Diversidade ÉtnicoRacial e Educação Superior Brasileira Conselho Editorial Ahyas Siss, Alvanísio Damasceno, Gláucio Pereira, Iolanda de Oliveira, Mariluce Bittar, Paulo Vinicius Baptista da Silva. LEAFRO Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (NEABi/UFRRJ) [email protected] Ahyas Siss (Org.) Diversidade ÉtnicoRacial e Educação Superior Brasileira: experiências de intervenção Aloisio Jorge de Jesus Monteiro Cláudia Regina de Paula Dalila Fonseca Benevides Daniela Silva Santo Darci Secchi Delcele Mascarenhas Queiroz Iolanda de Oliveira Leila Dupret Lucília Augusta Lino de Paula Maria Alice Rezende Gonçalves Maria Lúcia Rodrigues Muller Paulo Vinicius Baptista da Silva Rio de Janeiro 2008 Copyright © 2008 by Ahyas Siss, Aloisio Jorge de Jesus Monteiro, Cláudia Regina de Paula, Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo, Darci Secchi, Delcele Mascarenhas Queiroz, Iolanda de Oliveira, Leila Dupret, Lucília Augusta Lino de Paula, Maria Alice Rezende Gonçalves, Maria Lúcia Rodrigues Muller e Paulo Vinicius Baptista da Silva. Todos os direitos desta edição reservados à Quartet Editora & Comunicação Ltda. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de partes do mesmo, sob quaisquer meios, sem a autorização expressa da Editora. Capa ??? Editoração Eduardo Cardoso dos Santos Revisão Alvanísio Damasceno Quartet Editora & Comunicação Ltda. Rua da Candelária, nº 9 – Grupo 1004 / 1010 Centro – 20091-020 – Rio de Janeiro – RJ Tels.: (021) 2516-5353 – Fax: (021) 2233-6845 e-mail: [email protected] www.quartet.com.br Editora associada à Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Rodovia BR 465, Km 7, Centro – Seropédica – RJ UFRRJ/DPPG/EDUR/Pav. Central /sala 102 Fone (0xx21) 2682-1210 ramal 3302 - FAX (0xx21) 2682-1201 e-mail: [email protected] www.ufrrj.br/editora.htm SUMÁRIO Introdução ........................................................................ 7 Ahyas Siss O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores: uma experiência de intervenção multicultural . ...................................... 15 Ahyas Siss Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639 na abordagem do ciclo de políticas ........... 41 Cláudia Regina de Paula Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira e subjetividade: um entrelaçamento à luz da complexidade ............... 65 Leila Dupret A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo às funções da universidade: origem e atuação do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) ................ 87 Iolanda de Oliveira Educação e relações raciais em Mato Grosso .......... 129 Maria Lúcia Rodrigues Muller Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias................................................ 149 Paulo Vinicius Baptista da Silva Para além do imaginário congelado do território e da identidade brasileira: entre memória e tradições indígenas........................ 177 Aloisio Jorge de Jesus Monteiro Formação de professores para a autonomia indígena.................................................. 197 Darci Secchi Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas na universidade . ......................... 219 Lucília Augusta Lino de Paula Estudantes de uma universidade estadual com cotas: a percepção do racismo e da política de ações afirmativas...................................... 241 Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo e Delcele Mascarenhas Queiroz O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a participação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UERJ na permanência de alunos afro-brasileiros ............. 269 Maria Alice Rezende Gonçalves INTRODUÇÃO Esse livro foi escrito a várias mãos e em lugares diferentes. Sob o título Diversidade étnico-racial e educação superior brasileira: experiências de intervenção, reúne experiências diversificadas de intervenção na educação brasileira. O livro possui, como eixo articulador, as intervenções efetivadas por diferentes pesquisadores e por seus grupos de pesquisa, na confluência estabelecida pela educação superior brasileira como política pública, ou seja, o Estado em ação e as desigualdades étnico-raciais brasileiras. Esses pesquisadores estão preocupados e comprometidos com a qualidade da educação superior brasileira como política pública. Há a mesma preocupação em construir mecanismos que possibilitem o efetivo cumprimento das Leis 10.639/03 e 11.645/08, interferindo nos processos de inserção precarizada de diferentes segmentos populacionais brasileiros no processo educativo e na forma pela qual se configuram o acesso e a permanência na educação superior brasileira, de grupos étnicos, colocados em posição de subalternidade social e política. O papel que o Estado brasileiro vem desempenhado nesse processo é identificado, analisado e questionado 7 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira nos vários artigos da coletânea. São apresentadas intervenções nos processos de formação de professores nas suas dimensões inicial e continuada, buscando efetivá-los sobre bases multiculturais, como convém a uma sociedade étnica e racialmente estratificada como é a brasileira. Ainda que não se possa negar o caráter multicultural da sociedade brasileira, os currículos dos cursos de formação de docentes, tanto inicial quanto continuada, vêm sistematicamente ignorando essa realidade ao homogeneizar racialmente a população brasileira. Essa constitui, sem dúvida, uma das formas de se promover à invisibilidade dos diversos grupos étnico-raciais que compõem a sociedade. Promovida essa invisibilidade, não haverá motivos para se implementar uma política pública de educação em perspectiva multicultural. A lacuna deixada pelos cursos de formação de professores, no que diz respeito à prática docente no seio de uma sociedade plural, bem como à diversidade étnico-racial de seus alunos, obstaculizará o professor na identificação de práticas discriminatórias em sala de aula, dificultando, ainda, a criação de estratégias e de mecanismos de combate às mesmas por esse profissional, a quem caberá, nas salas de aula, explicitar – sem hierarquizar – as diferenças étnico-raciais, culturais, econômicas e de gênero de seus alunos, transformando as salas de aula e, por conseguinte, a instituição escola, em um espaço democrático, “espelho da riqueza humana”. Diversas universidades brasileiras vêm implementando experiências de políticas públicas de ação afirmativa e de cotas étnico-raciais, privilegiando os aspectos da democracia de acesso e de permanência no ensino superior, para negros e indígenas. Podemos encontrar algum tipo de política de cotas, ou de ação afirmativa, social, étnica e racialmente enviesadas em diversas universidades estaduais e federais como: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Univer8 Introdução sidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Universidade do Estado de Goiás (UEG), Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Federal do Tocantins (UFT) e na Escola Superior de Ciências da Saúde de Brasília (ESCS), as duas últimas, voltadas para alunos oriundos de escolas públicas e, as supracitadas, com forte viés de classe social. Democratizar o acesso à universidade é um passo. Entretanto, como se viabiliza a democracia de realização dos alunos negros e indígenas, quando comparados aos alunos brancos das universidades brasileiras? Quais os mecanismos que asseguram a permanência não subalternizada desses alunos na universidade? O que nos ensinam as experiências de universidades pioneiras na implementação das políticas de cotas étnicas ou racialmente definidas? Ahyas Siss, em “O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores: uma experiência de intervenção multicultural”, ao discorrer sobre a necessidade de se implementar a formação de professores em perspectiva multicultural, analisa a contribuição que o Leafro (Laboratório de Estudos Afro-brasileiros), o núcleo de estudos afro-brasileiros da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) oferece ao processo de formação continuada de professores da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, e ressalta as formas pelas quais esse laboratório 9 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira vem, efetivamente, intervindo nesse processo. Criado em 2006, o Leafro desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, aprofundando análises das articulações estabelecidas entre as dimensões raciais e étnicas, de classe, cultura, de gênero, bem como do mundo do trabalho na sua interseção com as relações étnico-raciais brasileiras e com o processo educativo formal. Nesse sentido, esse laboratório promove ações afirmativas étnica e racialmente enviesadas, com resultados significativos no processo de formação de professores, no âmbito da Baixada Fluminense e da própria UFRRJ, além de participar ativamente das discussões sobre as possibilidades de implantação de políticas de cotas étnico-raciais naquela universidade. “Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639 na abordagem do ciclo de políticas” é o artigo assinado por Cláudia Regina de Paula, em que a autora discute as contribuições da abordagem do ciclo de políticas, formulada por Stephen Ball e seus colaboradores, especificamente sobre a política que inclui no currículo da escola básica a história e a cultura afro-brasileira, através da Lei n. 10.639, bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (Parecer 003/2004). O artigo “Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira e subjetividade: um entrelaçamento à luz da complexidade”, da pesquisadora Leila Dupret, apresenta estudos realizados a partir de 2006 com jovens habitantes da Baixada Fluminense, levando em conta o que é decantado pela mídia, incluindo sua concepção étnico-racial, acrescida pelo atravessamento cultural afrobrasileiro advindo do campo religioso, considerando suas informações míticas como fonte para a construção do conhecimento, destacando neste contexto o papel ativo da mulher em sua participação no cenário político, econômico e divulgador dos usos, costumes e tradições constituintes de nossa brasilidade. A autora analisa também 10 Introdução como supostos futuros professores estão lidando com as diferentes modalidades de saber. Iolanda de Oliveira, em seu “A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo às funções da universidade: origem e atuação do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb)”, discorre sobre a criação do Penesb e de sua incorporação à estrutura da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (Feuff), além de fazer considerações sobre referenciais teóricos pertinentes à pesquisa e à formação dos profissionais da educação com vistas ao atendimento satisfatório aos grupos humanos diferenciados cultural e biologicamente, particularmente os grupos negros. “Educação e relações raciais Em Mato Grosso” é o artigo em que a pesquisadora Maria Lúcia Rodrigues Müller discute os processos intra-escolares que produzem o fracasso escolar de alunos negros, que, quando não fracassam, têm trajetórias escolares mais acidentadas que alunos brancos. No texto, a autora aborda alguns aspectos das relações raciais nas escolas de Mato Grosso tomando como base os resultados de pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (Nepre) da Universidade Federal de Mato Grosso. Paulo Vinicius Baptista da Silva, pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (Neab-UFPR) contribui, nessa obra coletivamente produzida, com o seu artigo intitulado “Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias”, no qual discute o processo de formação de professores (as) sobre História e Cultura Afro-Brasileira e sobre Educação das Relações Étnico-Raciais desenvolvido pelo Neab-UFPR desde o ano de 2004. A educação indígena se faz presente, neste livro, por meio de dois artigos, dos pesquisadores Aloisio Jorge de Jesus Monteiro e Darci Secchi. Monteiro, em seu “Para além do imaginário congelado do território e da identidade brasileira: entre memória e tradições indígenas”, fun11 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira damentado em Walter Benjamin, afirma que a luta pela demarcação dos territórios indígenas, em conexão com a defesa das identidades de seu patrimônio histórico cultural, assume características de centralidade no debate atual. O autor procura, ainda, identificar os conceitos de território e identidade, bem como, suas possíveis confluências com a complexidade das novas configurações atuais. Já Secchi, em “Formação de professores para a autonomia indígena”, afirma que o debate acerca da implantação de políticas públicas dirigidas a segmentos sociais específicos (negros, índios, pobres, etc.) tem ocupado um lugar de destaque no cenário acadêmico contemporâneo. O autor discute a educação escolar indígena por considerá-la uma das âncoras do movimento de consolidação do chamado protagonismo indígena e assegura que a consolidação de uma nova perspectiva para a educação escolar indígena em Mato Grosso na última década foi possível graças a um amplo programa de formação de professores, mas que foi necessário conjugar a educação escolar a outras iniciativas que procuraram superar as atuais políticas compensatórias e se voltaram para a construção de relações pautadas na autonomia e no protagonismo dos brasileiros indígenas, quer vivem nas aldeias, quer vivam nas cidades. A pesquisadora Lucília Augusta Lino de Paula, ao discutir as “Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas na Universidade”, não nos deixa esquecer que este é um dos grandes desafios com que a universidade brasileira se depara desde a Reforma Universitária de 1968, colocando em xeque concepções e práticas arraigadas e marcadas pelo elitismo e pela meritocracia. Afirma que os debates sobre a instituição do sistema de cotas nas universidades públicas brasileiras trazem à luz resistências à institucionalização da adoção de políticas afirmativas e ao reconhecimento de tensões nas relações étnico-raciais no interior do campo acadêmico e que se, hoje, a universidade apresenta uma crescente produção científica sobre a diversidade cultural e as relações étnico-raciais, quando 12 Introdução o assunto é a democratização do acesso às camadas populares, mais especificamente à população afro-descendente, as resistências são enormes. As considerações elaboradas pelas pesquisadoras Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo e Delcele Mascarenhas Queiroz, no capítulo “Estudantes de uma universidade estadual com cotas: a percepção do racismo e da política de ações afirmativas”, têm sua origem em dois levantamentos sobre os estudantes da Uneb, que ingressaram no ano de 2005 naquela universidade pelo sistema de cotas. As autoras pretendem contribuir para o debate em torno das ações afirmativas e, particularmente, levar à reflexão sobre a experiência de adoção de tais medidas naquela instituição. O primeiro levantamento identificou as características socioeconômicas e acadêmicas dos estudantes que ingressaram em cursos de elevada concorrência. O segundo compreendeu a percepção dos estudantes sobre as relações raciais, as ações afirmativas e, particularmente, a política de cotas que os beneficiou. Maria Alice Rezende Gonçalves, ao analisar “O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a participação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj na permanência de alunos afrobrasileiros”, nos remete ao campo das políticas publicas e descreve as fases de implantação e implementação da política pública Sistema de Reserva de Vagas para Negros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002/2008), além de destacar a participação do Sempre Negro – Coletivo de Professores Negros da Uerj, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UERJ, nesse processo. A autora pontua que, desde sua criação (2003), o núcleo promove atividades nos eixos formação, publicação e permanência de alunos afro-brasileiros, e que as ações do Neab, um ator emergente no campo das políticas de inclusão no ensino superior nas universidades públicas, contribui para consolidação dessa política no interior da instituição. 13 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Os autores, cujos textos integram o presente livro, percebem as representações de raça, classe e gênero como o resultado de lutas sociais ampliadas “sobre signos e representações”. As desigualdades são compreendidas como produto de relações históricas, de cultura e de poder e a diversidade é afirmada na perspectiva da justiça social. Diferença não significa desigualdade. Ao atuarem nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão, produzindo e divulgando conhecimentos localizados na confluência das áreas das desigualdades e das diversidades étnico-raciais e da educação, esses pesquisadores ampliam e consolidam sua intervenção na educação brasileira e nos oferecem subsídios para uma nova prática pedagógica menos excludente, vale dizer, mais democrática, propiciando que a educação brasileira possa efetivarse sobre bases multiculturais. Ahyas Siss 14 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores: uma experiência de intervenção multicultural Ahyas Siss Introdução Sabemos que a formação continuada de professores constitui-se, entre nós, como necessidade premente. Desde os anos sessenta do século passado esse tema vem ganhando importância significativa, provocada por aceleradas transformações pelas quais a sociedade brasileira vem passando. As demandas educacionais colocadas pelo avanço tecnológico, econômico e científico nas diferentes áreas do saber, somadas a outras originadas pela ação dos diferentes movimentos sociais que, a partir da década de 1970, reemergiram ou potencializaram suas ações no cenário nacional, vêm impactando fortemente o processo de formação de professores, nos seus aspectos inicial e continuado. A dinâmica social exige dos professores novas competências e habilidades que, muitas das vezes, não foram construídas quando de sua formação inicial. Não devemos nos esquecer de que, se a formação continuada de professores é um direito do professor, esse processo formativo coloca algumas exigências para esses profissionais, tais como disponibilidade para aprendizagem e vontade de aprender a aprender, dentre outras. Da instituição escolar, por outro lado, requer-se que sejam 15 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira criadas alternativas, ou condições, que propiciem a esses profissionais a continuidade de seu processo formativo. Se a formação de professores é dever do Estado e tarefa da universidade, exige-se, do Estado, a formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a qualificação desses profissionais. Da universidade, por sua vez, exige-se a elaboração de programas de formação continuada que possibilitem o desenvolvimento e a qualificação profissional em uma dimensão permanente. No que diz respeito ao trinômio educação, relações étnico-raciais brasileiras e formação de professores, tanto na sua dimensão inicial quanto na continuada, os resultados de pesquisas contemporâneas e de outras não tão recentes assim, posto que foram desenvolvidas ao longo das últimas décadas do século passado, apontam na direção da existência de um verdadeiro divórcio entre essas três áreas, quando entre elas deveriam existir interseções significativas. Estudos realizados nessas áreas por pesquisadores como Ana Célia da Silva (1995, 2001), Ana Lúcia Valente (1995,) Delcele Mascarenhas Queiroz (2003), Iolanda de Oliveira (1999, 2000), Luiz Alberto O. Gonçalves (1985, 1998), Luiz Cláudio Barcelos (1993), Nilma Lino Gomes (1997, 2000), Petronilha B. G. e Silva (1993, 2003), Regina Pahim Pinto (1993a, 1993b) e Siss (1994, 2003), dentre outros, permitem inferir-se, por meio de seus resultados, que a instituição escola é étnico-racial e culturalmente seletiva. Em outras palavras, a escola é discriminatória e excludente. Nela, o processo de aprendizagem vem sendo feito contra os interesses de uma parcela significativa do alunado – os afro-brasileiros – e as memórias desse grupo étnico-racial, bem como as dos indígenas, são invisibilisadas, quando não apagadas, e o sabor do saber se faz amargo. Essa memória, que deveria se tornar mecanismo de potencialização do processo de ensino-aprendizagem, transforma-se em mordaça que atrofia a aprendizagem do aluno e torna perversa a prática do professor. 16 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... Os resultados de diferentes pesquisas desenvolvidas contemporaneamente sobre esses temas apontam, também, para a importância e necessidade de se formar professores para uma prática pedagógica eficiente do ponto de vista das diversidades, no âmbito de sociedades culturalmente estratificadas. Em vários países assim diversificados, as interseções entre políticas educacionais, relações étnicoraciais e formação de professores, tanto no seu aspecto inicial quanto no continuado, ocupam lugar de destaque. No Brasil, porém, país de dimensões continentais, com sua população caminhando para a casa dos 200 milhões de habitantes, dos quais cerca de 50% são afro-brasileiros, essas interseções não se constituíam, até bem pouco tempo, em motivo de preocupação significativa por parte dos formuladores das políticas educacionais, os quais vinham relegando sistematicamente essas interseções quase que à invisibilidade. Como conseqüência, os programas das faculdades de formação de professores, na sua maior parte, sistematicamente desconsideravam a importância da dimensão dessas interseções, o que justificava sua ausência no processo formativo dos professores brasileiros. As desigualdades social e étnico-racial operam como poderoso mecanismo de estratificação social em qualquer sociedade em que elas se manifestem. É certo, também, que a sociedade brasileira possui altos níveis de desigualdades, tanto sociais como étnico-raciais, de gênero e geracional. Pesquisas importantes desenvolvidos por estudiosos das relações étnico-raciais brasileiras como Azevedo (1953), Fernandes (1965), Harris (1964), Pierson (1945), Telles (2003) e Wagley (1952), indicam que a maior parte da população brasileira, tanto branca como negra, é economicamente empobrecida. Não obstante, segundo esses mesmos estudiosos, as pessoas negras em processo de mobilidade vertical ascendente parecem sofrer menos preconceito do que os demais membros desse grupo étnico-racial. Daí inferirem que o preconceito existente 17 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira contra os negros está baseado muito mais em distinção de classe que em marcadores raciais; afirmam, também, que a discriminação ocorre porque a maior parte dos negros brasileiros são pobres e portadores de baixo capital educacional e não por não pertencerem à parcela branca da população brasileira. Acreditavam que, com o aumento do capital educacional dos negros e com o desenvolvimento da sociedade de classes no Brasil, o preconceito e as desigualdades étnico-raciais tenderiam a desaparecer. Fundamentados nesses argumentos, alguns estudiosos das relações estabelecidas entre etnia/raça e educação brasileira, acreditando ser a discriminação de classe mais importante que a discriminação étnico-racial, opõem-se de forma veemente, a qualquer tipo de modificação no processo de formação de professores que confira ênfase à dimensão étnico-racial da população brasileira. Em sentido diametralmente oposto a essa primeira perspectiva, outros tantos pesquisadores dessas mesmas relações postulam ser o preconceito e a discriminação étnico-racial mais importante que a condição de classe. Afirmam, também, que ambos concorrem para produzir e reproduzir as condições de subalternização dos afrobrasileiros frente ao grupo étnico-racial branco, político e socialmente dominante. Por isso, os processos de formação de professores não podem prescindir de formar profissionais aptos a desenvolver sua prática docente no âmbito de sociedades multiculturais. Nesse sentido, estudos elaborados mais recentemente por Guimarães (2001, 2002, 2003), Hasenbalg (1979, 1990), Hasenbalg e Silva (1990), Munanga (1996) e Henriques (2001) afirmam a existência de barreiras étnica e racialmente seletivas que obstaculizam os processos de implementação da cidadania dos afro-brasileiros, bem como de mobilidade vertical ascendente para os membros desse grupo. Eles permitem, ainda, perceber-se que, mais do que um legado do passado, a discriminação racial constitui-se na principal característica da sociedade brasileira 18 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... do período pós-abolição, produzindo e reproduzindo desiguais oportunidades de realizações sociais para brancos e afro-brasileiros, com a variável raça ou cor – como atributo social elaborado – sendo percebida como “um princípio racial classificatório”, sobre o qual as desigualdades cultural, social e econômica existentes entre os diferentes grupos étnico-raciais são produzidas e reproduzidas de modo ininterrupto. Esse princípio classificatório permite que se perceba como Esse perfil de desigualdades raciais não é um simples legado do passado: ele é perpetuado pela estrutura desigual de oportunidades sociais a que brancos e não-brancos estão expostos. Negros e mulatos sofrem uma desvantagem competitiva em todas as etapas do processo de mobilidade social individual. Suas possibilidades de escapar às limitações de uma posição social baixa são menores que a dos brancos da mesma origem social, assim como são maiores as dificuldades para manter as posições já conquistadas (HASENBALG, 1988, p. 177). Novamente nos referimos às pesquisas realizadas na interseção estabelecida entre as relações étnico-raciais, educação e formação de professores por Ana Célia da Silva (1995; 2001) Ana Lúcia Valente (1995,) Delcele Mascarenhas Queiroz (2003), Iolanda de Oliveira (1999, 2000), Luiz Alberto O. Gonçalves (1985, 1998), Luiz Cláudio Barcelos (1993), Nilma Lino Gomes (1997, 2000), Petronilha B. G. e Silva (1993; 2003,), Regina Pahim Pinto (1993a, 1993b) e Siss (1994, 2003), pois elas enfatizam o papel que o professor, devidamente instrumentalizado, estará apto a desempenhar no âmbito de sociedades multiculturais, como é o caso de nossa sociedade. Esse professor estará capacitado, por exemplo, a perceber e combater as ideologias racistas e os estereótipos veiculados pelos diversos materiais didáticos colocados à sua disposição. 19 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Ele poderá desmistificar os valores particulares que os currículos escolares tentam tornar gerais ou hegemônicos. Ele poderá combater a forma estereotipada e preconceituosa com que a história dos afro-brasileiros é enfocada nos livros didáticos nos quais, na maior parte das vezes, os afro-brasileiros são enfocados apenas, e quase sempre, como e enquanto escravizados. Os afrobrasileiros no Brasil de hoje são ignorados, permanecendo invisíveis nesses livros. A estrutura dos currículos dos cursos de formação de professores, (se) privilegia as diversidades de classes e de gênero, silencia a respeito da história da África e das diversidades étnico-racial e cultural brasileiras. No Brasil, no período compreendido entre o pósabolição e o fim dos anos oitenta do século XX, a produção acadêmica envolvendo as áreas das relações étnico-raciais, educação, formação de professores e de um multiculturalismo que já se insinuava, constituiu-se como qualitativamente significativa, embora seja, em termos quantitativos, pouco expressiva. Pesquisas foram realizadas nessas áreas nesse período, mercê do esforço de alguns poucos pesquisadores. Entretanto elas foram, na maior parte das vezes, relegadas ao ostracismo ou reduzidas à invisibilidade quando comparadas a outras áreas de produção do conhecimento nessa mesma época, como demonstrado por Hasenbalg e Silva (1992), Pinto (1993) e Silva (1996), dentre outros. A partir da primeira metade dos anos 1990, o panorama dessa produção começará a se transformar, tanto quantitativa como qualitativamente. Essa transformação será propiciada, por um lado, pelo aparecimento de novas pesquisas situadas na confluência das áreas entre educação brasileira e formação de professores inicial e continuada, pesquisas essas que, em grande parte, se constituem como o resultado de discussões e análises elaboradas na segunda metade da década passada, tanto na academia quanto nos movimentos sociais, como o movimento ne20 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... gro nacional, o novo movimento sindical, o movimento feminista e o movimento de mulheres negras, para citar apenas alguns. A importância dessas pesquisas pode ser comprovada pelo interesse que despertam na academia e também em diferentes fóruns privilegiados de discussão, como nos encontros da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), e da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). Entre nós, a relação atualmente estabelecida entre racismo e educação dos afro-brasileiros é bastante diferente da existente no século passado. A publicação e o reconhecimento oficial e tardio da existência de discriminação racial e da violação dos direitos constitucionalmente declarados dos afro-brasileiros e de que a educação brasileira em todos os seus níveis é racialmente excludente conferiram dinâmicas novas aos processos de discriminação racial. Dificilmente alguém, hoje, desconheceria o fato de que somos um povo multicultural e que convivemos com o fenômeno do racismo, característica estrutural da nossa sociedade. Não obstante, a formação de professores continua a acontecer como se fôssemos uma sociedade monocultural. Ainda que as desigualdades de classe sejam abordadas, a perspectiva multicultural das relações sociais e seu correspondente na educação permanecem, quase sempre, fora dos currículos que orientam tal formação. Creio não ser difícil constatar-se que a sobrevida do mito da democracia racial se faz presente hoje e atua com relativa intensidade na maior parte dos currículos dos cursos de formação de professores. Ainda que não se possa negar o caráter multicultural da sociedade brasileira, os currículos dos cursos de formação de futuros docentes, com honrosas exceções vêm, sistematicamente, ignorando as contribuições que as pesquisas elaboradas em perspectiva multicultural oferecem ao processo de formação de professores. 21 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira A Lei n. 10.639, de 09/01/2003 determina no seu Artigo 26-A, que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” e que o “conteúdo programático [...] incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. Essas determinações, somadas à publicação e intensidade das discussões sobre a implementação de uma política de cotas como mecanismo de acesso à educação superior, voltada para os afro-descendentes, vêm redimensionando a política educacional brasileira, as relações étnico-raciais e as formações inicial e continuada de professores. Nesse contexto, a formação continuada de professores ganha relevância, por permitir a atualização dos conhecimentos e da prática pedagógica desses profissionais de ensino. A Lei n. 11.645/08, que altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, por sua vez, confere ênfase à educação indígena, assegurando que Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. 22 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afrobrasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. É nessa perspectiva que se inserem tanto o Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros – Leafro (Neabi/UFRRJ) quanto sua produção de conhecimento viabilizada pelas pesquisas desenvolvidas por seus pesquisadores e os seus cursos de pós-graduação lato sensu Diversidade Étnica e Educação Brasileira e de extensão Afro-Brasileiros, Desigualdades Étnico-Raciais e Educação no Brasil. Sua principal proposta está voltada para oferecer subsídios e orientação às ações educativas de intervenção pedagógica direcionadas para a implementação da Lei n. 10.639/03 de “9 de janeiro de 2003, que Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira”. Dessa forma, atendemos a uma demanda reprimida dos professores da rede municipal de ensino do Município de Nova Iguaçu e de outros profissionais da educação localizados em seu entorno, no que diz respeito ao estabelecido pela referida lei, bem como ao que determinam as Diretrizes Curriculares Para a Educação das Relações Étnico-Raciais e ao Parecer 003/20041. Trata-se de Parecer do Conselho Nacional de Educação aprovado no mês de março de 2004, que “visa a atender os propósitos expressos na indicação CNE/CP 6/2002, bem como regulamentar a alteração trazida à Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10.639/2000, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica”. 1 23 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira O Leafro – Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (Neabi da UFRRJ): intervindo e transformando O Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (Leafro), Neab da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e proponente do curso de pós-graduação lato sensu em Diversidade Étnica e Educação Brasileira, iniciou suas atividades no primeiro semestre de 2006. Suas fundação, institucionalização e consolidação no âmbito do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da UFRRJ têm proporcionado a continuidade do desenvolvimento de pesquisas voltadas para a produção e divulgação de conhecimentos acadêmicos e de intervenção, no processo de formação de professores da Baixada Fluminense em uma perspectiva multicultural, tanto no seu aspecto inicial quanto continuado, nas modalidades presencial e a distância. Integrante da rede nacional de Neabis (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas) existentes e atuantes na maior parte das universidades públicas brasileiras, o Leafro tem, como objetivos, produzir, incentivar e acompanhar as políticas de ação afirmativa nas instituições no âmbito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ele possibilita, ainda, o ensino da cultura afro-brasileira, africana e indígena, além de atuar nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão, produzindo e divulgando conhecimentos localizados na confluência das áreas das desigualdades e diversidades étnico-raciais e da educação. A criação do Leafro se justificou pela necessidade de se produzir, incentivar e apoiar a produção e a difusão de conhecimentos novos nas áreas dos estudos afrobrasileiros e da educação em consonância com o que é preconizado pela Lei n. 10.639/03, intervindo no processo de formação de professores nos seus aspectos inicial e continuada, bem como nas modalidades presencial e a 24 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... distância. A relevância desse laboratório deve-se ao fato de a formação de professores em perspectiva multicultural se constituir como um dos principais desafios contemporâneos colocados para os diferentes cursos de licenciaturas e de especialização, seja na modalidade presencial, seja na modalidade a distância, cuja solução é fortemente demandada pela educação brasileira, bem como por professores dos municípios que formam a chamada Baixada Fluminense, de acordo com levantamento preliminarmente realizado. O Leafro acompanha as políticas de ação afirmativa etnicamente definidas, já implementadas, ou em fase de implementação e desenvolvimento no âmbito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, além de participar ativamente das discussões internas sobre as necessidade e possibilidade de se implementar na UFRRJ uma política de cotas étnico/raciais voltada para os afro-brasileiros, como forma de democratização do acesso desse segmento étnico-racial aos cursos dessa universidade. O Leafro também favorece o ensino da cultura afro-brasileira e africana, atuando nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão, produzindo e divulgando conhecimentos localizados na confluência das áreas das desigualdades e diversidades raciais-étnicas e da educação. Ao longo de sua existência, esse laboratório vem se consolidando como um centro de excelência de elaboração de estudos e de pesquisas sobre as relações étnicoraciais e de implementação de políticas públicas em educação, bem como na formação de professores na Baixada Fluminense, implementando parcerias com diferentes órgãos dos governos federal, estadual e municipal, além de ampliar um ambiente propício às pesquisas voltadas para os estudos das desigualdades étnico-raciais na UFRRJ que permitam intervir na formação continuada de professores de toda a Baixada Fluminense ajudando-os a superar as dificuldades encontradas em suas práticas pedagógicas e a promover um “saber com sabor”, ou seja, um saber que 25 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira não seja etnicamente excludente, mas que potencialize os processos de aprendizagem dos diversos sujeitos sociais. O Leafro procura também oferecer respostas efetivas às demandas educacionais dos professores da Baixada Fluminense possibilitando-lhes tornarem-se sujeitos ativos nos processos de produção de seu conhecimento, bem como agentes multiplicadores de uma educação emancipatória. Esse laboratório preocupa-se em construir, com os professores da Baixada Fluminense, estratégias de combate às desigualdades étnico-raciais no cotidiano escolar e na sociedade abrangente. A produção e divulgação de estudos de impacto e de intervenção no campo educacional do poder público na esfera dos estudos étnico-raciais também constitui objetivo desse laboratório. Ele contribui, portanto, para instituir e legitimar a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro como ator e canal privilegiado de interlocução com o poder público por meio da discussão dos resultados alcançados, e, pela socialização de suas realizações, seja por meio da mídia eletrônica, ou por meio impresso. O curso de pós-graduação lato sensu: diversidade étnica e educação brasileira A pós-graduação, tanto lato, como stricto sensu possui um papel decisivo e fundamental na consolidação da área da educação nos diferentes campi da UFRRJ implementando-a como centro de produção de conhecimento orientado por padrões de excelência acadêmica nas áreas de concentração de seus professores-pesquisadores e pela perspectiva de construção da interdisciplinaridade. Assim, considera-se fundamental estimular o intercâmbio de experiências, em parceria com entidades e instituições do país e do exterior, expandir a cooperação interinstitucional, bem como criar oportunidades para a incorporação de novos pesquisadores. As atividades desenvolvidas 26 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... são pautadas pela inovação, tanto no que diz respeito às abordagens de pesquisa quanto às formas de relação entre conhecimento e sociedade. Um exemplo significativo diz respeito à realização de diagnósticos participativos socioculturais e econômicos que contribuam para práticas educativas, levando-se em conta as estratégias cotidianamente construídas pelos diferentes atores sociais da Baixada Fluminense e para além dela. A proposta de criação do curso de pós-graduação lato sensu: Diversidade Étnica e Educação Brasileira foi apresentada por meio de duas unidades acadêmicas da UFRRJ: o Instituto de Educação (IE) e o Instituto Multidisciplinar (IM). Integrado por pesquisadores de ambos os institutos, o Leafro entende a docência como inserida em um projeto formativo mais amplo e não na visão reducionista de um conjunto de métodos e técnicas supostamente neutros, descolados de uma dada realidade histórica, conforme explicitado pelo Fórum de Diretores das Faculdades de Educação das Universidades Federais (Forumdir) e pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope). Em síntese, uma formação que contribua para a instituição de sujeitos capazes de exercer a docência na atual complexidade do mundo em que o educador reconhece nas práticas cotidianas elementos essenciais para a construção do conhecimento. O IE e o IM, por meio do Leafro, contribuem para o desenvolvimento dos potenciais da pesquisa e da pós-graduação da UFRRJ como um todo, tanto pela criação de programas e cursos próprios quanto pela colaboração com áreas afins dos demais institutos. Justificativa do curso A relevância da criação e implementação do curso de pós-graduação lato sensu Diversidade Étnica e Educação Brasileira está presa ao fato de ser este um dos 27 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira principais desafios contemporâneos colocados para os diferentes profissionais da educação brasileira e cuja solução é fortemente demandada pela educação. Os recursos didáticos e demais materiais empregados são o quadro de giz, livros, papel, lápis, computadores, datashow, retroprojetores e telas de projeção. O oferecimento desse curso, na modalidade presencial, encontra suas justificativa e relevância por estar voltado para o atendimento de uma demanda específica na esfera da educação, propiciando o acesso à formação continuada de professores pública, gratuita e de qualidade. Nossa proposta se prende ao fato de concordarmos com o princípio de que a formação de professores, tanto inicial quanto continuada, constitui-se como dever do Estado e tarefa da universidade pública, gratuita e de qualidade. A formação de professores inicial e continuada, voltada para uma prática pedagógica no âmbito de sociedades diversificadas por classe social, etnia, cultura, gênero e idade, constitui-se em importante desafio contemporâneo que precisa de respostas positivas urgentes. Linhares (1997) postula que isso equivale a redefinir o papel que escola e professores vêm desempenhando, pois Se entendemos a escola como uma instituição social densa de relações educativas onde o ensinar e o aprender podem-se abrir em caminhos para distinguir opressões, comunicar-se com outras culturas, ressignificar conhecimentos por situá-los dentro de uma lógica marcada por perspectivas do que constitui problemas para nós, [...] vamos ter que apostar que a fabricação de novos lugares para a escola não poderá dispensar professores e alunos [...]. São estes que [...] irão traduzir os saberes populares em cultura escolar, acolhendo os desejos dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, de saberes que os fortaleçam (LINHARES, 1997, p. 146). 28 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... Acreditamos que o curso Diversidade Étnica e Educação Brasileira possa contribuir no processo de superação desse desafio, propiciando aos professores e aos demais cursistas uma transformação qualitativa e positiva de sua práxis pedagógica, no que diz respeito à educação das relações étnico-raciais na escola e na sociedade abrangente, qualificando a prática docente desses profissionais da educação e ampliando sua formação inicial. Objetivos específicos do curso O curso possui, como específicos, os seguintes objetivos: • Possibilitar a compreensão da diversidade étnicoracial da sociedade brasileira. • Possibilitar, aos professores e demais profissionais do ensino, identificarem ações etnicamente estereotipadas ou racistas no ambiente escolar e na sociedade abrangente. • Influenciar no processo de desconstrução de imaginários que justifiquem ações etnicamente estereotipadas, ou racistas. • Conduzir ao conhecimento e à valorização das culturas dos povos africanos, dos afro-brasileiros e de indígenas • Permitir aos professores e aos demais profissionais da educação, construírem estratégias efetivas de resistência e de combate às desigualdades étnicoraciais no cotidiano escolar. • Compreender o princípio da igualdade básica entre os seres humanos como direito. • Potencializar a consciência política e histórica da diversidade. • Potencializar a intervenção critica dos cursistas frente a situações de racismo e de preconceito no cotidiano escolar e na sociedade mais ampla. 29 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira A avaliação dos alunos é presencial, processual e diagnóstica, o que prevê aplicação de provas presenciais e individuais ao final de cada módulo, como um dos instrumentos de avaliação. A juízo de cada professor que ministrará o módulo, a prova pode ser substituída pela elaboração de papers individuais. Já a avaliação do curso ocorre em dois momentos: por uma análise ex-ante, com a participação de toda a equipe pedagógica e por uma análise ex-post em forma de pesquisa qualitativa e quantitativa abrangendo os corpos docente e discente, onde são avaliados o processo, as metas e os resultados alcançados. O curso se desenvolve em duas partes: a parte de créditos e a parte de elaboração do trabalho monográfico. A parte de créditos corresponde às disciplinas que integram o curso e que são as seguintes: História e Cultura Afro-Brasileira; História, Cultura e Educação dos Povos Indígenas; Diáspora Africana e a Construção do Brasil-Nação; Diversidade Étnico-racial e Educação Brasileira; Desigualdade Étnico-racial e Mercado de Trabalho; Subjetividades e Religiões Afro-Brasileiras; Turismo Étnico no Brasil e na Baixada Fluminense; Gênero, Etnia e Docência; Etnicidade, Práticas Culturais e Narrativas; Pesquisa, Educação e Relações Étnico-raciais Brasileiras. As primeiras quatro disciplinas que integram a grade curricular desse curso compõem o que entendemos como sendo de fundamentação básica. As outras, que lhe seguem, são caracterizadas como de saberes contextuais. Isso significa dizer que, ainda que ocorram modificações nas disciplinas que integram esse curso por conta do perfil necessariamente diferenciado que cada nova turma que lhe freta, as disciplinas de fundamentação básica serão mantidas, principalmente, em respeito às leis 10.639/03 e 11.645/08. O aluno desenvolve um projeto de pesquisa sob orientação de um membro do corpo docente do curso e elabora um trabalho monográfico necessariamente ligado à temática do curso, cujas defesa e aprovação perante banca constituem-se como requisito parcial à obtenção do 30 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... título de especialista em Desigualdade Étnica e Educação Brasileira. Por ser este um curso que, se espera, seja de intervenção, seus resultados e impactos serão mensurados através da prática pedagógica dos seus egressos. Espera-se que tais egressos transformem-se em agentes multiplicadores do curso que, com sua prática, possam instituir a educação na Baixada Fluminense sobre bases igualitárias, democráticas e inclusivas. O curso de extensão afro-brasileiros, desigualdades étnico-raciais e educação no Brasil O que justificou a implementação desse curso foram as necessidade e possibilidade de se intervir na formação continuada dos professores e dos demais profissionais da educação da Baixada Fluminense em um curto espaço de tempo, em uma perspectiva mais pragmática, crítica, transformadora e capaz de produzir conhecimentos novos no que diz respeito à relação estabelecida entre educação, prática pedagógica inclusiva e as relações étnico-raciais brasileiras. O curso, com carga horária de 45 horas, é oferecido na modalidade presencial e apresenta-se estruturado em módulos. Cada módulo é integrado por duas atividades pedagógicas: uma, de formação teórica e outra, de atividade de intervenção, na modalidade de oficinas, onde a teoria apreendida é aplicada na prática, simulando possíveis situações problematizadoras ocorridas “no chão da escola”, onde a intervenção do professor se faz necessária. Temos, como metodologia dessa atividade de extensão, aulas expositivas, dialogais e oficinas de práticas pedagógicas. O curso também conta com duas conferências: uma, proferida na forma de aula magna e outra, de encerramento. A avaliação é diagnóstica e processual. O curso é gratuito e está voltado, preferencialmente, para os 31 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira professores da rede pública municipal dos municípios que compõem a Baixada Fluminense e demais profissionais da educação, bem como para estudantes de licenciatura e de cursos afins. São oferecidas 45 vagas. Os módulos de ensino e pesquisa, por ordem de estruturação do curso, são: História da Cultura Africana; Diversidade Racial, a Lei n. 10.639/03 e a Educação Brasileira; Gênero, Raça e Docência; Educação, Desigualdade Racial e Mercado de Trabalho; Multiculturalismo e Ação Afirmativa; Subjetividades e Religiões Afro-Brasileiras. Os resultados das avaliações do curso, do maior ou menor alcance das metas propostas, dos principais obstáculos interpostos e da nossa metodologia de trabalho indicam que o curso caminha dentro do previsto, quando de sua implementação, oferecendo uma formação que vem contribuindo para a instituição de sujeitos capazes de exercer a docência na atual complexidade do mundo em que o educador reconhece nas práticas cotidianas elementos essenciais para a construção do conhecimento. Há uma demanda crescente por esse curso, o que nos permite (que se perceba) avaliar o acerto da sua implementação, que já está em sua terceira versão. O Leafro e a produção de conhecimento Os pesquisadores que integram o Leafro desenvolvem estudos acadêmicos inseridos na perspectiva do multiculturalismo crítico (MCLAREN, 1977; GRANT e TATE, 1995), voltados para oferecer subsídios à qualificação de docentes do ensino fundamental, médio e superior. Dessa forma, o Leafro intervém no processo de formação de professores que atuam preferencial, mas não exclusivamente, na Baixada Fluminense, tanto no seu aspecto inicial quanto continuado, na modalidade presencial, favorecendo o diálogo, o respeito às diferenças étnico-raciais, de classe e de gênero. Alguns desses estudos são: 32 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... Educação, cidadania, políticas de ação afirmativa e cotas para afro-brasileiros no acesso ao ensino superior O objetivo desse estudo consiste em identificar, analisar e caracterizar as necessidade e viabilidade de que seja implementado pelo Estado um programa de políticas de ação afirmativa e cotas (no ensino) na educação superior, racial ou etnicamente definido na direção dos afrobrasileiros. Os avanços e limites dessas políticas são aqui analisados e caracterizados, bem como a pertinência de tais políticas para a sociedade brasileira. Essa pesquisa se justifica por produzir conhecimentos novos na interseção estabelecida pela educação superior, cidadania e as políticas de ação afirmativa e de cotas. Sua relevância se prende ao fato de ser esse um tema candente, que tem mobilizado a comunidade acadêmica e a sociedade, não só tendo-se em vista a forma pela qual essas políticas vêm sendo implementadas, mas, também, pelo próprio conteúdo de tais políticas. A pesquisa será qualitativa. Ela privilegia a análise do plano político educacional, sem se descuidar das relações e interseções que esse plano estabelece com o social. Ela é integrada por alunos de licenciatura em Pedagogia e Química, estando vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do CNPq, Pibic. O acesso de alunos da Baixada Fluminense à universidade pública: o caso da UFRRJ Dois são os objetivos básicos dessa pesquisa, desenvolvida no âmbito do Leafro. O primeiro deles é identificar, analisar, caracterizar e elaborar e construir o perfil dos alunos com matrícula ativa que freqüentam os cursos oferecidos pela UFRRJ nos seus campi Sede e de Nova Iguaçu.. Os dados dessa pesquisa são desagregados por classe social, 33 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira etnia/raça, gênero, local de residência e religião. O segundo objetivo é conhecer e mapear as formas pelas quais esses alunos chegaram à UFRRJ, seus mecanismos de resistência, bem como as possíveis estratégias de superação de obstáculos por eles construídas, ou empregadas, que lhes permitem êxito em suas trajetórias acadêmicas. Espera-se que os resultados dessa pesquisa, ao serem publicados, possam contribuir para os processos de construção de estratégias de democratização de acesso e de permanência dos alunos das classes populares da Baixada Fluminense à UFRRJ, em todos os seus campi. A essa pesquisa estão agregados alunos de diferentes cursos de ambos os campi.. Desafios contextuais e construção subjetiva: alternativas do jovem da Baixada Fluminense Esse estudo pretende apontar outro caminho a ser seguido na compreensão do que pensam os jovens da Baixada Fluminense, trazendo para a discussão acadêmica tanto o olhar do jovem a partir dele mesmo, e não de alguma hipótese do pesquisador que vai a campo testá-la, como a universalização de padrões de comportamento que concepções teóricas em Psicologia do Desenvolvimento pretendem estabelecer, as quais acabam por classificar, estigmatizar e marginalizar, não respeitando singularidades individuais e contextos socioculturais. Está vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do CNPq, Pibic e Faperj. Baobá: gênero e africanidades na sala de aula Essa pesquisa possui, como principal objetivo, oferecer oficinas com diferentes linguagens aos educandos do primeiro segmento de uma das escolas da rede pública da cidade de Nova Iguaçu, que abordem as temáticas de raça e 34 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... gênero de forma a garantir o reconhecimento da diferença e a igualdade na diversidade. Tal iniciativa visa a aplicar a Lei n. 10.639, bem como atender às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (Parecer 003/2004) e abordar a questão da hierarquia de gênero no cotidiano escolar. A pesquisa está vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de Extensão da UFRRJ. Considerações finais A Baixada Fluminense, com população aproximada de 3,5 milhões de habitantes, é formada pelos municípios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé, Mangaratiba, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropédica, e abriga cerca de 30% da população do estado do Rio de Janeiro, população essa que é, majoritariamente, descendente de imigrantes, afro-brasileira e pertencente à classe trabalhadora. É nesse espaço social e geográfico que o Leafro desenvolve atividades de ensino, de pesquisa e de extensão aprofundando análises das articulações estabelecidas entre as dimensões étnico-raciais, de classe, de cultura, de gênero, bem como do mundo do trabalho na sua interseção com o processo educativo formal, além de oferecer subsídios e orientações às ações educativas de intervenção pedagógica direcionadas para a implementação da Lei n. 10.639/03. Ao atuarmos, também, no processo de formação de professores nos seus aspectos inicial e continuada, acreditamos intervir positivamente nesse processo de forma a possibilitar a construção de novas subjetividades, de mudança de atitudes frente às relações de dominação e de exclusão, tanto no interior da instituição escolar quanto na sociedade ampliada. Entendemos que essa intervenção se faz relevante por percebermos esta dinâmica em perspectiva multi35 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira cultural, o que se constitui como dos principais desafios contemporâneos colocados para os diferentes cursos de licenciaturas em todo o país, a que buscamos responder. O olhar multicultural lançado sobre a sociedade brasileira e as contribuições que o multiculturalismo vêm oferecendo ao campo educacional são significativos e possibilitam que reformulações sejam operadas no que diz respeito aos processos de formação de professores, no sentido da valorização da história e da cultura afro-brasileira e indígena, além de promover o questionamento e a descolonização do imaginário dos educadores, ajudando-os a abandonar novos e velhos preconceitos e práticas pedagógicas. Nesse sentido, o multiculturalismo crítico pode propiciar, aos professores, tornarem-se sujeitos ativos da construção de conhecimentos, sem que esse processo implique um doloroso exercício de negação, tanto de si quanto de seus alunos e de seus lugares sociais de origem. O ato de tornarse sujeito implica uma luta constante contra as tentativas de sujeição. Nesse processo e através de seus pesquisadores, o Leafro vem desempenhando um importante e significativo papel junto aos professores da Baixada Fluminense, ao mesmo tempo em que vem sendo reconhecido pelas secretarias municipais dessa região geográfica como um importante ator social, principalmente através das demandas educacionais que vem atendendo e das diversas parcerias que vem estabelecendo. No âmbito da UFRRJ, sua ação se faz sentir por sua atuação nos âmbitos do ensino, da pesquisa e extensão, além de inserir-se ativamente nas discussões sobre a implementação de políticas de cotas e de ação afirmativa étnica e racialmente enviesada. 