Comunicação O Cinema na Educação Escolar MARTINS, Alice Fátima1 COSTA, Adriane Camilo2 Palavras-chave: Mídias atuais, Concepção construtivista, Prática educacional INTRODUÇÃO Ainda há muito para as instituições aprenderem a respeito das relações entre os processos de ensino-aprendizagem e as possibilidades propiciadas pelas mídias atuais. Algumas inquietações nos incentivaram no desenvolvimento de uma pesquisa sobre a oferta e o uso do material fílmico para crianças na faixa etária entre oito e dez anos, idade em que vários conceitos estéticos, éticos, cognitivos, normativos, dentre outros, estão em pleno processo de formação e consolidação. Para tanto, foi proposto um trabalho com um grupo de alunos, em que eram motivados a assistir filmes com diversas temáticas, construções formais e modos de narrativas. A articulação entre filme, contexto sócio-histórico e linguagem cinematográfica, como elementos relevantes no processo de interpretação das narrativas, aponta para diversas questões que orientam, dentre outras ações, a escolha dos filmes. Tais orientações levam em conta, por exemplo, o olhar estético, temas sociais, relacionamentos, valores éticos e morais, contexto histórico, linguagem cinematográfica, música e símbolos, as possibilidades de comunicação entre as imagens do filme e as imagens do cotidiano. O desenvolvimento das etapas do projeto conta com atividades preparatórias, quando os alunos são motivados para relacionar-se com os filmes, bem como estabelecer diálogos entre si e sobre os filmes em questão, sem inibições decorrentes da autocrítica típica dessa faixa etária. Nesse momento, também fica evidenciada a necessidade de que as crianças comecem a ter contato com termos relativos ao mundo do cinema e da televisão, e a conhecer os 1 2 FAV/UFG FAV/UFG mecanismos do mercado por meio dos quais os filmes são realizados e veiculados para chegar até ao público. A valoração da experiência estética e da experiência do trabalho em grupo é enfatizada durante todo o processo com as crianças e os professores, como condição para atingir os objetivos do trabalho. Esta proposta é orientada pela concepção construtivista, segundo a qual a aprendizagem é concebida como um processo contínuo e dinâmico de acomodação e assimilação, em que crianças e adultos modificam suas estruturas cognitivas internas através de suas experiências pessoais, nas relações com o mundo. Os conhecimentos prévios, interesses, expectativas, motivações, necessidades, experiências e ritmos de aprendizagem são levados em conta durante todo o processo. As reflexões apresentadas aqui resultam dos achados do projeto de pesquisa em questão, e formam a base para seu desdobramento na proposta de organização de um cineclubinho, cuja programação deverá ter em vista crianças do ensino fundamental, além de abrir espaços para que professores também possam participar, e construir percursos próprios no exercício da experiência estética por meio das narrativas cinematográficas. Assim, esse artigo está dividido em três partes. Na primeira, são levantados alguns aspectos que têm caracterizado a inserção do cinema na educação de um modo geral, com foco na prática educacional. A segunda parte aborda os modos como o filme é usado como análise comparativa entre as crianças e professores envolvidos, como é feita a escolha do filme e o provável percurso do desenvolvimento do projeto. A terceira está dedicada à interpretação e narrativa do filme, como elas são construídas e assimiladas. A INSERÇÃSO DO CINEMA NA EDUCAÇÃO Sobre a abordagem dos primórdios do cinema educativo, cabe aqui ressaltar que os denominados “filmes educativos” abrangem os instrutivos do tipo como fazer, os filmes para estudo na sala de aula, os documentários sociais, os científicos, os para debates, assim como muitos filmes produzidos para fins de relações públicas, treinamentos e até publicidade, abrangendo assim a quase totalidade do tipo conhecido como “não-ficção”, para uso da rede dos cinemas comercias. O cinema no contexto educacional direciona o olhar para novos caminhos que antes eram desconhecidos, principalmente quando se considera que mais da metade da população brasileira nunca foi a uma sala de cinema, tendo acesso aos filmes por meio das redes de televisão. Além disso, a maior parte do público consome as imagens de modo passivo – a maior parte da produção de imagens encontra-se delimitada no campo da distração e entretenimento descompromissado. E a possibilidade de ver cinema com olhar mais atento e ativo pressupõe percorrer novos caminhos, nos quais o espectador passa de passivo para