Pouco divulgada, muito aplicada
Entre os mais de mil físicos que participaram este ano do 35º Encontro Nacional de
Física da Matéria Condensada, Adilson de Oliveira aproveita para resgatar na coluna
de maio a história de uma das mais impactantes disciplinas de sua área.
Apesar da diversidade de linhas de pesquisa, do grande número de cientistas envolvidos e de
proporcionar os mais importantes desenvolvimentos tecnológicos, a física da matéria condensada
ainda é pouco divulgada, diz colunista. (fotos: reprodução)
Todos os anos, na segunda semana de maio, mais de mil físicos brasileiros se
deslocam para o interior de São Paulo ou, algumas vezes, para o interior de Minas
Gerais. Em cidades como Águas de Lindoia, Caxambu ou São Lourenço, esses
pesquisadores, há décadas, se reúnem na mais antiga e tradicional reunião promovida
pela Sociedade Brasileira de Física: o Encontro Nacional de Física da Matéria
Condensada. Como eu sou um desses físicos que migraram este ano para Águas de
Lindoia, vou contar para vocês um pouco sobre esse fascinante ramo da física.
Física da matéria condensada é a área da física que tem mais linhas de pesquisa e
que envolve mais físicos. Apesar disso, costumamos receber mais notícias sobre a
física de partículas, principalmente sobre as produzidas no LHC (o Grande Colisor de
Hádrons), ou das espetaculares imagens feitas pelo telescópio espacial Hubble.
Entretanto, é a da matéria condensada que proporciona os mais importantes
desenvolvimentos tecnológicos. Talvez a divulgação mais escassa dessa área se deva
ao longo processo que em geral transcorre entre uma descoberta e sua aplicação.
Os pesquisadores que trabalham nesse campo investigam as propriedades físicas da
matéria, a partir das interações entre átomos e moléculas. Utilizando as leis da
mecânica quântica, do eletromagnetismo e da mecânica estatística, constroem
modelos que permitem compreender os fenômenos físicos fundamentais e como estes
podem se transformar em aplicações tecnológicas.
Até o começo do século 20, a compreensão das propriedades da matéria era limitada
a uma descrição baseada na chamada física clássica, que tem como alicerces a
mecânica newtoniana, a termodinâmica e o eletromagnetismo.
Até o começo do século 20, a compreensão das propriedades da matéria era limitada
a uma descrição baseada na chamada física clássica
A primeira, proposta inicialmente por Isaac Newton, descreve os movimentos das
partículas a partir dos efeitos das forças que atuam sobre elas. A termodinâmica, por
sua vez, é um conjunto de leis que surgiram para explicar os fenômenos térmicos. Já
o eletromagnetismo, consolidado por James C. Maxwell por volta de 1865, nos trouxe
uma compreensão profunda dos campos elétricos e magnéticos, bem como da
natureza da luz.
Com essas teorias, os físicos do século 19 acreditavam que tinham conseguido
explicar toda a natureza. Entretanto, grandes revoluções científicas se seguiram e
transformaram não somente a compreensão do mundo, mas também modificaram as
nossas vidas.
Os primeiros passos
O ponto central para entender as propriedades fundamentais da matéria passa pela
ideia do átomo. Até o final do século 19 e começo do século 20, ainda não estava bem
estabelecida a existência dos átomos. Havia dúvidas entre físicos e químicos sobre se
essa entidade, que ninguém conseguia ver, era o constituinte fundamental da matéria
ou se era apenas um modelo para a descrição dos fenômenos físicos.
Em 1897, o físico inglês J. J. Thomson (1856-1940) observou em um tubo de raios
catódicos (semelhantes aos antigos tubos de televisão) que, sob a ação de campos
elétricos e magnéticos, esses ‘raios’ sofriam deflexão. Ele compreendeu que esses
‘raios’ deveriam ser um feixe de partículas carregadas eletricamente – já que estas
sofrem a ação dos campos elétricos e magnéticos. Essa nova partícula fundamental
foi batizada de elétron.
Experiências com um tubo de raios catódicos (como o da imagem) demonstraram pela primeira
vez a natureza dos elétrons. A descoberta do elétron motivou o desenvolvimento do primeiro
modelo da física da matéria condensada. (foto: D-Kuru/ CC BY-SA 3.0)
O elétron é uma partícula muito leve, com massa cerca de mil vezes menor do que os
prótons e nêutrons – as outras partículas que constituem os átomos – e tem carga
elétrica negativa – os prótons têm carga positiva e os nêutrons não têm carga. Além
disso, os elétrons possuem uma outra propriedade fundamental chamada spin, que é
o seu momento magnético intrínseco (Leia a coluna O spin que move o mundo).