36 O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores... Referências bibliográficas ALVES, N.; GARCIA, R. L. A construção do conhecimento e o currículo dos cursos de formação de professores na vivência de um processo. In: ALVES, N. (Org.) Formação de professores: pensar e fazer. São Paulo: Cortez, 1992. BANKS, J. A. 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Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1995. 39 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639 na abordagem do ciclo de políticas Cláudia Regina de Paula Um currículo constitui significativo instrumento utilizado por diferentes sociedades tanto para desenvolver os processos de conservação, transformação e renovação dos conhecimentos historicamente acumulados como para socializar as crianças e jovens segundo valores tidos como desejáveis (MOREIRA, 1997, p. 11). Resumo A promulgação da Lei n. 10.639, de 09/01/2003, parte das políticas curriculares de âmbito nacional, pois altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), resulta de processo de longa duração, permeado de lutas e negociações dos movimentos sociais (com destaque para o movimento negro) com setores mais progressistas do cenário político nacional. O presente artigo pretende discutir as contribuições da abordagem do ciclo de políticas, formulada por Stephen Ball e colaboradores (Ball e Bowe, 1992; Ball, 1994, apud Mainardes, 2006), especificamente sobre a política que inclui no currículo da escola básica, a história e a cultura afro-brasileira, através 41 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira da Lei n. 10.639, bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (Parecer 003/2004). Palavras-chave: ciclo de políticas, políticas curriculares, Lei n. 10.639. Introdução O presente artigo pretende discutir as contribuições da abordagem do ciclo de políticas, formulada por Stephen Ball e colaboradores (Bowe e Ball, 1992; Ball, 1994, apud Mainardes, 2006), especificamente sobre a política que inclui no currículo da escola básica a história e a cultura afro-brasileira, através da Lei n. 10.639, bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (Parecer 003/2004). Esse referencial analítico me parece bastante adequado para analisar as políticas públicas, sociais e educacionais brasileiras, uma vez que a abordagem do ciclo de políticas rejeita a concepção fragmentada entre as fases da formulação e implementação das políticas, e, nesse sentido, entende que os processos são continuamente influenciados, disputados e negociados. Tal concepção difere do modelo verticalizado atribuído às políticas oficiais, que veiculam a idéia de imposição estatal que ignora a participação, atuação e influência daqueles que serão atingidos diretamente pela política. No desenvolvimento das políticas educacionais, as percebemos como arenas de significados contextuais e culturais, em que teorias, narrativas, visões e interpretações de mundo se constituem, são elaboradas e endereçadas. Apesar da polissemia do termo “cultura”, que abarca diferentes interpretações, percebe-se que ela tem adquirido crescente centralidade, assumindo cada vez mais relevância, 42 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... tanto na estrutura da sociedade como na constituição de novos atores sociais (HALL, 2003). Ao interpretar a cultura e suas representações na construção do Estado-nação, o autor descreve: As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações [...] As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem “identidades”. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o seu passado e imagens que dela são construídas (HALL, 2002, p. 50 e 51). A partir das simbologias e representações culturais de que nos fala Hall (2002), tomei como exemplo nacional o caldeamento étnico e a miscigenação1, princípios de sociabilidade vastamente incentivados pelo Estado-nação brasileiro. Esse encontro de culturas tem sido marcado, como afirma Macedo (2006), pela construção de ilusões de homogeneidade. Se os ideais de nação e de Estado moderno foram instrumentos eficazes dessa construção, assim como a ilusão de pertencimento pela via do nascimento (que também se aplicou muito bem à realidade nacional), desperta em nós e nos faz “sentir brasileiro”2. No entanto, o paradigma da convivência pacífica entre os diferentes grupos raciais, a fábula do encontro espontâneo e romanA mistura racial brasileira foi incentivada como princípio de sociabilidade e inexistência de racismo. Embora a Gilberto Freyre, a expressão “democracia racial”, segundo Guimarães (2002), é de autoria de Roger Bastide. 2 A valorização da mestiçagem deu uma carteira de identidade para a parcela imensa da população que tinha “sangue negro”. Essa carteira de identidade veio embalada na teoria da “democracia racial”: no Brasil, o confronto entre as raças dera lugar à harmonia. Nascia o país do samba, do carnaval e do futebol. (MAGNOLI e ARAÚJO, 2001, apud VAZZOLER, 2006, p. 126). 1 43 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira tizado das três raças, se revelou uma falácia, embora permaneça em discursos hegemônicos, comprometidos com o ideário de nação. É que, quando acreditamos que o Brasil foi feito de negros, brancos e índios, estamos aceitando sem muita crítica a idéia de que esses contingentes humanos se encontraram de modo espontâneo, numa espécie de carnaval social e biológico. Mas nada disso é verdade. O fato contundente de nossa história é que somos um país feito por portugueses brancos e aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios (DAMATTA, l990, p. 46). Para vários estudiosos (HALL, 2003; TODOROV, 1993; GEERTZ, 1987/1997), o que caracteriza os seres e as sociedades humanas não é a similaridade e sim a diferença. As identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela [...] As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. [...] São as posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora sabendo sempre, que elas são representações, que a representação é sempre construída ao longo de uma falta, ao longo de uma divisão a partir do lugar do Outro [...] (HALL, 2000, p. 110-112). Para Macedo (2006), no entanto, há uma tendência dos processos multiculturais em resposta às políticas discriminatórias, em fixar a diferença transformado-a em diversidade, para a autora: Na perspectiva aberta por Bhabha3 (2003), seria mais produtivo pensar na diferença como define Derrida4 3 4 Bhabha, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Derrida, J. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991. 44 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... (1991) no que denomina différance. Como no estruturalismo, a cultura é vista como um processo de atribuição de significados, significados estes que dependem de um sistema de diferenças. No entanto, na perspectiva pós-estruturalista de Derrida, tais significados não podem ser fixados de forma decisiva. Ainda que se mantenha a fantasia de um significado fixo, cabal, ele nunca será totalmente apreensível. Ao invés de oposições binárias fixas, a différance introduz a incerteza que põe em interação as relações entre as culturas e os espaços que as distinguem, tornando a identificação dos sujeitos com determinadas culturas um processo ativo e contingente. Assim, o que muitas vezes denominamos diferença entre culturas vistas como repertórios partilhados de significados nada mais é do que um retrato cristalizado de um momento particular (MACEDO, 2006, p. 350). Assim como Derrida (1991, apud MACEDO 2006) nos desafia a refletir além dos significados e de sua forma fixa, também procuro identificar uma abordagem conceitual mais adequada ao uso do termo “raça”, dada sua ambigüidade conceitual. Entendo que os significados e as categorias raciais são construídos em termos sociais e não biológicos, mas, no Brasil, a raça tem sido uma variável fundamental na reprodução da desigualdade social. A discrepância encontrada entre a ascendência biológica e a classificação racial demonstra que, aqui no Brasil, as classificações raciais são especialmente ambíguas e fluidas, com uma preferência pela noção de cor, que equivale ao conceito de raça, pois hierarquiza as pessoas de cores diferentes de acordo com uma ideologia racial (SANTOS, 2005). Dentre os desafios conceituais em torno do termo, creio que Guimarães nos apontou um caminho possível: [...] “raça” não é apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil, 45 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira mas também é uma categoria analítica indispensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de “cor” enseja são efetivamente racistas e não apenas de “classe”. Reconheço, todavia, que não há raças biológicas [...]. O problema que se coloca é, pois, o seguinte: quando no mundo social podemos dispensar o conceito de raça? (GUIMARÃES, 2002, p. 50). [...] fica muito difícil imaginar um modo de lutar contra uma imputação ou discriminação sem lhe dar realidade social. Se não for a “raça”, a quem atribuir as discriminações que somente se tornam inteligíveis pela idéia de “raça”? (GUIMARÃES, 1999, p. 25) A abordagem do ciclo de políticas As possibilidades analíticas oferecidas pelas formulações de Stephen Ball5 (apud LOPES, 2006) contribuem para o entendimento das políticas educacionais, em especial da política curricular no contexto da Lei n. 10.639 e suas Diretrizes Curriculares. São três os contextos principais do ciclo contínuo de políticas: o contexto de influência, o contexto da produção dos textos e o contexto da prática. Esses se articulam, sem obedecer a seqüências predefinidas. Cada contexto envolve arenas e grupos de interesse em permanente disputa. O contexto de influência se caracteriza pela construção das políticas e dos discursos; onde acontecem as disputas entre quem influencia a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado. Atuam nesse contexto as redes sociais dentro e em torno dos BALL, Stephen J. The Policy Processes and the Processes of Policy. In: Bowe, R.; Ball, S.; Gold, A. Reforming Education & Changing School: Case Studies in Policy Sociology. London, New Iork: Routlegde, 1992. 5 46 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... partidos políticos, do governo, do processo legislativo, das agências multilaterais, dos governos de outros países cujas políticas são referência. O contexto de produção dos textos é constituído pelo poder central, que mantém uma associação estreita com o primeiro contexto, e formula os textos visando ao direcionamento das ações nas práticas. O contexto da prática, para Ball, é eminentemente plural, nele, as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas e são também incorporadas pelos outros dois contextos, conferindo o caráter circular dos discursos nesse ciclo. Considerando o contexto de influência preconizado por Ball, no aspecto dessa política, percebemos que os movimentos sociais, organizações não governamentais e demais instituições de luta e garantia de direitos das populações, historicamente, têm fomentado dispositivos legais, em âmbito local e global, com políticas e ações governamentais. Assim como, com propostas educacionais para a conquista plena dos direitos humanos, calcado em valores éticos livres de preconceito e/ou discriminação acerca de gênero, raça, etnia, orientação sexual, geração e religião. Temos assistido nas últimas décadas a um crescente debate e conseqüente visibilidade em torno das desigualdades raciais no Brasil e no mundo. Podemos atribuir esse movimento pela igualdade racial às políticas de ação afirmativa6, inicialmente aplicadas na sociedade norte-americana e que refletiram expressivamente em outras sociedades. Nessa perspectiva, a política curricuA antiga noção de ação afirmativa tem, até os dias de hoje, inspirado decisões de cortes norte-americanas, conservando o sentido de reparação por uma injustiça passada. A noção moderna se refere a um programa de políticas públicas ordenado pelo executivo ou pelo legislativo, ou implementado por empresas privadas, para garantir a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais (GUIMARÃES, 1999, p. 154). 6 47 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira lar, objeto de análise nesse trabalho, embora um projeto contra-hegemônico, utiliza a tradição iluminista na garantia de espaço e poder. Essa configuração também aponta outras contradições: diferentes grupos, em disputa por territórios e demandas comuns, se aliam oportunamente para questões mais amplas, como é o caso do movimento negro e de mulheres negras, por exemplo. Se, no primeiro instante, a causa é do conjunto da população negra, essa articulação entre homens e mulheres negras é possível. No entanto, há uma cisão quando o aporte de gênero se sobrepõe, e mulheres negras se posicionam em campos políticos distintos dos homens negros, assim como o fazem em relação às mulheres brancas. Para Macedo (2006, p. 333), não se pode negligenciar que há programas assistenciais e/ou compensatórios que visam domesticar a diferença e que lançam projetos contra-hegemônicos e emancipatórios para o controle e regulação da diferença. Esse pensamento também é compartilhado por Apple (2003), quando critica as concessões do discurso hegemônico, ao incluir a cultura e história do outro nos currículos. Tendo em vista que o debate profícuo em torno da questão racial favorece novas abordagens analíticas, prossigo nesse intento, apoiada em Ball. O contexto de influência São inúmeras as iniciativas da sociedade civil organizada no campo da luta pela igualdade racial no Brasil. Se tomarmos o movimento negro como referência, constatamos que sua luta se desenvolveu no pré-abolição em diferentes campos: nos quilombos, nas rebeliões urbanas e rurais, nas irmandades religiosas e em muitos outros. Mas, desde a pós-abolição e a suposta liberdade, a maior demanda desse movimento está centrada na educação da população afro-brasileira. 48 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... Confirmam essa hipótese as iniciativas históricas do movimento negro nessa direção, como a da Frente Negra Brasileira (1932-1937), o maior e mais amplo movimento negro do século XX, presente em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco, que constituiu extensas turmas de alfabetização de jovens e adultos negros; o TEN (Teatro Experimental do Negro) que, além de criar escolas de atores, também oferecia aulas de alfabetização; A União Cultural dos Homens de Cor do Distrito Federal promoveu cursos de corte e costura para empregadas domésticas e, em seu estatuto, determinava que todos os seus membros alfabetizados deveriam tomar para si a responsabilidade de alfabetizar pelo menos uma pessoa ligada aos seus quadros, garantindo, desta forma, que no futuro todos os que a ela fossem filiados deixassem de ser analfabetos. A partir de 1945, assistimos a um “Renascimento Negro” (MOURA7 1988, apud SILVA, 2003) contra a discriminação racial. Para Andrews8 (apud Silva, 2003), no entanto, o que houve foi uma renovação do movimento, já que, apesar do banimento da Frente Negra na ditadura varguista, os clubes sociais e associações cívicas continuaram a se organizar. A Associação José do Patrocínio em São Paulo, por exemplo, teria solicitado, em 1941, ao presidente Getúlio Vargas, a proibição dos anúncios discriminatórios contra os trabalhadores negros. Ancoradas na esteira da democratização por que passava o país, aquelas novas organizações negras promoviam campanhas educacionais, a fim de integrar o negro na sociedade brasileira. Havia um sentimento de euforia e realização coletiva expandido pelo território nacional (SILVA, 2003). MOURA, C. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática. 1988. 8 ANDREWS, G. R. Blacks and whites in São Paulo, Brasil. 1888–1988. The University of Wisconsin Press. 1991 7 49 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira A UHC (União dos Homens de Cor) tem por finalidade manter moços e moças em cursos superiores, concedendo-lhes roupa, alimentação, etc. para que possam concluir os estudos [...] E ampla campanha de alfabetização, de forma que, dentro de 10 anos, não exista um único homem de cor que não saiba ler (ALVES9, 1948, apud SILVA, 2003.) As iniciativas da sociedade organizada na época já enunciavam o que atualmente entendemos por ações afirmativas10. A luta por reparação, valorização e reconhecimento da identidade e da cultura da população negra é ancestral, mas a atuação desses movimentos tornou-se mais efetiva, recentemente, a partir da formação de grupos de interesses na formulação e implementação das políticas. No Governo de Fernando Henrique Cardoso foi instalado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), afirmando em seu texto básico a inscrição definitiva da questão do negro na agenda internacional. Destacou-se também a formação de uma delegação brasileira para comparecer à Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em Durban, África do Sul, em 2001.11 ALVES, J. Jornal Quilombo, ano I, n. 1, p. 3, dez. de 1948. Um conceito de ação afirmativa pode ser encontrado em Gomes (2001, p. 41): “Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.” 11 Conferência Mundial contra o Racismo e a Discriminação Racial: duas primeiras em Genebra (1978 e 1983) e a terceira em Durban (2001). O ano de 2001 foi proclamado Ano Internacional de Mobilização contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlatas. 9 10 50 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... Atualmente, percebemos que algumas lutas da comunidade negra estão (em parte) contempladas no conjunto de propostas do governo federal, que agrega em seus quadros muitos parlamentares oriundos do movimento social que pressionaram (e ainda pressionam) por políticas sociais dirigidas aos excluídos. Entretanto, os grupos de interesse atuam ainda de modo informal. Segundo Lobato: O processo político é tanto mais amplo, quanto mais atores sociais dele fizerem parte, sejam institucionalizados ou não, estejam ou não representados em grupos formais de interesse. Mesmo sob as mais variadas formas organizacionais, com interesses os mais diversos e, portanto, com diferentes graus de poder, o processo político engloba tanto atores sociais quantos dele quiserem fazer parte, ao menos onde existirem canais democráticos de manifestação de demandas. Das relações estabelecidas entre esses atores resultará a política em si, sendo esta apenas uma das etapas de todo o processo (1996, p. 40). Sabemos que a relevância do estudo de temas decorrentes da História e Cultura Afro-brasileira e Africana não se restringe à população negra. Ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educarse enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática (Parecer 003/2004). Para Henriques (2002, p. 15), a educação é uma variável crucial para transformar a situação desigual em que se encontram os indivíduos de diferentes raças. No entanto, no Brasil, a invisibilidade do problema, ou o nosso “o racismo à brasileira” é bem mais eficaz e excludente do que parece: os negros se vêem descartados dos principais centros de decisão política e econômica, sofrendo desvantagens no processo competitivo e em sua mobilização social e individual. Isso significa “simbolicamente” um corte 51 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira de poder e uma exclusão social, levando à alienação e à depreciação da identidade pessoal e étnica (D’ADESKY, 2001). Percebemos que o contexto de influência na formulação da Lei n. 10.639 abarcou diversos atores do cenário político, social, acadêmico, nacional e internacional. As influências internacionais: Movimento pelos Direitos Civis americano, pela luta contra o apartheid, pelo processo de independência colonial de países africanos e, no Brasil, somos influenciados desde os quilombos e quilombolas e sua luta por liberdade e justiça, pelo movimento abolicionista e a defesa de costumes, saberes e religiosidade de matriz africana. Na pós-abolição, pelo projeto educativo e inclusivo do movimento social negro, pela cultura e resistência, pelo movimento dos PVNCs (Pré-Vestibulares para Negros e Carentes), a luta por reserva de vagas nas universidades e pelas políticas de ação afirmativa em geral. O contexto da produção dos textos A Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, altera a Lei n. 9. 394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. O enfoque da lei no campo curricular é político e seria, para Giroux: O reconhecimento de que as escolas são instituições históricas e culturais que sempre incorporam interesses ideológicos e políticos. Elas atribuem à realidade significados muitas vezes ativamente contestados por diversos indivíduos e grupos. As escolas, neste sentido, são terrenos políticos e ideológicos a partir dos quais a cultura dominante “fabrica” suas “certezas” hegemônicas; mas elas também são lugares nos quais grupos dominantes e subordinados definem e 52 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... pressionam uns aos outros através de uma constante batalha e intercâmbio em resposta às condições sócio-históricas “contidas” nas práticas institucionais, textuais e vividas, que definem a cultura escolar e a experiência professor/estudante. As escolas são tudo, menos inocentes, e também não reproduzem simplesmente as relações e interesses sociais dominantes. Ao mesmo tempo, as escolas de fato praticam uma forma de regulação moral e política, intimamente relacionada com as tecnologias de poder que “produzem assimetrias nas habilidades dos indivíduos e grupos de definirem e satisfazerem suas necessidades”. Mais especificamente, as escolas estabelecem as condições sob as quais, alguns indivíduos e grupos definem os termos pelos quais os outros vivem, resistem, afirmam e participam na construção de suas próprias identidades e subjetividades (GIROUX, 1997, p. 204 e 205). Conforme mencionado no início, a abordagem do ciclo de políticas não mantém uma linearidade. Tomamos como exemplo o quanto o contexto de influência atravessou o contexto da produção de textos. A sanção da lei, um dos primeiros atos do governo Lula e do ministro da Educação na época, Cristovam Buarque. O projeto de lei apresentado pelos deputados federais Ester Grossi (educadora do Rio Grande do Sul) e Ben-Hur Ferreira (oriundo do movimento negro de Mato Grosso do Sul), ambos do PT, foi incisivo: § 1o. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil; § 2o. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afrobrasileira serão ministrados no âmbito de todo o currí53 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira culo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira (SILVA, 2003). A lei também inclui no calendário escolar o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. Também se constitui como marco nas leis educacionais a aprovação unânime em 10/3/2004, pelo Conselho Nacional da Educação, do Parecer n. CNE/ CP 003/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, relatora desse parecer, com significativa atuação e produção acadêmica no campo das relações raciais, representou naquele contexto o grupo de interesse na produção do texto legal. O contexto da prática O contexto da prática, na abordagem do ciclo contínuo de políticas, envolve modelos de interpretação, recriação e recontextualização12. Os docentes que atuam na prática educativa são atores ativos no processo de reinterpretação das políticas curriculares e, como defende Ball, No processo de recontextualização, Bernstein (1996, 1998) interpreta que os textos, assinados ou não pela esfera oficial, são fragmentados ao circularem no corpo social da educação, alguns fragmentos são mais valorizados em detrimento de outros e são associados a outros fragmentos de textos capazes de ressignificá-los e refocalizá-los.[...] Em suas análises, Bernstein diferencia o campo recontextualizador oficial e o campo recontextualizador pedagógico. O primeiro é criado e dominado pelo Estado; o segundo, é composto por educadores nas escolas e universidades, bem como por produtores de literatura especializada e fundações privadas de pesquisa. No complexo quadro da recontextualização, Bernstein ainda situa o campo internacional, as relações deste com o Estado, os campos de produção material e controle simbólico e o campo recontextualizador nas escolas (LOPES, 2005, p. 54). 12 54 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... essas precisam ser interpretadas como redes de poder, discursos e tecnologias que se desenvolvem no campo social da educação (LOPES, 2004). Os profissionais que atuam no contexto da prática [escolas, por exemplo,] não enfrentam os textos políticos como leitores ingênuos, eles vêm com suas histórias, experiências, valores e propósitos [...]. Políticas serão interpretadas diferentemente uma vez que histórias, experiências, valores, propósitos e interesses são diversos. A questão é que os autores dos textos políticos não podem controlar os significados de seus textos. Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas, deliberadamente mal entendidas, réplicas podem ser superficiais etc. Além disso, interpretação é uma questão de disputa. Interpretações diferentes serão contestadas, uma vez que se relaciona com interesses diversos, uma ou outra interpretação predominará embora desvios ou interpretações minoritárias possam ser importantes (BOWE et al.13, 1992, apud MAINARDES, 2006, p. 53). Uma das questões chave na crítica resistente a reforma curricular consistia na falta de materiais e recursos pedagógicos para o desenvolvimento desse trabalho. Mas em resposta à demanda surge uma relevante produção de material didático e de consulta bibliográfica no campo das relações raciais. Ao ingressar na agenda política, o tema alcançou visibilidade no cenário nacional e suscitou amplo debate: desde os inconformados, descontentes com a política, considerando-a desnecessária, um verdadeiro “racismo às avessas”, os defensores aguerridos dessa proposta, aos indiferentes e os críticos. Por outro lado, é crescente a produção de pesquisas no campo racial, como revelam: o GT 21 – Afro-brasileiros e Educação da Bowe, R.; Ball, S.; Gold, A. Reforming Education & Changing Schools: Case Studies in Policy Sociology. London: Routledge, 1992. 13 55 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira ANPEd (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação); a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), que promove os Congressos de Pesquisadores Negros; a ABA (Associação Brasileira de Antropologia). Além das teses e dissertações produzidas em diferentes programas de pós-graduação espalhados pelo país, estimuladas por linhas de pesquisa criadas a partir dos Neabs (núcleos de estudos afro-brasileiros) das universidades públicas e privadas. No campo institucional recente, tivemos a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) e das Coordenadorias de Promoção da Igualdade Racial, que, além da produção de textos, também atuam no campo políticoorganizacional e no apoio às causas raciais, como a dos quilombolas, entre outras. Creio que esse momento fecundo é parte desse ciclo contínuo de políticas, em que se alternam participação e influências no cenário político e no poder. Mas entendemos que a legislação e as políticas educacionais e/ou sociais dependem mais do que de sua publicação. Pôr em prática conteúdos relativos à história e cultura afro-brasileira que não fizeram parte da formação dos docentes, na educação básica ou superior, torna-se tarefa árdua, de permanente embate junto aos sistemas de educação de âmbito municipal, estadual ou federal, que priorizem a formação continuada desses profissionais. Algumas iniciativas nesse sentido podem ser citadas com êxito, dentre elas o projeto piloto Gênero e Diversidade na Escola, lançado e desenvolvido em 2006, resultado da articulação entre diversos ministérios (Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e Ministério da Educação), o British Council (órgão do Reino Unido atuante na área de Direitos Humanos, Educação e Cultura) e o Centro Latino-Americano em 56 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ). Tal projeto, do qual fiz parte como docente on-line, buscava a atualização de 1.200 professores de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental da rede pública de seis cidades do país – Dourados (MS), Maringá (PR), Niterói e Nova Iguaçu (RJ), Porto Velho (RO) e Salvador (BA), nas temáticas de gênero, sexualidade e relações étnico-raciais. O curso teve carga horária de 200 horas aula, sendo 30 horas presenciais e 170 horas a distância. Em 2008, o MEC, em parceria com outros ministérios (Desenvolvimento Social e Combate a Fome; Ciência e Tecnologia; Esporte; Meio Ambiente; Cultura; Secretaria Nacional da Juventude), desenvolve o projeto de Educação Integral Mais Educação, que incluiu entre os seus macrocampos Direitos Humanos14, Ética e Cidadania, em que se discutem: Relações étnico-raciais, Cultura e Identidades Indígenas, Relações no Campo, Diversidade Sexual e Gênero e Direitos de Crianças e Adolescentes. Tal projeto pretende atender a escolas públicas do ensino fundamental, em municípios que assinaram o Compromisso Todos pela Educação. Várias universidades, através dos Neabs, oferecem cursos presenciais e/ou a distância, de extensão e/ou pósgraduação, além de produção acadêmica no campo. Podemos citar a UFRRJ/Leafro (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/ Laboratório de Estudos Afro-brasileiros), Creio ser oportuna a reflexão de Candau (2007), sobre a educação em direitos humanos: “[...] Entendemos os Direitos Humanos como mediações para a construção de um projeto alternativo de sociedade: inclusiva, sustentável e plural. A educação que se articula com estas perspectivas enfatiza a formação para uma cidadania que favorece a organização da sociedade civil e promove o empoderamento dos grupos sociais e culturais marginalizados, inferiorizados e subalternizados. Coloca no centro de suas preocupações a inter-relação entre as diferentes gerações de direitos e trabalha a articulação entre direitos relativos à igualdade e aqueles relacionados às questões das diferentes identidades culturais presentes na nossa sociedade.” 14 57 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira UFF/Penesb (Universidade Federal Fluminense/Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira), a Uerj/ PPCor/LPP (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Programa de Políticas da Cor/Laboratório de Políticas da Cor), a UFMT/Nepre (Universidade Federal do Mato Grosso/ Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação) entre outras. Essas iniciativas, ainda tímidas, dado o universo de alunos da educação básica e de docentes que se pretende atingir, são bem-vindas. No entanto, são insuficientes se não for incluída nos currículos das licenciaturas15 essa temática, pois a cada ano, novos profissionais chegam ao mercado educacional, muitos deles ainda despreparados para trabalhar com a questão racial. Considerações finais Em todo o mundo as pessoas são mais afirmativas para exigir respeito pela sua identidade cultural. Muitas vezes, o que exigem é justiça social e mais voz política. Mas não é tudo. Também exigem reconhecimento e respeito... E importam-se em saber se eles e os filhos viverão em uma sociedade diversificada ou numa sociedade em que se espera que todas as pessoas se conformem com uma única cultura dominante (PNUD, 2004, p. 22). Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana (Brasil. MEC, 2004), esse ensino se fará por diferentes meios, em atividades curriculares ou não. As Diretrizes destacam a inclusão da discussão da questão racial como parte integrante curricular, tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil, os anos iniciais e finais da Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, como dos processos de formação continuada de professores, inclusive de docentes no ensino superior. 15 58 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... Metade da sociedade brasileira é composta de afrodescendentes. Nem essa a parcela nem a outra, composta por brancos, tiveram acesso ao estudo da História da África e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, sua cultura e a formação da sociedade nacional, temas que integram o conteúdo programático das Diretrizes Curriculares. Essa nova perspectiva curricular também exige revisões profundas nos livros didáticos, silenciados sobre essas questões, reprodutores do racismo e da imagem subordinada da população negra. Evidentemente, esses estudos produzem impacto na formação, na subjetividade e na identidade da criança, negra ou branca, além de permitir que se amplie sua visão de mundo e do outro, valorize outros saberes, crie alternativas às perspectivas eurocêntrica, capitalista, patriarcal e cristã dominantes. Entretanto, a formação e prática docentes, profundamente marcadas e influenciadas por esses mesmos valores dominantes, agigantam a tarefa de desconstruir, para reconstruir alternativas plurais que produzam novos sentidos. Esse desafio aponta para a nossa realidade, pósjaneiro de 2003, em que a lei foi promulgada. São mais de cinco anos de debates intensos, recursos jurídicos e tentativas de viabilizá-la. Esse desafio, é bem verdade, era esperado. As transformações culturais e políticas não se fazem com discursos isolados, mas com reflexão e prática. Ainda nos confrontamos com a perspectiva de escola redentora, a instituição capaz de “resolver” os grandes dilemas e mazelas sociais. Mas nos perguntamos: Como educar meninos e meninas, mulheres e homens na contemporaneidade? É consenso que a escola é um espaço privilegiado, pois por ela passa a maior partet da população e ela se apresenta como um locus fundamental de formação e restauração dos valores, perdidos ou afetados pela modernidade. Mas, assim como o conjunto da sociedade, a escola também está em crise. Crise de paradigmas, de visão de mundo, de papel social... 59 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Mas algumas certezas nesse panorama de incertezas são fundamentais: sabemos que a educação é um dos mais importantes instrumentos de transformação social, pois agrega valores, conhecimentos e informações que permitem em grande medida a emancipação dos indivíduos. E, mais do que instrumento potencial de transformação, a educação é um direito, implica que ampliemos a noção de cidadania, enquanto direito a ter direito. Nesse sentido, creio ser necessário um redirecionamento, nas ações e nos discursos, capazes de desnaturalizar os lugares sociais demarcados, educar para a promoção humana, elevar a auto-estima e renovar a esperança. 60 Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639... Referências bibliográficas APPLE, M. W. Paulo Freire e a política racial na educação. In: LINHARES, C.; TRINDADE, M. N. (orgs.). Compartilhando o mundo com Paulo Freire. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2003, p. 23-40. BALL, S. J. Educational reform: a critical and post-structural approach. Buckingham: Open University Press, 1994. BALL, S. J.; BOWE, R. Subject Departments and the “Implementation” of National Curriculum Policy: an overview of the issues. Journal of Curriculum Studies, London, v. 24, n. 2, p. 97-115, 1992. CANDAU, V. M. Direitos humanos e educação intercultural. Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino. 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Primeiro, por entender que eles são pessoas que, a médio prazo, poderão fazer opções diferentes, escolhas novas; segundo, por acreditar em suas potencialidades para pôr em prática transformações advindas de seu desenvolvimento, seu modo prospectivo de propor e sua coragem em executar o que sugere a partir de questionamentos. 65 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira [...] com todos os limites dados pelo lugar social que ocupam, não podemos esquecer o aparente óbvio: eles são jovens, amam, sofrem, divertem-se, pensam a respeito das suas condições e de suas experiências de vida, posicionam-se diante dela, possuem desejos e propostas de melhorias de vida (DAYRELL, 2007, p. 1108). Ademais, só o município de Nova Iguaçu possui cerca de 122 mil habitantes na faixa etária de 18 a 24 anos e mais de 200 mil habitantes com menos de 18 anos (dados de 2000 obtidos junto à Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu, em 2003, os quais constam do Projeto Acadêmico do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ). Estas pessoas estão inseridas em um contexto com características sociais importantes, pois revelam o cotidiano da Baixada Fluminense, definida por Alves (2003) a partir das relações entre a violência, o poder local e as esferas “supralocais” de poder, nas quais é possível identificar questões que prosseguem em debate, tais como: Impunidade; corrupção policial; crime organizado; descrédito dos políticos e da polícia; ineficiência do estado; atração dos jovens pobres pelo tráfico como alternativa econômica e social; globalização da criminalidade e da cultura individualista acompanhada pelo espírito capitalista e pela lógica empresarial do tráfico; concepção hierarquizada da sociedade e modelo inquisitorial, presentes na cultura jurídica e no sistema processual penal; combinação de novas formas de organização familiar, novos padrões de consumo, novo ethos do trabalho, do hedonismo, do sistema escolar, das políticas públicas para o menor [...] (ALVES, 2003, p. 26). Delimitados sujeitos e local para o estudo, era preciso conhecer o contexto compreendido por eles mesmos, na tentativa de estar o mais próximo possível desta realidade. Assim a pesquisa deveria conter um levantamento das demandas dos jovens habitantes, um mapeamento de 66 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... suas representações pessoais sobre a Baixada e um elenco de possíveis alternativas sugeridas por eles diante da situação de serem moradores da região. Obviamente, este caminho investigativo exige uma metodologia apropriada, que não tenha hipóteses a serem confirmadas ou rejeitadas; em que não haja também categorias a serem constatadas ou uma concepção anterior do pesquisador sobre algo a ser certificado posteriormente. Ao contrário, é fundamental uma metodologia que tenha como referência o aprender a olhar, a ler indícios e o aleatório; que entenda a ciência como exercício de criatividade e atividade que permite integrar os diferentes conhecimentos: científicos e populares. Cabe lembrar que não pertence ao nosso recorte investigativo o campo das representações sociais, pois isso exigiria uma abordagem teórico-metodológica específica diferente da que sugerimos em nossos estudos. Neste sentido, a metodologia da pesquisa de cunho qualitativo está fundamentada na perspectiva de Vygotsky (1988, 1996), no que se refere à base teórica de sua abordagem, a qual se funda em três princípios: analisar processo e não objeto, isto é, ter como tarefa o reconhecimento da dinâmica dos constituintes da história do que está sendo investigado; diferenciar explicação de descrição, ou seja, desvelar a dinâmica causal não se detendo apenas nas aparências mais comuns e nas relações lineares de causa e efeito; desprender-se do “comportamento fossilizado”, isto é, da manifestação de comportamento automatizado que, por sua origem remota e suas inúmeras repetições, tornou-se mecanizado. A técnica utilizada para a operacionalização da pesquisa é a da construção de “unidades de sentido” (REY, 1997), que permitem realizar uma análise de conteúdo a partir de expressões dos sujeitos estudados e integram um conjunto diverso de indicadores ou categorias reveladas no decorrer da própria investigação e pertencentes ao contexto social no qual os participantes da pesquisa estão inseridos. 67 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Então, o método utilizado sustenta-se no dinamismo do processo do que está sendo investigado e toma como referências as expressões dos entrevistados; além disso, as entrevistas são “abertas”, para que não haja qualquer tipo de condução nas respostas e elas possam trazer à tona indicadores que convirjam em configurações singulares do que é estudado, dissolvendo pré-concepções ou comportamentos “fossilizados” por parte do pesquisador. Deste modo, o desenvolvimento da pesquisa permite que aflorem questões que se configuram como importantes e passam a compor o arsenal do campo de investigação. Nesta perspectiva, durante a fase inicial dos estudos surgiu a primeira inquietação que se transformou, de imediato, em mais uma fonte para a investigação, ampliando o campo de análises. Referimo-nos à contraposição das informações veiculadas pela mídia sobre os jovens da Baixada Fluminense e as que obtivemos deles a partir de entrevistas. Ainda no ano de 2006, a criação do Laboratório de Estudos Afro-brasileiros (Leafro), que pertence ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da UFRRJ e integra a rede de Neabis das universidades públicas brasileiras, fomentou a importância de incluir nas discussões as desigualdades sociais e as discriminações raciais. Desenvolvendo atividades de ensino, de pesquisa e de extensão, o Leafro pretende o aprofundamento de análises sobre as articulações estabelecidas entre as dimensões raciais e étnicas, de classe, cultura, de gênero, bem como do mundo do trabalho na sua interseção com o processo educativo formal, além de oferecer subsídios e orientação às ações educativas de intervenção pedagógica direcionadas para a implementação da Lei n. 10.639/03, atualizada pela Lei n. 11.645/08. Sendo assim, ao final de cada entrevista aberta realizada com o jovem pela equipe de trabalho composta por mim, bolsistas do CNPq/UFRRJ e Faperj, alunos auxiliares 68 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... de pesquisa e profissionais voluntários, passamos a perguntar de modo simples e objetivo, mas sempre em tom de um assunto para conversa, o seguinte: qual é sua cor? O que, sem dúvida, enriqueceu a coleta de dados e as análises do material obtido. Completamente engajada no Leafro, comecei a realizar um trabalho de extensão junto à comunidade do município de Nova Iguaçu, representando a UFRRJ como um dos membros da comissão responsável pelo I Censo dos Terreiros de Umbanda e Candomblé. Iniciativa que se justifica com propriedade porque, em Um Rio de Atabaques, Alves Filho (1997) relata que por volta da década de 90 ocorre uma grande concentração de terreiros na Baixada Fluminense, até mais que em Salvador, local reconhecido como de culto aos orixás. As informações mostram uma relação de aproximadamente três mil contra mil terreiros nestas regiões, respectivamente. Mesmo que esses números tenham estagnado ou diminuído, existe uma quantidade significativa destas casas, principalmente em Nova Iguaçu, fato que motivou a Prefeitura junto com a Secretaria Municipal de Participação Popular e Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial a realizarem o I Censo dos Terreiros de Umbanda e Candomblé da cidade. Esta iniciativa tem como objetivos prioritários: identificar os terreiros existentes em Nova Iguaçu e criar com representantes das Casas de Culto aos Orixás, um fórum de discussão sobre políticas públicas em nível local e regional. No decorrer deste investimento, uma outra questão emergiu com vigor surpreendente e se referiu à participação do jovem nas casas de culto aos orixás. Jovens de diversas orientações religiosas se apresentam publicamente, divulgam e fazem propaganda de suas respectivas doutrinas, não se preocupando com meios ou modos de atingir cada vez mais pessoas como adeptos de suas crenças. E os jovens que participam dos terreiros, se revelam socialmente? Divulgam suas crenças e princípios? Incorporamos também esta questão em nosso estudo sobre os jovens. 69 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Entrar em contato com a comunidade dos terreiros nos remeteu a outros campos de saber que também passaram a pertencer ao nosso arsenal de conhecimento, tais como as tradições, os usos e os costumes africanos que se transformaram em afro-brasileiros e que era preciso investigar se os jovens estavam tendo acesso a esse cabedal de informações tão relevantes para sua formação profissional e cidadã. Nesta perspectiva e entendendo a importância da implementação da lei de 2003, quesito constitutivo das diretrizes curriculares do nível escolar básico e fundamental desde esta época, acrescentamos à pesquisa três outras questões a serem investigadas: Como os mitos africanos estão sendo trazidos aos conteúdos escolares? O que jovens de nível médio, do curso de formação de professores, estão estudando para a futura transmissão destes conhecimentos a seus alunos e implementação da lei? E, na vertente sócio-histórica brasileira, qual é o papel da jovem e sua importância no contexto dos terreiros? A partir deste campo circunscrito para a investigação, é necessário iniciarmos o texto definindo que conceito de jovem está sendo utilizado pela pesquisa, já que ele é o foco do estudo para todas as relações que estamos estabelecendo com diferentes fontes de informação: midiática, religiosa e educativa. Jovem e subjetividade Inegavelmente, o jovem cresce de maneira intensa e rápida, e seu corpo aproximando-se ao do adulto, desperta curiosidades e propõe desafios que se manifestam em tanto sua conduta, quanto em sua vida interior. Segundo Vygotsky, Nesta idade se abre um novo mundo de vivências interiores, impulsos e atrações: a vida interior se vai fazen70 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... do infinitamente mais complexa em comparação com a idade infantil mais tenra; as relações com o meio e o que o rodeia se fazem muito mais complexas; as impressões provenientes do mundo exterior se submetem a uma elaboração mais profunda (1999, p. 46).1 Para o autor, há uma elevada emocionalidade e excitabilidade nas ações do jovem e ele pretende nos chamar a atenção para a importância e participação dos seus sentimentos no que pensa e realiza; pois embora isto aconteça conosco em qualquer fase da vida, nesta etapa, caracterizada muitas vezes como uma fase de trânsito, são comuns situações mais agudas provocadas organicamente pela produção hormonal e transformações corporais; mas também, o desempenho de um novo papel social lhe é exigido, só que agora está atravessado por seu amadurecimento sexual e seu discernimento intelectual, conjuntamente. Discordando de alguns autores que definem a adolescência como um momento tipicamente transitório e de crise, concordamos com Dayrell quando afirma que: A juventude constitui um momento determinado, mas não se reduz a uma passagem; ela assume uma importância em si mesma. Todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve e pela qualidade das trocas que este proporciona (2003, p. 42). Deste modo, entendemos a juventude como parte constituinte do processo de desenvolvimento humano, En esta edad se abre un nuevo mundo de vivencias interiores, impulsos y atracciones: la vida interior se va haciendo infinitamente más compleja en comparación con la edad infantil más temprana; las relaciones com el médio y lo que le rodea se hacen mucho más complejas; las impresiones provenientes del mundo extrior se sometem a una elaboración más profunda (VYGOTSKY, 1999, p. 46). 