crítico, evitando ser consumido pelas imagens. É nessa hora que entra o professor como mediador e instigador do sujeito, levando as crianças a estabelecerem sua autonomia, ou seja, indo além do que é passível de se ver. A importância de não ficar apenas na possibilidade do filme como distração, mas usar criticamente as representações e a narrativa fílmica como propulsores de debates temáticos, está no exercício de aprimoramento do olhar e de desenvolvimento do senso crítico em relação ao consumo de bens culturais. No entanto, as discussões relativas ao cinema, no contexto educacional, no ambiente do ensino das artes visuais, ou mesmo de outras áreas do conhecimento, em sua maioria, ainda são marcadas por orientações quanto ao uso das narrativas cinematográficas como estratégias para o desenvolvimento de conteúdos escolares, como ilustração de assuntos diversos, ou ainda ecoam as referências de análise de filmes, nas quais prevalecem os pontos de vista dos autores. Tendo em vista tais considerações e notando que as transformações no confronto entre gerações, tais como os conflitos que acontecem porque gerações diferentes têm visões de mundo distintas, são cada vez mais evidentes e que a participação da mídia nessas transformações é notória, reafirmamos nossa escolha em trabalhar com o cinema como eixo da prática de ensino e também de pesquisa. DISCUTINDO ANÁLISE FÍLMICA Várias são as questões que acompanham esse trabalho, cujas respostas vão sendo reformuladas ao longo do percurso, ao mesmo tempo em que abrem flancos para novas questões, algumas de cunho metodológico, outras de cunho conceitual. Dentre as tantas, apontamos algumas: trabalhar com filmes de curta ou longa metragem? Com qual, ou quais, gêneros cinematográficos? Projetar filme de forma fragmentada, para que seja possível conversar e tirar dúvidas ao longo da narrativa, ou num bloco apenas, podendo retomar trechos dos filmes posteriormente? Quais os critérios a serem privilegiados na seleção dos filmes? Em que referenciais teóricos referendar a condução do trabalho? Essas e outras tantas perguntas balizam o planejamento das etapas do trabalho, bem como a busca dos referenciais conceituais para sua sustentação: no cruzamento entre as questões próprias do ensino de artes visuais; na linguagem cinematográfica – que aporta o som, além da imagem, configurando meio audiovisual – nos processos de cognição e na percepção das narrativas. Além de compreendermos que devemos estar disponíveis às surpresas do caminho, lembrando que, nesse trabalho, nem todos os objetivos previamente definidos são contemplados, ao mesmo tempo em que outros acabam sendo incorporados ao longo do processo. De modo que não temos controle de todos os parâmetros articulados na complexidade dos processos de aprender e de pesquisar. A seleção dos filmes segue alguns critérios que favoreceram o planejamento das atividades. Alguns critérios podem ser considerados básicos, tais como a indicação prévia dos filmes de acordo com a faixa etária de oito a dez anos. Outro aspecto considerado é a duração dos filmes, de curta ou longa metragem, viáveis dentro do tempo disponível, e também tendo em vista a característica da criança no tocante ao tempo de atenção e concentração de que são capazes. Além disso, o número de crianças envolvidas, o espaço e a infra-estrutura disponíveis são levados em consideração no momento dessas escolhas. Os estudos narrativos, suas normas e princípios, destacados por Bordwell (1979), são relevantes na seleção dos filmes. Bordwell considera três aspectos na narrativa fílmica: a representação, como significação do conjunto de idéias; a estrutura, como combinação dos elementos; e o ato, como processo dinâmico de apresentação de uma história a um receptor. Ao mesmo tempo em que Turner esclarece que os filmes são vistos dentro de um contexto cultural que vai além do prazer da história, sempre oportunizando aprendizados: “A complexidade da produção cinematográfica torna essencial a interpretação, a leitura ativa de um filme. Inevitavelmente precisamos examinar minuciosamente o quadro, formar hipóteses sobre a evolução da narrativa, especular sobre seus possíveis significados, tentar obter algum domínio sobre o filme à medida que ele se desenvolve. O processo ativo da interpretação é essencial para a análise do cinema e para o prazer que ele proporciona.