A descoberta do elétron motivou o desenvolvimento do primeiro modelo da física da
matéria condensada. O físico alemão Paul Drude (1863-1906) propôs em 1900 um
modelo para explicar a condutividade elétrica dos metais, a partir dos movimentos
dos elétrons. Ele imaginou que os elétrons se comportavam como se fossem
partículas de um gás no interior do metal. Esse modelo, ainda baseado em conceitos
da física clássica, conseguiu explicar com razoável precisão os valores medidos por
essa grandeza física naquela época.
Com o avanço tanto da teoria quanto dos experimentos, a mecânica quântica fez
surgir a nossa atual sociedade tecnológica
Alguns anos depois, o físico alemão Max von Laue (1879-1960) descobriu que os raios
X, observados em 1895 por Wilhelm Röntgen (1845-1923), difratavam em cristais, da
mesma forma que a luz difrata ao passar por um conjunto de fendas. Esse resultado
indicou que os átomos deveriam estar organizados na matéria com estruturas bem
definidas e periódicas, como se fossem, por exemplo, pequenos cubos interligados.
Paralelamente a essas descobertas, emergiu a mecânica quântica, uma nova física
que foi logo aplicada para entender as propriedades dos materiais. Com o avanço
tanto da teoria quanto dos experimentos e um imenso universo de perspectivas de
aplicações, fez surgir a nossa atual sociedade tecnológica.
Aplicações por todos os lados
Ao longo do século 20, a física da matéria condensada gerou resultados
impressionantes, que levaram a importantes aplicações tecnológicas. Praticamente
todas as tecnologias avançadas que surgiram decorrem dessa compreensão mais
profunda da matéria. Para exemplificar, vou destacar apenas algumas das
descobertas mais relevantes.
Em 1911, Heike Kamerlingh Onnes (1853-1926) descobriu o fenômeno da
supercondutividade em metais em temperaturas muito baixas, na ordem de -270 ºC.
Quando os materiais se transformam em supercondutores, eles têm a capacidade de
conduzir a corrente elétrica sem perda de energia e de expelir campos magnéticos no
seu interior. A descoberta desses materiais permitiu a construção de bobinas
supercondutoras que geram altos campos magnéticos. Esses campos são utilizados,
por exemplo, nas máquinas de ressonância magnética e nos grandes magnetos do
LHC.
Contudo, a supercondutividade somente foi compreendida no final da década de
1950, com a teoria proposta pelos físicos John Bardeen (1908-1991), Leon Cooper
(1930-) e Robert Schrieffer (1931-). Utilizando os modelos da física da matéria
condensada, esses pesquisadores explicaram o intrigante fenômeno. Mais detalhes
podem ser conferidos na coluna de Carlos Alberto dos Santos ‘A centenária e
misteriosa supercondutividade’. Por essa descoberta, esses físicos ganharam o premio
Nobel de Física em 1972.
Primeiro transistor, construído no final dos anos 1940, nos laboratórios da Bell Telephone.
(foto: Bell Labs)
Curiosamente, anos antes, em 1948, John Bardeen, Walter Houser Brattain (19021987) e William Schockley (1910-1989) descobriram o chamado efeito transistor.
Esse efeito, que ocorre devido à natureza quântica dos elétrons, permitiu a
construção de transistores que vieram substituir as válvulas termoiônicas utilizadas
nos equipamentos eletrônicos.
Esse dispositivo, que permite controlar o fluxo de corrente elétrica em um circuito,
levou a uma revolução na eletrônica, pois ele é fundamental na construção dos
computadores, telefones celulares, tablets entre outros equipamentos modernos.
Esses pesquisadores, juntamente com William Bradford Shockley (1910-1989),
receberam o prêmio Nobel de Física em 1956. John Bardeen, até hoje, foi o único
cientista que ganhou dois prêmios Nobel de Física.
Esses foram apenas alguns exemplos das importantes descobertas feitas por
pesquisadores que trabalham na área de física da matéria condensada. No evento que
ocorreu este ano, muitos resultados apresentados talvez nunca se transformem em
aplicações tecnológicas e apenas representem pequenos avanços na grande
imensidão do conhecimento.
O encontro de físicos em eventos como este sem dúvida permite o avanço das idéias.
Contudo, alguns talvez possam, em pouco tempo, se transformar em aplicações
importantes, como os relacionados ao confinamento de elétrons em grafeno – átomos
de carbono dispostos em duas dimensões –, que podem levar a uma nova revolução
nos dispositivos eletrônicos.
O encontro de físicos em eventos como este sem dúvida permite o avanço das ideias;
novas colaborações surgem, ampliando ainda mais a fronteira do conhecimento.
Publicada em 18 de maio de 2012 na Revista Ciência Hoje on Line
Por Adilson de Oliveira
Departamento de Física
Universidade Federal de São Carlos
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