REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO SISTEMA PRISIONAL Fábio Mansano de Mello1 Leonardo Moraes dos Santos2 Resumo: O presente trabalho tem por escopo tratar das contribuições e dificuldades do processo educativo escolar no sistema prisional. Num primeiro momento abordamos algumas peculiaridades das instituições totais, no sentido da construção de uma socialização secundária, ressignificando a vida dos sujeitos; em seguida, discutimos a presença e a funcionalidade da escola nesse espaço singular, apontando não só o caráter legal do atendimento em educação e trabalho por parte das instituições, mas também os fatores que motivam os sentenciados a procurarem a escola no presídio. Para finalizar, ressaltamos a importância de compreender a escola como um instrumento para potencializar as ações de reinserção do sujeito à sociedade, desde que atreladas ao fortalecimento dos vínculos familiares e projetos de geração de renda. Palavras-chave: Alfabetização de Jovens e adultos. Inclusão social. Sistema prisional. Socialização. Introdução O presente trabalho é um desdobramento do projeto de pesquisa “Educação e trabalho no sistema prisional”, vinculado à UESB – Campus de Jequié-Ba. Entendemos que discutir o processo de ressocialização do adulto preso é um processo que não se limita a ações isoladas de uma diretoria ou setor específico das casas correcionais; implica em oportunizar acesso à educação e ao trabalho, além do fortalecimento de vínculos familiares. A experiência dos autores como educadores de adultos presos, o primeiro como monitor de educação da FUNAP-SP e o segundo como alfabetizador do Programa ReAprender/Brasil Alfabetizado, motivou a seguinte reflexão: qual a importância da escola dentro da prisão? Esse é um tema desafiador, principalmente porque o sistema prisional aparece aos nossos olhos, através da mídia, como uma instituição nebulosa, carregada de mistérios e preconceitos, encarregada de afastar da sociedade os indivíduos que rompem suas regras harmoniosas. Para o cidadão que não conhece a rotina do trabalho por trás das grades de ferro, o espanto é maior quando descobre que os homens encarcerados têm acesso a trabalho, cuidados de saúde e acesso a escola. Ao adentrarmos as muralhas percebemos as peculiaridades do espaço escolar, notamos os vários significados que a educação formal preconiza. Não podemos esquecer que a imensa 1 Sociólogo, Professor de Sociologia da UESB – Jequié. Coordena o Projeto de Pesquisa “Educação e trabalho no sistema prisional” na referida universidade. 2 Pedagogo, Coordenador Pedagógico da Rede Municipal de Ensino de Planaltino-Ba. maioria dos alunos ali matriculados já foram excluídos desse processo educativo num passado não muito distante, e se a concepção bancária não for revista, um novo fracasso se aproxima dessas pessoas. Porém, tal escola se localiza na prisão; o impacto dessa socialização secundária para os sentenciados é tão forte que merece ser destacado. As novas regras de conduta individual se consolidam ao passo que a escola se apresenta como uma ponte com o mundo externo, com as perspectivas de acesso a informações e livros, de uma nova vida. Sobre a prisão Segundo Foucault (2008), a prisão tem o objetivo de tornar os corpos dóceis e úteis; a instituição passa a ser uma forma de punir delinqüentes, mas com o papel de recuperá-los para o convívio social. O condenado passa a sofrer a privação da liberdade e a sentir os efeitos de uma instituição repleta de regras e aprende a conviver em um ambiente completamente adverso a que está acostumado; segundo Goffman (1992, p. 22) as instituições totais 3 são estufas que atuam na transformação de pessoas, assim, cada sujeito é um experimento sobre o que se pode fazer ao “eu” o que se espera de tal situação é fazer com que os sentenciados possam adequar-se a instituição fazendo com que os mesmos estejam sempre lembrando das causas que os levaram a tal condição. Nesse sentido, a pena restritiva de liberdade tem que causar no sujeito condenado o sentimento de arrependimento pelo crime cometido, bem como causar na população em geral o sentimento de que o crime não compensa. Dessa forma, os efeitos causados pelo encarceramento não devem se restringir apenas ao condenado, mas também aquele que pensa em cometer