“ (TURNER, 1997, p. 69). Para trabalhar a criticidade da criança, um aspecto importante a ser explorado é a relação do conteúdo do filme com a realidade de cada indivíduo. Pode parecer contraditório falar sobre a realidade do sujeito referindo-se a uma narrativa ficcional. Mas o ficcional do filme fornece parâmetros que cooperam com a percepção do que é real de maneira menos sisuda e mais divertida para a criança. Vygotsky faz uma relação entre o brinquedo e as tendências do desenvolvimento sob a forma condensada. “É notável que a criança comece com uma situação imaginária que, inicialmente, é tão próxima da situação real. O que ocorre é uma reprodução da situação real. (...) isso significa que, na situação original, as regras operam sob uma forma condensada e comprimida. Há muito pouco de imaginário. É uma situação imaginária, mas é compreensível somente à luz de uma situação real que, de fato, tenha acontecido (...). é mais a memória em ação do que uma situação imaginária nova.” (VYGOTSKY, 2003, p. 135). Quanto aos termos cinematográficos, estes são necessários para a compreensão da estrutura de um filme. Dentre eles destacam-se: qual o papel do diretor na realização do filme? O que faz o diretor de fotografia? E a ficha técnica, para que serve? Estas são algumas das questões importantes de serem cogitadas para que um olhar mais crítico seja possível, sem perder de vista o prazer em assistir o filme. Algumas possibilidades para interpretação de um filme com crianças nesta faixa de idade podem ser citadas: a discussão sobre o tema do filme; a comparação dos lugares que aparecem no filme com os lugares onde vivem; a construção das personagens; as possibilidades de identificação; o desenrolar da narrativa; o desenvolvimento de noções sobre luz e som. Também devem ser considerados os olhares, as falas e os gestos das crianças que podem nos dizer muito sobre a construção de significados construídos a partir dos filmes. No processo de interpretação e discussão dos filmes, a percepção envolve um fazer, uma reelaboração sintética do aprendido e interpretado. A atividade prática tem como objetivo evidenciar o poder de comunicação, sedução e informação que têm sobre nossas decisões e escolhas. Tem também o objetivo de criar uma situação para que os participantes elaborem sínteses de sentidos e significados indicados pela narrativa do filme. “A percepção envolve um tipo de conhecer, que é um apreender o mundo externo junto com o mundo interno, e envolve, concomitantemente, um interpretar aquilo que está sendo apreendido. Tudo se passa ao mesmo tempo. Assim, no que se percebe, se interpreta; no que se apreende, se compreende. Essa compreensão não precisa necessariamente ocorrer de modo intelectual, mas deixa sempre um lastro de nossa experiência.“ (OSTROWER. 1993, p. 57). AS NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS E O CONHECIMENTO As visualidades ocupam um lugar de destaque na cultura contemporânea, e a inserção da linguagem cinematográfica na educação, além de trazer para o ensino as questões da imagem e das estruturas narrativas tão familiares às crianças e adolescentes, amplia as possibilidades de discussões no âmbito dos processos de criação e da experiência estética propriamente dita, bem como vem a somar-se aos processos de aprendizagem, estimulando os mecanismos cognitivos de reflexão e análise, ajudando na formação para o exercício consciente e crítico da cidadania, e formando para a experiência estética mais ampla e diversificada, de modo que seja possível estabelecer uma relação mais autônoma e crítica com os próprios meios hegemônicos de comunicação. A escola deve aproveitar seu papel de instituição responsável na formação da sociabilidade, ampliando o conceito de leitura e aprendizagem, aproveitando de seus potenciais. Assim, é um desafio para as instituições educacionais contemporâneas explorarem de forma adequada esses recursos. Em geral, os meios audiovisuais são incorporados às práticas pedagógicas de modo reducionista, estritamente instrumental, quando não inadequado. Moran (Apud NAPOLITANO, 1995, p-27) aponta, de modo crítico e contundente, alguns modos como vídeos são usados em sala de aula; dentre os mais comuns está:o vídeo tapa-buraco, que configura aquelas situações em que se “coloca um vídeo” quando aparece um problema inesperado, como a ausência do professor; o vídeo enrolação, quando o vídeo exibido não tem qualquer ligação com a disciplina; o vídeo deslumbramento, caracteriza-se pela descoberta do uso do vídeo pelo professor, passando vídeos em todas as aulas; vídeo perfeição, quando a projeção se presta para a formulação de críticas destrutivas, por parte do professor, que aponta, apenas, defeitos de informações e estéticos; e só vídeo, quando a exibição do vídeo não é acompanhada por uma discussão e integração