1 71 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira mas que o integra com especificidades marcantes para a vida de cada um. Assim, considerar os diferentes contextos nos quais os jovens estão inseridos, suas condições econômicas e sociais, é fundamental para que, por exemplo, não se assuma o posicionamento de generalizar a apatia juvenil, que culmina em expressar recusa ou impossibilidade de perceber possíveis engajamentos do jovem em projetos que despertem seu interesse ou que ele possa se reconhecer como produtivo. Além disso, identificar outras práticas de participação comunitária, de solidariedade e, até mesmo, explicitar conflitos ou evidenciar ações com as quais aceitaram se envolver. Segundo Ozella (2003, p. 23), a adolescência deve ser entendida como o resultado de uma construção social: “depende das relações sociais estabelecidas durante o processo de socialização, incluídos aqui fatores econômicos, sociais, educacionais, políticos, culturais etc.”, o que difere de abordagens teóricas em psicologia, que ao assumirem suas tendências em generalizar, adotam modelos preestabelecidos para o comportamento do jovem, independente do contexto em que estão inseridos e suas interações socioculturais. Em outras palavras, entender o jovem com o olhar sócio-histórico é concebê-lo na dinâmica transformacional de seu processo de desenvolvimento, acreditando na importância de estimular suas potencialidades e no inesperado das expressões de seus comportamentos. Além disso, é fundamental compreender que, sem a possibilidade de generalizar, afloram as diferenças entre os jovens, caracterizando suas singularidades e enriquecendo o estudo psicológico com esta diversidade. Ademais, cabe ressaltar que os desafios apontados por Martinez (2005) aos psicólogos, quais sejam, a necessidade de lidar com a subjetividade social, a urgência de mudanças de concepções cristalizadas e a importância do compromisso social, sustentam nossa postura interpretativa e de análise das informações fornecidas pelos jovens a partir do material coletado nas diferentes esferas de estudo. 72 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... O conceito de subjetividade social nos permite compreender a dimensão subjetiva dos diferentes processos e instituições sociais, assim como o da rede complexa do social nos diferentes contextos em que ela se organiza através da história. Esta visão facilita transcender a divisão dicotômica entre o social e o subjetivo, assim como da dicotomia entre o individual e o social (REY, 2003, p. 78). As palavras de Rey (2003) permitem delinear uma concepção de subjetividade que não prioriza o individual em detrimento do social, ou o social em detrimento do individual, mas enfatiza a interferência mútua e a referenciação recíproca, de ambos no processo de construção subjetiva. Deste modo, sugere uma mudança paradigmática em relação ao próprio conceito de subjetividade, que embora se mantenha por definição configurado como tudo o que é da ordem do sujeito, deixa de ser considerado apenas em âmbito singular para assumir seu caráter plural, mantendo-se como uma característica do ser humano, construída pelo atravessamento cultural. Assim, no grupo de jovens, circunscritos em um ambiente educativo, por exemplo, cada participante possui sua bagagem de vivências, experiências, crenças, sua subjetividade pessoal construída ao longo de sua história de vida. Mas, ao estarem compartilhando socialmente de momentos comuns, interagindo uns com os outros, interferem-se mutuamente, construindo uma subjetividade que pertence a esta coletividade, e embora esteja composta pelas subjetividades individuais, não se configura como a soma delas, mas emerge como uma outra: a do grupo. Nesta perspectiva, o desenvolvimento humano é entendido como um processo, cuja dinâmica está constituída pelo entrelaçamento do que é individual e coletivo, a um só tempo, estando reservado à cultura um lugar de participação efetiva na construção subjetiva. 73 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Imagem e mídia A mídia apresenta uma imagem ideal do jovem, com atributos de beleza, saúde e alegria. Esse padrão corresponde perfeitamente ao perfil do jovem de camadas médias. Há, no entanto, uma outra juventude, pobre, que na retórica da mídia, passa a ser representada como delinqüente, drogada e criminosa. O discurso sobre esses jovens, moradores das periferias ou favelas, pelos meios de comunicação, está associado frequentemente à questão da marginalidade. Dessa forma, os meios de comunicação, que muitas vezes têm a função de denunciar situações de desrespeito aos diretos de cidadania, também contribuem para a construção e manutenção dos estereótipos negativos dos jovens pobres, tratando-os como “criminógenos” (MINAYO, 1999, p. 19). Na Baixada Fluminense encontram-se bairros de comunidades populares, onde residem jovens, principalmente, negros e pobres, filhos de trabalhadores que têm sido excluídos e discriminados, constantemente, de forma injusta e desumana. Assim, este é um lugar onde a criação de estereótipos e preconceitos estão presentes em todos os espaços. As revelações produzidas pelas investigações farão com que a imprensa funcione ao mesmo tempo como elemento de segregação da Baixada, identificando-a como outra sociedade, terra sem lei, lugar onde a feiúra se associa ao crime ou câncer vizinho, e como instrumento de pressão no aprofundamento das investigações promovidas pela Delegacia de Homicídios. Uma ambigüidade que se estabelece entre a solidariedade e a rejeição (ALVES, 2003, p. 154). Há na Baixada Fluminense uma demasiada situação de exploração da violência e da pobreza pelos veículos de comunicação, justificando assim as palavras de Alves 74 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... (2003) a respeito da forte presença de segregação da Baixada, que tende a ser historicamente legitimada pela mídia. Portanto, revelar as imagens reconhecidas pelos jovens da Baixada Fluminense como suas representações pessoais, levando em conta o contexto em que estão inseridos; divulgar demandas reconhecidas por eles, sobre a exploração da mídia à Baixada Fluminense e seus sentimentos acerca desta temática; e apresentar possíveis alternativas deles frente aos desafios encontrados diante desta situação, é fazer o caminho inverso do que tem sido efetivado pela mídia. Deste modo, a famosa imagem que prioriza a marginalização dos jovens da Baixada classificando-os como irresponsáveis, delinqüentes, inconseqüentes, alienados e violentos, está presa a um preconceito veiculado maciçamente pela mídia. Entretanto, estes ditos “coitados” são muitas vezes autônomos e responsáveis por seus atos, além de preocupados com o futuro, pois, na realidade, existem jovens totalmente engajados social e politicamente, que estão fartos desses estereótipos e de estarem sempre vinculados à imagem negativa da Baixada. Mas, infelizmente, o lado produtivo do jovem e de sua consciência social dificilmente é ou será retratado e veiculado pelos meios de comunicação, pois não atende ao sensacionalismo que ajuda a produzir o lucro midiático. Visando a uma maior lucratividade, a mídia torna a informação mais apelativa, e o caminho mais fácil para isso é o da opção pela informação-espetáculo, norteada pelos critérios de noticiabilidade, que consistem em um conjunto de acontecimentos selecionados. Fica evidente o papel central dos jornalistas – repórteres, editores, pauteiros e âncoras de jornal e televisão – na produção de explicações e enquadramentos predominantes na cultura política de massa. Através de quadros de referências valorizados, significativos 75 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira dentro do ambiente cognitivo de grande parte das pessoas, os jornalistas dão credibilidade a certas visões de mundo, a enquadramentos sobre a realidade que, por sua vez, são influentes nas construções do cidadão comum sobre a política (ALDÉ, A. et al, 2005, p. 187). Em outras palavras, a mídia utiliza um modo persuasivo de transmitir conteúdos, visando a fazer com que as pessoas acreditem e se mantenham presas às ideologias que são disseminadas de forma subliminar. Assim, instaura-se um senso comum acerca da Baixada, sendo este uma forma de violência indireta (latente). O senso comum, obviamente nem singular nem inconteste, é por onde devemos começar. O senso comum, tanto expressão como precondição da experiência. O senso comum, compartilhado ou ao menos compartilhável é medida, muitas vezes invisível, de quase todas as coisas. A mídia depende do senso comum. Ela o reproduz, recorre a ele, mas também o explora e distorce... (SILVERSTONE, 2002, p. 21). Desta forma, fazer o trajeto oposto ao que a mídia tem feito, revelar o não dito por quem agora tem oportunidade de dizer, oferecer ao jovem da Baixada Fluminense a chance de falar acerca si mesmo e também a respeito do que tem sido propagado pelos meios de comunicação sobre ele, e o que pensa ser relevante divulgar, ressaltando a importância do seu olhar em relação ao contexto em que está inserido, desvelando a exploração negativa da mídia em relação aos jovens da Baixada Fluminense e seus sentimentos acerca desta configuração, é viabilizar a construção de imagens diferentes das comumente associadas a estes jovens que se vêem depreciados a todo instante pelos veículos de comunicação. 76 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... Raiz afro-brasileira e complexidade Desde a colonização, o africano escravizado ao sair de seu lugar de origem, tem seus costumes, usos, rituais, tradições, cultura fortemente reprimidos. Mesmo assim, os escravos não deixam de realizar seus cultos e praticar seus rituais, mantendo-se ligados às suas origens, crenças e história. Ainda que séculos tenham se passado e algumas mudanças ocorrido em termos políticos, econômicos e sociais, incluindo a própria assinatura da Lei Áurea (1888), a partir da qual, supostamente, teria sido abolida a escravidão, as repressões e perseguições ao negro continuaram. Entretanto, o culto aos orixás e a crença neste tipo de religião permaneceram e transformaram-se no berço da transmissão e manutenção da cultura afrobrasileira. Abruptamente separados de seus contextos de origem, a eles restava apenas seus valores espirituais ou, ..., sua religião e seus deuses. Aos poucos, vão criando formas de revitalizar suas tradições religiosas preparando assim, o suporte ideológico de suas revoltas (GONÇALVES e SILVA, 2006, p. 19). Para que se iniciasse o movimento de valorização das contribuições do africano foi necessária toda uma história de entraves políticos, debates filosóficos e muitas lutas, melhor visualizadas durante o século XX, pela articulação de movimentos sociais, artísticos e educativos, muitos deles encabeçados por mulheres negras em prol da sua afirmação e de sua cultura. O ponto central destas organizações tradicionais e contemporâneas são os propósitos de libertação, busca de liberdade de processos opressores: da escravidão, do colonialismo, de capitalismo em suas mais diversas formas de dominação, exclusão, exploração, discriminação racial, expropriação (SIQUEIRA, 2006, p. 165). 77 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Embora a mulher negra tenha tido um papel decisivo na constituição cultural deste país, atuando em várias frentes de combatividade, a imagem que se propagou e se propaga com muito sucesso ainda hoje é a da negra escrava doméstica, subserviente e também a da mulata “tipo exportação”. Isso se deu porque sua história – uma história que não devia ser contada – foi suplantada intencionalmente por intermédio de desapropriações teóricas. As amas-de-leite, na relação com os filhos dos senhores, influenciavam diretamente em sua educação, por exemplo, a partir de sua comunicação, misturando vocábulos africanos na língua portuguesa, o que culmina na construção da fala destas crianças e mais tarde desemboca no movimento fundamental da constituição da “língua brasileira”. Outra imagem de profunda representatividade no cenário nacional até os dias atuais é a da negra cozinheira que, na casa-grande, introduziu definitivamente elementos genuinamente africanos na culinária brasileira, tais como: o azeite de dendê, a pimenta-malagueta, o leite de coco, o quiabo, o maior uso da banana e inovações na maneira de preparar o peixe e a galinha. A maior contribuição destas mulheres foi a utilização da técnica e condimentação africanas na preparação de pratos já apreciados por brasileiros brancos e indígenas; a farofa, o quibebe, o vatapá. O domínio culinário da negra forra acabou por representá-la socialmente, mesmo que numa posição subalterna, por meio da comercialização de seus quitutes nas ruas da cidade. A figura da quitandeira, que hoje é representada pela baiana, assim como suas ancestrais, vende suas iguarias nas ruas da Bahia e de outras cidades brasileiras. Com essa atividade econômica, muitas delas puderam prover suas famílias, que, com o fim da escravidão, não tinham o apoio do homem negro. Conforme Souza (2006), no final do século XIX, com essa nova configuração na sociedade, que contava agora com a liberdade dos escravos e com a proclamação de uma 78 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... República, os homens negros se viram diante de uma barreira: muitos imigrantes europeus e asiáticos vieram como mão-de-obra especializada e tomaram o lugar antes destinado ao negro, que ficou à margem do mercado de trabalho, restando a ele atividades artesanais e militares. Além disso, devemos citar o fato de que esses imigrantes representavam também o branqueamento da população brasileira, idéia originária do “darwinismo” e sua concepção de evolução, que viam o negro como uma raça inferior e ameaçadora, até mesmo, para a economia de um país. Portanto devia ser eliminada através deste branqueamento. Neste novo contexto, a mulher negra continuou a realizar serviços que antes já realizava: era empregada, lavadeira, cozinheira, babá (ama-de-leite); trabalhos esses oferecidos por baixíssimos “salários” nas casas de ex-senhores. No entanto, foi através destas atividades que muitas dessas corajosas mulheres conseguiram manter suas famílias e com isso transmitir e manter suas tradições. Colocadas à margem da sociedade, embora essenciais para a formação do Brasil, as mulheres negras realizam uma guinada em sua história porque reencontram no terreiro de culto afro-brasileiro sua identidade, sua força, sua ligação com os orixás e com a verdadeira história de seu povo. Dentro dessa sociedade que a coloca sempre em lugares inferiores, a existência do terreiro como lugar de encontro com suas raízes e de envolvimento com uma esfera de pertencimento estabelece a possibilidade de uma construção de identidade pautada em valores ancestrais de luta e auto-afirmação. Deve-se à maneira de ser das antigas escravas emancipadas o sucesso da permanência de valores e tradições da cultura africana até os dias de hoje. Independentes, elas eram o verdadeiro centro da família: tudo e todos giravam em torno delas. Em sua maioria, mais ricas que os homens, viviam com companheiros e pais sucessivos de seus filhos.[...] Na cidade da Bahia marcaram 79 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira presença com a força do trabalho ao ocupar ruas e mercados com seus tabuleiros de quitutes. Boas comerciantes, algumas enriqueceram e ostentaram seu sucesso cobrindo-se de jóias e vestimentas finas. Foram elas ainda que, na metade do século XIX, organizaram e dirigiram às escondidas as cerimônias religiosas africanas, conhecidas mais tarde pelo nome de Candomblé (ECHEVERRIA e NÓBREGA, 2006, p. 30). Sendo esta, uma religião primordialmente matriarcal, a mulher assume papéis centrais na produção de sua cultura. Como sacerdotisa, transmissora do conhecimento, tendo o domínio da cozinha, como griottes (mulheres que cantam a história de seu povo e contam as trajetórias de suas raízes para a comunidade do terreiro do qual faz parte). Ela é também a portadora do conhecimento dos elementos da natureza, das ervas em especial, assumindo o papel de curadora; é conhecedora dos mistérios e segredos que envolvem a magia dos cultos aos orixás. É também ekede, incumbida de cuidar da vida de sua mãede-santo. E ainda conselheira e organizadora de sua comunidade. É essa mulher, que é a presença viva da ancestralidade incitada na oralidade, que repassa os valores do seu povo para as novas gerações. A transmissão oral constitui um traço marcante para a história de seu povo; a educação no terreiro se dá de forma preferencialmente oral, através da mãe-de-santo, que sabe, não apenas contar, mas interpretar os acontecimentos vividos por seus ancestrais, que agora servem de parâmetro para a configuração do grupo dentro do terreiro, permitindo um movimento de interação entre as gerações. Com uma trajetória de fé, luta e resistência, a mulher negra foi traçando sua história em cima de valores ancestrais e pôde assim, manter viva sua afro-ascendência. A obstinação feminina na manutenção de seus valores, de suas tradições, se encontrava também na escrava emanci80 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... pada que mantinha sua família, quando tudo e todos giravam em torno dela, que estava à frente desse movimento de afirmação do espaço dos negros no país. Inclusive em quilombos, articulando saídas, estratégias e organizando o cotidiano daquele grupo. As raízes históricas que possibilitam entender possíveis evidências a respeito da Baixada Fluminense merecem atenção especial, para que se possa contextualizar a importância da cultura afro-brasileira advinda do viés religioso, especialmente, para esta região. Nos anos 70, com o fechamento de locais religiosos de matriz afro-brasileira no município do Rio de Janeiro, os terreiros que se encontravam principalmente nas favelas do Rio tiveram que buscar outros lugares para a sua prática religiosa, e a Baixada Fluminense foi um deles, conforme as informações do site www.favelatemmemoria.com.br. Os terreiros espíritas nas favelas do Rio tiveram seu auge entre os ano 40 e 60. Na década de 70, começaram a fechar as portas nos morros para reabrir em cidades da Baixada Fluminense, em áreas mais isoladas. Segundo alguns praticantes da umbanda e do candomblé, a lei do silêncio, que proibia os batuques religiosos, ajudou a expulsar alguns desses centros. Os que sobraram, enfrentaram a dura concorrência com os novos templos evangélicos... Portanto, a concentração de terreiros e, por extensão, a presença da cultura afro-brasileira transmitida pelo culto aos orixás passa a se concentrar e crescer, particularmente, no município de Nova Iguaçu. Protegida por uma rígida lei do silêncio, praticada no passado como se fosse crime e perseguida pela polícia, a religião dos negros chegou ao Brasil para fazer história. Uniu escravos e descendentes espalhados pelo país com a força da fé e a obediência irrestrita aos líderes espirituais, substitutos da família dispersa e do governo que não era o deles. O povo da África no Brasil encontrou no candomblé identidade, proteção 81 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira e apoio, um espaço próprio onde foi possível plantar os fundamentos de seus deuses. (ECHEVERRIA e NÓBREGA, 2006, p. 14). As contribuições de matriz afro-brasileira advindas do referencial mitológico da religião oferecem outras bases para o entendimento das relações dos sujeitos entre si e com a natureza, um outro viés como referência para a construção do conhecimento. Nesta perspectiva, através das histórias dos orixás que correspondem aos mitos africanos, temos diretrizes para a construção do conhecimento que não admitem a soberania e domínio do homem sobre a natureza, mas sua cumplicidade com ela. As informações passadas pela transmissão oral e que, certamente, estariam compondo o arcabouço teórico do terreiro, são ouvidas, em um primeiro momento e respeitado o saber do mais velho, por conta de sua experiência e conhecimento, mas precisam ser transformadas em práticas para se configurarem como aprendizado de fato. O que, por um lado, nos lembra Mãe Beata de Yemonjá, com seus contos de O caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros, transformados em prática do dia-a-dia e, em outra área de conhecimento, de cunho tecnológico, revela Papert (1994), quando relata sobre sua experiência pessoal de aprender a fazer croissants seguindo corretamente a receita, e afirma que para aprender é preciso colocar a “mão na massa”, sentir sua temperatura, textura, ter o contato direto com o que se faz: estar envolvido. Por outro lado, todos os participantes compartilham dos ensinamentos, quer sobre os orixás em seus preceitos, mitos e ritos; quer sobre as ervas em suas aplicações e possibilidades. Todo e qualquer membro de um terreiro conhece o princípio da obrigação. Ele a cumpre não para obter qualquer salvação (noção inexistente na cultura negra), qualquer remissão de pecado (noção também ausente), qualquer esperança de uma vida melhor 82 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... além-túmulo (idéia que igualmente não há), nem mesmo para pagar quaisquer “dívidas simbólicas”. Cumpre-se a obrigação para viver a intensidade da regra, para ir ao encontro daquilo que atrai irresistivelmente as coisas, os bichos, os homens, os deuses: o Destino (SODRÉ, 2005, p. 109). Quanto ao preconceito racial e social, cotidianamente, as pessoas sentem-se mais à vontade em dizer que são católicas, protestantes, ou de qualquer outra religião do que revelar que são adeptas da religião de matriz afrobrasileira. Isso ocorre porque visões e pensamentos préformados que discriminam os negros ainda constituem nossa sociedade, como tem sido amplamente mostrado em estudos atualizados. Ainda hoje, várias comunidades-terreiro enfrentam perseguições de vizinhos e praticantes de outros cultos religiosos. Podemos observar, em nosso dia-a-dia, como essas manifestações de preconceito racial e religioso recaem sobre os cultos afro-brasileiros (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 147). A falta de clareza sobre a religião de matriz afro-brasileira, culminando em “perseguições”, permanece norteando atitudes e posicionamentos que não levam em conta a complexidade cultural do nosso país da qual a religião afro-brasileira faz parte. Segundo Morin, ...complexus é o que está junto; é o tecido formado por diferentes fios que se transformam numa só coisa. Isto é, tudo isso se entrecruza, tudo se entrelaça para formar a unidade da complexidade; porém a unidade do complexus não destrói a variedade e a diversidade das complexidades que o teceram (1996, p. 188). Aliás, as práticas educativas deveriam se preocupar em adotar procedimentos que viabilizassem a compreen83 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira são da história dos negros e a gama de suas contribuições ao processo de construção subjetiva do brasileiro. Para tanto, especialmente os alunos de ensino médio dos cursos de formação de professores que irão lidar com alunos das classes iniciais da trajetória escolar, deveriam estar em contato com a gama de informações de a matriz afro-brasileira. Isto porque A visão de mundo nagô e sua compreensão de aprendizagem, nos permite encontrar pontos de ancoragem com o olhar educacional pela perspectiva de conhecer/aprender pela via da experiência comunitária que provém de uma cultura não-disjuntiva. A aprendizagem do terreiro é construída, principalmente, através do respeito às tradições e um jeito peculiar de aprendizado e transmissão de saber que religa permanentemente o homem à natureza (SANTOS, 2006, p. 168). Em resumo, pesquisar sobre os jovens da Baixada Fluminense, levando em conta o que é decantado pela mídia, incluindo sua concepção racial, acrescida pelo atravessamento cultural afro-brasileiro advindo do campo religioso, considerando suas informações míticas como fonte para a construção do conhecimento, destacando neste contexto o papel ativo da mulher em sua participação no cenário político, econômico e divulgador dos usos, costumes e tradições constituintes de nossa brasilidade; percebendo como supostos futuros professores estão lidando com as diferentes modalidades de saber, é olhar de um modo complexo para a investigação científica, sustentada pelo entrelaçamento interativo sugerido pelo modelo teórico-práxico que admite o diálogo das diversidades. 84 Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira... Referências bibliográficas ALDÉ, A et al. Critérios jornalísticos de noticiabilidade: discurso ético e rotina produtiva 1. 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La Habana: Pueblo y Educación, 1999. 86 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo às funções da universidade: origem e atuação do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) Iolanda de Oliveira A criação do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira data de agosto de 1995, quando foi incorporado à estrutura da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), por meio da Resolução n. 151/95, do Conselho de Ensino e Pesquisa da UFF. Buscando dar destaque aos estudos sobre esta parte estigmatizada da população, quatro pesquisadoras propuseram o projeto que, após a devida tramitação e aprovação em diferentes instâncias da universidade, teve sua criação legitimada pelo órgão competente. Além do comprometimento da equipe proponente do projeto que deu origem ao programa com a promoção da população negra, outros fatores contribuíram para a sua criação. Entre estes, destaca-se o equívoco da prevalência da classe social sobre a raça, muito difundido na época e que persiste até os nossos dias, de parte de alguns profissionais, comportamento de um significativo segmento da população, aproximando-se do senso comum. Para esses profissionais, os problemas raciais se reduziriam a um subgrupo dos problemas socioeconômicos que perpassam as sociedades caracterizadas pelo sistema capitalista de produção. Em conseqüência 87 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira da prevalência desta posição no âmbito da Faculdade de Educação da UFF até o final da década de 1990, os estudos sobre a população negra na época eram quase inexistentes. A situação descrita provocava nas poucas profissionais pesquisadoras da área População Negra e Educação um certo desconforto, e em um significativo número dos outros profissionais, suas questões de pesquisa, bem como, sua militância acadêmica sobre o negro em educação, causava estranhamento. Paralelamente, tinha-se parte de professores desta unidade que se tornaram aliados do Programa, inclusive as diretoras que atuaram no período de criação do Penesb (1994/1995), que foi uma fase de transição da direção da unidade de ensino aqui considerada. Os profissionais aliados atuaram como orientadores de monografias dos estudantes do curso de pós-graduação lato sensu, com grande dedicação, contribuindo fortemente para a consolidação do programa. O ambiente era antagônico, o que permanece até os nossos dias, com a presença daqueles que apóiam o Neab sem restrições, aqueles que ainda mantêm restrições aos princípios que orientam o trabalho e a daqueles que mantêm uma posição intermediária, isto é, apóiam com restrições. Esta situação em que os antagonismos coexistem é afirmada por Bourdieu no plano individual; aqui eu que tomo a liberdade de estendê-la para o plano coletivo. É importante registrar que, precedendo o Penesb, um grupo de estudantes de Ciências Sociais e de História da UFF criou, com o apoio de alguns dos seus professores, o Grupo de Trabalho André Rebouças, na década de 1970, o qual teve uma expressiva atuação, nos anos 1970/1980, discutindo, entre outros temas, a questão da educação da população negra. 88 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... A incorporação do tema População Negra e Educação às funções da universidade brasileira Considerando que a educação brasileira está a exigir substanciais transformações para promover a igualdade entre a população negra e a branca e sendo tais transformações determinadas, predominantemente, pelas práticas pedagógicas estabelecidas na relação professor-aluno, faço também algumas considerações sobre referenciais teóricos pertinentes à pesquisa e à formação dos profissionais da educação com vistas ao atendimento satisfatório aos grupos humanos diferenciados cultural e biologicamente, particularmente os grupos negros. Na elaboração da proposta do programa, procurouse dar destaque ao papel social da universidade, em confronto com questões pertinentes à condição do negro no setor educação, a fim de fundamentar a proposta. Assim, procurou-se responder à questão: Qual o papel social da universidade junto à educação da população negra? Tendo a universidade brasileira as funções que incorporam a pesquisa, o ensino, a extensão e um papel social a cumprir, decidiu-se, no início da década de 1990, incorporar o tema População Negra e Educação no desempenho das citadas funções, quando a proposta ainda era muito incipiente. O grupo de pesquisadoras, autoras da referida proposta de incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo às funções da universidade, além de considerar a necessidade de resistir ao reducionismo de parte de alguns docentes, propôs-se a construir uma universidade a serviço da promoção da sociedade, incorporando, principalmente à sua função investigadora, os problemas que a sociedade enfrentava, para que a população pudesse, ao acessar aos resultados das investigações realizadas, tomar conhecimento dos elementos da sua situação, da forma pela qual os problemas foram construídos através da história e, não raro, mantidos no mundo contemporâneo de 89 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira forma ressignificada. Considerava-se que, a partir daí, os atingidos pelos problemas teriam condições de atuar para eliminá-los, tornando a convivência social mais humana, mais igualitária e menos injusta. Atuando na Faculdade de Educação da UFF, considerou-se legítimo que a universidade contemplasse, no exercício de suas funções, a questão da educação da população negra, que se apresentava como um dos mais graves problemas da educação brasileira, por seus elevados índices de estrangulamento desde as séries iniciais de escolarização, ou seja, a partir do ensino fundamental, passando pelo ensino médio e atingindo a universidade, onde a presença de negros é, ainda, a despeito das políticas estabelecidas, muito reduzida. Investigar o que ocorre no interior do sistema de ensino brasileiro para explicar como tal estrangulamento ocorre tornou-se tarefa urgente, urgência esta que se fazia e se faz sentir também na disseminação dos conhecimentos produzidos pelas pesquisas junto à população em geral e particularmente aos profissionais da educação. A apropriação de tais saberes, como instrumentos para a ressignificação das suas práticas sociais e pedagógicas, anuncia a possibilidade de colocá-las a serviço da promoção da população negra. Neste contexto adverso, alem dos estudos quantitativos, emergem pesquisas de caráter qualitativo, que revelam algumas circunstâncias em que a criança e o jovem negro são colocados em situações que os desestimulam a empenhar-se nas atividades escolares, havendo, alem destes, ainda muitos espaços que estão a exigir investigações esclarecedoras. Entende-se que a universidade, para cumprir o seu papel social, deverá colocar-se a serviço do bem-estar da coletividade, principalmente buscando beneficiar os deserdados, resistindo à solicitada colaboração com o pacto social que agrava a condição dos despossuídos. Neste sentido, o Penesb colocou as funções da universidade a favor 90 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... da educação da população negra, como uma das parcelas da população brasileira deserdada, tendo o objetivo que se segue, como orientador de suas atividades: “Realizar pesquisas sobre a população negra em educação e disseminar tais conhecimentos, junto à população em geral e principalmente junto aos profissionais da educação em sua formação inicial e continuada.” Priorizando a pesquisa sobre a população negra em educação, foram realizadas inicialmente três investigações: Desigualdades raciais: construções da infância e da juventude, por Iolanda de Oliveira, a qual desvelou a evolução do pensamento de crianças e jovens entre cinco e 14 anos, sobre as desigualdades entre a população negra e branca na habitação e no trabalho. Negros na universidade, que foi realizada pela pesquisadora Moema de Poli Teixeira em uma universidade pública do Rio de Janeiro e que investigou as trajetórias acadêmicas de professores e alunos negros. E Professoras negras na 1ª República: história de um branqueamento, realizada pela pesquisadora Maria Lúcia Rodrigues Muller. De modo concomitante à realização de tais pesquisas, realizaram-se cursos de formação continuada para profissionais da educação que atuam na escola básica, em nível de especialização e de extensão, incorporando conhecimentos das seguintes áreas: História: História da África e O Negro na História do Brasil; Relações Raciais no Ensino da Língua e da Literatura; Relações Raciais e Religiões de Matriz Africana; Pesquisa Educacional e População Negra; Raça, Currículo e Práxis Pedagógica, Teoria Social e Relações Raciais e Educação e Identidade Racial. Tais conhecimentos são administrados atualmente em um curso de pós-graduação lato sensu com um total de 390 horas e em dois cursos de aperfeiçoamento, um presencial e outro semipresencial, nos quais os mesmos conhecimentos são condensados em 180 horas. Ao mesmo tempo, realizam-se palestras e seminários com a participação de pesquisadores destas diferentes 91 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira áreas, abertos a toda a população a fim de esclarecer a sociedade sobre a condição da população negra em geral e sobre sua projeção, no interior do sistema de ensino, provocando os estrangulamentos constatados, os quais não raramente, são injustamente atribuídos à suposta inferioridade inata da população atingida pelos processos escolares excludentes. Em todas as suas formas de disseminação dos conhecimentos produzidos sobre a questão, incluem-se a resistência negra ao longo dos anos e suas conquistas, as políticas públicas para promoção da igualdade racial, apontando fatos históricos e contemporâneos, destacando-se na atualidade a criação de órgãos públicos e as diferentes formas de políticas de ação afirmativa vigentes. O Penesb atua, também, na formação de pesquisadores iniciantes, em nível de graduação, mantendo sob sua orientação bolsistas negros vinculados ao CNPq e ao Programa Bolsa Treinamento, mantido pela UFF. No início da década atual, contou-se com bolsistas vinculados ao Programa Políticas da Cor, vinculado ao Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nesta atividade, realiza-se junto aos bolsistas um acompanhamento acadêmico, com ênfase na elaboração de suas monografias e uma formação paralela complementar sobre a população negra, com o propósito de formar profissionais comprometidos com a igualdade racial. No programa de pós-graduação stricto sensu, o Penesb atua na docência e na orientação de mestres e doutores. Sempre exercendo as três funções de modo concomitante, realizou-se a pesquisa Cor e magistério, através da qual procurou-se verificar se a discriminação da população negra no trabalho atinge também o magistério, ou se nesta profissão, excepcionalmente, a condição da população negra é equiparável à dos brancos, pelas pesquisadoras anteriormente mencionadas. Como medida esclarecedora 92 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... de alguns aspectos complementares desta pesquisa, foi realizado o estudo Raça, demografia e indicadores sociais, por André Augusto Pereira Brandão, que também realizou uma pesquisa sobre a pobreza em periferias urbanas com recorte racial e estudos sobre um curso de preparação de negros para o ensino superior. A professora Márcia Maria de Jesus Pessanha concluiu um estudo sobre o negro na confluência da educação e da literatura e o professor Sérgio da Rocha e Souza discutiu o pré-vestibular para negros como instrumento de política compensatória. No mesmo período, o professor Ahyas Siss realizou a pesquisa Políticas de ação afirmativa: razões históricas. Percebendo-se que o desconhecimento de parte da UFF e da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), da distribuição racial do seu corpo discente, dificultava a apresentação de propostas para o estabelecimento de políticas para a eliminação da discriminação da população negra no seu interior, realizou-se, em 2003, o censo étnico-racial, sobre aproximadamente 65% dos estudantes matriculados nas duas universidades. Este censo, coordenado em Mato Grosso pela professora da UFMT e pesquisadora associada do Penesb Maria Lúcia Rodrigues Muller e pela professora Moema de Poli Teixeira, contribuiu para a tomada de consciência sobre o lugar que o estudante negro ocupa no interior das duas universidades. A partir de tal estudo, foi elaborado um projeto de reserva de vagas para negros na UFF, que ora se encontra em processo de reformulação para a reapresentação aos órgãos competentes. No elenco de pesquisas realizadas destacam-se também as seguintes: A prática pedagógica de egressos dos cursos de pós-graduação lato sensu: afro-brasileiros e educação e A questão racial no projeto político-pedagógico das escolas, por Iolanda de Oliveira; Censo étnico-racial na UFF e na UFMT: alguns desdobramentos e A cor dos vestibulandos da UFF, por Moema de Poli Teixeira; e Cor e 93 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira magistério no Rio de Janeiro, por Maria Lúcia Rodrigues Muller. Atualmente têm-se os seguintes eixos temáticos, com as respectivas investigações: EIXO TEMÁTICO PESQUISAS INCORPORADAS PESQUISADORES A questão racial e a formação de profissionais da educação A questão racial nos cursos de Iolanda de Oliveira licenciatura da UFF Negros na universidade O impacto do Moema de Poli vestibular da UFF Teixeira nos candidatos Iolanda de Oliveira negros nos anos José Marcos da Silva 2004, 2005 e 2006 Imagens de Negros e educação: professoras e alunos Maria Lúcia história e memória negros na Primeira Rodrigues Muller. República Os diferentes eixos temáticos têm, em comum, referenciais teóricos que tratam da construção sócio-histórica do racismo e seus efeitos no imaginário social e individual, bem como suas repercussões na sociedade contemporânea. Entretanto, cada eixo temático tem também seus referenciais teóricos particulares. Em ambas as situações, a teoria não é um a priori definitivo, mas atua como hipótese que pode ou não ser confirmada pelo universo privilegiado pelas pesquisas ou ainda corresponder parcialmente ao que está posto pelas teorias selecionadas para análise dos dados. Ao longo dos seus primeiros 12 anos, o Penesb contou com o financiamento da Fundação Ford para a realização das suas atividades. A partir do momento em que foi criado o edital Uniafro, momento este que coincide com a retirada da Fundação Ford, do setor educação, o programa 94 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... ficou desprovido de recursos para a pesquisa, porque o órgão federal que oferece recursos para a pesquisa, CNPq, até o momento não reconhece a pesquisa sobre a população negra em educação como subárea. Além disso, a ausência de pesquisadores comprometidos com a produção de conhecimentos na referida subárea da educação e a inclusão significativa de outros pesquisadores entre os bolsistas do CNPq trazem dificuldades para a realização das investigações, o que conduz alguns professores a utilizarem seus próprios recursos para garantir o desenvolvimento desta atividade. O edital Uniafro representa, sem dúvida, uma grande conquista, porque torna disponível verba pública para a realização das atividades dos Neabs. Entretanto, a situação atual ameaça a realização de pesquisas pelos Neabs, o que é essencial para garantir a qualidade dos trabalhos realizados. Sabe-se que, diante do conhecimento, o ser humano tem os seguintes comportamentos: utilizar, criticar e produzir o conhecimento. Nas condições presentes e com o expressivo número de Neabs emergentes, a produção de conhecimentos fica comprometida, correndo-se o risco de reduzir os Neabs, a meros consumidores de conhecimentos e no máximo críticos dos saberes produzidos por outros, sem desenvolver a vocação primeira da universidade, que é o espaço de produção dos conhecimentos, o espaço da produção teórica. Sem dúvida, que é de extrema importância a preservação da relação de unidade teoria-prática e para isto “o fazer” deverá estar atrelado à produção teórica, o que justifica o comprometimento dos Neabs com a formação de profissionais da educação básica e com a produção e disseminação de materiais didáticos destinados a este nível de ensino. É urgente, portanto, que de modo paralelo às atividades de ensino e extensão, tenhamos o necessário apoio financeiro para a realização de pesquisas. 95 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira A disseminação de saberes por meio de publicações A mídia escrita é também uma das formas privilegiadas pelo Penesb para a disseminação de conhecimentos pertinentes à sua área de atuação. Recorreu-se primeiramente à publicação por meio de um dos periódicos da UFF, Estudos e Pesquisas e, posteriormente, de modo paralelo à publicação de livros sobre suas diferentes produções, criou-se um periódico próprio, o Cadernos Penesb, publicado anualmente, estando com seu nono número em fase de preparação. Formação de profissionais da educação para a educação das relações raciais: fundamentos teóricos dos cursos ministrados pelo Penesb Entende-se que os projetos educacionais destinados à democratização do acesso e da permanência de estudantes negros em todos os níveis de ensino têm estreita relação com a atuação dos profissionais que exercem suas funções na relação direta com o aluno. É no cotidiano escolar que as reformas educativas concretizam-se ou se dão as diferentes formas de resistência às mesmas. É este o motivo pelo qual o Penesb enfatiza os cursos de formação continuada de profissionais que atuam em estabelecimentos de ensino, em contato direto com os estudantes, atribuindo-se, também, fundamental importância à formação inicial em nível de graduação. A Conferência Internacional de Durban e o movimento negro brasileiro ao longo de sua história têm destacado em suas propostas e reivindicações a educação da população negra, enfatizando, portanto, a diversidade racial. Os efeitos da atribuição de significados sociais à diversidade racial, cultural e biológica, que hierarquizam a humanidade, provocando as desigualdades raciais, são 96 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... claramente constatados por meio das denúncias, de caráter primeiramente político-social e posteriormenteacadêmico. Esses aspectos particulares decorrentes da diversidade humana e seus efeitos na sociedade e na educação estão a exigir uma formação dos profissionais da educação, que dê conta da eliminação desse problema social que atinge não só a sociedade brasileira, mas a toda a humanidade. Neste artigo, destaco aspectos que considero, na minha visão de professora/pesquisadora, condições necessárias a uma atuação profissional que contribua para recuperar a dignidade da população negra por meio do respeito que lhe é devido, o qual foi colocado à margem das relações inter-raciais. Tais aspectos orientam não só as pesquisas em desenvolvimento neste eixo temático, mas também a formação que é oferecida pelo Penesb aos profissionais vinculados ao programa em sua formação inicial e continuada. Sem pretender esgotar as teorias inerentes ao tema proposto, destaco os seguintes pontos: • Formação fundamentada em uma pedagogia progressista, comprometida com a promoção da humanidade em sua diversidade. • A relação teoria-prática na formação do profissional da educação. • A questão dos valores na formação do profissional da educação. • A formação dos profissionais da educação na legislação brasileira: possibilidades de reversão das desigualdades raciais. Nos três primeiros itens, discuto a fundamentação teórica que orienta as pesquisas no referido eixo temático e os cursos ministrados pelo Penesb. No quarto item, faço uma apreciação de aspectos da Lei de Diretrizes e Bases, que tratam da formação de profissionais da educação diante da necessidade de uma 97 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira atuação satisfatória com os grupos discriminados, em particular com os grupos negros. Formação fundamentada em uma pedagogia progressista, comprometida com a promoção da diversidade humana Cabe aqui fazer algumas considerações sobre o caráter tridimensional da formação dos profissionais de educação baseadas em Antônio Joaquim Severino: A dimensão dos conteúdos que está vinculada à área de formação privilegiada pelo formando; são conhecimentos específicos oriundos de uma determinada área de estudos a partir do seu objeto particular. Nesta dimensão, os conhecimentos a serem ministrados em cada área devem orientar-se por uma dupla classificação: - Conhecimentos que o formando deverá ministrar aos destinatários do seu trabalho, que deverão incluir os conhecimentos relativos ao segmento social negro incorporados pela respectiva área de conhecimentos objeto da formação profissional. Não é admissível, por exemplo, que, na formação do licenciando em história, não sejam estudados os conteúdos relativos à História da África e à História do Negro no Brasil, com destaque para o ideal de branqueamento, como invenção particular do racismo brasileiro. - Conhecimentos para ampliação e aprofundamento da área de estudos objeto da respectiva formação, a fim de que o profissional em formação tenha melhores condições para selecionar e manipular os conteúdos de sua área que sejam socialmente relevantes para os seus futuros estudantes e para que possa ultrapassar o estágio de mero utilizador de conhecimentos já produzidos. Ultrapassando este estágio, o futuro profissional deverá também ter uma atitude crítica diante dos referenciais teóricos disponíveis, 98 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... pertinentes ao seu trabalho e ultrapassá-los quando for o caso, por meio da produção de novos saberes. A ampliação e o aprofundamento aqui considerados, aliados a uma sólida formação pedagógica progressista ampla, darão ao profissional condições de atuar com liberdade e competência na sua área de conhecimentos e conseqüentemente de averiguar a sua dimensão racial e os conteúdos a ela pertinentes, que deverão ser selecionados na elaboração e desenvolvimento dos currículos escolares sob sua responsabilidade. Tendo apenas uma visão limitada e superficial da área de conhecimento com a qual trabalha, o profissional fica impedido de circular com liberdade, como sujeito ontocriativo no seu campo de conhecimentos, e de descobrir o potencial do mesmo para eliminar ou pelo menos reduzir os problemas raciais vigentes. - a dimensão pedagógica deverá garantir a formação didático-pedagógico que vai dar a esse profissional o domínio de conhecimentos e habilidades que caracterizam o profissional da educação, assegurando-lhe condições de cumprir o seu papel profissional junto à sociedade a que a educação se insere. Nesta dimensão, o profissional deverá adquirir a habilidade de fazer a mediação entre os conhecimentos a serem ministrados ao aluno, manipulando-os para dar-lhes a forma didática adequada aos seus destinatários para a sua assimilação. É ainda nesta dimensão que, orientado pela concepção progressista de educação, o profissional deve adquirir a capacidade de selecionar, no acervo cultural disponível, os conhecimentos socialmente relevantes para promover os estudantes, devendo atentar para os saberes sobre a população negra em uma sociedade caracterizada pela diversidade racial, cultural e biológica, cujos significados inventados socialmente deram origem a preconceitos, estereótipos e discriminações. Além de atentar para os aspectos citados, no exercício de sua função, o profissional em for99 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira mação deverá estar atento às diferentes formas de resistência negra que se dão de modo paralelo à sua deserção social. Entretanto, esta proposta só é realizável dentro de uma concepção pedagógica progressista, que ultrapasse as posições baseadas em um marxismo ortodoxo, cuja percepção das relações de poder não se dá para além das denominadas “classes sociais”. A dimensão das relações situacionais em que o autor em questão considera as questões existenciais dos sujeitos envolvidos no processo educativo, em minha opinião, está atrelada à teoria pedagógica progressista, que pressupõe uma estreita relação da educação com a sociedade, com as práticas sociais dos sujeitos. As três dimensões, devidamente articuladas e desenvolvidas sem superposição, irão garantir a formação satisfatória do profissional considerado. Entretanto, o tema aqui proposto exige um destaque especial da dimensão pedagógica. Cabe, portanto, considerar o que é a pedagogia, qual o seu âmbito e objeto, e situar a pedagogia progressista, por mim denominada ampla, no âmbito das diferentes concepções deste campo de conhecimentos. A pedagogia é uma área de conhecimentos multirreferencial, que incorpora aspectos filosóficos e científicos sobre educação, abarcando também as práticas educativas e os saberes produzidos a partir da ação pedagógica. Seu objeto é, portanto, o fenômeno educativo, a partir do qual são produzidos saberes de caráter filosófico e científico, os quais devem contribuir para reorientar as políticas e práticas educativas. Tratando-se da docência, a didática ganha um espaço importante, por ser uma área científico-filosófica que tem a ação docente como objeto. Tal qual a pedagogia, a didática é uma área de conhecimento teórico-prática com múltiplas referências. Ao longo dos séculos, foram desenvolvidas teorias em torno do fenômeno educativo, sendo destacadas as 100 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... teorias pedagógicas denominadas: tradicionais, liberais, e progressistas. As teorias tradicionais, tendo como um das suas características a desvinculação completa da educação com a realidade social vigente, trata os conteúdos como fins em si mesmos. Esta teoria, ainda evidenciada em práticas contemporâneas descontextualizadas, não se prestou para tratar da diversidade humana pelo seu caráter estático, através da utilização de modelos desvinculados da vida das crianças e dos jovens. A concepção pedagógica liberal, embora incorpore entre outras, a concepção da escola nova, que estabelece a relação com o contexto social dos alunos, se aplicada à formação de profissionais da educação, não tem elementos para contemplar a diversidade humana porque sendo liberal e espontaneísta, não tem compromisso com a transformação social. Seu propósito, através do estudo do meio, é a adaptação, o ajustamento do educando à sociedade. Resta-nos a pedagogia progressista como única concepção pedagógica que contém os elementos necessários a uma atuação comprometida com a transformação da sociedade e, portanto, com a eliminação de qualquer tipo de discriminação. Cabe ressaltar, entretanto, que, dentro da pedagogia progressista, a conhecida pedagogia críticosocial dos conteúdos, considerando as relações de poder inerentes apenas às classes sociais, com efeitos negativos na educação, é reducionista, não possibilitando ao educador uma formação que lhe permita considerar as relações de poder exercidas entre outros grupos para além das “classes sociais”. Consideramos, portanto, neste trabalho, o potencial da pedagogia progressista, que não se restringe a analisar as relações de poder apenas entre os segmentos sociais diferenciados por seu poder econômico, mas aquela pedagogia progressista que, caracterizada pela amplitude, considera as relações de poder exercidas entre todos os 101 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira grupos humanos, podendo-se particularizar aqui o seu potencial para tratar da questão racial negra em educação. Snyders (1974) faz considerações sobre as pedagogias tradicional e nova, precedendo uma terceira alternativa, a pedagogia progressiva, teoria privilegiada neste trabalho. Critica a pedagogia tradicional por ser baseada em modelos; metodologia que consistia em conduzir o aluno às grandes realizações da humanidade na literatura, nas artes, reflexões e demonstrações elaboradas e conhecimentos científicos postos à disposição da humanidade por meio de métodos seguros. Tais modelos, destinados a guiar os estudantes, eram distantes do seu cotidiano, e, no entanto, os alunos deveriam guiar-se por eles. Snyders considera que o aluno, neste caso, não é passivo, porque há uma busca a partir dos modelos que lhe são oferecidos. Além da não passividade, Snyders aponta outros aspectos positivos deste tipo de pedagogia e, a despeito de suas limitações, salienta a possibilidade da originalidade, a alegria, a apreciação da beleza e da verdade, a experimentação do progresso científico. Concluo, a partir deste autor, que, apesar da falta de compromisso da pedagogia tradicional com a transformação social, a proposta atual de referências negras na literatura, nas artes e mesmo em se tratando de trajetórias de vida, consideradas como patrimônio cultural, são uma herança positiva da escola tradicional, incorporada pela pedagogia progressista. Visando à superação das falhas da educação tradicional, surge, no século XIX, o movimento da escola nova cujo aspecto essencial nesta superação é a articulação entre a educação e a vida do estudante, apesar de ser uma pedagogia liberal, que não incorpora a transformação social, mas mantém a proposta de permanência do que está posto na sociedade. Este movimento dá ênfase à influência dos fatores sociais na educação, mas mantém o aspecto relativo ao ajustamento/adaptação do estudante à sociedade vigente. 