algum delito. Portanto a prisão, enquanto instituição executora da pena restritiva de liberdade, tem como missão cuidar para que os condenados não voltem a cometer crimes, estabelecendo um conjunto de normas que objetivem a transformação dos sujeitos. Para tanto, as penitenciárias devem ser repletas de normas, dando a idéia de uma instituição voltada para o treinamento e reeducação de pessoas. O indivíduo condenado passa, nesse momento, para uma posição de perda da autonomia, característica de uma “instituição total” que prima pelo “fechamento”, 3 Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo levam uma vida fechada e formalmente administrada. (GOFFMAN, 1992, p. 11) mantendo os sujeitos longe do convívio social e submetendo-os ao julgo disciplinador da instituição. A própria clausura - o fato de os indivíduos estarem em um ambiente fechado - já se constitui como elemento causador de efeitos, no entanto, a prisão não pode apenas enclausurar, ela deve fornecer elementos que contribuam para a transformação dos indivíduos sentenciados. E nada melhor do que as técnicas disciplinares, pois fornecem segundo o mesmo Foucault (2008) “técnicas de dominação política”, levando os sujeitos a uma submissão ao corpo administrativo. As regras que são estabelecidas pelo próprio sentido que a instituição oferece já se constitui como causador de efeitos; basta lembrar que o sujeito condenado ao entrar na instituição prisional é imediatamente separado de seu convívio familiar e de seus objetos pessoais. Um conjunto de bens individuais tem uma relação muito grande com o eu. A pessoa geralmente espera ter certo controle da maneira de apresentar-se diante dos outros [...]. No entanto, ao ser admitido numa instituição total, é muito provável que o indivíduo seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e serviços com os quais a mantém, o que provoca desfiguração pessoal (GOFFMAN, 1992, p. 28). Tal característica da prisão causa no condenado certa impaciência e sentimento de humilhação, uma vez que os objetos básicos de uso pessoal passam a ser de responsabilidade e controle do dirigente, colocando o condenado numa condição de dependência ao corpo administrativo. Infra-estrutura inadequada, programas de trabalhos para detentos que em nada podem contribuir com o processo educativo, nem como uma profissão duradoura, e a falta de escola e contando com um ensino inadequado à realidade dos internos são problemas constantes que permeiam as penitenciárias. Nesse sentido, falar em “ressocialização” se torna muito mais complicado. O que se nota é outro tipo de ressocialização, que na verdade significa para muitos a entrada definitiva para o crime. Afinal o sujeito condenado ao entrar na prisão passa a conviver em um ambiente repleto de pessoas que cometeram algum delito, então [...] podemos afirmar que o processo de ajustamento dos indivíduos ao meio prisional proporcionou a formação de um novo sistema social [...]. A sociedade os rejeitou e os puniu. Os rejeitados por sua vez rejeitaram a moral, as normas e as regras da sociedade e reagiram com uma nova cultura e com a criação de suas próprias leis. (LIMA, 2003, p.77) No interior dos presídios formou-se uma nova sociedade, onde os internos, via de regra, são sugestionados ao mundo da criminalidade. Segundo Português (2001, p.367) a prisão proporciona a organização dos delinqüentes desencadeando uma nova socialização para o crime. No entanto, este não é o único fator que leva a não reintegração do condenado à sociedade, existem outros fatores como o estigma de ex-presidiário que o condenado carrega ao sair da prisão, junto a isso, a falta de políticas públicas que assegure ao apenado continuar o processo de reintegração fora da penitenciaria. Sobre a educação escolar na prisão Além das regras impostas no seio desta instituição existem outros mecanismos que primam pela transformação dos sentenciados, como a escola e o trabalho. Atualmente em muitas penitenciarias brasileiras ocorrem processos educativos via escola e trabalho, com o objetivo de dar aos sentenciados a formação educacional requisitada pela sociedade. Estes são direitos garantidos pelos presos previstos pela Lei de Execução Penal4 que prevê no art. 17 – “A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado”. Como já