico de família dos que têm reservas de ferro alteradas, embora com hemoglobina normal. REFERÊNCIAS 1- Alvarez-Ossorio L, Kirchner H, Klüter H, Schlenke P., Low ferritin levels indicate the need for iron supplementation: strategy to minimize iron-depletion in regular blood donors. Transfus Med., 2000 Jun, 10(2):107-12. 2- Markel Troy A. ; Crisostomo Paul R. ; Meijing Wang; Herring Christine M. ; Meldrum Kirstan K. ; Lillemoe Keith D. et al. The struggle for iron: gastrointestinal microbes modulate the host immune response during infection. Journal of leukocyte biology, 2007, Volume 81, Issue 2, pp. 393-400. 3- PR Dallman. Iron deficiency and the immune response. Am. J. Clinical Nutrition, Aug 1987, 46: 329 - 334. 4- Bruce Newman. Iron depletion by whole-blood donation harms menstruating females: The current whole-blood-collection paradigm needs to be changed. Transfusion, 2006, 46 (10), 1667–1681. 5- Hartmut Radtke, Beate Mayer, Lothar Röcker, Abdulgabar Salama, Holger Kiesewetter.Iron supplementation and 2-unit red blood cell apheresis: a randomized, double-blind, placebo-controlled study. Transfusion, 2004, 44 (10):1463-7. 6- PJ Garry, KM Koehler, and TL Simon. Iron stores and iron absorption: effects of repeated blood donations. Am. J. Clinical Nutrition, Sep 1995, 62: 611 - 620. 7- Högler W, Mayer W, Messmer C, Eibl G, Innerhofer P, Schönitzer D, Nussbaumer W. Prolonged iron depletion after allogeneic 2-unit RBC apheresis. Transfusion. 2001 May, 41(5):602-5. 8- Celso Bianco, Gary Brittenham, Ronald O. Gilcher, Victor R. Gordeuk, James P. Kushner, Merlyn Sayers, et al. Maintaining iron balance in women blood donors of childbearing age: summary of a workshop. Transfusion, 2002, 42 (6), 798–805. 9- L. Simon; P. J. Garry; E. M. Hooper. Iron stores in blood donors. JAMA, May 1981, 245: 2038 – 2043. 10- Ana Paula Sousa, L. Negrão, J. Seghatchian and G. Sousa. Perspectives on the six pillars of quality in multi-component apheresis: The Lisbon regional blood centre experience. Transfusion and Apheresis Science, 2006, Volume 34, Issue 1, Pages 119 – 123. 11- Ana Paula Sousa, R. Maurício, G. Sousa. Experiência do Centro Regional de Sangue de Lisboa na Implementação de uma Unidade de Aférese. AB0, 2003; 16 (suppl): 123-124. 12- Paula Teixeira. Efeito da Frequência da Dádiva de Sangue na Ferritina Sérica dos Dadores. AB0, 2002; 12: 21-28. AGRADECIMENTOS O “princípio de precaução” na área transfusional deve ser abrangente e incluir uma perspectiva ética em relação ao dador, adequando os critérios de selecção para a dádiva de sangue total ou por aférese às características da população portuguesa, seja ela rural ou urbana. A autora agradece aos enfermeiros do Centro Regional de Sangue de Lisboa, nomeadamente aos enfermeiros que colaboram nas colheitas por aférese, por tão diligentemente terem recolhido os dados necessários a este estudo, e ao Dr. Luís Negrão, médico deste Centro Regional de Sangue de Lisboa, por ter colaborado na análise estatística. A promoção do bem-estar de dadores regulares, com uma frequência elevada de dádivas ao ano e realizadas para fazer face a períodos de escassez de componentes sanguíneos, releva este tema na área da Saúde Pública. AUTOR: Ana Paula Sousa, Assistente Hospitalar de Imuno-hemoterapia. Correspondência: Dra. Ana Paula Sousa, Centro Regional de Sangue de Lisboa, Parque da Saúde de Lisboa, Pavilhão 17, Av.do Brasil 53, 1749-005 Lisboa (Portugal). E-mail: [email protected] Número 36 Out/Dez 2008