102 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... Snyders aponta alguns aspectos positivos desta concepção de educação, estando entre estes: a alegria do presente, de ser criança, o privilegiar os interesses dos estudantes, liberdade, iniciativas, atividades grupais, relação entre a cultura e a existência. Eliminando os modelos, a escola nova tem o demérito de fazer a criança e o jovem permanecerem em seu próprio mundo, sem a referência às grandes obras e aos grandes autores. Há nesta pedagogia um espontaneismo extremamente prejudicial à formação dos estudantes, pela desvalorização do mundo adulto. A concepção de escola progressista não abandona totalmente as duas anteriores, mas se apropria de seus aspectos positivos e os atualiza. Retomam-se os modelos, mas aqueles que se relacionam como o mundo do estudante. Assim, faz sentido tomar a trajetória de vida de pesquisadores negros como patrimônio cultural a ser utilizado pela educação, no sentido de encorajar a criança negra com trajetórias semelhantes a ter um nível de aspiração elevado, ao mesmo tempo que tais modelos vão inspirar na criança branca, o respeito que é devido ao negro. Assim também, outros modelos significativos contidos na literatura, nas artes, na história e em outras ciências, são positivos no trabalho educativo a ser realizado, tendo em vista a recuperação da dignidade da população negra. Há neste caso a conciliação de aspectos da escola tradicional e da nova: os modelos e a alegria do presente em uma terceira concepção da educação que visa educar para a construção de um novo mundo, para o que as duas anteriores não atentavam, sendo este um dos propósitos da formação dos profissionais da educação na atualidade, que, pela legislação atual, deverá incorporar aspectos relativos à população negra na atividade profissional. Snyders denomina esta concepção de “pedagogia de esquerda” e afirma: “uma pedagogia de esquerda é fundamentalmente uma pedagogia que enuncia idéias de esquerda, transmite conteúdos de esquerda, suscita uma 103 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira visão um método, atitudes de esquerda” (SNYDERS, 1974, p. 193). E acrescenta que “o ponto decisivo é o conteúdo das idéias adquiridas: o racismo, a divisão da sociedade em classe, as condições e as perspectivas que põem fim à exploração”, à discriminação racial entre outras, sendo essencial enfatizar as experiências dos alunos. Em uma concepção pedagógica de direita conforme a tradicional e a nova, e mesmo em uma concepção pedagógica de esquerda marxista ortodoxa, torna-se impossível formar profissionais comprometidos com a eliminação das relações raciais verticalizadas. Referindo-se à concepção pedagógica progressista aqui privilegiada, Tomaz Tadeu da Silva a denomina de pós-crítica por ultrapassar as limitações da teoria progressista crítica que se restringe ao estudo da projeção das desigualdades de classe no sistema de ensino. As teorias denominadas pós-críticas incorporam, segundo o autor, aspectos positivos das teorias tradicionais e críticas e acrescenta aspectos inovadores como: “identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significado e discurso, saber, poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo” (SILVA, 1999, p. 17). É, portanto, a concepção pedagógica progressista ampla que deverá orientar as pesquisas e a formação de profissionais da educação com vistas a uma atuação satisfatória com a diversidade racial brasileira. A relação teoria-prática na formação do profissional da educação A teoria e a prática são dois aspectos que não se reduzem um ao outro, mas mantêm uma unidade entre si, sendo que os dois aspectos caracterizam a práxis: a teoria, o seu aspecto ideal e a prática o seu aspecto real. A práxis é um conceito de extrema relevância na formação do educador, porque conjuga teoria e prática 104 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... de maneira intencional . Segundo Kosik, a praxis é o poder e a arte de manipular os homens e/ou as coisas de maneira deliberada para transformar-lhes.Esta arte e este poder devem ser garantidos ao profissional da educação, para que tenha condições de colocar a educação a serviço da promoção de todos os estudantes, a despeito de sua diversidade, quer seja cultural e/ou fenotípica. Na formação do educador, teoria e prática têm uma dupla função: a de garantir tal unidade no planejamento e na dinâmica curricular dos cursos de licenciatura e de pedagogia e a de desenvolver, nos formandos, a capacidade de transferir tal atuação quando em exercício de suas atividades profissionais. Recorrendo à filosofia, verifica-se que a teoria é considerada uma construção especulativa do espírito com conseqüências próximas a princípios; a prática, é vista como atividade transformadora do ambiente. A teoria e a prática, sua unidade enfrenta problemas mais acentuados nos campos de conhecimento que incidem mais diretamente na prática social: educação, direito, serviço social, medicina... Na elaboração e desenvolvimento dos currículos de formação de profissionais da educação, observa-se certos equívocos em face da relação aqui tratada. Para compreendê-las e conseqüentemente alterá-las, apresentamos de modo sintético as formas de relacionamento teoria-prática. A visão dicotômica separa uma e outra, considerando a sua plena autonomia e, portanto, a sua completa separação. Decorre desta posição a visão dicotômica dissociativa e a visão dicotômica associativa.. A visão dicotômica dissociativa afirma a separação entre o pensar, refletir, planejar e o fazer, agir, executar. Encontram-se no cotidiano escolar afirmativas que evidenciam a presença desta teoria nas falas de professores, tais como: “na prática a teoria é outra...”. Pode realmente ocorrer que uma dada teoria não dê conta de explicar uma determinada realidade, mas isto não significa que a teoria 105 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira deve ser abandonada, mas sim recriada, desestabilizada e/ou ainda substituída por outra que contenha elementos capazes de explicar a realidade considerada, seja esta outra já disponível ou criada pelo profissional da educação, em moldes rigorosamente científicos. Nesta visão, cabe aos teóricos pensar, planejar e aos práticos executar, agir. A prática atrapalha aos teóricos e a teoria, atrapalha aos práticos. Esta forma de relacionamento teoria-prática é oriunda da sociedade capitalista de produção, que separa teoria e prática. Esta posição é assumida em várias instâncias da educação, evidenciando-se desde o cotidiano escolar, que atribui a elaboração do planejamento aos supervisores e orientadores, até o Ministério da Educação e Cultura, que em propostas educativas, reduzem os profissionais da educação, a meros executores de propostas elaboradas em gabinetes, sem a participação dos que atuam nas escolas. Digo escolas porque, sem o envolvimento dos profissionais que atuam neste nível, nenhuma proposta educacional torna-se realidade. A visão dicotômica associativa admite a teoria e a prática, não como atividades opostas e sim justapostas. Nesta forma de relacionamento, a teoria precede a prática, sendo a prática uma aplicação da teoria. A prática é relevante na medida em que mantém fidelidade aos parâmetros da teoria. Quando há desvios, é a prática que deve ser alterada. Baseia-se nesta concepção a visão positivotecnológica, porque o percurso é da teoria à prática. O domínio da realidade depende dos modelos teóricos, normas e regras oferecidos pela teoria. As conseqüências desta concepção positivista, segundo Marilena Chauí, são três: a teoria é a organização sistemática e hierárquica das idéias sem nenhuma tentativa de explicar e interpretar a realidade; estabelece uma relação autoritária de comando pelos teóricos e obediência pelos práticos; a prática é considerada mera técnica de aplicação automática das normas, regras e princípios, vindos da teoria. 106 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... Esta forma de relacionamento é encontrada em grande número dos currículos de licenciatura, nos quais os conhecimentos teóricos da área de formação do sujeito precedem a parte pedagógica, na qual se dá como culminância dos cursos a prática de ensino e/ou o estágio supervisionado. Percebe-se nestes casos, claramente, a justaposição teoria-prática nos moldes aqui descritos. Uma terceira forma de relacionamento centra-se na união teoria-práticas, não como aspectos idênticos, mas simultâneos e recíprocos, gozando ao mesmo tempo de autonomia e de dependência. Mais uma vez recorro a Marilena Chauí, que afirma ser a relação teoria-prática, simultânea e recíproca do seguinte modo: a teoria nega a prática enquanto algo imediato, afirmando-a como atividade socialmente produzida e –produtora – da existência social. Trata-se, segundo a teoria, de processos históricos construídos pelos homens, os quais determinam as suas ações; a prática nega a teoria como saber autônomo e separado, como idéias puras, rejeitando a postura idealista. Nega a teoria como um saber acabado, que guiará e comandará de fora a ação dos homens; nega-a como um saber separado do real que pretende governá-lo; ela é o conhecimento das condições reais da prática existente, de sua alienação e transformação. Nesta visão, teoria e prática são dois componentes indisssolúveis da práxis, cuja dissolubilidade só é possível por abstração. Ao tomar a concepção progressista ampla da educação para fundamentar uma formação comprometida com a questão racial negra, tem-se o aspecto ideal da práxis, sendo os diferentes cursos que se orientam por esta teoria o lado material ou real da práxis educativa. A prática é fonte da teoria. A teoria nutre-se da prática como objeto de observação, análise, interpretação e transformação. A prática é anterior a teoria, sendo o seu fundamento e critério de verdade. A teoria, sendo a explicação da realidade, goza, entretanto, de uma certa autonomia em relação à mesma, porque originando-se de um 107 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira determinado universo empírico, pode servir de fundamentação para práticas cujos componentes são incorporados pela teoria anteriormente produzida. Nos currículos dos cursos fundamentados nesta forma de relacionamento, a teoria e a prática se articulam, sendo simultâneas e indissolúveis. Como exemplo desta relação, vivencio o currículo do Curso de Pedagogia da UFF, que, planejado para promover a concomitância destes dois aspectos da práxis, incluiu, desde o primeiro período como obrigatória, a disciplina Pesquisa e Prática Pedagógica, que, anunciando esta postura, contem na prática alguns equívocos que comprometem este aspecto da sua fundamentação teórica, ainda que representando um grande avanço na formação dos profissionais da educação. A visão de unidade teoria-prática na formação dos profissionais da educação, para a diversidade racial, é uma condição necessária, mas não suficiente. È preciso que, além de privilegiar esta relação, os cursos incluam nos currículos as questões raciais. Por outro lado, se este tipo de relacionamento, por si só, não dá conta das questões raciais em educação, os outros tipos de relacionamento a inviabilizam. A formação de profissionais da educação deverá garantir não somente uma atuação em que os objetivos previamente determinados sejam alcançados, mas também uma formação como pesquisadores. Neste sentido, é preciso que os níveis de produção de conhecimentos sejam do domínio dos formandos, os quais deverão atuar em coerência com os mesmos. A produção de saberes, isto é, a pesquisa acadêmica, quando se caracteriza pela empiria, tem os seguintes níveis ou graus: 1 - Percepção sensível, que consiste no contato com o universo selecionado para estudo, podendo ser, no caso do profissional da educação, algum aspecto da dinâmica escolar e/ou do ensino. Nesta fase, coletam-se e registram108 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... se cuidadosamente todas as ocorrências, para análise e interpretações posteriores. Este é o momento do contato e registro dos fenômenos educativos que estão ocorrendo. Este nível não permite um conhecimento imediato do fenômeno em sua totalidade, suas contradições e outros aspectos da realidade considerada. A essência dos fenômenos só pode ser compreendida pelo pensamento lógico, racional, a partir do próprio fenômeno. Todos os conhecimentos autênticos resultam da experiência direta, não sendo concebida a sua desvinculação da prática. Selma Garrido Pimenta afirma a necessidade de sólidas bases empíricas para a produção do bom conhecimento. 2 - Análise e interpretação dos dados coletados, à luz de teorias pertinentes ao objeto de estudo da pesquisa. É o momento da elaboração de conceitos, a partir da análise dos graus de freqüência com que os fenômenos ocorrem, seu maior ou menor grau de estabilidade, estabelecimento das relações lógicas e ratificação de teorias existentes e/ou elaboração de novas teorias. Comprova-se aí, a precedência da prática em relação à teoria e a importância da primeira para a elaboração de saberes, o que é indispensável para que a educação seja revisitada e ressignificada. Tratando-se da pesquisa, reafirmamos a nossa posição no sentido de que o ato de pesquisar não seja exclusivo do profissional da educação superior, mas há necessidade de criar condições para incluir esta atividade no cotidiano dos profissionais da escola básica. Sobre este assunto, Paulo Freire afirma: Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (FREIRE, 1996, p. 32). 109 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Ter uma formação que permita ao profissional conhecer os seus alunos, particularmente o aluno negro, sua cultura, seus conhecimentos e valores acumulados, e permita principalmente averiguar o tipo de relacionamento estabelecido pelo sistema escolar com este grupo racial, é um direito que, raramente, é assegurado aos profissionais considerados. Privilegiada esta forma de relacionamento teoriaprática, os profissionais devem adquirir a capacidade de realizar o percurso prática-teoria-prática, fazendo o recorte racial em todo o seu trabalho. Isto significa que os mesmos devem manter-se vigilantes em relação ao papel que a escola está desempenhando junto à população negra e alterá-lo, nos casos em que a educação esteja a serviço da sua degradação. A questão dos valores na formação dos profissionais da educação Ao tratar da conceituação de pedagogia, nas páginas iniciais deste estudo, demos destaque não somente ao seu caráter científico, mas também ao filosófico, porque reduzir o campo de conhecimentos pedagógicos somente à ciência é negar o seu caráter filosófico, através do qual são determinados os valores e os fins da educação. É através da sua dimensão filosófica que a pedagogia vai determinar o que deve ser a educação e, portanto, determinar os valores que serão considerados no trabalho pedagógico. É importante destacar que os conhecimentos são incorporados pela racionalidade e os valores pertencem à área afetiva. Entretanto, a racionalidade não pode estar desvinculada da afetividade e esta necessariamente incorpora o aspecto racional. A questão dos valores, entretanto, têm sido negligenciadas pela educação, o que leva muitos profissionais 110 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... à indiferença diante de posturas racistas, quer sejam de caráter emergencial ou sistemático. Ninguém nasce com valores. Eles são aprendidos ao longo da nossa história de vida, e a educação básica é um dos lugares privilegiados para essa formação. Para tanto, os profissionais da educação precisam ser preparados. Os valores decorrem de uma postura de não-indiferença diante de determinados fenômenos. A educação da população negra está a exigir uma postura de não indiferença de parte dos profissionais da educação em relação às desigualdades de condições e de oportunidades a que este grupo é submetido. Cabe questionar, diante deste quadro, qual o papel da educação? Qual é o papel social dos profissionais da educação? Que tipo de serviço deverão prestar à sociedade? Estas questões precisam ser respondidas pelos profissionais em questão, a partir da formação recebida. Recorrendo a vários conceitos de educação, percebemos que todos eles privilegiam a promoção humana e, segundo Dermeval Saviani, promover o homem significa, tornar esse “homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação, para intervir nela, transformando-a, no sentido de uma ampliação da liberdade, de comunicação e colaboração entre os homens” (SAVIANI, 1986, p. 41). É importante que os profissionais da educação confrontem a citada finalidade com a dinâmica escolar, para averiguar se o espaço escolar está realmente promovendo a população negra, ou se está provocando a sua degradação. Recorrendo mais uma vez a Saviani, encontramos na filosofia da educação respaldo para a nossa proposta de inclusão dos estudos sobre os valores em educação na formação de seus profissionais. Segundo o referido autor, Os valores indicam as expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcenderse a si mesmo e à sua situação histórica; como tal, 111 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira marcam aquilo que deve ser em contraposição aquilo que é. A valoração é o próprio esforço do homem para transformar aquilo que é, naquilo que deve ser (SAVIANI, 1986, p. 41). O sistema educacional brasileiro está a exigir uma formação de profissionais, que, privilegiando certos valores em educação, transformem a realidade educacional do negro brasileiro, realizando o percurso entre o que é e o que deve ser a educação, isto é, da degradação constatada à promoção humana. Neste sentido, as políticas em nível macro deverão exercer o seu papel, no sentido de garantir o cumprimento de aspectos legais inerentes à questão e que não têm recebido dos órgãos oficiais brasileiros o devido investimento. A questão dos valores nos leva a questionamentos tais como: existem valores universais, ou todos os valores são relativos? Que valores privilegiar em educação? Sabe-se que as sociedades têm valores particulares e que todas as vezes que se eleva o particular ao nível de universal, hierarquiza-se os grupos sociais, tal qual ocorreu com a Europa em relação aos outros continentes, especialmente com a África. Entretanto, há certos valores que parecem ser universais, como a igualdade e o respeito, que devem perpassar as relações entre todos os grupos humanos. O respeito incorpora necessariamente a não-violência física e moral, as quais atravessam toda a educação sem a devida postura de um significativo número de profissionais e mesmo dos níveis de administração de ensino mais elevados. Se por um lado assiste-se à indiferença dos educadores no nível da escola, diante dos apelidos pejorativos aos alunos negros, por outro, assiste-se, por exemplo, à cooptação das nossas crianças e jovens para o tráfico de drogas no interior das escolas e/ou em suas mediações sem a tomada de medidas necessárias de grande parte das instâncias superiores de administração dos sistemas de ensino, 112 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... que não acionam os órgãos de segurança para impedir tal ocorrência, que consiste em uma violência brutal aos nossos estudantes, reduzindo a expectativa de vida dos nossos jovens negros. Sem pretender hierarquizar os valores, consideramos que uma educação para a promoção humana não pode deixar de priorizar a igualdade e o respeito como valores universais, a despeito da origem ocidental da igualdade como princípio. Para tratar da igualdade, é preciso contrapô-la às desigualdades sociais e raciais existentes, porque, concretamente, a humanidade só conhece as desigualdades, sendo a igualdade uma abstração, uma aspiração, cujos esforços para alcançá-la resultaram em sociedades menos desiguais. Segundo Turner, a persistência dos escritos tipicamente sobre as desigualdades em sociologia indica o seu prolongamento na sociedade capitalista contemporânea, parecendo ser um tanto óbvia no campo da política social e da pesquisa. Por outro lado, a igualdade é um princípio das lutas políticas dos movimentos sociais modernos, sendo um dos seus componentes, ao contrário da desigualdade, cuja história é tão antiga quanto a humanidade. O privilegiar a igualdade em educação exige a determinação da concepção de sociedade e de homem privilegiada, sendo este tipo de educação incompatível com os propósitos neoliberais de mundialização do capitalismo, “entendido como processo civilizatório destinado a realizar uma espécie de coroamento da história da humanidade” (IANNI, 1996, p. 82). Baseado na exploração do homem pelo homem, o capitalismo tem a desigualdade como um dos seus princípios, ainda que em alguns países capitalistas haja a possibilidade de oferecer à coletividade padrões razoáveis de bem-estar social. Sheler apresenta uma hierarquia de valores que podem ser objeto de reflexão em educação: 113 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira valores valores valores valores valores valores úteis – econômicos vitais – afetivos lógicos – intelectuais estéticos éticos – morais e religiosos. Segundo Saviani, a hierarquia torna rígido o lugar dos valores, devendo-se estabelecer prioridades, porque estas permitem uma flexibilidade coerente com os destinatários da educação. O referido autor apresenta os valores que se seguem, sem hierarquizá-los: Educação para a subsistência Educação para a liberdade Educação para a comunicação e Educação para a transformação. Apontando o que deve ser, os valores salientam o problema das finalidades e objetivos da educação. Ainda que sendo apenas valores declarados e não reais, as finalidades da educação brasileira dão ênfase a valores extremamente relevantes. O artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases determina os seguintes princípios e fins da Educação Nacional: Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Liberdade, solidariedade, plenitude, cidadania e trabalho, são palavras-chave de tais finalidades, o que aponta para a elaboração de objetivos da educação coerentes com a promoção dos estudantes. Entretanto, entre o declarado e o real na nossa educação, há uma grande lacuna, cujos responsáveis pela educação, não só os 114 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... profissionais que atuam na escola, devem coletivamente fazer desaparecer. Para incluir os valores nas práticas educativas, é preciso fazer superar o equívoco de parte de muitos educadores de que os conteúdos escolares são apenas os conhecimentos científicos acumulados pela humanidade e colocados à disposição de todos. Não resta dúvida que a apropriação de tais conhecimentos por todos em uma democracia é um direito, devendo ser transformados em coisa pública. Os conteúdos incorporam também habilidades, hábitos, atitudes e valores, que devem ser objeto da educação intencional, como expectativas e aspirações. Sendo os valores aquilo que deve ser em confronto com o que é, a valoração é o procedimento humano para eliminar esta lacuna em direção ao pretendido. A distância entre aquilo que deve ser e aquilo que é, afirma Saviani, é o espaço da vida humana. O mesmo autor afirma que tanto a possibilidade de coincidência total entre o que deve ser e o que é como a impossibilidade completa dessa coincidência tornam a vida humana inviável. Projetando essa idéia na educação, podemos dizer que o que justifica o trabalho educativo é a possibilidade de transformar aquilo que é naquilo que deve ser. Neste sentido, torna-se necessário que os profissionais da educação tenham uma formação que lhes garanta a autonomia profissional necessária para que se tornem autores dos seus projetos de trabalho, tanto no nível de escola quanto no nível de sala de aula. Se por um lado é da responsabilidade de todo o coletivo da escola elaborar o projeto político-pedagógico, é da responsabilidade de cada professor, individual ou coletivamente, elaborar o seu plano de ensino, visando a alterar o comportamento dos estudantes sob sua responsabilidade. Isto significa que a educação deverá ajudar aos estudantes a perceberem criticamente a sua condição na sociedade, o seu caráter social e histórico e a elaborarem um projeto de vida com vistas à plena coincidência entre o que é e o que deve ser, diante das 115 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira desigualdades sociais e particularmente raciais que afetam a humanidade. A formação dos profissionais da educação, orientada pela teoria pedagógica progressista considerada em seu sentido amplo, deverá, entre outros aspectos, dar ênfase ao desenvolvimento da capacidade de elaborar os planos de trabalho que o cotidiano escolar exige, em contraposição à improvisação e à submissão aos projetos elaborados por outros, que consistem no sucateamento da educação e na renúncia à autonomia que o exercício da função confere ao educador, renuncia esta que acontece porque o profissional delega a outros profissionais um fazer que violenta e degrada a sua atuação. A formação dos profissionais da educação na legislação brasileira: possibilidades de reversão das desigualdades raciais Nesta parte final do trabalho, decidi analisar a proposta de formação incorporada nos itens anteriores em confronto com as determinações legais contidas nos documentos oficiais. Neste item, nosso propósito inicial foi de confrontar o proposto legalmente e os processos de reformulação dos cursos de pedagogia e licenciatura em curso com as possibilidades de formar profissionais para uma atuação satisfatória com os grupos discriminados, particularizando a situação da população negra. Entretanto, as limitações relativas principalmente de tempo e de espaço para este artigo não permitem avançar para além do que está posto na Lei de Diretrizes e Bases, na qual a formação de profissionais da educação é tratada no título VI – Dos profissionais da Educação. A seguir, transcrevemos os artigos aqui considerados e seus respectivos itens e parágrafos, a fim de facilitar estudos comparativos. 116 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... Art. 61 – A formação de profissionais da educação, de modo a atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino e às características de cada fase do desenvolvimento do educando, terá como fundamentos: I – associação entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço; II – aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e outras atividades. Art. 62 – A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal. Art. 63 – Os institutos superiores de educação manterão: I – cursos formadores de profissionais para a educação básica, inclusive o curso normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental. II – programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior que queiram se dedicar à educação básica; III – programas de educação continuada para os profissionais da educação dos diversos níveis. Art. 64 – A formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional. 117 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Art. 65 – A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas. Art. 66 – A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado. Parágrafo único – O notório saber, reconhecido por universidade com curso de doutorado em área afim, poderá suprir a exigência de título acadêmico. Art. 67 – Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e nos planos de carreira do magistério público: I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim; III – piso salarial profissional; IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho; V – período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho; VI – condições adequadas de trabalho. Parágrafo único – A experiência docente é prérequisito para o exercício profissional de quaisquer outras funções de magistério, nos termos das normas de cada sistema de ensino. O item I, do artigo 61, é coerente com a nossa proposta de estabelecimento de uma relação de unidade entre teoria e prática na formação profissional tanto inicial quanto continuada. Quanto ao item II do mesmo artigo, percebe-se a abertura para aproveitamento de estudos, sem impedir que esta tramitação se faça no sentido vertical, o que compromete a qualidade da formação. 118 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... O artigo 62, determinando os diferentes níveis para a formação de profissionais da educação, comete o grave equívoco de perpassar nas entrelinhas a idéia de que a atuação na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental pode ser feita por profissionais com uma formação inferior à realizada na graduação, em nível médio e fora do ambiente universitário. No entanto, sabe-se que o trabalho educativo com crianças menores exige uma formação, se não mais, tão rigorosa quanto a formação que é dada para atuar no ensino superior em termos de aquisição, crítica e produção de conhecimentos, em suas dimensões específicas e pedagógica. A natureza da formação nos dois casos é diferente porque se trata de educar seres humanos em diferentes estágios de desenvolvimento, com características bastante diferenciadas, sendo que, quanto mais o educando se distancia do educador, em termos de estágio de desenvolvimento, tanto mais difícil se torna compreendê-lo para promover o seu crescimento. Portanto, a formação para a atuação na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental deverá ser em termos de rigor e aprofundamento, equiparável àquela preparação para atuar em níveis mais elevados de ensino. A despeito das dificuldades provocadas pelas diferenças regionais brasileiras que, em certos locais, ainda admitem a atuação de leigos, consideramos a concessão equivocada e prejudicial ao sistema de ensino. A criação dos institutos superiores de educação representa uma regressão na formação docente, por criar um novo espaço fora do ambiente universitário para a formação profissional, punindo mais uma vez a educação infantil e as séries iniciais do ensino fundamental. Sendo a pedagogia um campo de conhecimentos multirreferencial, que, centrando-se na educação, tem diferentes dimensões, o contato com diferentes unidades que privilegiam campos de conhecimentos que mantêm afinidade com a educação, é extremamente necessário; o isolamento em ambiente não universitário, sem dúvida compromete a 119 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira qualidade da formação de um profissional cuja atuação na sociedade é extremamente relevante para o desenvolvimento humano, particularmente tratando-se da responsabilidade de reverter o quadro de desigualdades raciais que se apresenta na educação e cujos efeitos são mais graves no início da escolarização, sendo justamente, nos níveis de ensino em que a população negra é mais penalizada, que se mantêm os níveis mínimos de formação de modo paralelo à criação de espaços de formação também precários em se tratando também do nível superior. A necessidade de que toda a formação para o exercício docente seja feita em nível superior é apontada por Piaget do qual transcrevo alguns parágrafos: [...] há ainda numerosos países, onde a preparação de mestres não tem qualquer relação com as faculdades universitárias: só os mestres secundários se formam na universidade e somente no que se refere às matérias a ensinar, sendo a preparação pedagógica nula ou reduzida a um mínimum, enquanto os mestres primários são em parte preparados nas escolas normais, sem vinculação direta com a pesquisa universitária [...] (PIAGET, 1972 p. 28). Em outra obra Piaget, referindo-se aos problemas gerais do ensino, escreve: [...] o primeiro relaciona-se com a formação de professores, o que constitui realmente a questão primordial de todas as reformas pedagógicas em perspectiva, pois enquanto não for a mesma resolvida de forma satisfatória, será totalmente inútil organizar belos programas ou construir belas teorias a respeito do que deveria ser realizado. Ora, esse assunto apresenta dois aspectos: em primeiro lugar existe o problema social de valorização ou de revalorização do corpo docente primário e secundário, a cujos serviços não é atribuído o devido valor pela opinião pública, donde o desinteresse e a penúria que se apoderam dessas profissões e que 120 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... constituem um dos maiores perigos para o progresso e mesmo para a sobrevivência de nossas civilizações doentes (PIAGET, 1974, p. 14). Ainda continuando com Piaget, temos: [...] uma formação universitária completa para os mestres de todos os níveis (pois quanto mais jovens são os alunos, maiores dificuldades assume o ensino, se levado a sério) a semelhança da formação dos médicos etc. A preparação universitária completa é sobretudo necessária para a formação psicológica satisfatória, e isto para os futuros mestres, tanto no nível secundário quanto no primário (PIAGET, 1974, p. 29). Ainda o item II do artigo 61 penaliza a educação básica, criando a possibilidade de uma formação pedagógica para portadores de diploma de outros cursos superiores que não fizeram opção inicial pela profissão docente. Tal abertura apresenta dois graves problemas. Permite a criticada justaposição no relacionamento teoria-prática na formação profissional e admite o magistério como atividade profissional de reserva, para aqueles que, tendo inicialmente feito opção por outra atividade que não a educação, a utilizem como reserva para uma possível atuação, no caso de fracasso na opção profissional priorizada. O item III, prevendo a formação continuada em todos os níveis, é um aspecto positivo da questão, se realmente for concretizado. O artigo 64 faz referência ao curso de pedagogia, que tem sido objeto de discussões, cuja formação caracterizada pela multihabilitação está a exigir rigorosas reflexões e propostas de reformulação. O artigo 67, referindo-se a aspetos relativos a valorização dos profissionais da educação, destaca a formação continuada, possibilitando o afastamento periódico com remuneração, o que só excepcionalmente acontece na escola básica, sendo apenas privilégio das instituições públicas 121 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira de ensino superior e das escolas básicas federais. O piso salarial permanece sem nenhuma medida objetiva, bem como a formação continuada incluída na jornada de trabalho que acontece com uma certa freqüência com a determinação de uma carga horária extremamente reduzida e só excepcionalmente com determinação de períodos que atendem aos propósitos declarados, mas, em alguns casos, sem a necessária administração e aproveitamento do tempo determinado para este tipo de formação. Embora não seja nosso propósito fazer uma análise de outros documentos oficiais que tratam da questão considerada, faremos algumas considerações sobre a formação dos profissionais da educação contida no Programa Universidade para Todos (Prouni), em vigor no ano em curso através da Medida Provisória n. 13, de 10 de setembro de 2004. Através desta medida provisória, a escola básica pública é novamente punida com a possibilidade de formação dos seus profissionais em curso de licenciatura e em pedagogia em instituições particulares. Os prejuízos desta formação aqui considerados são os seguintes: Prováveis deficiências na formação do profissional como pesquisador. Sabe-se que as instituições particulares de ensino superior, em sua grande maioria, principalmente as isoladas, não incluem a pesquisa na carga horária dos professores, tal como acontece nas instituições públicas. Esta situação terá certamente seus efeitos negativos na formação desses profissionais oriundos da escola pública, principalmente em relação à sua formação como pesquisadores, que ficará comprometida, além dos prejuízos por terem professores que não têm o necessário apoio institucional para a realização de pesquisas que aprimorariam a sua atuação docente. Os aspectos negativos aqui salientados, se não inviabilizam, pelo menos prejudicam extremamente a concretização da proposta de formação discutida neste estudo. 122 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... Aos aspectos destacados, acrescenta-se o problema que ocorreu nas últimas décadas de desmantelamento das universidades públicas e do estímulo às instituições privadas por meio de autorizações para funcionamento, culminando em 2004 com o Prouni, que, através da isenção de impostos a instituições particulares, destina indiretamente verbas públicas para atender a interesses privados em face aos altos índices de inadimplência no ensino superior particular que o ameaçam, em detrimento das instituições públicas, que, apesar de todo o descaso de parte do poder constituído nos últimos anos, mantêm um ensino de qualidade. Minha proposta é de que seja cessada a isenção concedida às instituições privadas e que os recursos coletados sejam investidos na expansão e melhoria das universidades públicas. A formação dos profissionais da educação para toda a escola básica deveria fazer-se em universidades, em nível de graduação, com ênfase no ensino e na pesquisa, com garantia de formação continuada em serviço e possibilidade de real afastamento periódico remunerado para este tipo de formação. Precedendo tal medida, teve-se a alteração do artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional pela Lei n. 10.639/03, passando referido artigo a ter a seguinte redação: Artigo 26 A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. 123 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira § 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura AfroBrasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” Esta legislação, acompanhada das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, é decisiva em relação à questão tratada nesta parte deste artigo. Entretanto, a trajetória entre a legislação vigente e o cotidiano escolar, que vai decidir sobre a sua concretização, exige o estabelecimento de ousadas políticas governamentais na formação continuada de profissionais da educação, as quais têm sido, extremamente tímidas, com algumas iniciativas quantitativamente insuficientes, ainda que de qualidade considerável. Tal qual o Penesb, que, antecipando-se à legislação apresentada, investe há 13 anos na referida formação, há núcleos de estudos afro-brasileiros (Neabs), no âmibito de algumas universidades, que se têm empenhado na formação de profissionais da educação para a diversidade racial. Entretanto, é preciso garantir a todos os profissionais que atuam na educação brasileira as condições intelectuais e afetivas necessárias à implementação da legislação vigente, tarefa esta que me parece estar em fase bastante incipiente. O desafio da formação continuada de docentes para a educação para as relações étnico-raciais Para que a proposta de ampliação de uma educação para as relações étnico-raciais se efetive, torna-se indispensável garantir a todos os profissionais da educação em exercício o acesso aos conhecimentos sobre a população negra e sobre os aspectos pedagógicos inerentes à questão. Para isso, todas as propostas de formação, quer 124 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... seja inicial, quer seja continuada, disponíveis no momento são pelo menos quantitativamente insuficientes. A exemplo, o município do Rio de Janeiro, dispõe na rede 40.000 professores, o que nem os cursos presenciais e nem a distância dão conta. Resta-nos, e esta medida é de suma importância, criar e consolidar um sistema permanente de formação continuada em serviço, incorporando à jornada de trabalho dos profissionais da educação, uma carga horária significativa, não só para a formação em serviço, priorizando neste momento a formação para as relações étnico-raciais, mas também para as atividades de pesquisa, extensão e de planejamento. Para isto, há que se alterar o Plano Nacional de Educação, que determina apenas 20% a 25% da carga horária do professor para a atividade de planejamento, reduzindo a função docente a uma rotina que não lhe permite exercer a sua profissão com dignidade e autonomia. Por outro lado, a alteração da legislação recente, que determina o piso salarial para 40 horas de pouco mais de R$ 900,00 (novecentos reais) se faz também urgente, porque tal decisão elimina toda e qualquer possibilidade de fazer do magistério uma profissão que cumpra o seu papel social. A despeito de tais condições, o Penesb tem hoje sob sua responsabilidade a realização de cursos presenciais e semipresenciais, bem como, orientação de graduandos em processo de iniciação científica, e a previsão de um seminário e o desenvolvimento das pesquisas apresentadas anteriormente, uma delas com financiamento da Faperj. Entende-se, que a proposta de formação continuada no nível de escola não invalida as outras alternativas que vêm sendo realizadas pelo Penesb e por outros Neabs, mas as complementa. Em todas elas, a presença dos Neabs se faz necessária, ora direta, ora indiretamente, sob a forma de assessoramento aos órgãos intermediários das secretarias municipais e estaduais, que se propõe sejam os responsáveis pela mediação entre a produção acadêmica e as escolas. 125 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Outra medida que se propõe seja tomada, principalmente nos grandes centros urbanos em que a presença de docentes com formação a nível de pós-graduação stricto sensu se faz sentir de modo expressivo nas redes federais, estaduais e municipais da escola básica, é o levantamento do pessoal com tal formação e o seu aproveitamento nas equipes que lideram a formação continuada e o estímulo à pesquisa e à participação em eventos, a fim de utilizar e valorizar o potencial humano disponível na rede. 126 A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo... Bibliografia ABONG. Racismo no Brasil. São Paulo: Peiropólis, 2002. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988 BRASIL. Lei n. 10.639/03. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 1996 CONSELHO NACIONAL DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. 2004 GUIMARÃES, E. A escola sitiada: novos padrões de relacionamento entre o meio urbano e a escola pública na cidade do Rio de Janeiro. Contemporaneidade e educação. Ano II, n. 1, maio 97. LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994. MORAES, C. S. V. A normatização da pobreza: crianças abandonadas e crianças infratoras. Revista Brasileira de Educação, set./out./nov./dez.,n. 15, 500 anos Imagens e Vozes da Educação OLIVEIRA, I. Desigualdades raciais: construções da infância e da juventude. Niterói: Intertexto, 1999. PATTO, M. H. S. A família pobre e a escola pública: anotações sobre um desencontro. Psicologia USP, São Paulo, 3 (1/2), p. 107-121, 1992. PIAGET, J. 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Neste capítulo, serão abordados alguns aspectos das relações raciais nas escolas do estado de Mato Grosso, tomando como base os resultados de pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (Nepre), da Universidade Federal de Mato Grosso. Nesse Núcleo, foram defendidas, entre 2002 e 2008, 20 dissertações de mestrado, no âmbito do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, o que nos dá um relativo acúmulo de conhecimentos sobre o tema. Vale ressaltar que essa linha de pesquisa inaugurou-se com uma investigação sobre trajetórias de professoras não brancas, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso (Fapemat), na qual o conjunto dos depoimentos obtidos retratava os processos discriminatórios que professoras não brancas (na sua maioria negras) enfrentaram durante toda sua vida, em especial na escola. Os resultados dessa pesquisa sugeriam que, mais que a condição social, eram motivos de discriminação e 129 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira estigmatização a cor da pele, os traços fisionômicos, o tipo de cabelo, enfim o fenótipo da pessoa. Foi possível perceber que as marcas da discriminação permaneciam durante toda a vida, mesmo as professoras tendo atingido a vida adulta. Com base nessa constatação decidimos incorporar aos nossos estudos os escolares negros, crianças e jovens. As desigualdades raciais na educação brasileira são significativas. Não é casual que os indicadores sociais apontem grandes discrepâncias entre a realização escolar de alunos brancos e alunos negros. Negros não só têm que lidar muitas vezes com piores condições econômicas e sociais, mas também com atitudes e processos fortemente discriminatórios. Henriques (2001), estudando a incidência da pobreza com base em um recorte que contemplava, simultaneamente, raça, gênero e faixa de idade dos indivíduos, identificou uma nítida hierarquia de discriminação no interior da pobreza, na qual os mais pobres dos pobres são homens e mulheres negros entre 0 e 14 anos de idade. Em todos esses grupos, a incidência da pobreza é superior a 60%. No outro extremo, os relativamente menos afetados entre os pobres, são todos brancos adultos. Portanto, a cor da pele está fortemente associada à probabilidade de se encontrar indivíduos no estágio que representa a mais drástica forma de privação material: a pobreza. A “probabilidade de um branco ser pobre situa-se em torno de 22%, mas se o indivíduo é negro, a probabilidade é mais que o dobro – 48%” (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 28). Diversos estudos apontam para o imenso fosso entre os níveis educacionais alcançados por brancos e negros no Brasil. Em todos os níveis de ensino e em todas as faixas de renda, os brancos alcançam mais anos de estudo e realizam uma trajetória escolar mais homogênea. Contudo, só a pobreza não explica as desigualdades raciais. Parte dessa desigualdade escolar entre os dois grupos só pode ser 130 Educação e relações raciais em Mato Grosso explicada pela existência de mecanismos intra-escolares de discriminação que penalizam crianças e jovens negros, desestimulando-os a permanecer na escola ou a obter um rendimento adequado para seu sucesso escolar. Outros estudos enfatizam o despreparo dos professores, e demais profissionais da educação, para trabalhar, do ponto de vista pedagógico, com situações de racismo declarado que ocorrem freqüentemente no cotidiano escolar. Diversos aspectos parecem estar relacionados ao fato de os negros não estarem conseguindo ascender socialmente através dos níveis de escolarização na mesma proporção que os brancos. Algumas pesquisas mostram, por exemplo, que o tipo de escola que a população negra freqüenta tem menor qualidade de ensino que a escola freqüentada pelos brancos (ROSENBERG, 1987; HASENBALG, 1987). Pesquisas realizadas com estudantes negros demonstram que estes desenvolvem uma auto-imagem negativa, o que chegaria a comprometer o próprio desempenho escolar. Outras pesquisas revelam a existência de preconceito racial nas escolas contra o aluno negro, tanto por parte de professores como de seus colegas brancos (CAVALLEIRO, 2004; PINHO, 2004; JESUS, 2005; SANTOS, 2005). Discriminação também observada nos conteúdos dos textos dos livros didáticos (SILVA, 1995; COSTA, 2005). É evidente que existem condições hostis aos alunos negros nas escolas brasileiras. Essas condições atuam permanentemente para o agravamento das diferenças de desempenho escolar desse segmento. Um estudo realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2003, que observou a evolução dos resultados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) no período de 1995 a 2001, mostra que a média obtida pelos alunos brancos da 4ª série do ensino fundamental em Língua Portuguesa, em 1995, era de 193,4; enquanto, dos alunos negros era de 173,8. Naquele ano, a diferença era de 19,6 pontos na escala que vai de 125 a 425. Já em 2001, a média entre os 131 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira brancos foi de 174 e a dos negros de 147,9, uma diferença de 26,1 pontos. Segundo o então diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, Carlos Henrique Araújo, esse resultado revelava que havia um aprofundamento da desigualdade nos últimos anos entre negros e brancos. Ele apresentou duas hipóteses que podem ajudar a entender por que ocorre essa diferença no aproveitamento escolar. A primeira, diz respeito à entrada mais tardia dos negros na economia. Isso se reflete em pais e mães com menor escolaridade, por exemplo. Uma segunda explicação, que não é excludente em relação à primeira, está relacionada ao racismo difuso, ainda presente na sociedade brasileira: “Uma atitude racista, mesmo que inconsciente, afeta a auto-estima dos alunos e reflete-se no desempenho deles. Dentro do sistema de ensino há um aprofundamento da desigualdade” (ARAÚJO, 2004). A segunda hipótese apontada por ele reafirma os estudos que enfatizam a importância de uma formação do professor que abranja a discussão sobre as diferenças raciais e étnicas na escola. Somos a segunda maior nação negra no mundo depois da Nigéria. Apesar disso, os brasileiros negros são obrigados a conviver ao longo de suas vidas com inúmeros momentos de preconceito racial e de discriminação. Além do mais, o Brasil destaca-se no cenário internacional como uma sociedade marcada pelos piores índices de desigualdades sociais, Muitas dessas desigualdades são atribuídas ao racismo internalizado nas nossas relações sociais. Por esse motivo, nos referimos à expressão relações raciais quando queremos frisar que são nessas relações onde podem acontecer o racismo, a discriminação e a conseqüente desigualdade racial. Negros e indígenas, quando se relacionam com outras pessoas de seus próprios grupos raciais, não sofrem discriminação, possibilidade que surge quando eles têm contato, quando se relacionam com pessoas de outros grupos, principalmente com indivíduos do grupo branco. 