foi mencionado, mecanismos educacionais sempre permearam a prisão, seja para adequar o condenado ao convívio prisional ou para reformular sua personalidade. [...] a educação é arrolada como atividade que visa a proporcionar a reabilitação dos indivíduos punidos. Contudo, considerando que os programas da operação penitenciária apresentam-se de forma premente a fim de adaptar os indivíduos as normas, procedimentos e valores do cárcere – afiançando, portanto, aquilo que se tornou o fim precípuo da organização penitenciária: a manutenção da ordem interna e o controle da massa carcerária [...] (PORTUGUES, 2001, p. 360). No tocante a educação escolar, é engano pensar que a mesma tem um papel de neutralidade frente a formação-adequação do condenado ao ambiente em que está inserido. Se tratada apenas levando em consideração os conteúdos propostos, não se propondo a atuar frente aos correntes problemas sócio-históricos e da própria realidade dos fatos acaba se inserindo em uma condição de extrema formalidade, cumprindo, na verdade, a função de mantenedora da ordem vigente. 4 BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei Nº 7.210 de 11 de julho de 1984. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/. Acesso em 06 de abril de 2009. A escola, na verdade, pode cumprir dois importantes papéis, dependendo da forma como ela deve ser encarada. Pode servir como um claro mecanismo de adequação dos indivíduos, introjetando nos mesmos valores e regras sugeridas pela instituição prisional, ou até mesmo, levar em consideração as visões sociais a respeito de como deve ser um condenado; ou pode, através de uma concepção educacional libertadora viabilizar ao sujeito condenado se libertar das amarras que o prende a uma condição de excluído social. Segundo pesquisa de Leme (2007), inúmeros são os fatores que motivam o sentenciado a procurar o pavilhão escolar. Após entrevistas com presos, com o fito de compreender o sentido da educação na “cela” de aula, o pesquisador apresenta um cenário complexo: uns procuram a escola para se mostrar “um exemplo vivo de conduta e disciplina” (visando um parecer positivo no laudo criminológico), outros freqüentam as aulas para receberem o material escolar (que pode ser trocado no raio por outros produtos, como por exemplo, carteira de cigarros). Ao freqüentar a escola no presídio, os sentenciados têm a possibilidade de sair do pavilhão, encontrarem presos que habitam outros pavilhões, ter acesso a informações e participarem de atividade de cunho sócio-educativo, tais como aulas de música, informática, artesanato, dentre outras. Apresar das contradições do espaço escolar no sistema prisional, Leme aponta sua importância ao dizer que (...) a sala de aula não será mais do que uma “cela de estudo”, uma cela, digamos, onde encontramos lousa e carteiras. Por isso, ousamos chamar a sala de aula no interior de uma penitenciária de “cela de aula”. Não queremos, com isso, estigmatizar esse espaço. Acreditamos que se possa olhar a cela de aula em um sentido positivo. Será nesse espaço que ocorrerá o aprendizado escolar de maneira formal. Esse espaço terá para muitos presos um significado especial. Para alguns, será a primeira oportunidade de aprender a ler e escrever; para outros, a chance de concluir os estudos e esboçar, assim, um futuro diferente (LEME, 2007, p. 145) Nesse sentido, a educação escolar tem o importante papel de atuar na ressocialização de presos. “A característica fundamental da pedagogia do educador em presídios é a contradição, é saber lidar com conflitos, saber trabalhar as contradições à exclusão” (GADOTTI, 1993 p.143 apud PORTUGUES, 2001, p.361) Neste contexto se insere a importância da educação escolar como mecanismo de inserção do individuo na sociedade e como meio para levar os seus agentes à reflexão. E, dessa forma, se comprometer com a transformação de suas condições materiais. [...] a primeira condição para que um ser pudesse exercer um ato comprometido era a sua capacidade de atuar e refletir. É exatamente esta capacidade de atuar, operar, de transformar a realidade de acordo com finalidades propostas pelo homem, à qual está associada sua capacidade de refletir, que o faz um ser de práxis (FREIRE, 1979, p. 17) É a partir do conhecimento e reflexão da própria realidade