com outros conceitos. A obra cinematográfica é uma poderosa ferramenta na construção do saber, no exercício crítico e reflexivo sobre questões as mais diversas, e, sobretudo, na ampliação da experiência estética. É oportuno ressaltar que cada pessoa, ao se relacionar com a obra cinematográfica, ao construir interpretações de sua narrativa, tece uma espécie de “pano de fundo” sempre mutante marcado por suas percepções da obra em si, e também do mundo, e do próprio indivíduo em relação à obra e ao mundo. Com isso, é importante afirmar que não há interpretações corretas, verdadeiras, ou absolutas, todas decorrem de múltiplas significações, interpretações e formas de olhar uma mesma imagem. E uma das fontes dessas formas de olhar uma imagem está na própria história de vida do espectador. A organização do cineclubinho tem em vista, dentre outros aspectos, a compreensão dos processos cognitivos pelos quais as crianças e educadores buscam interpretações dos filmes, atribuindo significações, articulando informações, buscando compreender os elementos constituidores da linguagem. Nesse sentido, será priorizada a construção de um olhar crítico-apreciador para contribuir na seleção de seus filmes, propagandas e programas televisivos, inserindo-se nesta cultura imagética com mais conhecimento e crítica. Neste mundo, saturado de linguagens diversas, a cujos fluxos todos estamos expostos, cabe à instituição escolar propiciar a estudantes e educadores o exercício dessas linguagens e dos demais meios de manifestações humanas, com o objetivo de preparar melhor seus estudantes para interagir de forma crítica com os veículos de informação diversos. Aí inseridas as narrativas fílmicas, nas quais seus realizadores articulam teias de significados, com vistas a questionar, indagar, denunciar, romper, criticar, discutir e afirmar valores vigentes da sociedade em que vive e também de outras sociedades. Assim, como o texto literário narra uma história, um acontecimento, também o cinema se constitui numa “arte narrativa” (CHIAPPINI. 2000, p. 96). Sobre a narrativa cinematográfica, nota-se que as imagens, o movimento e a sonoplastia são privilegiados, pois é através desses recursos que se toma conhecimento do que é narrado. Na construção da narrativa alguns elementos formais devem ser articulados intencionalmente pelos seus criadores, tais como a posição da câmera, os cortes e as luzes. A complexidade da produção cinematográfica torna essencial a interpretação, a leitura ativa de um filme. Inevitavelmente precisamos examinar minuciosamente o quadro, formar hipóteses sobre a evolução da narrativa, especular sobre seus possíveis significados, tentar obter algum domínio sobre o filme à medida que ele se desenvolve. O processo ativo da interpretação é essencial para a análise do cinema e para o prazer que ele proporciona. (TURNER. 1997, p. 69) CONCLUSÃO A inserção do filme e de outros meios audiovisuais na educação escolar não pressupõe a instituição de uma concorrência com as produções textuais, tampouco o abandono de outros modos de produção de imagens, ou a subtração da relação dos estudantes com as técnicas tradicionais de criação artística. Ao contrário, deve significar a ampliação das possibilidades de articulação de informação e de interação de estudantes e professores com o mundo da cultura em suas múltiplas formas de expressão e fluxos de informação. É preciso que os ambientes educativos estejam abertos aos trânsitos possíveis entre os modos variados de construção do saber, incorporando novas maneiras de produção de conhecimento. Contar com filmes no processo educacional é uma maneira de aprender a ver o mundo com outros olhares, a ampliar possibilidades de experiência estética, numa clara contribuição para a formação de sujeitos capazes de interagir com imagens em suas diversas naturezas, de modo mais crítico e criativo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARBOSA, Ana Mae (org.) Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005. BAUER, Martin W. e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som (4ª ed.). Petrópolis: Vozes, 2005. BORDWELL, David. Film art: na introdicion. New york, Alfres A. Knof, 1979. CHIAPPINNI, Lígia. Outras linguagens na escola: publicidade, cinema e TV, rádio, jogos, informática/ coordenador Adilson Citelli. São Paulo: Cortez, 2000. FERRÉS, Joan. Televisão e educação. São Paulo: Artes Médicas, 1996. MORAN, J. M., MASETTO, M.T. e BEHRENS, M. A. Novas tecnologias e mediações pedagógicas (6ª ed.). Campinas: Papirus, 2000. MORIN, Edgar. 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