132 Educação e relações raciais em Mato Grosso Em todas as sociedades humanas existe algum tipo de preconceito e discriminação contra pessoas ou grupos “diferentes” da maioria, ou que se consideram maioria. Isto é, as pessoas costumam considerar “feios” ou “sujos”, ou qualquer outro atributo negativo, a todos aqueles que são “diferentes”, que não pertencem a seu grupo (ELIAS, 2000). Todavia, em nosso país, a cor da pele ou os traços fenotípicos, que também englobam o tipo de cabelo, os traços fisionômicos, etc., muitas vezes são tidos como diferentes e inferiores. Inferiores na inteligência, inferiores nos valores morais. Norbert Elias (2000) afirma que se inscreviam num determinado tipo de relação de poder as relações entre estabelecidos, os que se consideravam maioria, e os outsiders, os que eram considerados minoria, diferentes, inferiores, etc. Nesse estudo, ele expõe detalhadamente um processo específico de construção de uma hegemonia cultural com o conseqüente estabelecimento de um imaginário social que penalizava constante e definitivamente o grupo outsider. Parece-me ser válido buscar alguns elementos da construção do imaginário social brasileiro referente à população negra. De que maneiras e em que momento se estabeleceu essa hegemonia cultural? Penso que a escola, mas não só ela, tenha sido uma agência importante nessa construção, que conferiu imagens tão negativas aos negros. Quais são dados que as pesquisas vêm apresentando desde a década de 80 do século passado? Algumas mostram, por exemplo, que o tipo de escola freqüentada pela população negra tem menor qualidade de ensino que a escola freqüentada pelos brancos (HaseNbalg, 1987; RoseNberg; 1987). Como já mencionado, estudos realizados com estudantes negros evidenciam que estes desenvolvem uma auto-imagem negativa, o que chegaria a comprometer o próprio desempenho escolar. Outras investigações revelam a existência de preconceito racial nas escolas contra o aluno negro, tanto por parte de professores como 133 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira de seus colegas brancos. Em texto mais recente, Osório e Soares (2005) acompanham uma coorte de brasileiros, brancos e negros, nascidos em 1980, desde a data de seu nascimento até o ano de 2003, quando encontraram que, enquanto 70% dos negros, ainda na escola, cursavam o ensino básico regular ou supletivo, 66% dos brancos estavam cursando o ensino superior. Os autores concluem: Os indicadores de educação, em conjunto, nos permitiram documentar um quadro preocupante: além de serem prejudicados por terem uma origem mais humilde, o que dificulta o acesso e a permanência na escola, os negros são prejudicados dentro do sistema de ensino, que se mostra incapaz de mantê-los e de compensar eventuais desigualdades que impeçam sua boa progressão educacional (OSÓRIO e SOARES, 2005, p. 34, grifos meus). A literatura produzida até esse momento sugere que existem mecanismos intra-escolares de discriminação que penalizam crianças e jovens negros. Quais seriam eles? Entendo que sejam processos sociais produzidos sistematicamente no espaço escolar que têm como características conferir invisibilidade às pessoas negras, sejam crianças, jovens, sejam mesmo professores, assim como negar-lhes humanidade. Qual sentido estou atribuindo ao termo “invisibilidade”? Significa não enxergar as características pessoais desses alunos, principalmente as características pessoais positivas. Estou englobando na expressão “negar-lhes humanidade”, ou a “negação da humanidade da pessoa negra”, seja criança, jovem ou adulta, a não aceitação dos sentimentos de indignação, de dor ou de humilhação desses alunos; a não aceitação de suas capacidades intelectuais. A descrença em sua capacidade de realizar bem uma tarefa que exija competência cognitiva está englobada, a meu ver, tanto no processo de invisibilidade dos alunos negros como na negação da humanidade da pessoa negra. 134 Educação e relações raciais em Mato Grosso Há uma escassa literatura sobre as relações que ocorrem na escola entre indígenas e não indígenas, e a pouca literatura disponível informa sobre existência de discriminação quando crianças ou jovens indígenas saem de suas aldeias para estudar em escolas públicas urbanas. Segundo esses trabalhos, eles são bastante discriminados por professores e alunos não indígenas. Em Mato Grosso, os primeiros anos de escolarização dessas crianças são realizados nas próprias comunidades, em escolas cujos professores são, preferencialmente, da própria etnia. Alguns grupos têm como estratégia enviar seus filhos às cidades mais próximas para que dêem prosseguimento aos estudos, com o objetivo de que as novas gerações possam se apropriar dos conhecimentos e das tecnologias dos não indígenas (do “homem branco”). O contato interétnico entre grupos tão diferentes fatalmente produz choques culturais que ocasionam prejuízos para o lado mais “frágil” da relação: os jovens indígenas e suas comunidades (REZENDE, 2003; TORRES, 2003). Esses dois estudos (aqui citados) trazem um número impressionante de exemplos de discriminação e racismo contra crianças e jovens pertencentes a comunidades indígenas. A discriminação contra negros foi também observada nos conteúdos dos textos e nas imagens dos livros didáticos (SILVA, 1995; COSTA, 2003). Apesar de já ter havido um avanço nos últimos anos, a maioria dessas obras continua conferindo um lugar inferior ou negativo a negros e a indígenas. Não é de se espantar que as desigualdades na educação entre brancos e não brancos permaneçam iguais em todos os níveis, ao longo dos anos. Quanto a professores de escolas públicas de Mato Grosso, de maneira geral eles acreditam que tratam todos os seus alunos de forma igual e têm muita resistência de se aperceberem de situações preconceituosas ou discriminatórias (COSTA, 2004; SANTOS, 2005; GONÇALVES, 2006). 135 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Muitas vezes, quando emitem opiniões ou quando justificam o tratamento mais rigoroso destinado aos alunos negros, recorrem aos velhos pressupostos das teorias racistas. É como se estivéssemos ouvindo afirmações de Nina Rodrigues (1930, 1976) produzidas em 1906, ou de Afrânio Peixoto, publicadas em 1914: “Esses meninos não servem para estudar, só servem para trabalhos manuais” (sic), palavras de uma professora ao comentar sobre o suposto desempenho escolar de seus alunos negros (GONÇALVES, 2006). Investigando as percepções de professores de educação física sobre esses estudantes, Pinho (2004) encontrou juízos semelhantes, julgamentos muito negativos sobre seus corpos (negros) e, em especial, julgamentos morais francamente negativos a respeito das alunas negras. Aqui, também, esses professores não se distanciam muito das pregações dos eugenistas, que acreditavam serem os negros dotados de maior vigor sexual, de uma luxúria inata e transbordante. O futuro do Brasil pertence à raça branca. Vivem principalmente pelos sentidos, os mulatos. As mulatinhas constituem uma espécie amorosa talvez sem par no mundo. A atração que exercem, sendo encantadoras, exige certa cautela (PEIXOTO, 1917, apud CUNHA, 2002, p. 268, grifos meus). É espantoso verificar que professores não tenham percepção do tratamento diferente que dispensam aos seus alunos de pele mais escura, com os quais são mais exigentes, mais rigorosos, não reconhecendo os progressos deles. Pelo contrário, estereotipam, negativamente, seu desempenho escolar, ou o desempenho esportivo, no caso dos professores de educação física. Evitam, professores e professoras, trocas afetivas com crianças negras, sejam verbais, como elogios, palavras carinhosas, etc., sejam físicas, chegando mesmo a rechaçar o contato corporal com elas. 136 Educação e relações raciais em Mato Grosso Professores não percebem, não enxergam quando seus alunos negros são insultados ou sofrem agressões físicas por parte dos alunos de pele mais clara. Quando as vítimas denunciam os maus-tratos, é comum uma destas atitudes por parte do mestre: recusar-se a punir o responsável e jogar a culpa na vítima ou considerar que se trata de “brincadeira de criança”, ignorando o acontecido. É muito forte, entre os professores, a crença na democracia racial. É como se dissessem: “No Brasil, não existe preconceito racial; eu trato todos os meus alunos da mesma maneira. Se for mais duro com alguns é porque eles são preguiçosos, imaturos, não têm aptidão para o estudo, suas famílias são desestruturadas ou não os apóiam nos estudos.” Acontece que todos esses juízos e atitudes foram destinados a alunos negros. Quanto aos alunos brancos, às críticas ou tratamentos rigorosos neles aplicados, o professor imediatamente acrescentava algumas palavras de estímulo. Finalmente, quando indagados sobre o motivo de permitirem (ou se manterem omissos) diante dos freqüentes episódios de insultos raciais nas relações interpessoais entre alunos, os professores muitas vezes se referiram à dificuldade de exercer uma classificação racial, uma vez que “todos eles são negros ou quase negros”, (GONÇALVES, 2006). É fato verificável, empiricamente, que a sociedade brasileira é uma sociedade multirracial. Temos uma “linha de cor” que vai da mais clara à mais escura, tanto mais próxima ou mais distante do branco for. Não é de hoje que a pele da população brasileira tem muitas cores. Não é de hoje, portanto, que as denominações de cor provocam distinções. No Brasil, do período colonial até o Império, quando a “cor” das pessoas aparecia nos registros de nascimento não se fazia, necessariamente, referência à sua origem racial ou à maior ou menor intensidade de pigmentação de melanina na pele. Na verdade, a denomina137 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira ção de cor referia-se ao lugar social adquirido ou conquistado pela pessoa. Cativos eram denominados pretos ou negros; homens e mulheres livres eram automaticamente identificados como pardos, escuros ou morenos (MATTOS, 1988). Muita gente não gosta dos termos “preto” e “negro” por serem utilizados como insulto em situações de relacionamento social conflituoso ou, então, como uma forma de inferiorizar alguém (GUIMARÃES, 2002). O que foi possível perceber nas pesquisas antes mencionadas foi a ocorrência de processos já analisados em outros estudos (PETRUCCELI, 1998; GUIMARÃES, 2002). Quanto mais próximo o indivíduo se encontra do extremo branco mais se percebe legitimado para utilizar insultos raciais contra outros indivíduos de pele mais escura. Ao contrário do que possa parecer, não são discriminados somente crianças e jovens negros e pobres. É muito freqüente a opinião de que em nossa sociedade haveria preconceito contra o pobre e não contra o negro. Como este em geral é pobre, seria discriminado por seu lugar social e não por sua cor ou raça, consenso firmado no Brasil desde os anos 1940. Podem-se encontrar no pensamento social brasileiro diversas versões da teoria que defende a idéia de ser o preconceito de classe mais forte que o racial. Quem adotava essa opinião esperava que o futuro desenvolvimento econômico do país atenuasse as diferenças entre os grupos raciais e que o incipiente racismo aqui existente desaparecesse, posição que se constitui num dos pilares da ideologia da democracia racial. Os defensores dessa tese consideram que pretos e pardos estão em situação mais desfavorável devido à herança do período da escravidão. Não teriam tido tempo, ainda, para inserir-se, adequadamente, à sociedade de classes. No entanto, como afirmado anteriormente, os estudos mais recentes, de cunho estatístico, desmontam completamente essa crença. Retornando à análise das atitudes de professores com relação a seus alunos negros, pode ser verificado que 138 Educação e relações raciais em Mato Grosso não há correlação entre posição socioeconômica da criança negra e maior proteção contra atitudes racistas. Isto é, ser de classe média não a livra de ser discriminada por seu professor ou por seus colegas. Pelo que foi possível perceber, a conclusão anterior é validada independentemente do tipo de escola pública – mais equipada, menos equipada – e da origem socioeconômica do alunado, cujas famílias são igualmente atingidas, sendo freqüentemente estereotipadas como anômicas, desestruturadas e outros epítetos que poderíamos chamar de uma visão patológica, por parte da escola, referente às famílias negras em geral. Praticamente todos os estudos realizados no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação/ UFMT recolheram informações sobre as percepções negativas que os professores têm sobre esses grupos familiares. Vale ressaltar que a intenção não era buscar as opiniões dos professores sobre esse aspecto, mas eles, sem ser interrogados direta ou indiretamente, manifestavam tais apreciações. Além de preconceitos firmemente arraigados e um menor sentido de cuidado com os alunos não brancos, chama a atenção a despreocupação com as conseqüências que podem advir das interações negativas entre professores e alunos negros ou entre os colegas brancos e estes últimos. Parece-me que crianças e jovens negros, na escola, freqüentemente estão em situação de desamparo quando se encontram com situações de preconceito ou discriminação. Como afirmado anteriormente, na maior parte das vezes, os professores não dão atenção às reclamações dos ofendidos nem procuram intervir no sentido de mostrar ao discriminador que sua atitude é moralmente condenável. Mas não parece ser regra a aplicação de algum tipo de sanção àqueles alunos ou professores que manifestam comportamentos racistas na escola. Muitas vezes, as pessoas se perguntam se não é um exagero falar de negros versus brancos. Na opinião delas, nem todo branco é racista. Não se trata de individualizar, 139 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira mas de procurar entender que, ao vivermos em uma sociedade como a brasileira, terminamos por nos “impregnar” de idéias e sentimentos negativos em relação aos grupos minoritários. É por isso que, quando se fala em relações raciais no Brasil, menciona-se o ideal, ou ideologia, do “branqueamento”, que aqui contribuiu para a legitimação do sentimento de branquitude que permeia as relações sociais entre brancos e pretos e que nos faz pensar ser positivo tudo o que se refere socialmente a um imaginário branco, europeu, e como negativo tudo o que diz respeito ao que imaginamos ser proveniente de negros ou indígenas (BENTO, 2002). Muitas vezes, é o próprio professor/ professora que “dá a pauta” do tratamento a ser dispensado às crianças de pele mais escura, que invariavelmente acabam sendo ainda mais maltratadas pelos colegas nas turmas em que os professores são particularmente hostis com eles. Vale assinalar que nem todos os professores têm esse tipo de atitude. Alguns embora não sabendo lidar muito bem com a situação de preconceito e racismo, ou reconhecendo que lhes falta formação adequada para lidar com elas, procuram intervir da melhor maneira possível, tentando proteger o/a agredido/a. É de se ressaltar o que temos encontrado em termos das atitudes de crianças não negras em relação a seus colegas negros. Crianças possuem menos freios; são mais verdadeiras no que dizem. Isto é, dizem o que pensam, ao contrário dos adultos, que já internalizaram os códigos e as proibições sociais. No caso específico que estamos discutindo, adultos já incorporaram a “etiqueta das relações raciais” existente na sociedade brasileira; crianças, não. Por esse motivo, suas interações com os colegas negros, quase despojadas das coerções sociais, demonstram que o racismo se reatualiza constantemente. É como se, a cada dia, crescesse um grupo de pessoas que se arvoram, que acreditam ter o direito de insultar e constranger outras pessoas só porque têm a pele mais clara que a delas, como 140 Educação e relações raciais em Mato Grosso se a cor da pele se constituísse em um privilégio, no caso das crianças brancas. Em diferentes pesquisas constatamos atitudes hostis e desrespeitosas de parte de alunos brancos para com os alunos negros (PINHO, 2004; SANTOS, 2005; JESUS, 2005; GONÇALVES, 2006). Nesses estudos, foi possível perceber que são muito comuns interações agressivas e insultuosas contra crianças negras, em especial as do sexo feminino. Se os insultos dirigidos aos meninos referem-se sempre a adjetivos negativos à sua cor de pele, as meninas são em função de características relativas à sua aparência, o tipo de cabelo, o formato dos lábios ou do nariz, etc. Mesmo quando existem relações cordiais, qualquer ocasião de conflito é motivo para a criança de pele mais clara utilizar ultrajes raciais contra o/a colega mais escuro/a. Essas situações são tão dolorosas para as crianças negras que ocorrem casos de abandono ou de troca de escola com o fim de evitar o contato com os agressores. Jesus (2005), que investigou alunos negros do Ensino Médio da cidade de Tapurah, encontrou as memórias das discriminações raciais sofridas por seus depoentes. Os depoimentos obtidos demonstram claramente que a injúria racial com freqüência dirigida a crianças negras cria marcas indeléveis e, muitas vezes, compromete o futuro escolar da vítima da discriminação. Não é casual que os indicadores sociais apontem um fosso significativo entre a realização escolar de brancos e negros. Essas memórias parecem permanecer durante toda a vida. Quando pesquisadas as trajetórias de alunos negros de cursos de graduação da UFMT, verificou-se que muitos deles lembravam-se de episódios de discriminação acontecidos ainda na escola primária. Os estigmas que lhes foram atribuídos na infância ou na juventude só não os fizeram desistir dos estudos porque contaram com apoios diversos, de familiares e amigos, que serviram como um contraestigma a contrabalançar o dano causado por repetidas exposições a situações de preconceito (AMORIM, 2004; SANTOS, 2004; CASTRO, 2005). 141 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Nesse ponto chegamos na última parte desta discussão. Os estudos realizados no Nepre e aqui apresentados brevemente indicam alguns problemas, a permanência de um ideário racista, produzido ainda no século XIX, definidor das relações entre brancos e negros na sociedade brasileira. Aparentemente, esse ideário atinge fortemente as escolas. Pelo fato de não ser discutida, no espaço escolar, a existência do preconceito e da discriminação, esses problemas continuam existindo e se reproduzindo constantemente, através da quase autorização para que crianças e jovens brancos ou quase brancos maltratem de diferentes formas seus colegas negros. O aluno, em especial o branco, ao qual não foram passadas noções de limites nem foi ensinado o dever de respeitar o outro, vive na escola com num caldo de cultura a propiciar a introjeção desse ideário racista. Além disso, a permanência do professor no estado de ignorância quanto à sua disposição cotidiana, por mais inconsciente que seja, de agir de forma discriminatória contra alunos negros, seguramente não contribui para a mudança de atitudes, concorrendo, sim, para o fracasso escolar desse alunado. Esses dados impõem-nos a necessidade de intervir de alguma maneira. Sabemos da importância de se trazer essa discussão para a formação, especialmente a inicial, de professores, a qual poderia, pelo menos, auxiliá-los a conhecer o papel da população negra, africanos e seus descendentes, na construção da sociedade brasileira. É isso que determina a Lei n. 10.639/03 ao acrescentar ao Art. 26 da LDBEN a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo de Ensino Fundamental e Médio. É importante realizar esse resgate histórico, é importante também colocar em discussão as possibilidades de uma educação anti-racista. Possivelmente essa formação auxilie o futuro professor a perceber seu próprio preconceito e a evitar situações de discriminação racial de que ele seja partícipe ou que ocorram nas interações entre os alunos. 142 Educação e relações raciais em Mato Grosso Não obstante, minha prática, tanto na formação de professores quanto na pesquisa, indica não ser suficiente ministrar conteúdos, por mais que sua apresentação ocorra envolta em inovações ou artifícios pedagógicos. Uma educação anti-racista precisa, de alguma maneira, trabalhar os sentimentos. O racismo não é um ideário que se sustente racionalmente. Ele se alimenta dos sentimentos, muitas vezes inconscientes. Racismo e preconceito racial são modos negativos de ver pessoas ou grupos raciais que possuem características físicas diferentes daquelas dos que se consideram maioria ou que se consideram “melhores”, “superiores”. Característico da sociedade brasileira é o preconceito de “marca”, cunhado por Oracy Nogueira (1998), para quem quanto mais o fenótipo, a aparência for negra, maior será o preconceito, o que se dá contrariamente ao que ocorre nos Estados Unidos, onde o preconceito é de origem: se o indivíduo tem um ancestral negro conhecido, por mais remota que seja essa ancestralidade, ele é considerado negro. Ficou bem evidente, em todas as pesquisas aqui expostas, que quanto mais escura era a cor da pele do aluno, mais ele estava exposto a situações de discriminação velada ou explícita. O racismo e o preconceito nem sempre têm explicações racionais. São sentimentos construídos ao longo da vida, através do convívio com outras pessoas racistas ou preconceituosas e que transmitem essas idéias pejorativas sem nenhuma comprovação, apenas insistindo nos julgamentos negativos que eles têm sobre os outros. É o caso dos professores que reproduzem pressupostos racistas construídos no século XIX, repetindo esses preconceitos automaticamente, sem se darem conta de que não têm nenhuma comprovação empírica dos juízos que emitem. Em síntese, faz-se necessário colocar em discussão as relações raciais na escola, o que não é, nem será, um trabalho fácil. Pelo fato de nós, professores brasileiros, historicamente termos uma formação, um ethos universalista, 143 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira que nos faz acreditar que tratamos a todos os alunos da mesma maneira, temos dificuldade de aceitar discussões que promovam a diferença. Quando muito, aceitamos que existem diferenças de classe social. A meu ver, o trabalho de desnaturalização do preconceito exige um investimento maciço na formação dos professores e um, ainda distante, controle social sobre as práticas escolares. 144 Educação e relações raciais em Mato Grosso Referências AMORIM, A. M. da C. O. 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A seguir está a discussão sobre desigualdades raciais no Brasil, no plano estrutural e no plano simbólico, que orientam as proposições desenvolvidas na formação de professores, cotejando com resultados de investigações realizadas por pesquisadores do NeabUFPR. Depreende-se dessa discussão a análise das políticas de promoção de igualdade racial, em especial as políticas afirmativas e seu impacto sobre o debate público brasileiro. Conclui-se com uma análise crítica que aponta as faltas e quebras do processo levado a termo. 149 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira 1 Um movimento inspirado na Negritude e no Pan-africanismo O processo de formação sobre História e Cultura Afrobrasileiras e sobre Educação das Relações Étnico-raciais tem alguns marcos que estão sempre em pauta, a aprovação da Lei 10.639 de 2003 e o Parecer 03 de 2004 do Conselho Nacional de Educação. No entanto, a aprovação de tais propostas em instituições importantes do Brasil contemporâneo tem raízes bastante anteriores. Poderia ser realizada uma genealogia das proposições que atravessasse as formulações dos movimentos negros(as) ao longo do século XX. Dados os objetivos deste texto, discutirei o processo a partir da abertura política e fim da ditadura militar. O final dos anos 1970, com o início da abertura política, foi momento de reorganização dos movimentos negros(as) no país. Na agenda destes movimentos a educação encontrava um papel de destaque e figurava entre as proposições a necessidade de desvelar elementos da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira. Nós, negros(as) brasileiros(as), percebíamos a ausência de registros da nossa História social, o processo de leitura etnocêntrica e eurocêntrica da História sistematicamente difundido pela escola brasileira, a desvalorização constante de formas de manifestação da nossa alteridade, de aspectos diversos de nossas culturas e raízes. Passou a ser cada vez mais contundente a crítica aos processos de ensino que silenciam sobre os aspectos civilizatórios da África, sobre as diferentes formas de contribuição de nossas nações negras (e indígenas) ancestrais para a formação do Brasil, sobre a ausência de registros das práticas de resistência nossas e de nossos antepassados. As reivindicações dos movimentos negros(as) para a educação centravam-se sobre necessidade de mudanças curriculares e ensino de História e cultura afro-brasileiras Entre os intelectuais e ativistas negros de então destaco a liderança exercida por Abdias do Nascimento. No exílio assumira cadeira de Estudos Africanos na Universi150 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias dade do Estado de Nova York, em Buffalo, determinando que mais que travar conhecimento com os Estudos Afroamericanos, foi sujeito deste processo. De volta ao Brasil, assumiu mandato de Deputado Federal e apresentou o Projeto de Lei n. 1.332, de 1983, que dispunha sobre “ação compensatória visando à implementação do princípio da isonomia social do negro”. Vejamos o texto do artigo que propõe o ensino de História e Cultura Afro-brasileira na íntegra: Art. 8º. O Ministério da Educação e Cultura, bem como as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das entidades negras e com intelectuais negros comprovadamente engajados na matéria, estudarão e implementarão modificações nos currículos escolares e acadêmicos, em todos os níveis (primário, secundário, superior e de pós-graduação), no sentido de: I – Incorporar ao conteúdo dos cursos de História brasileira o ensino das contribuições positivas dos africanos e seus descendentes à civilização brasileira, sua resistência contra a escravidão, sua organização e ação (a nível social, econômica e política) através dos quilombos, sua luta contra o racismo no período pós-abolição; II – Incorporar ao conteúdo dos cursos sobre História Geral e ensino das contribuições positivas das civilizações africanas, particularmente seus avanços tecnológicos e culturais antes da invasão européia do continente africano; III – Incorporar ao conteúdo dos cursos optativos de estudos religiosos o ensino dos conceitos espirituais, filosóficos e epistemológicos das religiões de origem africana (candomblé, umbanda, macumba, xangô, tambor de minas, batuque, etc.); IV – Eliminar de todos os currículos referências ao africano como “um povo apto para a escravidão”, “submisso” e outras qualificações pejorativas; 151 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira V – Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escolares que apresentem o negro de forma preconceituosa ou estereotipada; VI – Incorporar ao material de ensino primário e secundário a apresentação gráfica da família negra de maneira que a criança negra venha a se ver, a si mesma e a sua família, retratadas de maneira igualmente positiva àquela que se vê retratada a criança branca; VII - Agregar ao ensino das línguas estrangeiras européias, em todos os níveis em que são ensinadas, o ensino de línguas africanas (yorubá ou kiswahili) em regime opcional; VIII – Incentivar e apoiar a criação de Departamentos, Centros ou Institutos de Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro-brasileiros, como parte integral e normal da estrutura universitária, particularmente nas universidades federais e estaduais (NASCIMENTO, 1983, p. 5163). O texto do projeto de lei revela aspectos bastante interessantes. Primeiro, pode-se constatar que as propostas levadas a termo atualmente, tanto a formação de professores para ensino de história e cultura afro-brasileiras, como a estruturação de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros, são a concretização de uma agenda antiga. Nas comemorações do centenário da abolição em 1988; na Assembléia Nacional Constituinte do mesmo ano, Na Marcha Zumbi dos Palmares pela vida e contra todas as formas de discriminação em 1995; nas discussões sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nos anos que antecederam sua aprovação em 1996; nos eventos preparatórios à Conferência de Durban de 2001 e nas proposições advindas da própria conferência, as proposições na mesma direção se renovaram. Vinte anos transcorreram – de 1983 a 2003 – até que as proposições do Projeto de Lei n. 1.332/83 fossem corporificadas de modo mais enfático. Desse modo, somente com a Lei n. 10.639/03 (que modificou a LDB) e sua posterior regulamentação com o parecer 03 de 2004 do CNE, 152 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias iniciou-se processo de inserção sistemática de conteúdos e de formação inicial e continuada de professores sobre História e Cultura Afro-brasileira e sobre Educação das Relações Étnico-Raciais. Na proposta original do então deputado Abdias do Nascimento, pode-se inferir a relação com os propósitos dos movimentos da Negritude e do Pan-africanismo. Como movimento concomitantemente literário e social, na Negritude se propôs um retorno às raízes. A idéia foi a de que a imersão nas tradições e na estética, nas produções culturais, na literatura em geral e na poesia em particular, nas representações plásticas e na dramaturgia, operasse no sentido de valorizar a tradição afro. As proposições do NEAB-UFPR são herdeiras desta tradição de busca de expressão da ancestralidade afro como manifestação da alteridade, da liberdade e da diversidade. No caso específico da formação de professores para a Educação das Relações Étnico-raciais, os objetivos transcendem aos de informar sobre o movimento literário, são muito mais uma busca dos próprios ideais que inspiraram o movimento, tanto da expressão estética quanto dos valores e da busca de transformação social. A negritude é uma subjetividade. Uma vivência. Um elemento passional que se acha inserido nas categorias clássicas da sociedade brasileira e que as enriquece de substância humana. Humana, demasiadamente humana é a cultura brasileira, por isso que, sem desintegrar-se, absorve as idiossincrasias espirituais, as mais variadas. A negritude, com seu sortilégio, sempre esteve presente nesta cultura, exuberante de entusiasmo, ingenuidade, paixão, sensualidade, mistério, embora só hoje por efeito de uma pressão universal esteja emergindo para a lúcida consciência de sua fisionomia. É um título de glória e de orgulho para o Brasil o de ter-se constituído no berço da negritude (RAMOS, 1950, apud NASCIMENTO, 2003). 153 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira As idéias do Pan-africanismo, em grande medida, elaboradas por negros(as) na ou da diáspora, objetiva, de forma similar, estabelecer a África como referência fundamental para os(as) negros(as) do mundo, estejam eles dentro ou fora do continente, positivando a imagem do continente, das suas tradições, histórias e diferentes aspectos das culturas. Com isso, contrapõem-se a postulações até então hegemônicas, e que ainda sobrevivem, da África como o continente selvagem, primitivo, atávico. A unidade dos países africanos é pensada como estrutura que mantenha a autonomia dos países por um lado e que por outro permita a estes mesmos uma atuação conjunta seja no âmbito das relações internacionais seja para a resolução de problemas comuns. O texto de justificativa relativo ao art. 8º do Projeto de Lei n. 1.332/83 é revelador: O conteúdo da educação recebida por aquelas crianças negras que têm oportunidade de estudar representa outro aspecto da desigualdade racial anticonstitucional na esfera da educação [...] a civilização e história dos povos africanos, dos quais descendem as crianças negras, estão ausentes do currículo escolar. A criança negra aprende apenas que seus avós foram escravos; as realizações tecnológicas e culturais africanas, sobretudo nos períodos anteriores à invasão e colonização européia da África, são omitidas. Também se omite qualquer referência à história da heróica luta dos afro-brasileiros contra a escravidão e o racismo, tanto nos quilombos como através de outros meios de resistência. Comumente, o negro é retratado de forma pejorativa nos textos escolares, o que resulta na criança negra em efeitos psicológicos negativos amplamente documentados. O mesmo quadro tende a encorajar, na criança branca, um sentimento de superioridade em relação ao negro. O art. 8º deste projeto de lei objetiva a correção desta anomalia e a implementação do direito à isonomia assegurada pela Constituição (NASCIMENTO, 1983). 154 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias A argumentação é explícita. Trata-se de estabelecer a oportunidade ao alunado brasileiro de obter informações e reconhecer elementos da complexidade do continente de origem de metade (pelo menos) de nossa população; de estabelecer “lugares de memória” (NORA apud KING, 1996, p. 77) sobre o passado afro; de possibilitar a identificação positiva dos(as) alunos(as) negros(as) brasileiros(as)1 com aspectos de seu passado; de possibilitar ao alunado brasileiro, de todas as cores, reconhecer a diversidade e complexidade do continente africano e as profundas contribuições das populações africana à humanidade. Importante observar que a proposta de estudar as contribuições afro se relaciona com a estruturação da identidade do negro brasileiro (MUNANGA, 1996; MUNANGA e GOMES, 2005). A percepção é que idéias restritivas e manipuladas sobre a história e as tradições africanas e afro-brasileiras, sistematicamente difundidas pela escola, pelos currículos e pelos livros didáticos (que operam tanto por informações restritivas ou equivocadas quanto pela omissão) atuam para criar nos alunos uma predisposição à hierarquia racial. Possibilitar aos alunos, negros, brancos, amarelos e indígenas, o conhecimento de História e Cultura Afro-brasileiras teria o objetivo de reconhecer os elementos civilizatórios das culturas africanas e africanas da diáspora, possibilitando aos alunos em geral o reconhecimento do processo civilizatório dos povos africanos e aos alunos negros em particular a construção de identidade pautada em aspectos de positividade sobre seu grupo de pertença e sobre si mesmo. O movimento de apagar os “lugares de memória” das matrizes afro foi bastante efetivo, de forma que a colonização cultural opera, em diferentes níveis, em todos nós, manifestando-se em hipervalorização de tradições européias e desvalorização de aspectos da cultura de maSerá utilizado, a partir deste ponto, o genérico masculino, como forma de aliviar o texto. 1 155 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira triz africana. Possivelmente em função disso o trabalho de formação de professores é uma “tarefa zumbílea”2, pois na nossa formação escolar, educacional e cultural, as informações mais simplórias sobre nosso passado afro foram sistematicamente negadas ou substituídas por informações estereotipadas. Estamos, portanto, num movimento inicial de descoberta da riqueza, da pluralidade, dos valores, do desenvolvimento tecnológico, do alto desenvolvimento social, de um sem-fim de aspectos civilizatórios de nossos antepassados africanos e africanos da diáspora. Para a compreeensão desse processo na educação é caro o conceito de “alfabetismo da diáspora”, tal como formulado por King (1996) com o sentido de conhecimento e resignificação da “nossa história”, da história do povo negro na diáspora. O alfabetismo da diáspora consiste na aprendizagem da leitura de signos culturais das heranças africanas, para além das distorções, da parcialidade e das ausências determinadas pela hegemonia cultural e por séculos de dominação. O sentido de alfabetismo é de processo inicial e provisório. A luta contra a discriminação racial que percorreu o século XX se deparou com diversos processos de racialização (APPIAH, 1997), entre os quais o estabelecimento de conceitos e formas de compreensão distorcidos e restritivos sobre a tradição africana e afro-brasileira. As proposições do racismo científico, para além de sua rejeição após a segunda guerra mundial, conformaram operadores importantes no campo simbólico. Por exemplo, no imaginário, a Europa se impôs como modelo e centro da civilização e civilidade e a África como sua negação, o locus do primitivo, que passou de terra dos proscritos, dos descendentes de Cam, compreendida como sinônimo da ausência de civilização. Estas noções reducionistas, parciais, sem contradições, ainda são marcadores sociais Termo que emprestamos de Edna Roland, então coordenadora da Área de Combate ao Racismo e Discriminação da Unesco no Brasil. 2 156 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias importantes no plano simbólico, como será analisado em parte posterior do texto. Por exemplo, as nações, impérios e civilizações de nossos antepassados africanos3 foram e são denominadas “tribus”. A busca de “alfabetização da diáspora”, de recuperação de “lugares de memória”, define boa parte das atividades de formação de professores que desenvolvemos no Neab-UFPR. Passamos do levar a termo eventos de curta duração para priorizar o desenvolvimento de cursos de média duração. Os eventos servem principalmente para mobilizar, para aguçar a curiosidade. Mas uma formação em que o processo de alfabetização da diáspora se inicie precisa de carga horária mínima para dar início à formação. Os cursos de extensão ofertados pelo Neab-UFPR para professores da rede estadual do Paraná (parceria com APP-Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do Paraná) e da rede municipal de Curitiba (parceria com Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curitiba - Sismmac), têm carga horária variando de 120 a 180 horas, que considero o mínimo para dar início à formação de professores sobre os Estudos Afro-brasileiros. Nos programas sempre constam disciplinas sobre História da África e História dos Africanos da Diáspora. Sobre a África, geralmente se trabalha a partir de noções gerais sobre História da África Pré-Colonial, dando ênfase a determinados períodos, a determinadas nações ou temáticas da África Subsaariana (exemplo em MARÇAL, 2007). Os estudos sobre as trocas comerciais entre a África e o Ocidente e em particular os processo relativos à mercantilização de escravos também são contemplamos (LIMA, 2007). No que se refere à História dos Povos Africanos da Diáspora, trata-se tanto de aspectos gerais quanto de questões específicas. Busca-se, naturalmente, a análise dos povos da diáspora como sujeitos na História, tematizando Também os americanos e estudar História Pré-colombiana das Américas é outro imperativo para uma visão mais elaborada da diversidade. 3 157 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira os diversos movimentos de resistência, por exemplo os movimentos negros no decorrer do século XX (exemplo em SOUZA, 2007). Num estado que nega a presença africana, na sua origem e na atualidade o contexto local sempre é trabalhado a partir de conteúdos específicos sobre História do Negro no Paraná. Um exemplo significativo é a análise de fontes históricas paranaenses: Sofismas como o de que os escravos da Comarca de Paranaguá e Curitiba representavam contingente tão escasso que, aqueles que os tinham, colocavam-nos para realizar trabalhos domésticos, povoam os livros didáticos e as aulas de História. [...] Bem, seria desnecessário dizer que minha opinião é diferente da veiculada por alguns desses ilustres intelectuais ligados à construção de um ideário paranista. Mas ter opinião diferente não basta. Portanto, o texto que você irá ler a seguir é uma tentativa de reunir alguns poucos documentos – já que o espaço é limitado – e propor formas de interrogá-los. Talvez, daí surja um novo entendimento da experiência negra na História do Paraná e, de quebra, uma pequena coletânea de documentos para o estudo da cultura afro-brasileira em sala de aula (LIMA, 2007, p. 97-98) Outro tema trabalhado nos cursos do Neab-UFPR diz respeito à Sociologia dos grupos raciais no Brasil. Tais conteúdos têm parte de História, relativa ao pensamento de intelectuais sobre as relações raciais no Brasil, do século XIX aos nossos dias (comportando abordagens tanto em divisões cronológicas quanto em aspectos específicos.) Como exemplo, ver Costa (2007), parte relativa a desigualdades raciais no plano estrutural (estudos sobre indicadores de desigualdades entre brancos e negros no Brasil) e no plano simbólico (estudos sobre os discursos racistas e racialistas, as compreensões dos diferentes intelectuais, ideários e imaginários), tópicos que serão tratados em específico logo a seguir. 158 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias Relativo às culturas africana e africana da diáspora, os cursos do Neab também têm apresentado abordagem específica, com conteúdos sobre Artes Africanas e Afrobrasileiras, em especial aspectos da estética e das expressões plásticas; Estética e Corporalidade Negra no Brasil; Aspectos gerais de Literatura Africana, Literatura Afro-brasileira, Literatura Afro-americana, Movimento da Negritude e suas Repercussões no Brasil (MARTINS, 2007); Literatura Oral e Alteridade Afro-brasileira (SILVA, 2008). Relativo à religiosidade afro-brasileira e à presença do negro no catolicismo (em particular Irmandades e Festas de Santos) são trabalhados tanto conteúdos relativos a uma antropologia de tais manifestações quanto às suas expressões estéticas e plásticas. Além dos conteúdos dos cursos de formação, o Neab-UFPR tem promovido eventos diversificados sobre aspectos específicos da cultura afro-brasileira, por exemplo oficina de construção de instrumentos de congada; oficinas de Maracatu Baque Virado (música e dança); oficinas de estética e tranças afro; oficinas de contação de histórias africanas e afro-brasileiras; projeção e discussão de filmes afro-americanos. Tais eventos têm duplo intuito, de informar sobre aspectos específicos de cultura afro-brasileira e de continuar o processo de mobilização de professores e alunos das licenciaturas para o estudo e trabalho com africanidades. A formação de professores promovida pelo NeabUFPR trabalha com História e Cultura Afro-brasileiras e com Educação das Relações Étnico-raciais, como propõe o Parecer n. 03/2004 do Conselho Nacional de Educação (que regulou a Lei n. 10.639/03). Farei uma discussão específica sobre isso (para análise específica sobre as proposições da lei e do parecer referidos ver ROCHA, 2007). 159 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira 2 Educação das relações étnico-raciais No Parecer n. 03/04, de forma mais explícita que no texto da lei, estão expressos que o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras deverá se realizar, nos diversos níveis (educação infantil, fundamental, médio e superior) e modalidades (regular, educação de jovens e adultos e educação especial) de ensino; que as diversas disciplinas devem inserir em seus conteúdos elementos de história e cultura afro-brasileira; que o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras abrange o ensino de relações raciais no Brasil, de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racismo, discriminações, intolerância, preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade, diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas, de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2004). No plano teórico-conceitual adota-se o conceito de raça como construção social e conceito analítico fundamental para a compreensão de desigualdades sociais – estruturais e simbólicas – observadas na sociedade brasileira (SILVA, 2008). O uso do conceito de raça ajuda a atribuir realidade social à discriminação e, conseqüentemente, a lutar contra a discriminação. No Brasil, as relações raciais estão fundadas em um peculiar conceito de raça e forma de racismo, o “racismo à brasileira” (GUIMARÃES, 2002), cujas especificidades são significativas para compreender as relações entre os grupos de cor e as desigualdades associadas. Particularidades como a relação entre raça e classe social na hierarquização das pessoas, as idéias sobre o “embranquecimento”, o “mito da democracia racial”, construídas na história das relações raciais brasileiras, mantêm-se atuantes. O racismo “à brasileira” se constrói e reconstrói mantendo desvantagens para a população 160 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias negra no acesso a bens materiais e simbólicos (PAIXÃO, 2006). Práticas cotidianas de discriminação constitutivas da sociedade brasileira cumprem o papel de reinstituir a subalternidade da população negra brasileira. A educação é partícipe importante nesse processo. Os resultados de pesquisas estão dispostos em dois blocos, o primeiro sobre desigualdades no plano estrutural, com síntese de alguns estudos da área após sobre desigualdades no plano simbólico, com ênfase nos estudos do Neab-UFPR. Desigualdades educacionais no plano estrutural As pesquisas sobre desigualdades raciais que analisaram dados macrossociais - perspectiva que se estende desde Florestan Fernandes até a contemporaneidade, com os estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada (Ipea). A melhoria do sistema de coleta e sistematização de dados pelo IBGE possibilitou avanços na análise das desigualdades estruturais. Os próprios indicadores das pesquisas censitárias e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/Pnad apontam as profundas desigualdades raciais no Brasil. Os estudos sobre as desvantagens da população negra apontam que as diferenças do passado não são suficientes para explicar as desigualdades atuais. As diferenças de oportunidades de ascensão social e o racismo dirigido aos negros são operantes para manter (e, em casos específicos, acentuar) as desigualdades, num processo de ciclos de desvantagens cumulativas dos negros (SILVA, 2000). Diversos indicadores sociais brasileiros revelam um país com alto índice de desigualdade entre brancos e negros (que perpassam as classes sociais). O racismo histórico e contemporâneo constitutivo da sociedade brasileira fica evidente quando se analisam diversos indicadores sociais, ou quando se calcula o Índice de Desenvolvimento 161 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Humano (IDH) em separado para a população negra e para a população branca: o de brancos equivale a 0,791 (41ª posição) e o de negros a 0,671 (108ª posição) (tabulações e análise realizadas por PAIXÃO, 2006). Como exemplos selecionamos alguns indicadores de renda, saneamento e educação (Tabela 2). No que se refere à educação, os resultados das pesquisas apontam grande desvantagem da população negra em relação à branca. Ocorreu um aumento gradativo de anos de estudo na população brasileira, mas as diferenças entre brancos e negros se mantiveram. O mesmo ocorreu com as taxas de analfabetismo, que diminuíram no total e se mantiveram as diferenças. As acentuadas desigualdades educacionais foram analisadas por estudos diversos (HASENBALG, 1987; HASENBALG e SILVA, 1990; ROSEMBERG, 1998; JACCOUD e BEGHIN, 2002; PAIXÃO, 2006). Em todos os níveis de ensino as desigualdades são significativas, e aumentam exponencialmente nos níveis de ensino mais elevados (HASENBALG, 1988, p. 136). A comparação do desempenho escolar de crianças negras e brancas, com mesmo nível de renda familiar e de participação no mercado de trabalho, aponta o atraso escolar significativamente maior entre os negros (ROSEMBERG, 1998), o que leva à conclusão de que o sistema de ensino discrimina a população negra. É discurso comum a atribuição das desigualdades raciais às condições de origem. Por exemplo, as diferenças de escolaridade atual seriam reflexo da baixa escolarização dos negros quando da abolição da escravatura, que se reproduziram de geração em geração até nossos dias. Essas explicações são muito parciais. As desigualdades entre negros e brancos se devem, principalmente, a diferenças de oportunidades de ascensão social após a abolição e ao racismo dirigido aos negros (HASENBALG, 1988; SILVA, 1988; JACCOUD e BEGHIN, 2002; PAIXÃO, 2006). A “herança da pobreza” é condição necessária, mas não suficiente, para explicar a po162 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias breza atual das famílias negras. A explicação ancorada na análise de dados dos censos por Nelson do Valle e Silva (1988; 2000) é de que as desigualdades raciais brasileiras são produzidas em ciclos de desvantagens cumulativas, de funcionamento intergeracional. A mobilidade social e a aquisição de renda são dois elos desta corrente, que se completa com outras características socialmente relevantes, em primeiro plano educação, e outras tais como saúde e moradia. São diversos fatores pelos quais as desvantagens no ciclo vital dos indivíduos negros se acumulam (SILVA, 2000). As explicações sobre as desigualdades educacionais trabalham com uma ampla gama de fatores. Um primeiro fator explicativo é a diferença entre as escolas freqüentadas por negros e brancos, que Hasenbalg (1987) nomeou como “diferença no recrutamento”. As escolas de locais onde a população apresentava rendimentos mais baixos eram as que recebiam menor aporte de verbas. O custo-aluno variava de US$ 28,5 no Nordeste rural a US$ 197,2 no Sudeste urbano (ROSEMBERG, 1998, dados do Ministério da Educação de 1990), o que determinava que as escolas fossem não escolas para carentes, mas as próprias “escolas carentes”. Os dados demográficos indicaram que os negros do estado de São Paulo freqüentavam, preferencialmente, a rede pública de ensino, cuja qualidade tende a ser inferior à da escola privada. Quando freqüentavam a rede privada, os negros ocupavam principalmente os cursos noturnos, que também apresentam tendência à qualidade inferior. Além disso, as escolas de 1º grau que freqüentavam tinham menor número de horas diárias de aula, fator que se sobrepunha a outras carências, como tamanho da escola e número de turnos. O fato de os negros estarem em maior proporção nas “escolas carentes” explicaria as desigualdades de aproveitamento dos grupos raciais. Escolas que atendiam alunos de classe média apresentaram, conforme dados de Dias (apud HASENBALG, 1987), índice de 163 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira sucesso entre 80 e 90%, e as que atendiam alunos pobres apresentaram um fracasso entre 60 e 70%. Alunos de classe média estudando em escolas pobres tiveram pior rendimento, e alunos pobres estudando em escolas de classe média tiveram melhor rendimento. As escolas de classe média foram designadas como lugares de “otimismo educacional”, que influencia os resultados positivos; as escolas para pobres, ao contrário, foram designadas locais da “ideologia da impotência” (HASENBALG, 1987; ROSEMBERG, 1998; TELLES, 2003, p. 238). Os dois últimos autores descrevem o fenômeno com o conceito de profecia auto-realizadora. Os alunos negros apresentam a tendência de freqüentar escolas onde reina a “ideologia da impotência”. Assim, a seletividade é iniciada pelo recrutamento do alunado negro para essas escolas. Outra pista para a discriminação imputada aos alunos negros é a segregação espacial (ROSEMBERG, 1998; TELLES, 2003). É plausível a hipótese de que as famílias negras de melhor nível socioeconômico tendem a ocupar espaços destinados a camadas mais baixas da população, para diminuir as possibilidades de serem discriminadas, embora faltem dados mais concludentes sobre a distribuição espacial e a utilização dos equipamentos escolares (ROSEMBERG, 1998). Correlatas a estas, estão as estratégias utilizadas por famílias de negros para a socialização de seus filhos. Membros da classe média negra, por vezes, retardam as experiências de enfrentamento de discriminação racial, protegendo as crianças antes de sua entrada na escola. Esta passa a ser o locus das primeiras situações de conflitos raciais, e podem criar nestas crianças reações ambíguas em relação à escola, que é local de discriminação e ao mesmo tempo possibilidade de ascensão social (BARBOSA, apud ROSEMBERG, 1998). O preconceito educacional dentro das escolas foi explicação para as desigualdades, fornecida por estudos diversos, tanto os anteriormente relatados, que ana164 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias lisaram macrodados, quanto os que analisaram questões no interior da escola. As relações raciais nas escolas continuam pautadas, por vezes de forma aberta, pela imputação aos negros de impossibilidades intelectuais, por hostilidades, por desqualificação da identidade racial (GONÇALVES, 1987; FIGUEIRA, 1990; PINTO, 1993). O uso de ofensas raciais entre os pares foi, em um contexto de educação infantil, freqüente (CAVALLEIRO, 1999). Em escolas determinadas, professores apresentaram uma visão predominantemente estereotipada a respeito dos alunos, dificuldade em lidar com a heterogeneidade de raça e de classe e reforço da crença de que os alunos pobres e negros não são educáveis (HASENBALG, 1987). Os brancos em geral não reconhecem como iguais (portanto discriminam) negros que ascenderam racialmente, e o mesmo pode ocorrer na escola (ROSEMBERG, 1998), com a população negra sendo nivelada pelo critério racial. A pertença racial nivelaria as possibilidades de acesso, permanência e sucesso nas redes de ensino. Por vezes as discriminações podem se manifestar de formas mais indiretas ou sutis. Um estudo em escola de educação infantil revelou que professores mantinham maior proximidade física com alunos brancos, mais elogiados que as crianças negras, e que ignoravam atos discriminatórios entre os alunos (CAVALLEIRO, 1999). Outra forma de manifestação não direta de discriminação é a centralidade dos currículos em perspectiva eurocêntrica (simbólica), que valoriza os aspectos de origem e influência da Europa, tomada como locus da civilização. Paralelamente, os legados de outras origens são desconsiderados e/ou desvalorizados. Tais explicações que apontam para a efetividade do plano simbólico para reproduzir, sustentar e criar desigualdades raciais serão examinadas a seguir. Antes comento a articulação de tais conteúdos com a proposta de formação para a educação das Relações Étnico-raciais do Neab-UFPR. 165 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Observei anteriormente a ampliação de horizonte realizada pelo Parecer n. 03/04 do CNE para a discussão sobre racismo no Brasil. O conhecimento sobre as desigualdades raciais no plano estrutural é importante como contradiscurso ao ideário do mito da democracia racial que, embora pouco aceito na academia atualmente e menos reproduzido nos discursos públicos, continua atuante na realidade brasileira e certamente foi muito importante pelo menos na formação da maior parte dos professores. Ou seja, a desconstrução do mito da democracia racial é processo que está em operação. É importante que os professores tenham conhecimento sobre as pesquisas brasileiras a respeito das desigualdades raciais, tanto para modificarem suas concepções como para operarem a desconstrução do mito da democracia racial e fornecerem subsídios a seus alunos para a análise crítica das desigualdades do país. Em função disso, as formações promovidas pelo Neab-UFPR tratam do tema da desigualdades no plano estrutural com conteúdos específicos, além de termos também promovido evento e curso de curta duração específico sobre a temática. Desigualdades raciais no plano simbólico As explicações sobre as desigualdades de desempenho de alunos negros e brancos encontram-se na articulação dos estudos sobre desigualdade no plano estrutural e no plano simbólico. Os movimentos negros e pesquisadores negros mantêm como uma de suas reivindicações no campo da educação o ensino de História e Cultura Afrobrasileiras como forma de adequar o tratamento do patrimônio cultural negro nos currículos e de dar visibilidade ao negro na sociedade brasileira “Em uma análise sobre as manifestações da discriminação racial, na escola, é preciso que se atente não só para o que se transmite, mas para o que se impede de transmitir” (GONÇALVES, 1988, p. 61). 