que os sujeitos envolvidos e incomodados com tal situação se engajam para que ocorra a transformação. Segundo Silvestrini (2003, p. 11) a escola tem um importante papel enquanto formadora de opiniões, ela estaria contribuído para criar no aluno/preso valores como direitos e deveres quando em sociedade. De um modo geral percebe-se, ainda, uma inadequação das metodologias e materiais utilizados para pessoas jovens e adultos; nesse sentido, proporcionar uma formação que contemple a realidade dos indivíduos inseridos no processo de escolarização se faz necessário. Para um trabalho como este, não só por se tratar de detentos, mas também de pessoas jovens e adultos, o processo de educação escolar não pode ter uma vertente unicamente conteudista, pois, a escola deve proporcionar [...] uma discussão sobre a conscientização desses indivíduos em relação à sociabilidade moderna e o entendimento do papel de cada um deles enquanto sujeitos da história. Por isso tenho a convicção de que a escola é o principal (mas não o único) elemento que contribui para a ressocialização do adulto preso, no sentido de reformular suas perspectivas e visões de mundo. (MELLO, 2008, p.539) Através de inúmeras pesquisas revela-se o perfil do alunado que geralmente freqüenta a escola no interior dos presídios; a falta de ligação com a escola é uma característica já trazida de fora, reflexo do modelo social imposto que contribui para que a população mais carente não tenha uma satisfatória passagem pela instituição escolar. Nesse contexto, em que a educação escolar aparece muitas vezes intimamente ligada às pressões sociais e mais diretamente ao corpo dirigente da prisão, que se torna importante questionar a possibilidade de uma educação que caminhe em direção a ampla formação do sujeito. Segundo Português (2001) a educação compõe a área de reabilitação estando subordinada ao corpo administrativo da instituição prisional, sendo assim, seria difícil imaginar como uma Educação Libertadora poderia fazer parte de um ambiente como esse acima descrito. Ultimas palavras Ainda que inúmeras dificuldades sejam encontradas no sentido do fortalecimento da escola na prisão, pontuais ações educativas contribuem na formação dos sujeitos de forma significativa. Em estudo recente sobre a experiência de alfabetização de pessoas jovens e adultas no presídio de Jequié-Ba (Mello & Moreira, 2009), destacou-se a importância da formação continuada dos educadores e das ações interdisciplinares no sentido de fortalecer o espaço escolar prisional. Como foi salientado anteriormente, a educação escolar não pode ser o único vetor responsável pela reintegração do adulto preso à sociedade, mas se apresenta como elo para consolidar ações de geração de renda, construção da cidadania, acompanhamento do trabalho dos técnicos (psicólogos e assistentes sociais) além de fornecer, é claro, o certificado de conclusão de curso. Para o sentenciado a escola possui inúmeros significados, como bem relata Santos (2009); dentro do sistema fechado que é o presídio, a sala de aula é um contraponto onde se discute cidadania, trabalho, reintegração social e outros temas que permeiam o contexto prisional, mas que não são devidamente tratados. A escola propicia, portanto, ainda que de forma limitada, o que os apenados anseiam em vários sentidos: oportunidades. Refletir sobre a educação escolar no sistema prisional significa repensar antigas questões, que não foram respondidas devidamente pelo mundo contemporâneo: o que fazer com os detentos e o que esperar deles quando em liberdade. Referências BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei Nº 7.210 de 11 de julho de 1984. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/. Acesso em 06 de abril de 2009. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008. FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. GOFFMAN, Erving. Maníacos, Prisões e Conventos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. LEME, José Antonio Gonçalves. A cela de aula: tirando a pena com letras. Uma reflexão sobre o sentido da educação nos presídios. In: ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano (org). Educação escolar entre as grades. São Carlos: EdUFSCar, 2007. LIMA, Regina Campos. 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