166 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias Uma questão importante, portanto, para a compreensão do racismo na escola brasileira é o silêncio (GONÇALVES, 1987). Tanto sobre a particularidade cultural da população negra, quanto sobre os processos de discriminação, o silêncio atua como mecanismo que permite ocultar as desigualdades. No Paraná e em Curitiba, estado e cidade que construíram um ideário de mais europeus que o restante do Brasil e negam de forma mais veemente a presença e a importância da população negra (que hoje corresponde a 25% da população segundo dados da Pnad 2006), tal análise reveste-se de ainda maior relevância. A invibilização do negro, a difusão de um imaginário negativo em relação ao negro e dos significados positivos em relação aos brancos é estratégia de discurso racista observada como forma de discriminação no interior das escolas, via livros didáticos e literatura infanto-juvenil (PINTO, 1993; ROSEMBERG, 1998; TELLES, 2003; SILVA, 2006, 2008), atuante também em diversos espaços sociais, notadamente nos meios midiáticos. No campo teórico conceitual, considero que o discurso é atuante para a produção e reprodução de desigualdades raciais. As pesquisas brasileiras estiveram atentas à desigualdade racial no plano simbólico desde a década de 1950. Os estudos de Moreira Leite (apud ROSEMBERG, BAZILLI e SILVA, 2003) e de Bazanela (apud ROSEMBERG, BAZILLI e SILVA, 2003), sobre relações raciais em livros didáticos, apontaram que a discriminação raramente se apresentava de forma explícita. A hierarquia entre brancos e negros se apresentava em formas implícitas, particularmente pela correlação desses com posições de desvalorização social. Do ponto de vista de produção de conhecimento, no plano simbólico situa-se grande parte dos estudos do Neab-UFPR, cujos resultados são uma fonte de alimentação direta de conteúdos ministrados em nossos cursos de formação. No que se refere à História do pensamento sobre relações raciais no Brasil, Hilton Costa e um grupo 167 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira de orientandos4 de iniciação científica desenvolvem análise sobre os Cadernos do IHGB do final do século XIX e início do século XX, vinculados ao projeto de pesquisa intitulado “Assim se fez um povo”. A análise das idéias de intelectuais que formataram a compreensão sobre as relações raciais na República pode funcionar como instrumento importante para a análise das relações raciais em nosso país. Faço parênteses para comentar como o Neab-UFPR e diversos outros Neabs e programas correlatos (são vários os exemplos, Penesb da UFF; Ações Afirmativas da UFMG; Neab da UDESC; NEAA da UEL, para ficar somente em exemplos que tive oportunidade de acompanhar um pouco mais de perto) desempenham um papel na universidade pública brasileira muito comentado mas pouco concretizado, a articulação ensino-pesquisa-extensão. Como centros produtores de conhecimento, articulados com movimentos sociais e preocupados em atuar na formação inicial e continuada de professores, os Neabs têm realizado esta complexa tarefa de articular as três atividades fim da universidade (pública, gratuita e de qualidade, para repetir as palavras de ordem) brasileira, justamente por seu caráter de constituição de núcleo de pesquisa que parte de intensa relação com movimentos sociais e com formação de professores. Outra pesquisa, orientada por Alexandro Dantas Trindade, discute a formação do imaginário brasileiro e os processos de racialização e de hierarquização entre brancos e negros no cinema. Os estudos sobre racialização no cinema são parcos no Brasil e a pesquisa pretende atuar para preencher parte desta lacuna. Os trabalhos de Os projetos de pesquisa e de extensão do Neab-UFPR são realizados com apoio do Programa de Apoio a Ações Afirmativas para Inclusão Social em Atividades de Pesquisa e Extensão na UFPR, financiado pela Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná. 4 168 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias referência de Rodrigues (1988; 1997) analisam com os estereótipos sobre personagens negros na literatura são fonte para a construção de personagens negros no cinema brasileiro. Para além da Literatura Africana e Africana da Diáspora que pontuada na parte anterior, os conteúdos dos cursos do Neab-UFPR e de eventos de curta duração voltam-se também para a análise sobre personagens negros na literatura brasileira (DUARTE e FELIX, 2007), oferecendo aos professores instrumentos teórico-conceituais para analisar de forma crítica a diferentes formas de hierarquização racial presentes na literatura brasileira e que alimentam diversos outros discursos midiáticos, em particular telenovelas, cinema e literatura infanto-juvenil. Voltam-se para a literatura infanto-juvenil e para outros discursos dirigidos à infância, de livros didáticos e de jornais, os trabalhos de iniciação científica, especialização e mestrado por mim orientados, alem das análises que produzo (SILVA, 2007; 2008). Nos cursos de formação de professores são trabalhados conteúdos tanto relativos às pesquisas brasileiras sobre discurso racista em livros didáticos, na literatura infanto-juvenil e em suplementos infanto-juvenis quanto os resultados de estudos do NeabUFPR sobre tais meios discursivos. Além disso, no Neab-UFPR oriento a organização de um banco de dados sobre o negro em jornais paranaenses de grande circulação. Trabalhamos com a leitura completa, durante os anos de 2006 e 2007, dos jornais Gazeta do Povo, O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná, separação e arquivo físico, em categorias predeterminadas, de todos os textos (notícias, reportagens, cartas, editorias, etc. – qualquer formato textual) com personagens negros e de todas as peças publicitárias com personagens humanos. Os professores dos cursos de formação do Neab-UFPR são convidados a conhecer o banco de dados e têm acesso à análise que produzimos (SILVA, OLIVEIRA e ROCHA, 2008; OLIVEIRA, 2007; 2008; ROCHA, 2007; 2008; RANGEL, 2008). 169 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Outro estudo é orientado por Marcos da Silva Silveira, que analisa discursos sobre políticas afirmativas em diferentes meios, como discurso de revista científica, discurso no parlamento, discurso no cotidiano. A análise revela como formas de hierarquização típicas do mito da democracia racial são acionadas para fazer contraposição às políticas afirmativas voltadas à população negra, em particular às denominadas cotas no ensino superior. A discussão sobre políticas afirmativas no ensino superior é cara ao Neab-UFPR (SILVA, DUARTE e BERTULIO, 2006) e sua análise, tanto no plano de discursivo como promovido pelos estudos de Marcos Silveira, como na sua implantação e impacto na promoção da igualdade racial, merecem destaque. Primeiro porque a discussão pública sobre o tema o tornou alvo de intensa mobilização. Os professores trazem muitas indagações a respeito das cotas para negros, no ensino superior e na própria UFPR. A discussão sobre os fundamentos das cotas e das políticas afirmativas mobiliza argumentos relativos às relações raciais no Brasil, portanto é um processo de atendimento ao interesse dos cursistas relacionado diretamente a conteúdos a serem ministrados nos cursos. Além disso, considero que o debate público sobre as cotas para negros no ensino superior apresentou resultado inesperado no plano simbólico. Os argumentos do mito da democracia racial são cada vez menos defensáveis e o reconhecimento dos processos de discriminação, implícita e explícita, imputada ao negro brasileiro, são cada vez mais reconhecidos. As categorias de classificação étnico-racial do IBGE e a classificação bipolar são mais reconhecidas, tendo impacto significativo nos índices da população negra nos resultados da Pnad de 2006, apontando que a estratégia de embranquecimento na auto-identificação diminuiu em prol da auto-identificação como negro(a) (categorias preto e pardo do IBGE). 170 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias 3 Algumas considerações finais Diversas vezes professores que freqüentaram nossos cursos afirmaram que não imaginavam quanto eram ignorantes em relação a aspectos diversos das “africanidades”. Ao trabalharmos com professores da rede pública estadual (do Paraná) e municipal (de Curitiba) muitas vezes nos deparamos com suspiros e outras manifestações de perplexidade face a um conjunto complexo de informações sobre os estudos afro-brasileiros. Em variadas ocasiões, em alto e bom som, nossas aulas foram espaços para perguntas inconformadas sobre o porquê de a escola não difundir tais informações. O processo de formação sobre estudos afrobrasileiros muitas vezes tem sido o pilar para novas pesquisas e para o processo de formação continuada de todos os envolvidos com a temática, ou seja, somos partícipes do alfabetismo da diáspora. Sobre nós mesmos, pesquisadores e “militantes” pela igualdade racial, diversas vezes o processo de reconhecimento dos valores e tradições afro teve impacto de ressignificação sobre o ser negro no Brasil contemporâneo. Assim, a alfabetização da diáspora atinge, de forma recíproca, a professores e alunos em processo contínuo de formação. No entanto, as lacunas são muitas e o processo de formação é inicial. Os resultados que conquistamos, no Neab-UFPR, na formação continuada, convivem com pouco avanço na formação inicial de professores. Poucas vezes conseguimos a aprovação de conteúdos específicos sobre História e Cultura Afro-Brasileiras e sobre Educação das Relações Étnico-raciais nos cursos de formação de professores. Mais freqüente é a aprovação de disciplinas optativas, ou seja, continuaremos formando professores que necessitarão de nossos cursos de formação continuada para obterem informação mínima. Além disso, faltam especialistas para diversos conteúdos e são muitas as lacunas que existem em conteúdos que poderiam ser trabalhados e aprofundados, tanto 171 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira no que se refere à História da África quanto a aspectos variados da Cultura Africana e Afro-brasileira. Em exemplos que certamente poderiam se multiplicar, os cursos do Neab-UFPR mal tocam em informações sobre o Teatro Experimental do Negro, pouco vamos além das proposições de desenvolver estudos mais específicos sobre Literatura Africana de línguas Portuguesa, Francesa e Inglesa, como também de autores da diáspora brasileira e das Américas. Enfim, essa conclusão é de que bastante temos feito, mas muito mais há que fazer para operarmos uma mudança de concepção curricular que leve a formação de professores a uma perspectiva de multiculturalismo crítico. 172 Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias Referências BAZILLI, C. Discriminação contra personagens negros na literatura infanto-juvenil brasileira contemporânea. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999. BEISIEGEL, C. Cultura e democracia. Rio de Janeiro: Edições Fundo Nacional de Cultura, 2001. BERND, Z. Negro, de personagem a autor. 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Com isso, colocando a questão da memória e da alegoria como central no seu trabalho, Benjamin levanta, por um lado, o problema do círculo hermenêutico que se coloca entre a necessidade de entender o passado para se compreender o presente e a necessidade de desvelar o presente para se capturar o passado; e por outro, diz que a escrita alegórica significa o seu outro. Esta escrita, para ele, realiza o não-ser do que 177 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira ela representa, isto é, o texto do conteúdo latente passa a ser traduzido pela tarefa do sonho, para o texto do conteúdo manifesto. Para Benjamin, no conceito de memória “existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa”. Afirma ele que alguém na terra está a nos esperar e que há uma força, um sopro de ar que já foi respirado antes, um apelo, dos ecos de vozes que emudeceram. E como um apelo não pode ser rejeitado impunemente, cabendo a nós ouvirmos estes ecos, identificarmos o tom e pegarmos daí a canção. Na geografia o mapa é a representação estática da totalidade territorial. Já a cartografia é uma forma, um desenho, que se constrói e se incorpora aos movimentos e transformações dos diversos relevos e paisagens. Neste sentido, podemos dizer que cartografar significa romper com a forma estática, quebrar com o sistema de espelhos, incorporar movimentos, considerar transformações. Relevos e paisagens, sociais e afetivas, podem também ser cartografadas. Então, a cartografia nada mais seria que “o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos”. (ROLNIK, 1989, p. 15). É neste sentido, ou seja, na apropriação de novas ferramentas de trabalho, mais plásticas e resistentes, associadas a uma racionalidade mais abrangente, mais plural, onde os “nós dos sentidos e da intuição” possam ser desatados para participar da “festa das investigações”. Como nos aponta Linhares1, historicamente, em política educacional, temos repetido ênfases no estudo das instituições de governo, omitindo ou aligeirando críticas, Anotações pessoais em encontro do Grupo de Pesquisa Aleph, em setembro de 2005. 1 178 Para além do imaginário congelado do território... de como esta perversa utilização do público vem apoiando representações do poder, em imagens do locus do poder, que o legitimam, mas que precisam ser estremecidas, desnaturalizadas. Benjamin sublinhou também a necessidade de mergulharmos nos desejos de emancipação ainda presos aos sonhos das imagens dos velhos conflitos, presentes na história contada oficialmente. “Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente foi. Significa apoderar-se de uma lembrança na forma em que ela cintilou no instante do perigo” (BENJAMIN, 1985, p. 224). É essa história triunfalista e cumulativa, estabelecida como um “continuum homogêneo”, que Benjamin entende que a política deve combater. Observa que esta é marcada pela ganância da adição típica da produção capitalista, reafirmando, assim, mediante análises e comparações, a importância das vitórias daqueles que continuam com as mãos nas rédeas do “mundo civilizado”. Esta homogeneidade que empobrece a vida precisa ser aberta, fazendo aparecer as experiências coletivas, os desejos que fizeram pulsar o presente, densos de conflito e vazios da história oficial. Sim, porque o presente é o “presente”. Precisamos abri-lo, em vez de simplesmente ficarmos a admirar o embrulho e perdermos o prazer de desfrutar da surpresa. “Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são o que chamamos de bens culturais” (BENJAMIN, 1985, p. 225). Para Benjamin, é fundamental construir pontes entre a utopia (futuro), os sonhos que pareciam impossíveis (passado) e a vida (presente). Este antagonismo convida um elemento de mediação, que este filósofo elabora através do conceito de “zona de despertar”, que para ele são exatamente os entrelugares da relação entre passado, presente e futuro. 179 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Nesse encontro, os exercícios de imaginação poderiam ser configurados em uma reapropriação potente e viva, sem a rigidez das representações científicas e com vínculos de afeto que tornassem as experiências passadas imersas de futuro. A política em Benjamin supõe sujeitos que sonham e despertam, ligados a uma experiência histórica que transcende suas vidas individuais e que não cabe em uma corrida utilitária sem passado e sem futuro, ou seja, sem memórias e sem projeto. Territórios e identidades: debate introdutório à questão indígena Segundo Walter Benjamin, em determinados momentos históricos a civilização assume características de barbárie. Podemos perceber um processo acelerado de exclusão que se alarga e de movimentos plurais que avançam. Uma pilha de produtos culturais sobre nossas cabeças, muitas vezes, nos impede de avançar. É necessário situarmos o lugar dos movimentos indígenas como instrumentos para superação de uma política neoconservadora, expressa por uma globalização excludente, não podendo subtrair-se dos impactos marcados pela polifonia de diversos sujeitos históricos, que se apresentam, concretamente, na transformação do crescente cenário de violência do mundo atual. Assim, a luta pela demarcação dos territórios indígenas, em conexão com a defesa das identidades de seu patrimônio histórico cultural, assume características de centralidade no debate atual. Buscando radicalizar, nesse sentido, a apreensão de possibilidades mais plurais, procuramos identificar os conceitos de território e identidade, bem como suas possíveis confluências com a complexidade das novas configurações atuais. 180 Para além do imaginário congelado do território... Territórios: tecendo os fios Vivemos com uma noção de território herdada da modernidade [...] Trata-se de uma forma impura, um híbrido, uma noção que, por si mesmo, carece de constante revisão histórica [...] Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido individual e coletivo, o risco da renúncia ao futuro. Milton Santos Partimos de uma noção político-jurídica de território desde a fundação do Estado moderno, no século das luzes, que se manteve associada ao conceito de EstadoNação, primando, como afirma Milton Santos, pela subordinação eficaz do território ao Estado. O território marcava e definia o Estado-Nação, enquanto este o moldava como Estado territorial e território “estatizado”. Hoje, vivemos um processo de transformações profundas nas diversas esferas do relacionamento humano mundial de uma modernidade tardia e presenciamos mudanças significativas no processo de transnacionalização do território. “Mas, assim como antes tudo não era, digamos assim, território ‘estatizado’, hoje tudo não é estritamente ‘transnacionalizado’” (SANTOS, 1994, p. 15). Portanto, até mesmo nos lugares onde os processos de mundialização se apresentam de forma cada vez mais eficientes, segundo Santos, os territórios habitados, através de outras tessituras a partir de novas redes de complexidade, acabam por impor ao processo de globalização a sua revanche, isto é, um outro convite para um novo embate. A crise da modernidade que presenciamos como atores, muitas vezes como protagonistas e em outras como coadjuvantes, nos remete a um momento histórico em que 181 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira o velho não dá mais conta de explicar a realidade, ao mesmo tempo em que o novo ainda não se estabeleceu. Como pergunta Haesbaert (2002): em relação ao território, ao espaço humano, o que seriam esse novo e esse velho? Sabemos que os espaços não foram suprimidos e que se a velocidade do tempo acaba por destituir as distâncias, os espaços, mas que isto se deve, fundamentalmente, ao aumento do desenvolvimento e avanços tecnológicos, que colocam a relação espaço-tempo em um processo cada vez mais dinâmico e de virtualidade. Até mesmo porque, se as relações são instantâneas e se o tempo desaparece, como podemos ter o chamado “tempo real”? De qual “real” falamos? Nessa lógica, a maior parte das argumentações são marcadas por uma tentativa de dissociação das noções de espaço-tempo, sem se perceber, muitas vezes, que uma dá sentido a outra. Tempo e espaço são referências fundamentais em nossas vidas. Ao tentarmos suprimir uma ou outra, podemos suprimir nossa própria identidade. Ou fundando outra, completamente distinta. Mas, como não acreditamos que a atual crise (de representação, sobretudo) seja uma crise de mudanças radicais a esse ponto, nossa tese é de que, ao invés de estarem desaparecendo, a geografia e seus espaços – ou territórios – estão, na verdade, emergindo sob novas formas, com novos significados (HAESBAERT, 2002, p. 31). Algumas novas formas emergentes de territorialização, muitas vezes, acabam por aprofundar um processo de desterritorialização, na tentativa de reterritorializar diversos grupos sociais em novas bases territoriais, muito mais identificadas com um processo de pauperização e exclusão profundas, ou seja, visam a recompor e deslocar o espaço, a cultura, a economia e a organização social e política de um grupo específico, buscando reconstituí-los em novas bases territoriais, a fim de garantir a manutenção 182 Para além do imaginário congelado do território... do poder instituído, no interior, inclusive, de suas bases simbólicas. Então, muito mais do que a aniquilação dos territórios, o que presenciamos é a tentativa de estruturação de outras formas de significações e organizações territoriais das sociedades tradicionais, em que, na realidade, não podemos nos deixar iludir e assim perdemos a perspectiva de uma territorialização, ainda que permeada pela complexidade de processos múltiplos e diferenciados, deve estar socialmente referenciada, articulada a seu plano econômico-político e marcada por suas dinâmicas simbólicoculturais. No que diz respeito ao significado de territorialidade, pode-se defini-lo, segundo Haesbaert, em três grandes linhas gerais. A primeira entende o território como a base material concreta. Isto é, enquanto meio de produção e reprodução da sociedade, criando assim um vínculo estreito de dependência entre o sentido de territorialidade e a base de produção material, ou seja, a terra. A segunda se dá a partir da centralidade da concepção política. Identifica as diversas relações de poder e controle, individuais e sociais, nos espaços materiais de existência humana. Aqui o entendimento clássico da noção de território, se dá, a partir de sua vinculação ao conceito de Estado-Nação, mas não reduzido a este, de forma estrita. E por último a perspectiva da dimensão cultural no significado de território, que identifica o espaço territorial como aquele marcado por suas identidades. Nesse campo, identificamos aqueles que defendem, por um lado, uma reterritorialização mais radical, a partir do tensionamento das identidades, como propõe Huntington, na tese do “choque de civilizações”; e, por outro, os que identificam a necessidade de uma desterritorialização a partir do conceito de culturas híbridas, representados por Néstor García Canclini e Homi Bhabha, entre outros, 183 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira como também, no entendimento de circularidade de culturas, proposto por Carlo Ginzburg. Concordamos com Haesbaert (2002): “É muito difícil estabelecer fronteiras entre a concepção política e a concepção cultural de território”. Entendendo que a produção simbólica é indissociavelmente perpassada pelas relações de poder, a cultura aqui, necessariamente, precisa ser apreendida enquanto cultura política. Ou seja, se por uma via identificamos a dimensão político-ideológica do poder simbólico (cultura política) no debate da territorialidade, por outra, não duvidamos da existência, na mesma dimensão (político-ideológica), das diversas possibilidades de políticas culturais homogeneizadoras (muitas vezes enquanto políticas públicas), que visam à desconstrução e à desterritorialização de conhecimentos tácitos e culturas tradicionais. É nessa perspectiva de cultura política, ao mesmo tempo material e simbólica, que percebemos a dimensão cultural dos processos de desterritorialização. Alguns autores, com tendências culturalistas, afirmam que o próprio caráter cultural dos territórios precede e/ou se impõe sobre a natureza política. Não se trata, porém, de substituir uma visão “materialista” por uma visão “idealista” dos processos de desterritorialização (HAESBAERT, 2002, p. 39). Hoje, vendo a fragmentação territorial, associada a um processo de globalização e ocidentalização cultural planificada, em uma perspectiva instituída (oficial, hegemônica), identificamos, como conseqüência, o declínio e conseqüente deslocamento do conceito de territórios Estado-nacionais, para o fortalecimento do caráter político da noção de territórios identitários, a partir de um processo de etnicização do significado de territorialidade, em grande parte presente em diversos movimentos sociais reivindicatórios e, principalmente, na lógica do poder instituído. 184 Para além do imaginário congelado do território... Entretanto, em uma via instituinte, muito mais do que um embate entre as dimensões culturais e políticas, devemos aprofundar a relevância do tratamento das diversas possibilidades e significações de territorialização e desterritorialização, baseados nos diferentes níveis de interações complexas – levando em conta objetividades e subjetividades, sonhos e condições sociais –, que compõem as diversas tentativas de reterritorialização das comunidades tradicionais da sociedade (como é o caso das diversas tradições indígenas), no interior de uma perspectiva de garantia da autonomia, do respeito às diferenças e da dignidade humana. As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo da modernidade são as dos que assumem as tensões entre desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois processos: a perda da relação “natural” da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas (GARCÍA CANCLINI, 1997, p. 43). Entendemos, assim, que o debate sobre as diversas possibilidades da noção de território está estritamente ligado ao significado de identidade. Identidades: entre fixas e fluidas Na introdução do debate sobre os sentidos do termo “identidade”, uma perspectiva bastante esclarecedora é a da divisão em dois campos centrais de discussão, defendida por Kathryn Woodward, traduzida na tensão entre a perspectiva essencialista e a não essencialista de identidade. Para Woodward, o essencialismo identitário pode se constituir tanto pelo campo da história quanto pelo biológico, ou seja, “certos movimentos políticos podem buscar 185 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira alguma certeza na afirmação da identidade apelando seja à ‘verdade’ fixa de um passado partilhado seja a ‘verdades’ biológicas” (2000, p. 15). Na esteira dessa lógica encontramos também movimentos étnicos, religiosos, nacionalistas, etc., que, com freqüência, “reivindicam uma cultura ou uma história comum como fundamento de sua identidade” (2000, p. 15). Já para realizarmos uma aproximação ao campo não essencialista do conceito de identidade, ainda segundo a autora, precisamos de uma análise da inserção da identidade naquilo que ela chama de “circuito da cultura”, como também, concordando com Hall (1997), na “forma como a identidade e a diferença se relacionam com a discussão sobre representação” (WOODWARD, 2000, p. 16). No interior desta perspectiva, Bauman (2005), apoiado em Siegfried Kracauer, define os possíveis significados de identidade a partir da existência do que ele chama de “comunidades de vida” e “comunidades de destino”. A primeira se caracteriza pelas comunidades que “vivem juntas em ligação absoluta”; e a segunda pelas comunidades cujas ligações são “fundadas unicamente por idéias ou por uma variedade de princípios”. Para Bauman, a necessidade da definição identidade somente surge com a exposição do conceito de “comunidade de destino” (fundada por idéias), na transcendência de uma possível visão essencialista de identidade, a partir de uma compreensão fixada de comunidade de vida. É porque existem tantas dessas idéias e princípios em torno dos quais se desenvolvem essas “comunidades de indivíduos que acreditam” que é preciso comparar, fazer escolhas já feitas em outras ocasiões, tentar conciliar demandas contraditórias e freqüentemente incompatíveis (BAUMAN, 2005, p. 17). Por outro lado, ousaria afirmar a também existência de uma terceira categoria presente na articulação das di186 Para além do imaginário congelado do território... versas possibilidades de entrelaçamentos complexos entre as comunidades de vida e de destino, definidas por Bauman, que denomino “comunidades de fronteiras”. Estas comunidades se caracterizam pela possibilidade de apesar e além de “viverem juntas” (comunidades de vida), possuírem, dinamicamente, em seu interior, “multicomunidades de destino”, ou seja, uma multiplicidade de comunidades que se articulam em diferentes esferas e “variedades de princípios e idéias”. Assim, a comunidade de fronteira se situa naquilo que Homi Bhabha chama de “entrelugares”, ou seja, nos espaços de vida fronteiriços. Ao pensarmos, nesse sentido, a noção de identidade, não podemos nos fixar em duas únicas dimensões polarizadas a partir de um determinado espaço territorial, isto é, nos atermos a uma perspectiva interna e/ou externa de vidas comunitárias, e, a partir de então, realizarmos as articulações entre aqueles que pertencem (internos) e os estrangeiros (externos). Podemos ser, absolutamente estrangeiros, enquanto pertencendo. O próprio Bauman concorda com esta perspectiva quando afirma: Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas exigências individuais estão fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. Poucos de nós, se é que alguém, são capazes de evitar a passagem por mais de uma “comunidade de idéias e princípios”, sejam genuínas ou supostas, bemintegradas ou efêmeras, de modo que a maioria tem problemas a resolver... (2005, p. 18). O caminho situado nas fronteiras, ao mesmo tempo em que pantanoso, é o território da produção do outro, do “novo”, daquilo que transcende as posições fixadas. Mesmo porque, para os residentes das fronteiras, em qualquer direção que se olhe, se vê um estrangeiro. 187 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Penso que esta seja a emergência do momento da humanidade atual. Acredito ser esta a marca mais profunda do significado de diferença, em que a ruptura entre os essencialismos possíveis (“estreitos e estritos” ou “amplos e genéricos”), possa realmente se dar no “ser” e “fazer” dos relacionamentos cotidianos, marcados, necessariamente, por diferentes pertencimentos; onde, definitivamente, “rótulos” (tais como em remédios e produtos industrializados) e “marcas” (tais como em grifes e animais de rebanhos) possam ser superados. Avançamos em diversos campos, no que concerne à questão da alteridade. Mas, como nos adverte Carlos Skliar, não podemos deixar que o outro se transforme em tema, pois quando esse outro, porque marcado pela diferença, se traduz em temática, tendemos a um processo de homogeneização das diferenças e incorporamos, mesmo que sutilmente, uma dimensão essencialista. É por isso que o território dos entrelugares é o caminho do “fio da navalha”. Precisamos romper com o sentimento das alteridades fixadas e assumir as perspectivas de nossas alteridades fluidas, sem perder a dimensão dos enfrentamentos políticos. Em determinados momentos, buscando a superação das condições de opressão e violências instituídas, devemos fixar nossos campos identitários, enquanto estratégia política de enfrentamento no processo de luta contra qualquer atitude totalitária. Mas, é preciso manter a lucidez, da necessidade de rompimento das barreiras entre o “nós” e os “outros”, em uma sociedade possível, como nos alerta Todorov. É nisso, creio eu, que reside a preocupação central de Stuart Hall, quando ele assume a preferência pelo conceito de identificação, em detrimento do de identidade, muito menos pela obrigatoriedade de defini-lo categoricamente do que pelo reconhecimento do grau de complexidade presente. Assim Hall busca situar a identificação na fronteira entre sujeitos e práticas discursivas. 188 Para além do imaginário congelado do território... Hall concorda com Foucault, quando diz: “o que nos falta, neste caso, não é ‘uma teoria do sujeito cognoscente’, mas ‘uma teoria da prática discursiva’” (2000, p. 105). Por outro lado, sublinha também, que a emergência deste “descentramento” não se traduz no deslocamento da centralidade do sujeito, e mesmo da razão, em detrimento da prática discursiva, mas na acentuação da exigência de uma “outra” reconceptualização do sujeito e da racionalidade dominante. O conceito de “identificação” acaba por ser um dos conceitos menos bem desenvolvidos da teoria social e cultural, quase tão ardiloso – embora preferível – quanto o de “identidade”. Ele não nos dá, certamente, nenhuma garantia contra as dificuldades conceituais que têm assolado o último (HALL, 2000, p. 105). Da Questão Indígena: revisitando memórias A questão inicial que se levanta quando tratamos das memórias e história brasileira é: onde começa a história do Brasil? Será que somente com a chegada dos portugueses, em uma perspectiva eurocentrada? Uma segunda questão, que ao mesmo tempo demarca uma posição político-cultural e que pode muito bem responder às questões levantadas inicialmente, é a própria noção que comumente empregamos para designar o momento histórico que marcou a chegada dos europeus em nosso continente, onde, enquanto ao nos referirmos à América normalmente utilizamos o termo conquista, ao Brasil, especificamente, chamamos, na maior parte das vezes, de descobrimento. Marcadamente, a conquista territorial sempre esteve presente em nosso processo histórico, como não poderia deixar de ser, em se tratando de perspectiva colonizadora. Outro ponto central neste cenário, que se associa à luta 189 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira territorial, é a questão populacional, e, no caso brasileiro, em primeiro um momento, nos referimos à população indígena. A delimitação populacional indígena no Brasil se constitui em um amplo campo de debate e divergências entre diversos estudiosos da área. Mas, segundo Eduardo Góes Neves (2004), na transição do século XV para o XVI, existiam aproximadamente 52 milhões de indígenas na América Latina. Já John Manuel Monteiro (2004) estima entre 8 e 10 milhões somente no Brasil, e, de acordo com Manuela Carneiro da Cunha (2004), cerca de 5 milhões ocupavam estritamente a região amazônica. No limiar do século XVIII e início do XIX, a perspectiva prognóstica colonizadora era marcada pela tentativa de demarcação do tamanho original da população indígena, em consonância com o grau de declínio desta mesma população. Tal perspectiva visava a apreender as diversas possibilidades e tendências de desaparecimento das diferentes nações indígenas, quer sejam por morte (em função das diversas epidemias) ou pela assimilação cultural. Ainda segundo relatos do padre jesuíta João Danilo, os índios Macuxi e os Wapixan já ocupavam a região do extremo norte de Roraima, conhecida como Raposa-Serra do Sol e hoje foco de enormes disputas. A manutenção dos povos indígenas nas regiões de fronteira era uma estratégia colonizadora, defendida principalmente pelo então Barão do Rio Branco e por Joaquim Nabuco, visando à manutenção territorial portuguesa e que ficou conhecida como Muralhas do Sertão. Hoje, segundo, respectivamente, John Manuel Monteiro (2004) e Manuela carneiro da Cunha (2004), temos pouco mais de 200 povos indígenas e aproximadamente 270.000 índios, nas diversas etnias, em território brasileiro.2 Também atualmente, em relação à demarcação do território da região amazônica, dados importantes preci2 Dados do Censo 2000 do IBGE. 190 Para além do imaginário congelado do território... sam ser sublinhados na relação povos indígenas - empresas de capital privado. Cabe destacar que somente a Manasa Madeireira Nacional possuía, em 1986, 4 milhões e 140 mil hectares no Amazonas, área maior que a Bélgica, Holanda e Alemanha reunidas. Já a Jarí Florestal Agropecuária possui cerca de 3 milhões de hectares no Pará. Cabe destacar que o modo de produção no Brasil colônia se caracterizava pela mão-de-obra escrava. Naquele momento histórico a terra era, em última análise, posse do colonizador. Daí a estratégia de manutenção dos povos indígenas nas regiões de fronteira – tendo em vista também a forte resistência destas diversas etnias ao processo colonizador escravocrata – através das Muralhas do Sertão, tinha endereço certo. Já no final do século XIX, as mudanças estruturais nas relações sociais de produção, tendo como base a necessidade da posse da terra, como elemento central de poder no coronelismo, estabelece outras bases nas disputas territoriais e, por que não, identitárias. A expansão das fronteiras urbanas destaca-se entre os fenômenos mais significativos e, contraditoriamente, pouco reconhecidos no campo das políticas públicas governamentais. Tal fato implica sérios limites sociais e de possibilidade de vida para as comunidades tradicionais. Acreditamos que a superação destas condições limitantes de desenvolvimento social e humano poderá ser alcançada com o reconhecimento das comunidades residentes em espaços populares e tradicionais – dentre elas as aldeias indígenas – como sujeitos sociais ativos; capazes de pensar, inventar e realizar seus sonhos de uma vida mais plena e generosa. É preciso, portanto, desconstruir os estigmas que marcam os residentes destas comunidades e, em associação, buscar condições para a reconstrução de “novos protagonistas” de políticas sociais, em referenciais participativos, visando à superação daquilo que chamamos de imaginário congelado da identidade brasileira. 191 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Dentre esses, destacamos, sem a menor dúvida, os jovens das comunidades indígenas em particular, no que Aracy Lopes da Silva e Luís Grupioni definem como convívio na diferença, ou seja: A afirmação da possibilidade e a análise das condições necessárias para o convívio construtivo entre segmentos diferenciados da população brasileira, visto como processo marcado pelo conhecimento mútuo, pela aceitação das diferenças, pelo diálogo (SILVA e GRUPIONI, 2004, p. 15). Acreditamos que para construir um futuro melhor, se faz indispensável incorporar aqueles que herdarão esse mesmo futuro. Nesse sentido, as políticas públicas de combate às desigualdades sociais precisam superar a concepção de ausência e ações descontínuas, que orientaram diversos projetos, e caminhar na via da construção de políticas inclusivas para jovens e adultos, e em especial, neste caso, de comunidades indígenas. Ainda na perspectiva de Silva e Grupioni: Nestes tempos de violência generalizada no país, a reflexão sobre os povos indígenas e sobre as lições que sua história e suas concepções de mundo e de vida social podem nos trazer, aliada ao exame dos modos de relacionamento que a sociedade e o Estado nacionais oferecem às sociedades indígenas constituem um campo fértil para pensarmos o país e o futuro que queremos (2004, p. 15 e 16). Nossa proposta se inspira em uma concepção horizontalizada de ação pública, bem como, no envolvimento dos jovens e adultos moradores de diversos espaços tradicionais de fronteira nas mais diferentes aldeias indígenas. Nessa perspectiva, devemos identificar a dinâmica das concepções, ausências institucionais e as novas formas de organização das políticas públicas, nos mais va192 Para além do imaginário congelado do território... riados campos da questão indígena, como também ações instituintes, que dizem respeito à superação das condições de exclusão, abandono, omissões e violências, nas diferentes aldeias e etnias indígenas, que compõem o cenário cultural brasileiro. Um dos campos marcadamente grifado pelas lutas históricas dos diferentes povos indígenas, visando a superação deste quadro de ausências institucionais, é o educacional. Entendemos que um dos caminhos possíveis de políticas públicas em educação indígenas mais conseqüentes está na criação de diagnósticos participativos socioculturais e econômicos que, por definição ética e política, contribuam para a construção de práticas educativas que levem em conta as estratégias cotidianamente construídas pelos diversos grupos étnicos, cujo objetivo maior tem como referência a superação das desigualdades e violências sociais, marcantemente vivenciadas nos espaços de fronteira. A implantação de projetos escolares para a população indígena é quase tão antiga quanto o estabelecimento dos primeiros agentes coloniais na Brasil. A submissão das populações nativas, a invasão de suas áreas tradicionais, a pilhagem e destruição de suas riquezas, etc. têm sido, desde o século XVI, o resultado de práticas que sempre souberam aliar métodos de controle político a algum tipo de atividade escolar civilizatória (SILVA e AZEVEDO, 2004, p. 149). Mas esta é, com certeza, a temática central de um próximo trabalho. 193 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Bibliografia BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ______. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas, v. 1, 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. V. 1, 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1996. ______. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. V. 2, 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2003. CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. 2 ed. Bauru: Edusc, 2002. CUNHA, M. C. da. O futuro da questão indígena. In: SILVA, A. L. da; GRUPIONI, L. D. B. (Orgs). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. 4 ed. São Paulo: Global; Brasília; MEC: MARI: UNESCO, 2004. DIEHL, A. A. 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Ao tratar das relações históricas dos povos indígenas com o entorno regional, verificamos que eles já utilizaram Em um trabalho anterior (SECCHI, 2002), discuti a noção de protagonismo indígena a partir de um duplo enfoque: enquanto uma atitude de rompimento com as relações de tutela e submissão e, enquanto o exercício de cargos ou representações de destaque no cenário das relações interculturais. 1 197 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira diversas estratégias para suprir as demandas geradas pelo contato, tais como as prestações de serviços, o comércio e trocas simbólicas, os casamentos interculturais, os raptos, saques, guerras, etc. Porém, nas últimas décadas, constatamos uma mudança substancial nesses procedimentos. Atualmente as comunidades indígenas encontram nas políticas públicas as principais fontes de recursos externos, especialmente como forma de atender às demandas de educação escolar, saúde e economia. Porquanto, é oportuno avaliar qual tem sido a matriz que orientou até aqui as relações entre o poder público e as comunidades especificas, sejam elas negras, indígenas, pobres, etc. Será curioso constatar que, nas últimas décadas, essas relações se alteraram progressivamente. Ocorreram contextos de completa desatenção ou de exclusão desses segmentos, seguidos por iniciativas de inclusão tolerada, depois de inclusão solidária e, finalmente, de atitudes e práticas dialógicas, isso é, de relações igualitárias entre múltiplos protagonistas. No campo da educação escolar indígena constatou-se um processo de institucionalização da escola e de aprimoramento do seu perfil mais adequado. A escola indígena foi concebida sob vários enfoques, especialmente como uma ferramenta que ajuda a conhecer o “mundo dos brancos”; facilita o trânsito entre as culturas; defende o território indígena; dá acesso a novos espaços socioculturais e possibilita a reconstrução dos projetos de futuro. A consolidação de uma nova perspectiva para a educação escolar indígena em Mato Grosso na última década foi possível graças a um amplo programa de formação de professores cujas linhas gerais e resultados alcançados serão objeto de análise no final do capítulo. Tal tarefa, porém, não coube apenas aos professores e à escola. Foi necessário conjugar a educação escolar a outras iniciativas que procuraram superar as atuais políticas compensatórias e se propunham a cons198 Formação de professores para a autonomia indígena truir relações pautadas na autonomia e no protagonismo dos brasileiros indígenas que vivem nas aldeias ou nas cidades. 2 As escolas indígenas sob múltiplas perspectivas Todas as sociedades têm a capacidade de agregar os elementos culturais externos que necessitam para o seu desenvolvimento. A instituição escolar caracterizase como um desses elementos e tem uma grande capacidade de promover a autonomia ou de engendrar a dependência, uma vez que viabiliza o ingresso de conteúdos financeiros, organizativos e informativos até então indisponíveis no meio cultural de uma determinada comunidade. O novo fluxo sistemático de recursos que a escola proporciona se distingue em forma e em conteúdo dos procedimentos tradicionais utilizados para a geração de excedentes. O montante dos valores viabilizados por meio de equipamentos, alimentação, salários, etc. é bastante significativo e enseja o surgimento de dinâmicas sociais antes não existentes. O impacto da escola em decorrência dos seus conteúdos organizativos é, certamente, o mais explorado pela literatura, quer por sua visibilidade, quer por seus efeitos sobre as formas tradicionais de organização social. Por se tratar de uma instituição que desenvolve atividades de longa duração, estabelece uma nova ordem espaciotemporal que afeta substancialmente a tessitura intra-societária. Em muitos casos, a escola é o elemento cultural externo que ocupa a maior parcela do tempo diário, permanece nas aldeias por muitas décadas e raramente é finalizado2. São raríssimos os casos de sociedades que conheceram a escola e posteriormente tiveram condições de “livrar-se” dela... 2 199 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Enquanto geradora de conteúdos informativos, a escola indígena agrega conhecimentos externos, conferelhes significados e os disponibiliza para eventuais utilizações no cotidiano sociocultural do sistema. Portanto, o seu potencial de geração de autonomia ou de dependências estará relacionado diretamente à natureza dos conteúdos externos que forem incorporados e ao grau de controle que obtiver sobre eles. Nesse sentido, assemelha-se a qualquer outro elemento cultural externo, seja ele um equipamento, uma tecnologia ou um serviço. Se por um lado propicia ao sistema um potencial informativo suficiente para reposicioná-lo frente às novas realidades, por outro, impõe-lhe seus traços característicos, isto é, a sua condição de conhecimento externo. Desde essa perspectiva, a escola indígena geradora de autonomia será aquela que agregar os recursos financeiros, organizativos e informativos disponibilizados pelo meio externos e exercer um crescente controle sobre eles. Como qualquer outra instituição socialmente instituída, a escola indígena assume características que lhe conferem uma maior ou menor adequação às expectativas individuais e grupais e pode ser incorporada com diferentes graus de autonomia, coerência, participação ou imposição. Para uns, trata-se de um elemento cultural apropriado, ressignificado e transformado em uma nova categoria de escola – a escola indígena. Para outros, caracteriza-se como uma instituição trazida pelos colonizadores e adaptada ao cotidiano dos povos ameríndios. As suas características expressas na legislação (específica, diferenciada, bilíngüe, intercultural) são percebidas apenas como “ajustes” para melhor atender aos objetivos colonialistas. Esses dois extremos sinalizam os limites e possibilidades das escolas indígenas e o seu grau de convergência com os projetos societários de cada povo. Em um dos pólos estaria a escola respeitosa, libertadora e promotora da autonomia indígena; no outro, a escola etnocêntrica, integracionista e promotora de dependências. A escola 200 Formação de professores para a autonomia indígena associada ao domínio de códigos alienígenas é contraposta à escola efetivamente indígena, disseminadora dos valores autóctones. Nessa última perspectiva a escola se torna um centro de irradiação intercultural que se estende ao domínio das ciências, linguagens, ética e cidadania. Portanto, uma escola que “sabe dizer e sabe fazer”, isto é, uma instituição com o discurso e a prática voltados para a construção e reconstrução cultural. Ainda que as perspectivas expressem percepções divergentes, ambas sugerem um movimento no sentido de apropriar-se de novos conhecimentos e de reinterpretá-los e incorporá-los, ora individual, ora coletivamente, no cotidiano social, econômico, político e cultural das respectivas comunidades. 3 Políticas públicas para o protagonismo indígena A “conquista da escola” pelas sociedades indígenas não pode ser dissociada de outras lutas e desafios, como a demarcação e a gestão territorial, a melhoria das condições de alimentação e saúde, o acesso a fontes alternativas de renda e o usufruto de bens e serviços disponibilizados pela sociedade moderna. Cabe ao poder público e às instituições sociais acolherem essas reivindicações e transformá-las em ações concretas, segundo as especificidades e as responsabilidades de cada um. A história brasileira, porém, mostra que nem sempre existiu essa preocupação. Até a década de 1970 houve pouca (ou nenhuma) participação indígena na definição das políticas públicas. As raras iniciativas do órgão tutor ou das agências externas eram desenvolvidas sobre as terras indígenas sem o consentimento ou a participação da população. A partir de 1970 até meados da década de 1980 ocorreu um processo de inclusão compulsória dos indígenas nos programas oficiais voltados para a integração 201 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira nacional e para o desenvolvimento do Centro-Oeste e da Amazônia. Como os governos objetivavam a captação de empréstimos externos para a região, era necessário mediar os conflitos e amenizar os impactos decorrentes da nova ocupação territorial. Essa aparente inclusão serviu também como resposta à opinião pública internacional que cobrava do governo brasileiro um tratamento mais adequado às populações indígenas afetadas pelos programas de desenvolvimento financiados por organismos internacionais. Em alguns casos, a liberação de recursos externos foi condicionada à implantação de políticas públicas efetivas em áreas indígenas; em outros, limitou-se a ações mitigatórias para compensar danos causados pela construção de rodovias, hidrelétricas e outras iniciativas oficiais no interior ou no entorno das áreas indígenas. Uma terceira forma de relação entre o poder público e as comunidades indígenas consolidou-se ao longo do processo constituinte e se estende até os dias atuais. Caracteriza-se pela chamada política de inclusão solidária e é expresso por um conjunto de iniciativas de caráter assistencial que contam com a participação indígena e que procuram “resgatar os valores étnicos, culturais e de cidadania”. Os projetos educacionais são associados a projetos similares no campo economia, da saúde e da segurança alimentar. Fundam-se nos direito constitucional e no “compromisso moral que devemos ter com os nossos irmãos índios, com eles que foram os primeiros habitantes do Brasil”. Esse modelo de política pública representa um avanço em relação aos períodos anteriores, porém as ações ainda continuaram sendo geridas pelas agências financiadoras e/ou pelas equipes técnicas não indígenas. Uma nova perspectiva de políticas públicas está florescendo nos últimos anos e se projeta como uma alternativa viável para o futuro. É caracterizada por ideais e por ações que procuram construir o protagonismo indígena. Concebe as políticas públicas como uma parte integrante do plano de vida de um povo ou de uma comu202 Formação de professores para a autonomia indígena nidade. Leva em consideração os múltiplos aspectos que compõem a participação indígena, desde a definição das prioridades, a elaboração de projetos, a busca de financiadores, o planejamento e a administração dos recursos, o acompanhamento das ações, a avaliação, os registros e a replicação das iniciativas promissoras. Ao propor o protagonismo indígena reconhece a importância de manter o diálogo com todos os atores sociais e com todas as instâncias do poder público. Não se trata, portanto, de um protagonismo excludente, mas aberto a todos os que desejam cooperar com o movimento indígena na construção de uma sociedade saudável, fraterna e feliz. Feitas essas considerações, daremos destaque a seguir a uma iniciativa desenvolvida em Mato Grosso que é considerada como uma experiência inovadora e demonstrativa de uma política pública voltada para a ampliação da autonomia indígena. O seu aperfeiçoamento, consolidação e replicação poderá representar um passo importante no desenvolvimento de outras iniciativas voltadas para o protagonismo das sociedades indígenas no Brasil. 4 Formação de professores para o protagonismo indígena 4.1 Síntese geral do projeto Trata-se de uma iniciativa de formação de professores indígenas em serviço desenvolvida pela Secretaria de Estado de Educação e pela Universidade do Estado de Mato Grosso, em parceria com uma dezena de instituições públicas federais, estaduais, municipais e ONGs. O programa teve início em meados da década de 1990 e foi resultado de uma ampla articulação entre representantes indígenas, poder público e entidades indigenistas com assento no Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso. 203 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Em sua primeira etapa, priorizou a formação de 200 professores indígenas em nível médio e a regularização de mais de uma centena de escolas localizadas nas aldeias. Nos anos seguintes foi responsável pela implantação dos Cursos de Licenciaturas Específicas para Professores Indígenas nas áreas de Ciências Sociais; Ciências Matemáticas e da Natureza e, Línguas, Artes e Literatura. As primeiras turmas totalizaram 180 professores de Mato Grosso e 20 de outros estados brasileiros. Atualmente esses professores já concluíram os cursos superiores e estão atuando em suas respectivas escolas. Outras turmas estão em processo de formação em diversos cursos de graduação e pósgraduação. Em um período de dez anos a Universidade do Estado de Mato Grosso se propõe a formar em torno de 350 professores pertencentes a mais de 40 sociedades indígenas de Mato Grosso e do Brasil. O propósito de desenvolver um processo de formação voltado para a solidariedade e a autonomia está presente nas diferentes fases do projeto, desde a escolha dos cursos, a construção dos currículos, a escolha do campus universitário, a definição dos quadros docentes, a composição das instâncias de representação colegiadas, a elaboração das normas e regimentos e todos os demais atos de interesse coletivo. Mais recentemente, a Universidade do Estado de Mato Grosso está considerando a possibilidade de ampliar o programa e de destinar um campus específico para atender à população indígena. Tal medida poderá ensejar no médio prazo a consolidação de uma Universidade Autônoma dos Povos Ameríndios, um antigo sonho acalentado nas florestas, cerrados, charcos e montanhas da LatinoAmérica-Indígena. A política de formação de professores e de regularização das escolas indígenas foi reforçada por outras iniciativas similares. No campo da saúde foi desenvolvido o Programa de Formação de Agentes Indígenas de Saúde e instalados os Distritos Sanitários Especiais Indígenas. No 204 Formação de professores para a autonomia indígena campo da economia foram implantadas ações voltadas para a gestão de projetos econômicos, utilização sustentada dos recursos naturais, produção e comercialização de artesanato, mel e produtos agrícolas. Apoiou-se também a organização e representação indígena em diferentes fóruns, conselhos e outras instâncias de deliberação coletiva. Esse conjunto de ações articuladas gerou um ambiente favorável à inclusão dos “assuntos indígenas” na pauta de outras instituições sociais (mídia, escolas urbanas, agências de fomento, etc.) o que lhe conferiu maior reconhecimento e visibilidade. De outra parte, serviu também para amenizar as manifestações contrárias ao avanço das frentes de exploração agrícola, pastoril, minerária e madeireira que se expandem desordenadamente por todo território mato-grossense. 4.2 As etapas do ritual de formação Como foi dito, a escola é uma instituição sancionada nas sociedades ocidentais e em processo de consolidação em inúmeras sociedades indígenas. Ao se instituir como escola indígena ela incorpora os conteúdos e os significados próprios das sociedades que passam a adotá-la, mas carrega também as características históricas das sociedades que a adotaram anteriormente. Com os professores indígenas não é diferente. O seu perfil é instituído a partir de diferentes expectativas que sintetizam aquilo que os indivíduos, a comunidades e o poder público esperam desse novo ator social. No caso dos professores indígenas de Mato Grosso, um dos principais critérios para o credenciamento dos candidatos ao cargo docente é a sua participação nos cursos de formação. No nosso imaginário, o ingresso e a passagem do professor por esse lugar físico e simbólico assegurará as condições preliminares para o exercício docente, uma vez 205 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira que o “iniciado” terá atendido às condições (imaginadas) necessárias para a sua confirmação profissional. O processo de formação supõe o cumprimento de uma série de eventos que começa com a escolha dos candidatos, passa pelo ritual de acesso, se desdobra por diversos rituais de passagem, depois pela atribuição pública de grau e, finalmente, pela nomeação e confirmação no respectivo cargo. O ponto crítico desse processo, a nosso ver, reside no fato de que, aparentemente, em nenhuma das fases desse ritual que se estende ao longo de cinco anos, o professor indígena detém o controle do processo de formação. Na condição de iniciando, está submetido aos desígnios de outrem. Vejamos algumas dessas situações: a) O candidato que pretende se inscrever ao processo seletivo precisa atender a requisitos legais como os da idade adequada e formação mínima e depois submeter a sua “candidatura” ao o aval da comunidade que referendará ou não o seu pleito; b) O ingresso nos cursos de formação supõe a aprovação em uma prova escrita ou entrevista realizada pelo poder público ou pela instituição de ensino; c) A condição de cursista de nível médio ou superior é assegurada após o atendimento de uma série de requisitos, como o afastamento temporário da aldeia, aceitação de convívio em alojamentos coletivos, confirmação de matrícula, cumprimento de horários, etc. d) A aprovação propriamente dita no curso supõe o atendimento de outras inúmeras exigências, tais como o domínio do conteúdo das disciplinas e a 206 Formação de professores para a autonomia indígena comprovação de resultados. Esses procedimentos constituem a principal estratégia de transformação formal do cursista em professor; e) O ritual de formatura ou atribuição de grau completa o ciclo de preparação e assegura ao cursista a condição de iniciado nos serviços docentes. Esse ritual atende a dois objetivos complementares: o coroamento do esforço individual dos estudantes e a chancela de um grau, isso é, a confirmação da licença para ocupar “de direito” o espaço institucional de professor; f) Uma vez formado, o professor será submetido ao concurso público e posteriormente ao ato de nomeação ao cargo. Um eventual insucesso nessa fase representaria um descredenciamento de todas as etapas anteriormente. 4.3 Uma tentativa de interpretação Se analisarmos a “maratona” de formação desde a perspectiva do poder público, ela nos parecerá pertinente e adequada. Afinal, é assim que opera a sociedade moderna cujos ideários professam a individualidade, a competição, a hierarquia, a profissionalização, etc. Mas será que essa lógica é igualmente hegemônica nas sociedades indígenas? Será que os seus ideais de formação são convergentes com os da sociedade liberal? As respostas parecem óbvias, mas ainda assim, suscitam algumas questões intrigantes. Vejamos. Ainda que os cursos de formação não tenham sido concebidos expressamente sob a lógica de um longo ritual de iniciação, os acadêmicos parecem interpretá-lo desse modo. Que outro desafio ou meta lhes seria mais estimulante do que o de vencer todas as etapas de um ritual tão 207 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira complexo e seleto? Que outra conduta teriam senão a de se submeter voluntariamente às normas de uma nova comunidade educativa que se propõe a desafiá-lo para um ritual complementar de iniciação e passagem? Nos processos de formação tradicionais – os que são adotados pelas sociedades para formar um “bom Xavante”; um “bom Bakairi”, etc. – a desistência é tida como rara e excepcional. Afinal, ela enseja a negação do indivíduo como pessoa e cria um “limbo” social acusativo: “Você desistiu! Não conseguiu ser um dos nossos!” Se verificarmos as desistências de professores e professoras ao longo dos cursos de formação, constataremos que, também lá, ela foi insignificante, senão nula. Tal coincidência poderá sugerir que o ritual de formação estaria sendo interpretado pelos cursistas de forma diversa daquela esperada pela instituição formadora. Em vez de ensejar a construção de uma identidade profissional os cursos estariam sendo percebidos como etapas de um novo ritual de passagem, um desafio quase impossível de ser abandonado. Uma das principais características dos processos de formação da sociedade moderna é a competitividade. As classificações, reprovações ou exclusões são tidas como resultados “naturais”. Aliás, é comum que duas pessoas disputem uma única vaga e que o vencedor comemore a derrota do outro sem cerimônias... Essa jamais foi a conduta predominante dos professores indígenas. De um modo geral, todos zelam por todos! No ambiente dos cursos de formação existe de fato uma comunidade educativa que se une, se resguarda e se afirma em relação aos demais atores. É esse “espírito de corpo” que nutre o pertencimento momentâneo dos “acadêmicos indígenas” e mais tarde, dos “professores indígenas”, uma nova categoria social e profissional que se estabelece nas comunidades sem eliminações nem disputas. Ao concluírem o período de “clausura”, os acadêmicos retornam às suas comunidades como aprendizes de 208 Formação de professores para a autonomia indígena um ofício, desinformados das novidades, cheios de favores a retribuir, enfim, alvos fáceis de diversos interesses. Mas também levam consigo histórias, saberes, prestígio e salários. Salários, aliás, que os colocam em situação confortável, em pé de igualdade com os outros “funcionários” (indígenas ou não) e com as lideranças tradicionais do lugar. Dessa conjugação resultam as mais variadas dinâmicas que, em linhas gerais, darão os limites do seu desempenho pessoal e profissional. Existem professores que trabalham em tempo integral; professores sem sala da aula; alguns ensinando os conteúdos aprendidos nas licenciaturas; outros competindo com a programação da televisão e com o futebol de cada dia, e assim por diante... Todos são reconhecidos como professores indígenas, e toda essa diversidade de situações é chamada de escola indígena. Ao se confirmar no cargo, o professor indígena submete-se a uma tripla fidelidade, nem sempre fácil de conciliar: fidelidade ao seu projeto individual; fidelidade ao plano de vida da comunidade e fidelidade às normas e orientações do poder público. É no exercício diuturno dessas fidelidades que o professor toma as decisões que interferem diretamente no cotidiano da escola. É essa conjugação de forças que definirá, por exemplo, qual será o currículo da escola, o calendário letivo ou as condições aceitáveis para a sua saída da aldeia e assim por diante. É legítimo que o professor tenha poder de decisão, afinal, é um profissional que se submeteu a tantos anos de preparação. Mas é igualmente legítimo que a comunidade decida, afinal, se a escola está ao seu serviço! Por fim, o poder público também tem legitimidade para decidir, aliás, assim determina a legislação... Dada a pouca presença do poder público nas escolas, essas decisões, de um modo geral, são negociadas entre os professores e suas respectivas comunidades. Existem aldeias em que o professor é a principal liderança e acumula força suficiente para impor as suas condições. Por conseguinte, tem possibilidade de 209 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira controlar pessoalmente o funcionamento cotidiano da escola. Em outras palavras, o professor representa apenas um grupo familiar, o que o obriga a negociar as condições do funcionamento com as demais forças locais. Há, ainda, situações em que o professor não conta como apoio formal da comunidade, o que o torna mais vulnerável às pressões e interesses. O exercício do controle social supõe um estreitamento das relações entre todos os atores sociais envolvidos com a escola, particularmente entre os professores, as comunidades e o poder público. No entanto, isso ainda não acontece em muitas escolas. Ao contrário, em algumas o movimento tendencial parece apontar para um pacto implícito entre esses atores, o que resulta numa escola apenas simbólica, isso é, uma escola em que o diferenciado é expresso pela carência factual: poucos conteúdos, poucos materiais, poucas aulas, poucos alunos, pouca importância, pouco salário, poucas cobranças e também poucos resultados... Nessas situações, verifica-se uma enorme discrepância entre o que foi idealizado retoricamente como o perfil desejado pelas comunidades e agências formadoras e o que se realiza concretamente no cotidiano das escolas. Inversamente, ocorrem situações em que o compromisso pessoal do docente, aliado ao controle social da comunidade ou de agentes externos (missões e prefeituras), resulta num “formato de escola” muito próximo ao desejado pelas comunidades, proposto pela instituição formadora e ratificado pela legislação vigente. Diante de situações tão díspares é oportuno perguntar em que medida os cursos de formação podem otimizar esse quadro? O educador Bartomeu Meliá (1997) parece não ter dúvidas: para que os cursos se tornem efetivamente espaços educativos é necessário que deixem de ser uma mão estendida oferecendo dádivas para se tornarem o movimento de dezenas de mão a elaborar os saberes al210 Formação de professores para a autonomia indígena mejados pelos acadêmicos e por suas comunidades. Ou, dito de outra forma: a formação em serviço não pode ser vista como a “oferta” de um passaporte para os que resistirem até o final da maratona, mas a construção coletiva de caminhos que conduzam a uma escola indígena voltada para os interesses e necessidades de suas comunidades. 5 Conclusão O “modelo oficial” de escola indígena foi definido na legislação por um conjunto de adjetivos (específica, diferenciada, bilíngüe e intercultural) e por atitudes valorativas como o respeito pelos saberes, pelas metodologias e pelos processos próprios de aprendizagem. Esse ideário está contido num escopo normativo (diretrizes, referencial, parâmetros, resoluções, pareceres, etc.) que objetiva garantir a especificidade e a diferença, mas que pode resultar também no disciplinamento e na padronização das escolas, retirando-lhe o direito à iniciativa e ao controle do seu processo escolar. O ideário oficial inculcou no imaginário e no discurso das equipes técnicas e dos próprios professores indígenas um modelo de escola que está sendo difícil, senão impossível de ser implementado na realidade concreta das aldeias. No que trata dos processos de formação docente a situação é similar. Os programas “oferecidos” aos professores “em serviço”, não são apenas um meio de lhes assegurar a manutenção do cargo, mas também o lugar físico e simbólico em que se padronizam as expectativas. Os cursos de formação instituem a forma e o conteúdo profissional, ético e político dos docentes por meio de um conjunto de rituais sobre os quais as comunidades e os próprios acadêmicos aparentemente têm pouco controle. Nessa perspectiva a pedagogia utilizada não poderia ser outra senão a dos rituais de confirmação da sociedade 211 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira moderna, isso é, o ritual da profissionalização. “Cumpra esses requisitos e serás um profissional!” Ao retornarem às aldeias, porém, os professores se deparam com outra “lógica” que orienta a vida social. A noção de profissionalismo é bem diversa daquela proposta pela sociedade moderna. Ninguém suportaria, por exemplo, um pajé exercendo os seus serviços especializados de forma democrática, dia após dia e com horário marcado. O mesmo não se esperaria de um cantor, de um ervateiro ou de um rezador. O exercício dos cargos e serviços disponíveis nas comunidades exige uma liturgia e uma conduta que resguardam os saberes especializados e os mantêm sob o domínio de poucos. Por isso, não lhes é estranho o argumento de um estudante que questiona a assiduidade do seu professor nos seguintes temos: Não sei por que você insiste tanto em dar aula todos os dias. Não precisa mais mostrar que você é professor, aqui todos já sabem! Quando a gente precisar de aula, vai na sua casa e lhe chama, ta bom! A situação inversa também parece corroborar o mesmo raciocínio. Alguns professores se mostram arredios às salas de aula e só as ocupam esporadicamente, após insistentes pedidos da comunidade. Naquelas ocasiões se revestem de liturgia e pompa, apresentam dinâmicas e conteúdos espetaculares (preferencialmente os que consideraram mais difíceis nas Licenciaturas) e proclamam publicamente o seu saber e erudição. Depois retornam a vida cotidiana, certos de que quando a comunidade necessitar novamente dos seus serviços voltará a solicitá-los. Dessa forma, mantêm o cargo, o prestígio e um ‘estoque’ confortável de saberes acumulados ao longo do seu processo de formação. Existem ainda escolas em que as aulas ocorrem regularmente, com horários e conteúdos previamente definidos, com sineta, bandeira, chamada, merenda, recreio e todos os demais símbolos que caracterizam o arsenal das escolas tradicionais. Essas também são escolas indígenas 212 Formação de professores para a autonomia indígena e os seus professores freqüentaram os mesmos programas de formação que os anteriores. As situações acima indicam que ainda existe pouco consenso acerca daquele que seria o perfil docente mais adequado para a construção de escolas indígenas protagonistas. À guisa de conclusão, gostaríamos de propor algumas medidas diretamente relacionadas aos processos de formação que, a nosso ver, poderiam contribuir para o aperfeiçoamento das iniciativas desenvolvidas atualmente em Mato Grosso e em outros estados do Brasil. Dentre elas, destacamos: a) Reduzir o distanciamento (ou discrepância?) existente entre o “modelo” de escola indígena proposto nos cursos de formação e o efetivamente realizado nas aldeias. Tal medida supõe uma ampliação significativa da presença das agências formadoras e do poder público nas escolas das aldeias; b) Propiciar maior envolvimento dos acadêmicos com a construção e direcionamento do projeto pedagógico dos cursos de formação para que não sejam interpretados como meros requisitos externos com o propósito de lhes conferir a condição de iniciados. Em outros termos: os cursos de formação devem ser percebidos como espaços para a construção coletivamente do profissionalismo do docente indígena em vez de clausuras onde cumprem longos rituais de passagem ao status de docentes; c) Reforçar o vínculo dos acadêmicos com as suas respectivas comunidades ao longo do processo de formação como forma de se contrapor à tendência corporativa ou burocrática que se institui no ambiente dos cursos. O professor indígena de213 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira verá ter presente a sua fidelidade primeira com a comunidade, juntamente com o seu projeto pessoal e com outros vínculos que vier a estabelecer com o poder público; d) Subsidiar as comunidades para que ampliem a sua participação nas decisões que afetam a escola e se tornem protagonistas juntamente com os professores e com o poder público. Até aqui o poder público investiu maciçamente no professor indígena. É necessário reverter a “curvatura da vara” investindo também na participação qualificada das comunidades; e) Discutir com as comunidades e com as administrações municipais uma política de contratação dos professores indígenas que leve em conta a legislação em vigor, bem como as normas tradicionais de cada sociedade. As noções de vaga, concurso, efetivação, lotação, remoção, licença, etc., não são suficientemente reconhecidas e avaliadas pelas comunidades e pelos professores indígenas; d) Rever a estratégia atualmente centrada na figura do professor e criar situações pedagógicas reais que garantam a presença qualificada dos três segmentos (docentes, comunidade e poder público) no cotidiano escolar. Ou dito de outra forma: exigir que o poder púbico invista no cotidiano das escolas e das comunidades educativas de maneira semelhante que fez na formação dos seus professores. Sem a articulação entre os três segmentos, a escola indígena não será um instrumento pleno de luta e de defesa dessas sociedades. A iniciativa de formação de professores destacada nesse capítulo é um exemplo de uma nova percepção de 214 Formação de professores para a autonomia indígena política pública que considera o cidadão um protagonista do seu Plano de Vida e não apenas um cliente ou usuário dos serviços oferecidos pelo Estado. As políticas públicas dirigidas a grupos minoritários de qualquer natureza devem ser concebidas, implantadas, avaliadas e replicadas com a participação de todos os segmentos, especialmente daqueles para os quais as ações se destinam. O empenho do poder público em ampliar a participação indígena em todas as fases do desenvolvimento das políticas constitui-se na forma mais adequada para qualificá-la e para possibilitar que as comunidades exerçam o controle crescente sobre as demandas advindas do convívio intersocietário. Acreditamos que cabe ao poder público, às instituições formadoras e às comunidades indígenas consolidar os caminhos da sua autonomia por meio dessas e de outras medidas que promovam o protagonismo de todos os segmentos e assegurem o diálogo intercultural. Dessa forma, as políticas públicas em geral, e dentre elas as que tratam da democratização do acesso e do percurso dos cidadãos na escola, deixarão de ser apenas ações emergenciais ou compensatórias de alcance duvidoso e passarão a se constituir em espaços de liberdade, de autonomia e de afirmação de todos os cidadãos brasileiros que vivem nos campos e nas cidades. 215 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Bibliografia utilizada BATALLA, G. B. Pensar nuestra cultura. Ciudad de México: Alianza Editorial, 1992. BRAND, A. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da palavra. Tese de doutorado, Porto Alegre: PUC/RS, 1998. BRASIL. Lei Federal n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001 – Plano Nacional de Educação. Brasília: 2001 CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2000. CEI/MT, Conselho de Educação Escolar Indígena do Estado de Mato Grosso. Urucum jenipapo e giz: a educação escolar indígena em debate. Cuiabá: Seduc, 1997. MEC. Diretrizes para a política nacional de educação escolar indígena. Cadernos de educação básica, série institucional, vol. 2. Brasília: MEC, 1993. ______. Plano decenal de educação para todos - 1993-2003. Brasília: MEC, 1994. MELIÁ, B. Ação pedagógica e alteridade: por uma pedagogia da diferença. In: SECCHI, D. (Org). Ameríndia: tecendo os caminhos da educação escolar indígena. Cuiabá: SEDUC/ CEI/MT/CAIEMT, 1998. SECCHI, Darci. Professor indígena: a formação docente como estratégia de controle cultural em escolas indígenas de Mato Grosso. Tese de doutoramento PPGCS-PUC. S. Paulo: PUC-SP, 2002. SEDUC. A construção coletiva de uma política de educação escolar indígena para Mato Grosso (versão preliminar). Cuiabá: Seduc/CAIEMT/CEI/MT, 2001. ______. Formatura como avaliação e rito. Cuiabá: Seduc/ Projeto Tucum, 2000. ______. Projeto Tucum: programa de formação de professores indígenas para o magistério. Cuiabá: Secretaria de Estado de Educação, 1995. 216 Formação de professores para a autonomia indígena SEDUC/CAIEMT/CEIMT. Diagnóstico da Realidade Escolar Indígena de Mato Grosso. Cuiabá: Seduc, 2001. UNEMAT. 3º grau indígena: projeto de formação de professores indígenas. Barra do Bugres: Universidade do Estado de Mato Grosso, 2001. ______. Relatório da VIII etapa de estudos presenciais (turma 2001) e I etapa de estudos presenciais (turma 2005). Barra do Bugres: Universidade do Estado de Mato Grosso, 2005. 217 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas na Universidade Lucilia Augusta Lino de Paula Temos direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. Boaventura Souza Santos Os debates sobre a instituição do sistema de cotas nas universidades públicas brasileiras trazem à luz resistências à institucionalização da adoção de políticas afirmativas e ao reconhecimento de tensões nas relações étnicoraciais no interior do campo acadêmico. A polêmica que cerca esse debate na atualidade demonstra que se, hoje, a universidade apresenta uma crescente produção científica1 sobre a temática da diversidade cultural e das relações étnico-raciais, quando o assunto é a democratização do acesso às camadas populares, mais especificamente à população afro-descendente, as resistências são enormes. Estudos, projetos e eventos vinculados a programas de pós-graduação e linhas de pesquisa em diversas universidades; programas de incentivo a pesquisas com apoio do governo federal e de fundações internacionais, como a Fundação Ford, e inúmeras publicações são exemplos do crescimento da produção sobre multiculturalismo e as relações raciais na educação e na sociedade brasileira, desenvolvidas em sua maioria no âmbito das universidades que concentram o maior número de pesquisadores do país. 1 219 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Podemos mesmo afirmar que este é um dos grandes desafios com que a universidade brasileira se depara desde a reforma universitária de 1968, colocando em xeque concepções e práticas arraigadas e marcadas pelo elitismo e pela meritocracia. Sabemos que, a partir do processo de democratização da sociedade brasileira, a luta pelo acesso à cidadania deu visibilidade a segmentos sociais, oriundos das camadas populares, antes marginalizados. Vimos, nas duas últimas décadas, a intensificação do debate sobre a exclusão/inclusão socioeconômica de amplas parcelas da população a serviços essenciais, entendidos e estendidos como direitos de cidadania, dentre os quais o acesso à escolarização. A ampliação da obrigatoriedade escolar e a quase universalização do ensino fundamental provocaram um aumento progressivo da demanda das camadas populares pelo ensino médio e, em decorrência, pelo ensino superior. Entretanto, com a ampliação da demanda também se acirrou o processo de massificação do ensino superior, que se deveu, principalmente, à proliferação de instituições privadas, que cresceram 983% nas matrículas, de 1966 a 1976, a maior parte das vagas em cursos de baixa qualidade (Inep, 2000). Entretanto, ao crescimento do ensino superior privado correspondeu uma redução drástica dos investimentos nas instituições públicas, principalmente no governo Fernando Henrique Cardoso. Paralelamente, o aumento da oferta da educação básica pela rede pública foi marcado por uma crescente deterioração da qualidade do ensino oferecido, reduzindo as chances de seus egressos disputarem em igualdade de condições os concursos vestibulares das universidades públicas, que ostentam índices de excelência acadêmica. Assim, estabeleceu-se um paradoxo perverso: aos alunos provenientes da rede privada destinam-se as vagas das universidades públicas e aos oriundos da rede pública restam os cursos oferecidos pela rede privada. As possibilidades de acesso ao ensino supe220 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... rior pelas camadas populares são geralmente mais amplas na rede privada, que oferece um número maior de vagas, portanto menos disputadas, e cursos no período noturno. As instituições públicas, federais e estaduais, oferecem um número mais reduzido de vagas, e, dada a sua gratuidade e imagem de qualidade elevada, possuem alta relação candidato/vaga nos concursos vestibulares, exigindo escores cada vez mais altos, o que impede que candidatos oriundos da rede pública, em sua maioria de baixa renda, padrão em que se encontra a maior parte da população afro-descendente, obtenha o sucesso esperado. Confirmando este quadro, o predomínio da oferta de vagas e cursos nas instituições públicas se dá em horário integral ou no período diurno, o que dificulta que os estudantes conciliem trabalho e estudo, afastando a classe trabalhadora dos bancos das universidades públicas e direcionando sua “opção” para as instituições particulares. Os custos de manutenção de um estudante na rede pública são também elevados, apesar da gratuidade, pois continua a demanda por alimentação, transporte, livros e equipamentos, que grande parte das famílias não tem condições de satisfazer sem que o jovem ingresse no mercado de trabalho. Assim, muitas vezes, apesar do pagamento das mensalidades, o ingresso na rede privada, que permite que o jovem concilie estudo e trabalho, é mais viável para uma parcela considerável dessas famílias. Contraditoriamente, com o expressivo aumento do número de matrículas que parece indicar uma certa democratização do acesso, acentuou-se o caráter seletivo do sistema, expresso na diversificação e segmentação entre as diferentes carreiras, cursos, instituições, turnos de funcionamento e perfil do estudantado (PAULA, 2004, p. 118-119). Confirma-se, assim, a contradição do sistema educacional brasileiro no que tange à democratização do acesso 221 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira à escolarização, visto que a universalização do ensino fundamental público não foi acompanhada de uma qualidade que permitisse o ingresso desses jovens no nível superior nas instituições públicas – e, portanto, a um ensino com alto padrão de qualidade –, obrigando-os a “investir” no ensino superior privado, menos qualificado porém bem mais acessível. Assim, é cada vez mais patente a hierarquização entre as escolas, cursos e carreiras, conforme o prestígio social a elas atribuído. Esse quadro confirma a perversidade do sistema de ensino que exclui as camadas populares do ensino superior de qualidade – representado pelas instituições públicas – justamente por serem oriundas da rede pública de ensino, que, salvo algumas ilhas de excelência, hoje está associada à oferta de um ensino de baixa qualidade. Vários estudos comprovam a desvantagem educacional da população afro-descendente no Brasil, confirmando a imensa desigualdade entre negros e brancos no que tange ao analfabetismo, aos anos de escolaridade e ao acesso ao ensino superior, com efeitos no mercado de trabalho, renda e qualidade de vida (ANDREWS, 1992; BARCELOS, 1992; BARROS e HENRIQUES, 2000; GONÇALVES, 1996; HASENBALG, 1979, 1988; LOVELL, 1991; TEIXEIRA, 2003). Assim, a desigualdade socioeconômica é a tônica das relações raciais no Brasil, o que nos obriga a problematizar o mito da democracia racial e a justificar a adoção de uma discriminação positiva pela via de ações afirmativas que, oferecendo um tratamento diferenciado aos excluídos, promova a inclusão social, principalmente no que tange a oportunidades educacionais. O acesso à escolarização e, por conseqüência, ao conhecimento sistematizado elaborado historicamente pela humanidade é uma forma de garantir a cidadania. Esta deve ser entendida como a possibilidade de existência do homem enquanto sujeito histórico consciente da necessidade de elaborar normas sociais, baseadas no entendimento geral e no bem comum, que objetivem a 222 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... convivência harmônica de sujeitos e comunidades, sem discriminação de raça/etnia/cor, sexo, renda, religião, naturalidade, etc. Essas normas deveriam se fundamentar em princípios como a justiça, a solidariedade, a igualdade, a liberdade, o respeito à singularidade, à diversidade e à coletividade. Dessa forma, o cidadão teria o direito a acessar um conhecimento entendido como ferramenta que potencializa a participação dos excluídos na sociedade e na história, capazes de orientar ações para compreender e transformar a vida. Para tanto é fundamental a inclusão das camadas excluídas nos processos de elaboração e apropriação de outras modalidades de conhecimento, de escola e de política, mediante a promoção de uma ética da resistência manifesta e retroalimentada neste processo (LINHARES, 1999). Ensino superior, meritocracia e desigualdades educacionais: a cor da exclusão Quando analisamos a mobilidade social no Brasil, constatamos que, nas últimas décadas, esta se caracterizou por muita circularidade, marcada principalmente pelo processo de urbanização do país e da ampliação da escolaridade da população, que assegurou postos de trabalho melhor remunerados. Nesse contexto, o papel da Educação é fundamental na melhoria da qualidade de vida e na mudança do status socioocupacional das famílias, confirmando uma mobilidade social ascendente, ainda que de pequena distância, e marcadamente inter e intrageracional, mais especificamente entre as décadas de 60 e 80 (PASTORE e SILVA, 2000). A expansão das oportunidades de escolarização em todos os níveis permitiu a inserção no ensino superior de estratos sociais anteriormente excluídos, sendo cada vez mais comum a chegada à universidade de uma primeira geração que se beneficiou da ampliação do acesso à educação. Se o número de jovens que são 223 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira os primeiros em suas famílias a ingressar no nível superior amplia-se cada vez mais, refletindo a mobilidade social brasileira, o percentual de jovens negros ainda é minoritário, fenômeno que começa a sofrer significativa alteração após a crescente adoção do sistema de cotas pelas instituições de ensino2. No bojo desta ampliação encontramos a discussão sobre a adoção de ações afirmativas como política governamental. Se a pobreza e as desigualdades educacionais têm cor, nos perguntamos, como Brooke (2002), se é possível atacar as raízes das diferenças raciais através de políticas educacionais de ação afirmativa? Segundo o discurso neoliberal, que imperou a agenda política brasileira na década de 90, o Estado era isento das suas responsabilidades para com os pobres, culpados por sua própria situação de penúria e obsolência social e, sob a ótica capitalista, do consumo e da mais-valia, fadados a um perene estado de marginalidade, exclusão social e improdutividade. No Brasil, amplas parcelas da população – predominantemente composta por negros e mestiços – encontram-se imersas na pobreza, sendo-lhes atribuída a negatividade de uma desordem moral, temidas como obstáculos à ordem social e reiteradamente inferiorizados em suas capacidades. Dessa forma se justificava o desinvestimento no social promovido pelos governos neoliberais, que acentuaram o processo de sucateamento dos serviços públicos, principalmente nas áreas de educação, saúde e segurança, e a privatização de empresas estatais que forneciam serviços essenciais á população, e que marcaram os anos 90. Entretanto, o clamor dos movimentos sociais pela ampliação do acesso à cidadania, principalmente à educação – educação infantil, educação indígena e quilombola, educação profissional e tecnológica – e mais especificaHoje o país conta com mais de 20 mil cotistas negros cursando a graduação, em 69 instituições de ensino superior público que adotam ações afirmativas. 2 224 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... mente ao ensino superior, ressignificou o debate sobre o direito à diversidade e a superação das desigualdades socioeconômicas. A luta pela democratização do ensino superior é uma luta política, e “a classe trabalhadora merece o conhecimento que a elite pensa ser seu, pois todo o saber foi elaborado à custa da exploração das vidas dos povos” (LINHARES e GARCIA, 1996, p. 87). Sabemos que a sociedade brasileira é uma sociedade de contrastes marcada pela desigualdade de oportunidades de trabalho e educação e pela exclusão socioeconômica. O processo de globalização da economia e de reestruturação do mundo produtivo requer mudanças no sistema educacional que superem o atraso e o desenvolvimento desigual, exigindo que a universidade democratize o acesso a segmentos anteriormente excluídos. Obviamente, essas mudanças interferem nos discursos e nas práticas acadêmicas, provocam reações e resistências na comunidade universitária e na intelectualidade, trazendo para o debate a contraposição de concepções elitistas e meritocráticas que disfarçam relações raciais marcadas pelas desigualdades educacionais e mascaram a noção de privilégio no acesso aos cursos mais disputados e com maior qualidade. No que tange ao acesso à educação superior no Brasil, vemos que o resultado das políticas implementadas pelo poder central, desde a década de 60, que visavam a ampliar as vagas via privatização, levaram o país a uma das mais baixas taxas de escolarização superior da América Latina apesar de o grau de privatização ser dos mais elevados do mundo. A ampliação dos níveis de escolarização, em especial no nível médio, acirrou a luta pelo acesso ao ensino superior, que, nos anos 60, gerou o fenômeno dos “excedentes”. A saída encontrada pelo governo, desde então, foi alimentar o processo de privatização pela via da oferta de financiamento estudantil iniciado com o modelo do “crédito educativo”, destinado tanto ao pagamento das mensalidades na rede privada quanto à manutenção do 225 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira estudante na rede pública, minimizando o investimento na assistência estudantil, o que acentuou a mudança de perfil do universitário, não mais recrutado somente entre as camadas favorecidas da população. Hoje o ensino superior no Brasil é marcado por uma enorme diversidade no que tange aos padrões de qualidade entre as instituições, decorrente da crescente e desigual privatização e do desinvestimento nas instituições públicas. Visando atender à crescente demanda dos segmentos populares, confirma-se a tendência à ampliação de vagas em cursos de baixo custo, como as licenciaturas oferecidas no período noturno. Esse processo produziu um cenário paradoxal em que as poucas vagas da rede pública são alvo de elevada disputa nos concursos vestibulares, favorecendo sua ocupação por estudantes advindos das camadas médias e altas, em detrimento dos jovens das camadas populares. Excetuando-se as escolas públicas com comprovada excelência de ensino – a rede técnica federal, os colégios de aplicação das universidades e algumas escolas-modelo das redes estaduais e municipais –, os candidatos aprovados nas universidades públicas – principalmente nos cursos mais prestigiosos e disputados – fizeram o ensino fundamental e médio, em sua maioria, na rede privada, ou prepararam-se em cursos pré-vestibulares. Restaram para os oriundos das camadas populares, que desejam cursar o nível superior, as escolas particulares, principalmente as que oferecem cursos noturnos, conciliando o estudo com uma jornada diurna de trabalho, ou os cursos de menor prestígio nas instituições públicas. Segundo Pinto (2004, p. 727), o “resultado desse processo foi uma grande elitização do perfil dos alunos, em especial nos cursos mais concorridos, onde é muito pequena a presença de afrodescendentes e pobres”. Atualmente, visando a alterar esse panorama, o governo propõe dois tipos de ação sob a forma de programas institucionais: um refere-se à reserva de vagas em instituições privadas a serem ocupadas por estudantes de baixa 226 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... renda (Prouni) e outro, de caráter afirmativo, identifica as camadas populares como afro-descendentes, indígenas e egressos de escolas públicas e propõem a adoção do regime de cotas. O Prouni, ao oferecer bolsas nas instituições privadas, foi entendido por muitos como um incentivo à adesão dos jovens das camadas populares aos cursos oferecidos pela rede privada – a maioria de qualidade duvidosa. Tal medida, criticada como um processo de financiamento da rede privada via renúncia fiscal, não interferia no padrão “camadas populares/ensino básico público/ensino superior privado” e “camadas médias e altas/ensino básico privado/ensino superior público”, e confirmava a relação entre as desigualdades socioeconômicas e raciais com as oportunidades educacionais. Hoje a expansão da rede federal, via Reuni3, que incentiva com verbas e vagas a expansão da rede federal, prioritariamente no período noturno, é uma resposta da esfera instituída às críticas ao Prouni, destinando verbas públicas para o financiamento da expansão da rede pública. A par disso, a ampliação de vestibulares comunitários e principalmente a adoção, ainda tímida e localizada, de ações afirmativas via reserva de vagas para alunos advindos das escolas públicas ou afro-descendentes – duas categorias que contemplam características da maior parte dos estudantes provenientes das camadas populares –, começam a mudar o perfil do estudante universitário. Sabemos que os valores vigentes na sociedade neoliberal se contrapõem à efetivação da cidadania e impõem uma ética excludente a amplas parcelas da população brasileira (PAULA, 1994). Nesta discussão faz-se necessário problematizar o papel da educação na camuflagem das necessidades dos sujeitos históricos coletivos e individuais, marcados pela diversidade cultural e étnica, através de políticas de conhecimento que inviabilizam o acesso e a apropriação Programa de reestruturação e expansão das universidades federais, implantado em 2007. 3 227 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira do ferramental necessário à construção de uma sociedade mais plural e solidária, bem como as resistências dos sujeitos e instituições, ao processo de democratização. Alguns setores da Universidade brasileira têm travado, nas duas últimas décadas, um combate no campo político, educacional, cultural e ideológico, visando à construção de novos saberes que “reinventem” uma pedagogia fundada em uma visão multiculturalista e multirracial, omnilateral, sem descuidar da transmissão dos conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade e que foram, durante séculos, privilégio exclusivo das classes dominantes (PAULA, 2008). Entretanto, a resolução do problema do reduzido e elitizado acesso à educação superior no país não passa apenas por ações afirmativas, mas se refere também a concepções pedagógicas, curriculares e avaliativas cristalizadas, que defendem uma questionável manutenção da excelência do ensino fundada no mérito. Essas concepções refletem valores de classe disseminados e assimilados como neutros, mas que cumprem a função de filtros étnicos4 e socioeconômicos (PINTO, 2004). Entretanto, a pouca expressão numérica das camadas desfavorecidas na universidade está relacionada não só a fatores étnicos e econômicos, mas também a diferenças culturais, assim como à confirmação das desigualdades socioeconômicas mediante a produção de desiguais desempenhos escolares e oportunidades educacionais preestabelecidas pelo sistema. Sabe-se que o sucesso ou o fracasso escolar nas instituições de ensino, inclusive na Universidade, mantêm estreita relação com o ‘capital cultural’ acumulado nas experiências familiares, escolares e sociais do estudante. Esse capital cultural, para Bourdieu, seria o eleEntre os brasileiros que concluem o ensino superior, 83% são brancos, 2% pretos e 12% pardos, apesar de 45% da população brasileira ser composta de pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE (MOEHLECKE, 2004, p. 758). 4 228 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... mento da bagagem familiar que teria o maior impacto na definição do sucesso ou fracasso do jovem em sua carreira acadêmica. A posse do capital cultural favoreceria o desempenho escolar na medida em que facilitaria a aprendizagem dos conteúdos e dos códigos institucionais, [...] visto que para as crianças e jovens provenientes de meios favorecidos culturalmente a educação formal funciona como uma continuação da educação obtida no lar (PAULA, 2004, p. 191 e 192). Sabemos que, no próprio nível superior, é intenso o fenômeno da evasão e da repetência, sendo que as políticas afirmativas não podem se restringir à garantia do acesso, mas contemplar também a permanência. Na universidade, a incidência maior de reprovação ocorre nas disciplinas básicas cursadas nos primeiros períodos, e que requerem o domínio dos conteúdos das disciplinas do ensino médio, e que a evasão é também elevada em muitos cursos, principalmente devido à dificuldade de acompanhamento das disciplinas e às conseqüentes reprovações, sendo que, às dificuldades acadêmicas, se somam as dificuldades financeiras, que parecem às vezes intransponíveis. A democratização do acesso requer também uma mudança de concepção da própria universidade, que deve prover recursos para a permanência do estudante no curso, pois “nem sempre a igualdade de condições (eqüidade) será assegurada com o ingresso na Universidade”, apesar dos esforços dos serviços de assistência estudantil. É fato que os estudantes mais pobres, cotistas ou não, “enfrentam maiores dificuldades, tanto de cunho financeiro quanto acadêmico, que seus colegas de classe média” (PAULA, 2004, p. 190). Se, além de pobre, o estudante é negro, suas chances de fracasso aumentam e, mesmo após formado, enfrentará as desigualdades de renda salarial em relação a seus colegas brancos, confirmando que muito há que se fazer em termos de transformação social para assegurar a igualdade nas relações raciais no país e a existência de uma sociedade multicultural efetivamente democrática. 229 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Apenas reconhecer-se o caráter multicultural da nossa sociedade é muito pouco, como também não basta que a escola reconheça que a sua clientela é diversificada, seja por gênero, por classe, por raça e que possui culturas diferentes. (...) Se esse reconhecimento não se fizer acompanhar por políticas de respeito aos diferentes e por uma mudança de atitudes frente a eles, dificilmente a escola será capaz de criar mecanismos potentes para transformar as relações de dominação e de exclusão, tanto no seu interior quanto na sociedade ampliada (SISS, 2002, p. 148). Entre os muitos desafios enfrentados pela universidade brasileira está o de atender aos clamores dos movimentos sociais organizados pelo respeito ao multiculturalismo e pela democratização do acesso à educação superior pública, essenciais às necessidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural do país. Esse desafio passa necessariamente pela condução do debate, acerca da adoção de medidas voltadas para a inclusão das camadas populares no ensino superior, hoje marcado pela polêmica. Esse debate remete a questões éticas e morais, ao mito da democracia racial brasileira, aos preconceitos latentes que marcam as relações raciais no país, ressignificando o papel da educação na inclusão/exclusão social das camadas populares. A agudização da problemática da exclusão social, inclusive a do acesso à escolarização, sem que a intromissão da esfera instituída – pela via do Estado, signifique encaminhar propostas de soluções viáveis e conseqüentes que possibilitem a efetivação de uma política social includente. Isto constitui mais um desafio à reflexão e à ação engajada da comunidade universitária (PAULA, 2008). A adoção de ações afirmativas nas universidades públicas é hoje um dos maiores desafios enfrentados pela academia, pois problematiza uma questão: como manter elevado um padrão de qualidade de ensino, há anos consolidado 230 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... sob a égide da meritocracia, com a entrada massiva de segmentos sociais excluídos e classificados como inferiores e incapazes. A polêmica construída em torno da adoção de medidas afirmativas, marcada pela manipulação da mídia, aponta para a permanência de uma visão aristocrática do saber como privilégio, restrito a poucos, apenas àqueles selecionados nas disputadas vagas dos cursos e instituições de prestígio, segundo questionáveis critérios meritocráticos, que mantêm inalterado o status quo, não contribuindo para uma real transformação social a par da superação das desigualdades. Ações afirmativas: diversidade e desigualdade Hoje a discussão sobre a adoção de ações afirmativas ganhou o cenário nacional e a agenda universitária, ainda que suscite polêmicas e conflitos. Recentemente o manifesto Cento e Treze Cidadãos Anti-Racistas contra as Leis Raciais5, subscrito por “intelectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos sociais”, como se autodenominaram os 113 cidadãos que vieram a público para “oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da República”. Os argumentos apresentados baseiam-se na premissa de que cotas raciais não irão reduzir as desigualdades sociais, mas sim, que estas ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais, com os quais se defronta a nação. E, contudo, mesmo no universo menor dos jovens que têm a oportunidade de almejar o ensino superior de qualidade, as cotas raciais não promovem a igualdade, mas Carta entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, em 30/04/2008. 5 231 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira apenas acentuam desigualdades prévias ou produzem novas desigualdades. O manifesto questiona ainda a racialização do debate afirmado que se “raças humanas não existem”, este fato, cientificamente comprovado, deveria conduzir a “construção de uma sociedade desracializada, na qual a singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada”, modificando suas convicções e atitudes morais. Admitem que “existem preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não é uma nação racista”, e contrapõem-se ao argumento de que para garantir o princípio da igualdade de todos perante a lei é necessário tratar desigualmente os desiguais, como sustentam os proponentes das cotas raciais. Os manifestantes reafirmam que “são diferenças de renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior”, não mencionando que a maior parte da população de baixa renda é negra ou parda. Finalizam afirmando que as cotas raciais são “a face mais visível de uma racialização oficial das relações sociais que ameaça a coesão nacional”, que sua adoção anuncia o fracasso da “utopia da igualdade” e da “universalização da cidadania efetiva”, acirra “rancores e ódios” e “representaria uma revisão radical de nossa identidade nacional”. Para os signatários, “a distribuição seletiva de privilégios segundo rótulos de raça inocula na circulação sanguínea da sociedade o veneno do racismo”, sendo que a “crença na raça é o artigo de fé do racismo”. Em resposta ao Manifesto dos Cento e Treze Cidadãos Anti-Racistas contra as Leis Raciais, duas semanas depois, foi entregue também ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), outro manifesto6, este em defesa da política de cotas raciais nas universidades. O docuCarta entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, em 13/05/2008, data em que se comemoraram os duzentos anos da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil. 6 232 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... mento foi assinado por mais de mil pessoas, incluindo acadêmicos, estudantes, artistas e militantes dos direitos de minorias, e defende a constitucionalidade da política de cotas, entendendo que a mesma promove oportunidades iguais a brasileiros historicamente tratados de formas diferentes. O manifesto favorável às políticas afirmativas contra-argumenta que as cotas cumprem sim o papel de compensar a histórica exclusão dos negros das universidades, já evidente hoje, visto que “apenas nos últimos cinco anos houve um índice de ingresso de estudantes negros no ensino superior maior do que jamais foi alcançado em todo o século XX”. Em uma crítica ao argumento de que é complicado classificar os brasileiros por raças, devido à miscigenação, os defensores das ações afirmativas esclarecem que o aspecto cultural e histórico de uma raça pode ser usado para fins de discriminação, como tem sido feito até hoje e confirma os patamares de desigualdade entre brancos e negros, mas também permite que se faça uma reflexão sobre a adoção de políticas de inclusão que permitam “trazer para o interior das universidades brasileiras aqueles grupos sociais historicamente excluídos”. Comparou-se a posição dos 113 signatários do manifesto contra as leis raciais com “as posições e práticas adotadas pela elite conservadora, que reage desesperadamente para manter o poder que acumulou no período da escravidão, do colonialismo e das repúblicas branqueadas ou excludentes construídas em um momento político ultrapassado e que agora são obrigadas a enfrentar as demandas de uma agenda política que exige justiça social, convivência multiétnica e multirracial, com divisão proporcional de poder e de riqueza”. Os defensores da política de cotas acreditam que sua adoção é uma ação afirmativa importante para assegurar a inclusão do negro à universidade e, assim, superar as barreiras impostas pelo racismo. Sem políticas afirmativas, a mudança social será muito lenta, retardando a instituição de uma igualdade racial efetiva baseada na justiça e na eqüidade de direitos. 233 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Cabe mencionar que a elaboração dos dois manifestos foi provocada pela preocupação com o julgamento de duas ações7 sobre o tema, e o significado histórico que os resultados destas ações podem causar em termos de jurisprudência sobre a constitucionalidade de leis raciais e demais ações afirmativas. Segundo o discurso jurídico, a constitucionalidade das medidas de ações afirmativas é construída, através da fusão de dois fatores, quais sejam: o modelo de sociedade previsto, construído pelo Estado constitucional, e a realidade social do povo a que se propõe esse modelo. Assim, o que está em discussão é a própria constituição da sociedade brasileira e como esta interpreta e pratica valores como igualdade, equidade e justiça. Não podemos deixar de destacar que é o fato de esta ser uma sociedade de contrastes e profunda desigualdade e exclusão socioeconômica que dá sentido e justifica a adoção de políticas afirmativas que pretendem minimizar esses aspectos. O recente episódio dos dois manifestos, assinados por personalidades do mundo acadêmico e por intelectuais respeitados, demonstra a confusão ideológica que a polêmica que envolve a proposta de adoção de medidas afirmativas, principalmente da instituição de cotas para acesso de segmentos sociais tradicionalmente excluídos, trouxe para o meio universitário. Os questionamentos apresentados pelos grupos não tão distintos mas com posições frontalmente contrárias, pro e antipolíticas de cotas, revelam as disputas e contradições na concepção de universidade, apontando para a existência de enfoques, perspectivas e lógicas distintas, que representam posturas progressistas e conservadoras e diferentes campos de poder Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.330 e ADI 3.197) promovidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), a primeira contra o programa Prouni e a segunda contra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro, a serem apreciadas proximamente pelo STF. 7 234 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... acadêmico e político. Também demonstra o diferencial ideológico de se reconhecer e aceitar a presença da diversidade cultural e étnica na universidade e na sociedade e de efetivamente se comprometer a impedir que essa diversidade seja a justificativa para um tratamento desigual que restrinja as oportunidades de uns e amplie as de outros, e contraditoriamente quando surge a ocasião de corrigir a histórica desigualdade inverte a noção de privilégio e se denomina de racismo a constatação de que a democracia racial no Brasil sempre foi apenas um mito. A própria utilização do termo “afro-descendente”, para alguns uma expressão imprecisa que pode homogeneizar diferenças, e inclusive divide os defensores das cotas quanto aos critérios de atribuição do direito às cotas, pela fenotípia, em que a cor teria um papel importante ou pela descendência, pela avaliação externa das características étnicas ou pela auto-atribuição, variáveis diferentemente empregadas nas diferentes instituições que adotam as cotas, muitas delas conjugando fatores econômicos ou referentes à trajetória escolar pregressa entre os critérios classificatórios. Cabe destacar, ainda, que dentre os argumentos contrários às leis raciais, e mesmo entre os favoráveis, os que defendem a classificação pela descendência e pelo predomínio dos aspectos culturais na definição de quem tem direito às cotas, são influenciados pela própria dificuldade de se definir quem é negro, branco, pardo, etc. na sociedade brasileira. Segundo José Murilo de Carvalho, a não inclusão de mestiços, mulatos, morenos, caboclos, nos censos demográficos poderia ser interpretada como um “genocídio racial estatístico”, impossibilitado traçar um perfil mais fidedigno e característico da população. Já na década de 1950, Oracy Nogueira afirmava que “a concepção de branco e não branco, variava, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de classe para classe, de região para região”, indicando que a multiculturalidade é a tônica da sociedade brasileira. 235 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Assim, podemos afirmar que as relações raciais no Brasil e o debate sobre a adoção de medidas afirmativas que visam a diminuir as desigualdades impostas historicamente por aspectos étnicos, trazem uma enorme complexidade social, econômica e cultural com fortes componentes ideológicos. Esse cenário é evidente no episódio dos dois manifestos, quando a polêmica sai dos muros das universidades e ganha a sociedade envolvendo diferentes segmentos no campo das artes e da intelectualidade brasileira, dividida e confusa entre os diversos discursos e a defesa de interesses de grupos minoritários ou majoritários. Assim vemos que a polêmica instaurada em torno de quem ocupará as disputadas vagas das universidades públicas pode ser também entendida como uma disputa de hegemonia no campo da produção de conhecimento, ora entendida como privilégio a ser preservado ora como direito a ser estendido á população. Assim, acirra-se o debate no sentido da conservação das estruturas de poder instituídas ou da transformação social de uma sociedade que aceleradamente se adapta a novas demandas de um mundo globalizado. O conhecimento produzido na Universidade, apesar das suas contradições, avanços e retrocessos, pode indicar pistas para efetivas transformações sócio-culturais-educacionais, nutrindo os sujeitos históricos individuais e coletivos, na busca emancipatória comum da reinvenção de valores para a construção de novos padrões civilizatórios visando à construção de uma sociedade cidadã pluralista e inclusiva (PAULA, 2008). A análise do papel desempenhado pela educação seja na reprodução das desigualdades sociais seja na superação das mesmas deve ser empreendida em uma perspectiva mais ampla. Nesse sentido, compreendemos que a sociedade brasileira foi gestada e se desenvolveu alimentando as múltiplas desigualdades sociais, confirmadas 236 Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas... pelas diferentes formatações do Estado, que, entretanto, mantiveram uma estrutura social excludente, que inferioriza amplas parcelas da população, principalmente a classe trabalhadora predominantemente mestiça e negra. Assim, a análise das relações assimétricas de poder entre os diferentes grupos e classes sociais é fruto de uma construção histórica marcada pela sujeição de etnias e que determinou as relações entre esses grupos caracterizados não apenas como diferentes, do ponto de vista cultural, mas, principalmente como desiguais, do ponto de vista socioeconômico. Assim, ainda que os diferentes grupos sociais que compõem a sociedade brasileira hoje, numa concepção multicultural sejam entendidos, no plano antropológico como efetivamente diferentes, eles são entendidos, também, no plano sociológico como profundamente desiguais. Dessa forma, ao analisarmos as relações raciais na sociedade brasileira, bem como a discussão sobre a adoção de políticas afirmativas, como a de cotas no acesso ao nível superior, tem que se considerar a centralidade das interseções entre políticas educacionais, culturais, processos de implementação de cidadania plena, classe, renda, etnias e ação coletiva de atores sociais. À guisa de conclusão, finalizo com as palavras de Nigel Brooke: Se não houver uma intervenção explicita, com o objetivo de aumentar o acesso e a permanência do negro dentro do sistema educacional, as diferenças educacionais perdurarão, com tudo o que isto significa para a manutenção dos sistemas de estratificação racial, para a distribuição desigual da renda e para a perpetuação das desigualdades no exercício dos direitos humanos e civis que tanto dificultam a consolidação da democracia no país (BROOKE, 2002, p. 154) 237 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Bibliografia ANDREWS, G. R. Desigualdade racial no Brasil e nos Estados Unidos: uma comparação estatística. Estudos Afro-asiáticos, n. 22. Rio de Janeiro, CEAA, 1992, p. 47-84. BARCELOS, L. C. Educação: um quadro de desigualdades raciais. Estudos Afro-asiáticos, n. 23. Rio de Janeiro, CEAA, 1992. BARROS, R. P.; HENRIQUES, R. A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. In: HENRIQUES, R. (Org.) 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Mesmo no âmbito dos movimentos de organização da população negra, em que houve uma preocupação com o acesso à escolarização, o que se debatia sobre o ensino superior, advinha, de modo geral, de experiências pessoais ou da observação mais imediata. Fruto dessa preocupação é a criação, ainda no início dos anos 90, de cursos preparatórios para o vestibular, em Salvador, cujo pioneirismo cabe ao Instituto Steve Biko. Fora desse contexto, quase nada se discutia a respeito. O questionamento da desigualdade de acesso à universidade ganha efetiva visibilidade nos eventos preparatórios para a participação na III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas 241 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU, em 2001. No contexto da conferência, o tema se coloca como demanda efetiva dos movimentos negros, que o governo brasileiro é compelido a acolher, através de medidas ainda muito tênues, como a promoção de cursos preparatórios para o vestibular. É nesse cenário que se situa o debate em torno das políticas de ação afirmativa para negros, no Brasil, como medidas de superação das desigualdades raciais, e a proposta de “cotas raciais” como uma das formas de materialização desse tipo de política, no ensino superior. A primeira instituição brasileira a adotar um sistema de cotas raciais para o acesso de negros, tanto aos cursos de graduação quanto de pós-graduação foi a Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Em maio de 2002, seu Conselho Superior aprovou por unanimidade a adoção da medida, que passaria a vigorar no concurso vestibular do ano de 20031. A política tinha como alvo os estudantes negros oriundos de escolas públicas. Naquele momento, a Uneb implantava também seu primeiro curso de mestrado, o Mestrado em Educação e Contemporaneidade, que desde o seu surgimento contemplou a política de “cotas”. Apesar do seu pioneirismo, a implementação e os resultados da política adotada pela instituição não tem merecido dos pesquisadores a atenção devida. Salvo o artigo de Mattos (2003) analisando o primeiro momento da implantação da política, pouco se sabe sobre esse processo. A análise que apresentaremos a seguir resulta de dois levantamentos sobre os estudantes da Uneb, que ingressaram no ano de 2005, pelo sistema de cotas, e pretende contribuir para o debate em torno das ações afirmativas e, particularmente, refletir sobre experiência de adoção de tais medidas na própria universidade, con1 A Resolução de n. 196/2002, do Conselho Universitário da Uneb, instituiu o sistema de cotas da instituição. 242 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... tribuindo para preencher a lacuna de informação e de reflexão em torno desse processo. O primeiro levantamento buscou conhecer as características socioeconômicas e acadêmicas dos estudantes que ingressaram em cursos de elevada concorrência. O segundo objetivou conhecer a percepção dos estudantes sobre as relações raciais, as ações afirmativas e, particularmente, a política de cotas que os beneficiou. 1 - Desigualdades raciais na sociedade e na universidade Apesar do ambiente marcadamente conflituoso da sociedade colonial brasileira, durante todo o século XIX (entre outros, REIS, 1986; MATTOS, 2004; CASTRO, 1999), a imagem do Brasil como uma sociedade de convivência harmônica entre as “raças”, de um “paraíso racial”, difundiu-se e consolidou-se na idéia de “democracia racial”. Tal foi a força dessa imagem que, no final dos anos 40 do século passado, o Brasil é escolhido pela Unesco como local de verificação de possibilidades de convivência pacífica entre grupos raciais, para sediar um amplo programa de pesquisas sobre relações raciais, destinado a mostrar ao mundo, traumatizado pelo Holocausto, o exemplo de uma experiência bemsucedida de relações raciais. Esses estudos, que ficaram conhecidos como O Programa UNESCO, foram realizados na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Recife, e coordenados, respectivamente, por: Tales de Azevedo, Luiz Carlos Costa Pinto, Florestan Fernandes e Roger Bastide, e René Ribeiro (MAIO, 1997). Os resultados das pesquisas trouxeram à tona uma realidade insuspeitada: contrariando a expectativa otimista dos seus patrocinadores, mostraram a antiimagem do “paraíso racial”, isto é, revelaram uma sociedade marcada pelo preconceito 243 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira racial, com significativa distinção nas condições de vida de brancos e negros. Muito embora os resultados desses estudos pusessem por terra a imagem do “paraíso”, revelando a realidade de um país racialmente desigual, alguns autores mantinham a fé na “democracia racial” e a crença de que essa desigualdade era um legado do período escravista, marcado por relações estamentais, alimentando a expectativa de que tais desigualdades fossem paulatinamente desaparecendo por efeito do processo de modernização que se consolidava no país. Ao revelar a realidade do preconceito racial na sociedade brasileira, contudo, esses estudos abriam caminho para a formulação de novas hipóteses. O aprofundamento dos estudos raciais, nessa vertente, irá evidenciar que o tempo decorrido, desde a extinção do trabalho escravo, já não autorizava a invocar a escravidão como fator explicativo da inferioridade social dos negros. No final dos anos 70, uma tese de doutorado torna-se um marco nos estudos sobre relações raciais no Brasil. Ao examinar as estatísticas oficiais, produzidas pelo IBGE, Carlos Hasenbalg constata que havia profundas distâncias entre negros e brancos na sociedade brasileira; que as desigualdades existentes entre esses segmentos sociais no mercado de trabalho, na distribuição de renda e no acesso à educação são desigualdades marcadas pelas características raciais desses grupos e não apenas pela condição de classe. Essas conclusões o levam a assinalar que “a persistência histórica do racismo não deve ser explicada como mero legado do passado, mas como servindo aos complexos e diversificados interesses do grupo racialmente dominante no presente” (HASENBALG, 1987, p. 11). Para o autor, o preconceito e a discriminação funcionam como mecanismos de exclusão, cotidianamente atualizados pela realidade brasileira. Daí a sua observação de que embora se saiba, hoje, que a raça é tão-somente 244 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... uma representação, um atributo que é elaborado socialmente, a partir de marcas corporais, essa representação continua a operar como um dos critérios mais importantes no recrutamento dos indivíduos às posições da hierarquia social (HASENBALG, 1987, p. 180). A perspectiva adotada por Hasenbalg inaugura, deste modo, uma nova interpretação sobre as relações sociais brasileiras, desencadeando uma rica produção de estudos buscando apreender as relações entre brancos e negros em vários espaços como o mercado de trabalho, a educação, a política, entre outros espaços sociais, resultando num consistente mapeamento das desigualdades raciais no país, o que contribuiu para abrir caminho para a formulação das políticas de combate ao racismo e à discriminação racial, em curso, no Brasil, na contemporaneidade. 2 - A invisibilidade dos negros no sistema de ensino Em que pese a longa tradição de estudos das relações raciais no país, no campo da educação os estudiosos permaneceram alheios a essa realidade. Embora a aquisição de escolaridade tenha se constituído, ao longo de todo o século XX, numa questão importante para a agenda dos movimentos de organização da população negra, para os educadores essa preocupação aparece tardiamente. Até o final dos anos 70 do século passado, o acesso do negro ao sistema de ensino e a sua trajetória nesse espaço não se apresentavam como um problema que merecesse a atenção dos educadores, mantendo-se restrito ao âmbito dos militantes e intelectuais comprometidos com esses movimentos (GOMES, 2004). No final dos anos 80, no contexto das comemorações pelos 100 anos da Abolição, passa a haver uma ampliação das pesquisas sobre a situação do negro no Brasil, 245 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira inclusive aquelas denunciando o analfabetismo e a baixa escolaridade da população negra. É ilustrativo desse contexto a publicação pela Fundação Carlos Chagas, em novembro de 1987, de um número (63) do Cadernos de Pesquisa, sob o título “Raça negra e educação”. No entanto, é mais precisamente a partir dos anos 90 que o debate em torno do acesso do negro ao sistema de ensino vai ganhar visibilidade, para além do âmbito dos movimentos negros. O debate se intensificou com a divulgação, no início da década seguinte, de estudos sobre a reduzida presença de negros na universidade, sejam eles oriundos de organismos oficiais de pesquisa, como o Ipea2, sejam aqueles realizados por pesquisadores, no âmbito acadêmico, como o de Queiroz (2001), que analisou comparativamente a presença de negros em universidades federais brasileira. 3 Quem são e o que pensam os estudantes da Uneb A seguir analisaremos um conjunto de dados sobre as características dos estudantes da Uneb, que ingressaram em 2005. Utilizando um questionário, como instrumento de coleta, foram levantadas informações sobre as características pessoais do estudante, sobre sua trajetória escolar no ensino médio, tais como o tipo de escola freqüentado, turno em que estudou, associação entre estudo e trabalho, e sobre aspectos referentes à família, como renda, escolarização e ocupação dos pais. No segundo momento, examinaremos informações provenientes da coleta realizada, através de entrevistas, entre os estudantes do curso de Pedagogia, que ingressaram na UNEB, também em 2005. A escolha do curso de Pedagogia decorre do nosso entendimento de que em um curso de formação de pro2 Instituto de Pesquisas e Estudo Aplicados 246 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... fessores, supostamente, haveria uma maior preocupação com as questões sociais, como o racismo e a discriminação racial, entre outras, e com a tarefa da educação na sua superação. 3.1 Características do estudante e percepção das cotas A pesquisa, cujos resultados serão aqui analisados, teve como espaço empírico os cursos das áreas de Ciências Humanas, Ciências Exatas e da Terra, e Ciências da Vida, do Campus I/Uneb. Em cada área, se tomou o curso de mais elevada concorrência, no caso, os cursos de Enfermagem, Comunicação Social e Análise de Sistemas. A partir do dessas informações, buscou-se refletir sobre a relação entre a condição socioeconômica do estudante, seu pertencimento racial, sua origem escolar e o significado do seu acesso a cursos valorizados, através do sistema de cotas. Evidentemente os resultados desses levantamentos não podem ser generalizados, porque se referem a um conjunto pequeno de estudantes, mas representam uma amostra significativa desse universo, por tomar para análise cursos prestigiados, no campus da universidade que se localiza na capital do estado. A “cor” do estudante A autoclassificação induzida, pelas categorias do IBGE, indica que 55,6% estudantes se classificaram como pardos e 33,3% como pretos, perfazendo um total de 88,9% entrevistados se classificando como negros (Tabela 1). As demais categorias têm uma presença reduzida nesse conjunto, realidade que reflete a política de cotas raciais implantada pela instituição. 247 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Tabela 1 – Distribuição percentual dos estudantes segundo a autodeclaração de cor induzida – Uneb 2005 Cor Branca Parda Preta Amarela Indígena Total % 3,7 55,6 33,3 3,7 3,7 100 Fonte: Pesquisa direta Condições de vida dos cotistas A Tabela 2, a seguir, evidencia que uma parcela bastante significativa (88,9%) desses estudantes possui casa própria. Esse dado, ao contrário de indicar uma elevada condição socioeconômica dos seus proprietários, possivelmente está apontando para um fenômeno muito característico da urbanização das grandes cidades brasileiras, que são as moradias construídas pelo sistema de “autoconstrução”, nos bairros populares. Se cruzarmos essa informação com as que analisamos anteriormente, sobre o local de moradia dos estudantes, reforçaremos essa suposição. Tabela 2 – Distribuição percentual dos estudantes segundo a condição da residência – Uneb 2005 Condição Própria Alugada Total % 88,9 11,1 100 Fonte: Pesquisa direta A análise da renda familiar dos estudantes entrevistados mostra que mais da metade deles (55,6%) não ultrapassa o patamar de cinco salários mínimos (Tabela 3). 248 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... Apesar do nível de renda relativamente baixo, este contingente de estudantes se encontra em uma situação, sensivelmente melhor que a da maioria da população negra brasileira. Analisando dados do Ipea, Henriques (2001) assinala que [...] nascer negro no Brasil está relacionado a uma maior probabilidade de nascer pobre. A população negra concentra-se no segmento de menor renda per capita da distribuição de renda do país. Especificamente, os negros representam 70% dos 10% mais pobres da população, enquanto, entre o décimo mais rico da renda nacional, somente 15% da população é negra (17). Tabela 3 – Distribuição percentual dos estudantes segundo a renda familiar – Uneb 2005 Salários Mínimos Abaixo de 2 De 2 a 3 De 4 a 5 De 6 a10 De 10 a 20 Acima de 20 Total % 11,1 44,4 29,6 14,9 100 Fonte: Pesquisa direta A história escolar do estudante Cerca de metade do grupo investigado cursou o ensino fundamental em escolas privadas (51,9%), enquanto que uma parcela em torno de um terço, cursou uma escola pública, nesse nível de ensino (Tabela 4). Todos os estudantes investigados cursaram o ensino fundamental no turno diurno. Uma proporção também expressiva (88,9%) fez o curso médio, no turno diurno, o que indica que, em tese, puderam manter-se afastados do mercado de trabalho durante a formação básica (Tabela 5, anexa). 249 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Apenas 14,8% estudantes fizeram um curso técnico-profissionalizante, durante o ensino médio (Tabela 6, anexa); o que leva a supor a existência de um projeto familiar, cujo horizonte era o ensino superior. Apesar da origem na escola pública, percebe-se que esse grupo está distante da trajetória freqüentemente encontrada na maioria dos estudantes negros. Como assinala Nogueira (2000), ao contrário do que comumente se observa em estudantes oriundos de escolas privadas, estudantes oriundos de escolas públicas realizam, não raro, um tipo de caminho dito “circuito vicioso” (p. 128), em oposição ao “circuito virtuoso”, realizado por aqueles. São trajetórias escolares acidentadas, marcadas por episódios freqüentes de interrupções ou pelo simples abandono do curso3, seja porque as próprias escolas não reúnem as condições mínimas necessárias à permanência do estudante, terminando por expulsá-lo, seja porque ele necessite arcar com o ônus da própria sobrevivência, ou até mesmo da sobrevivência de outros, abandonando mais cedo a escola para enfrentar o mercado de trabalho, ou simplesmente porque a carreira acadêmica é algo muito distante do horizonte de aspirações do seu grupo social4. Reprovação e repetência são aspectos destacados pela análise de Portela (1997), como traços marcantes do sistema escolar público brasileiro, responsáveis pela permanência do estudante numa mesma série, por anos seguidos. Queiroz (1997) observou este fenômeno ao examinar as trajetórias escolares de um grupo de mulheres negras portadoras de instrução primeira e de segundo grau, ocupadas numa empresa do ramo de comércio, da Região Metropolitana de Salvador. 4 Teixeira (1998), no seu estudo sobre a trajetória de alunos e professores universitários negros no Rio de Janeiro, observou que “para parte dos entrevistados, a escolha da carreira ou curso não era para a família uma decisão importante” (p.,241). Para eles, a necessidade de ampliação dos rendimentos da família se sobrepõe, provavelmente, à ambição de ver um filho na universidade. 3 250 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... Tabela 4 – Distribuição percentual dos estudantes segundo o tipo de escola freqüentada no Ensino Fundamental – Uneb 2005 Tipo de escola Pública Privada Pública e depois privada Privada e depois pública Total % 33,3 51,9 7,4 7,4 100 Fonte: Pesquisa direta Mais de um terço dos entrevistados (37%) ingressaram na universidade na primeira tentativa; e uma proporção de 18,5% havia tentado vestibular três vezes ou mais. Os demais, em igual proporção, haviam feito de uma a duas tentativas, no mesmo curso ou em cursos diferentes, como mostra a Tabela 7, a seguir. Investigando as desigualdades raciais no acesso à UFBA, no final da década de 90, Queiroz (2001) havia observado entre os estudantes uma gradação de cor que correspondia à sua experiência anterior em concursos vestibulares. Assim, em primeiro lugar, isto é, aqueles com menor número de experiências anteriores, estavam os “brancos” seguidos pelos “morenos”, depois os “mulatos” e, finalmente, os “pretos”. Entre os “brancos” e os “pretos” havia uma distancia de cerca de onze pontos percentuais, significando que os “brancos” eram mais bem-sucedidos na sua tentativa de ingressar na universidade. Como se pode observar, há uma proximidade da situação anteriormente descrita para os estudantes cotistas da Uneb, com a do contingente de “mutatos” e “pretos”, da UFBA, o que evidencia que há uma desvantagem para os estudantes negros, mesmo no contexto de uma política diferenciada de acesso, indicando que as barreiras presentes nas trajetórias desses estudantes pesam com rigor especial no momento do seu acesso ao ensino superior. 251 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Tabela 7 – Distribuição percentual dos estudantes segundo o número de vezes que prestou vestibular – Uneb 2005 Número de vestibulares Não fez anteriormente Uma vez para o mesmo curso Uma vez para outro curso Duas vezes para o mesmo curso Duas vezes para outro curso Três ou mais vezes Total % 37 11,1 11,1 11,1 11,1 18,5 100 Fonte: Pesquisa direta Coerente com a análise anteriormente apresentada sobre as tentativas de ingressar na universidade, uma proporção elevada desses estudantes freqüentou curso preparatório para o vestibular; em alguns casos, até por três vezes, até conseguir aprovação. Apenas 18,5% deles não passaram por tal experiência (Tabela 8). Se confrontarmos essa informação com outras como a origem escolar, a renda e o local de residência, p. ex., podemos imaginar, por um lado, o quanto custou às suas famílias a realização desse projeto acadêmico, por outro, que sua trajetória está muito distante daquilo que é a trajetória padrão dos estudantes negros de escolas públicas, como têm evidenciado os estudos de Cavalleiro (2000), Rosemberg (1991), Hasenbalg (1992), Barcelos (1992). Tabela 8 – Distribuição percentual dos estudantes segundo a participação em cursinhos – Uneb 2005 Freqüentou cursinho Não Uma vez Duas vezes Três vezes ou mais Total Fonte: Pesquisa direta 252 % 18,6 44,4 25,9 11,1 100 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... Características das famílias Os pais desses estudantes têm em geral uma escolaridade de nível médio. A observação da escolaridade do pai, isoladamente, mostra que dois terços deles cursaram até o ensino médio (66,7%), sendo pouco expressiva a parcela dos que concluíram um curso superior (7,4%). Entre as mães, o nível de escolaridade é mais elevado, considerando que 59,3% delas têm o segundo grau completo, 11,1% o curso superior incompleto e 7,4% concluíram o curso superior, o que não chega a surpreender em se tratando da escolaridade das mulheres; a escolaridade mais elevada entre as mulheres é um fenômeno mais ou menos universal, em tempos mais recentes (Tabela 9). Tabela 9 – Distribuição percentual dos estudantes segundo a escolaridade dos pais – Uneb 2005 Escolaridade Até primeiro grau incompleto Primeiro grau completo Segundo grau incompleto Segundo grau completo Curso superior incompleto Curso superior completo Total Pai 7,4 7,4 11,1 66,7 7,4 100 Mãe 7,4 7,4 7,4 59,3 11,1 7,4 100 Fonte: Pesquisa direta No que diz respeito à ocupação do pai, em proporções muito próximas, eles são comerciantes, assistentes administrativos, autônomos, bancários, funcionários públicos. Também aparecem, numa proporção menor, os que são gerente de vendas, instrumentista, almoxarife, engenheiro mecânico, militar, vendedor, contador, técnico de segurança do trabalho, inspetor. Há alguns aposentados (11,1%). Quanto à ocupação das mães, chama atenção que 29,6% delas sejam donas de casa, o que demonstra que, mesmo com renda pouco elevada, estas famílias 253 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira têm condições de manter um de seus membros fora do mercado de trabalho. A ocupação de professora aparece bem representada, com 18,5% delas, nessa categoria. Uma parcela menor aprece como técnica de enfermagem e vendedora. A menor participação é daquelas cuja ocupação é agente de limpeza, administradora e comerciante. O questionário não permitiu conhecer a natureza dessas ocupações em termos de sua formalização, o que possibilitaria um aprofundamento da compreensão do significado desse indicador. Visão dos estudantes sobre as cotas Indagados sobre a pertinência da política de cotas, 55,6% desses estudantes entendem que a medida “deveria ser expandida para todos os estudantes pobres”. Apenas 18,5% compreendem que essa “é uma medida reparadora para os negros”, outros “porque favorece os negros de escolas públicas”. Uma parcela deles considera que a medida “é discriminatória, pois julga os negros menos capazes”. Consideramos que a opinião desfavorável ao interesse da população negra, predominante entre dois terços desses estudantes, se deve não apenas à invisibilidade da questão racial, na sociedade brasileira, como porque a informação que eles recebem sobre a medida provém, possivelmente, dos meios de comunicação, carregados, em geral, de uma visão abertamente tendenciosa, quando se trata do questionamento do racismo brasileiro. Pode-se perceber que, na própria universidade que adotou a medida, a política de cotas está envolta em desinformação entre os universitários, mesmo entre aqueles que se favoreceram dela, quando se constata, que 22,2% dos cotistas entrevistados se recusaram a expor sua opinião sobre a medida (Tabela 10). 254 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... Tabela 10 – Distribuição percentual dos estudantes segundo a opinião sobre as cotas – Uneb 2005 Opinião A favor porque favorece os negros de escolas públicas % 3,7 É discriminatória, pois julga os negros menos capazes 7,4 É justa, pois é uma medida reparadora para os negros 11,1 Deve ser expandida a todos os estudantes pobres N/D Total 55,7 22,2 100 Fonte: Pesquisa direta 3.2 Percepção sobre a política de cotas e sobre o racismo na sociedade e na universidade Com o propósito de aprofundar nossa compreensão sobre o que pensam os estudantes a respeito do racismo e das políticas afirmativas para negros, particularmente sobre a reserva de vagas nessa universidade, coletamos informações através de entrevistas semi-estruturadas. A princípio, as entrevistas deveriam ser realizadas com quatro estudantes de cada turno de funcionamento do curso, isto é, dos três turnos diários. Deveriam ser entrevistados dois homens e duas mulheres, dois deles cotistas, e dois não cotistas. No turno matutino, havia apenas um homem, que atendia às características definidas para participar da amostra, o que resultou na participação de apenas cinco homens e sete mulheres; mantendo assim os doze estudantes entrevistados. Em geral, a idade dos entrevistados estava em torno de 23 anos. Apenas dois entrevistados, do sexo masculino, tinham idade superior a trinta anos. 255 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Percepção sobre o racismo na universidade e na sociedade Quando indagados a respeito do que é o racismo, as respostas foram, de modo geral, inespecíficas. Disse uma das entrevistadas, negra e cotista: Racismo é a discriminação... Deixe-me ver... É muito difícil essa pergunta. A terminologia racismo, raça... Acho que temos raças diferentes, somos diferentes. Eu acho que o racismo é isso mesmo, a gente acaba defendendo a nossa raça e subjugando a outra. A resposta parece indicar a existência de “simetria” na possibilidade de subjugação de uma “raça” por outra, o que parece conferir certa naturalidade e legitimidade ao racismo. Ao afirmar que “a gente acaba defendendo a nossa raça e subjugando a outra”, a entrevistada demonstra um desconhecimento das relações de força presentes na sociedade e do racismo como uma expressão dessas relações, com suas perversas conseqüências para a população negra. A pergunta seguinte indagava sobre a existência do racismo na sociedade. A maioria afirmou não perceber. Essas respostas evidenciam que o discurso da “democracia racial” está de tal modo incorporado às estruturas cognitivas desses estudantes (RODRIGUES, 2005), que os impede de perceber a desigualdade de tratamento e de condições de vida da população negra, nos vários espaços da sociedade brasileira. A força da imagem da “democracia racial” entre nós é tal que, até mesmo aqueles que estão submetidos ao racismo, têm dificuldade de percebê-lo, ou não se sentem à vontade para denunciá-lo, mesmo na universidade, um ambiente onde, em maior ou menor grau, circula um discurso crítico sobre a sociedade. Podemos também argumentar que essa invisibilidade do racismo decorre da ausência do debate, sobre sua existência. Essa ausência 256 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... está também em outros espaços educativos como a “grande mídia”, por exemplo. Tudo isso concorre para o pouco entendimento do que seja o racismo, dificultando uma interpretação adequada da realidade. Apenas uma entrevistada, negra, e cotista, afirmou a existência do racismo, contudo, de modo vago: Sim, eu acho que existe racismo na sociedade sim, eu não sei dizer por que, mais eu acho que existe. No entanto, uma outra das entrevistadas, também negra e cotista, assim se expressou, sobre sua percepção do racismo na sociedade brasileira: Demais... E eu não acho que a discriminação racial seja uma coisa velada, por baixo do pano, acho que ela é bem evidente, quem pode, quem não pode, quem é, quem não. E não como as pessoas falam, que é por baixo do pano. Preto branco, azul... Questionados sobre a existência do racismo na universidade, dois estudantes do sexo masculino, autodeclarados pretos, disseram não percebê-lo. Entre as mulheres apenas uma, também autodeclarada negra, afirmou não perceber. Respondeu um dos entrevistados: Aqui eu não vi nada nesse sentido, pelo menos não aqui. Eu, pelo menos, não presenciei. Embora alguns estudantes tenham admitido a existência de racismo na sociedade, uma de forma veemente, inclusive, quando foram perguntados sobre o racismo num contexto mais próximo, as respostas mostraram-se pouco esclarecedoras. 257 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Visão sobre cota e ações afirmativas Sobre o sistema de cotas, quatro dos entrevistados, homens, mostraram-se totalmente favoráveis. Entre as mulheres, apenas duas, mostraram-se a favor da medida. O discurso que prevalece é o de que as cotas devem ser ampliadas para todos os estudantes de escolas públicas, como se pode depreender da fala a seguir: Essa é uma pergunta difícil porque eu sou contra! Eu sou a favor no sentido que favorece a entrada dos estudantes negros na universidade, na medida em que eles concorrem com níveis iguais. Só que eu vejo como ponto negativo a maneira como o governo, ao invés de dar base, subsídio para melhorar a base, o ensino fundamental, ele colocou as cotas. Essa percepção, vinda até mesmo de uma estudante beneficiada pela política de cotas, demonstra como tem eco, no seio da sociedade, o discurso contrário às cotas, reiterado cotidianamente pela mídia, que caracteriza uma medida reparadora da desvantagem secular a que está submetida a população negra como um “privilégio”, para usar a terminologia do “manifesto contra as cotas”5, muito embora o manifesto seja mais enfático, e caracterize as “cotas”, como um “privilégio odioso”. Talvez isso explique a invisibilidade do racismo na universidade, revelado nas respostas anteriores. Os próprios estudantes não conseguem perceber a relação entre o racismo e o alijamento dos negros de certos espaços sociais. No entanto, aqueles estudantes que vêm de uma experiência de participação Em 30 de maio de 2006, um grupo de intelectuais subscreveu um documento posicionando-se com relação às propostas de Estatuto da Igualdade Racial e da Lei de Cotas, que tramitavam no Congresso Nacional, naquele momento. O documento foi publicado na íntegra no jornal Folha de S. Paulo. Folhaonline <www1.folha.uol.com.br/folha/ educacao/ult305u18773.shtml>. Acesso em 28/03/2008. 5 258 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... no movimento social demonstram uma outra visão sobre o tema, considerando que a medida é pertinente e que a dificuldade dos estudantes negros de terem acesso à universidade ocorre: [...] pelo fato de que já nos é negada muita coisa, eu acho que não é por falta de vontade, de inteligência; é por falta de oportunidade. Ao serem perguntados sobre a capacidade de as cotas de facilitarem o acesso à universidade, apenas uma entrevistada, autodeclarada branca, afirmou não acreditar nisso, apontando para a distância entre a quantidade de estudantes que demanda os cursos superiores e o resumido número de vagas reservadas para os negros, que são majoritários na população baiana. Disse ela: Não facilita tanto, porque é uma quantidade muito pouca de vagas. É muita gente que precisa, e quer entrar. A respeito da relação entre ingresso através de cotas e baixo desempenho acadêmico, foram unânimes em considerar que, com a instituição das “cotas”, não houve a propalada diminuição da qualidade do ensino, expectativa demonstrada por muitos dos opositores da política de cotas, como evidencia o trabalho de Santos e Queiroz (2008). Ao contrário, argumentaram em favor da medida, pelos benefícios que podem advir da diversidade proporcionada pela presença de estudantes de diferentes contextos societários, como revela a fala a seguir: Não, de forma nenhuma. Muito pelo contráario, a turma, ela é muito heterogênea e as contribuições são as melhores possíveis. Talvez se as pessoas tivessem um mesmo tipo de experiência de vida, tivessem advindo da mesma classe da sociedade não seria tão interessante como está sendo. 259 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira Outra entrevistada se mostrou contrária à política de cotas, mas pareceu sentir-se desconfortável ao revelar isso, pondo-se a justificar sua posição, como se não quisesse parecer racista aos olhos da entrevistadora negra. Disse ela: Eu não sou a favor... Eu não sou contra, porque o governo deve sim fazer algo para mudar esse quadro de desigualdade. Só que eu acho que é uma maneira... (pára e respira profundamente). Passa que a pessoa de cor não tem a mesma capacidade, eles não têm é o mesmo incentivo, por isso que todos brigam comigo (essa última fala parecia quase que um lamento). Sobre a possibilidade de identificação dos cotistas em sala de aula, a maioria considerou não ser possível estabelecer essa distinção. Porém uma jovem e um jovem, ambos autodeclarados pretos, consideraram ser possível fazer essa diferenciação, e não vêem nisso uma exposição dos beneficiários da medida. Ao contrário, a imagem percebida é bastante positiva como se pode observar por sua fala: Dá, acho que dá. Não é só pela cor, mais acho que dá até por atitude. Quem é cotista, a maioria das pessoas que eu vejo que são cotistas, elas têm uma atitude diferente, elas sabem o quanto é difícil chegar ali, elas têm que ter uma atitude. Não é honrar, mais ele sabe que tem, que se ele lutou pra chegar ali... ele não vai ter uma atitude displicente de... “Ah! se eu não conseguir alguma coisa agora eu vou conseguir depois.” Quem é cotista não, ele sabe que a oportunidade é única, ele é mais responsável. Respostas lacônicas ou pouco precisas foram apresentadas quando perguntados sobre o entendimento do que sejam “ações afirmativas”, demonstrando um desconhecimento do termo. Disseram eles: 260 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... Nunca ouvi falar. Pra mim são verdadeiras, né?... Ações afirmativas são o quê? Eu não sei o que é ação afirmativa. Apenas um estudante demonstrou possuir informação mais ampla, como se pode perceber por sua declaração: Meu trabalho de Antropologia do primeiro semestre foi sobre as ações afirmativas, por isso se eu for falar será um monte. Gostei muito. Achei interessante o que estão querendo fazer no caso da anemia falciforme. O Grafita6 tem muito projeto legal; o que eu achei mais legal foi a Lei que bota a questão da cultura negra na escola, é o que eu acho que é mais legal. Percepções da cor No inicio da entrevista havíamos solicitado que o entrevistado declarasse sua cor/raça, utilizando para isso o termo de sua escolha. Ao fim da entrevista, a pergunta foi refeita solicitando se aos entrevistados que se autoclassificarem com os termos de uso do IBGE, a saber: branco, pardo, preto amarelo e indígena. Um dos homens entrevistados que, de início, se havia declarado pardo, no final, se classificou com preto. Entre as mulheres também se verificou tal fenômeno; uma estudante que, no início, da entrevista se havia declarado branca, ao final, disse confusa: É tão difícil! Pardo. Não sei que cor é essa (risos). Minha pele, ela é branca, mais na minha família... a família de minha mãe, ela é negra. Na família de meu pai é que eles realmente são brancos. Agora eu não Um grupo organizado de “grafiteiros”, que atua no bairro do Cabula, onde está localizadada a universidade. 6 261 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira sei o que foi que aconteceu antes disso, que mistura aconteceu, é uma mistura danada. Eu nasci branca na cor, né?, mas eu não consigo me definir exatamente. Eu digo branca só na aparência, mas por dentro acho que tá bem mesclado. É interessante ressaltar que essa entrevistada, aos olhos da entrevistadora é negra/preta. As impressões da entrevistadora7 Um aspecto, particularmente, chamou atenção durante a realização das entrevistas. A percepção que ficou é de que as pessoas negras pareciam sentir-se mais à vontade para falar das questões raciais e desabafar, inclusive. Já entre as pessoas declaradas brancas percebi certo desconforto ao falarem sobre as questões raciais, sobretudo quando tinham opiniões que iam contra as demandas da população negra ou à percepção do racismo. Esse fato ocorreu com a estudante que a principio havia se declarado branca e, no final da entrevista, se disse “misturada”. O procedimento adotado na entrevista era perguntar primeiro o nome e, logo em seguida, indagar sobre a cor da/o entrevistada/o. Essa entrevistada, ao responder sobre a sua cor, disse, de modo ríspido, que era branca e, com expressões corporais e faciais, parecia querer me indagar sobre a razão daquela pergunta ou se havia, de minha parte, alguma duvida sobre cor que ela se havia atribuído. No decorrer da entrevista ela foi ficando mais à vontade, a ponto de, ao final, admitir ter negros em sua família, e afirmar: Eu digo branca só na aparência mais por dentro acho que tá bem mesclado. As entrevistas foram realizadas por Daniela Silva Santo, que se autoclassifica, racialmente, como negra/preta. 7 262 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... Em geral, as pessoas que se declaravam brancas mantinham certa distância, como que respondendo apenas burocraticamente às perguntas. Já as negras, de imediato, construíam uma intimidade a ponto de desabafarem. Essa intimidade podia ser percebida, inclusive, pela postura que era mais relaxada, confortável até, por gestos corporais de me tocar ao falar, por exemplo, e sempre sorrindo, além do tom de voz, que era mais leve e displicente. Já as pessoas autodeclaradas brancas, freqüentemente, demonstravam o contrário, inclusive parecendo cautelosas com o que falavam, utilizando imensas pausas, em meio às respostas. Quando se mostravam pouco, ou nada, favoráveis à política de cotas, o olhar dessas entrevistadas, tanto brancas quanto negras, era outro detalhe importante: elas não me encaravam ao falar. Acredito que por me julgarem a favor da medida. Considerações finais A pesquisa indicou que a questão racial é ainda um assunto delicado para as pessoas, sejam brancas ou negras, por sua complexidade e pela construção social que desenvolveu o racismo no Brasil. O país carrega as conseqüências da idéia de “democracia racial”, o que faz com que, mesmo com a denúncia do racismo aqui vivenciado, muitas das pessoas (entrevistadas) admitem a sua existência, porém poucos conseguem falar, explicitamente, sobre o assunto. Tais fatores poderiam também explicar o pouco entendimento demonstrado pelos estudantes do que sejam “ações afirmativas”. A desinformação parece maior entre aqueles que não são beneficiados pela medida, mas também está presente entre os que ingressaram na universidade pelo sistema de cotas. Mesmo entre os que se disseram a favor das “cotas”, o conhecimento sobre o tema é do entendimento de poucos. Apesar do pouco conhecimento 263 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira sobre as “ações afirmativas” e sobre a questão racial, de modo amplo, os estudantes arriscam sugerir modificações no “sistema de cotas”, adotando o discurso mais corriqueiro de que deveria ser ampliado para estudantes pobres, o que confirma a invisibilidade do racismo, vez que as cotas são para negros oriundos de escolas públicas, portanto, visam especificamente àqueles que se encontram nas camadas menos aquinhoadas. A pesquisa demonstrou ainda que nos cursos de maior seletividade, embora o patamar de renda dos cotistas não seja tão elevado, outras características evidenciam que eles fazem parte de um segmento da população negra com melhores condições de vida, inclusive quando comparados aos alunos de outros cursos da própria Uneb, que não desfrutam do mesmo prestígio, como o curso de Pedagogia, por exemplo. O que se nota é que, mesmo no contexto de uma política de acesso diferenciado para os negros, os cursos mais valorizados ainda ficam reservados a uma parcela muito restrita desses estudantes. Os resultados aqui apresentados não permitem, evidentemente, grandes generalizações, por se restringirem a um contingente limitado de estudantes. Eles, muito mais, indicam hipóteses, que conclusões, alertando, desse modo, para a necessidade de investigações mais amplas que possam responder às questões aqui sinalizadas e outra tantas sobre o tema, que estão a requerer a atenção dos pesquisadores. Os resultados também sinalizam para a necessidade de discussões mais amplas sobre o racismo e a discriminação racial, inclusive como forma de evidenciar a relevância de uma política tão importante na contemporaneidade, como é o tratamento diferenciado a grupos excluídos, mas tão pouco compreendida, até mesmo pelos seus beneficiários. 264 Estudantes de uma universidade estadual com cotas... Referências BARCELOS, L. C. Educação: um quadro de desigualdades raciais. Rio de Janeiro, Estudos Afro-Asiáticos (23), 37-69, dez., 1992. CASTRO, U. de A. A Bahia no tempo dos alfaiates. In: CASTRO et al, U. de A. II Centenário da Sedição de 1798 na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia: Secretaria da Cultura e do Turismo: Brasília: Minc, 1999. CAVALLEIRO, E. dos S. Discursos e práticas racistas na educação infantil: a produção da submissão social e do fracasso escolar. Educação racismo e anti-acismo. Programa A cor da Bahia/ FFCH/UFBA. Salvador: Novos Toques, n. 4, 2000. GOMES, N. L. 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ANEXO Tabela 5 – Distribuição percentual dos estudantes segundo o turno cursado no Ensino Médio – Uneb 2005 Turno Sempre diurno Diurno, depois noturno Total % 88,9 11,1 100 Tabela 6 – Distribuição percentual dos estudantes segundo o tipo de curso freqüentado no Ensino Fundamental – Uneb 2005 Tipo de curso Colegial Técnico Total % 85,2 14,8 100 Fonte: Pesquisa direta 267 Sistema de reserva de vagas na Universidade do Rio de Janeiro e as ações do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj Maria Alice Rezende Gonçalves Introdução Este artigo tem como objetivos tecer considerações sobre o campo das políticas públicas visando a identificar as políticas de ação afirmativa como um tipo de política social, descrever as fases de implantação e implementação da política Sistema de Reserva de Vagas para Negros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002/2008) e destacar as ações do Sempre Negro - Coletivo de Professores Negros da Uerj, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj na etapa de implementação da política de reserva de vagas da Uerj. Neste texto pretendo me concentrar na análise da reserva de vagas para estudantes que se autodeclaram negros. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi uma das primeiras instituições a implantar ações afirmativas para grupos sub-representados na educação superior. Em 2000, é aprovada a Lei n. 3.524, que dispõe sobre a reserva de 50% de vagas nos vestibulares das universidades estaduais – Universidade do Estado Rio de Janeiro (Uerj) e Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) – para alunos egressos do ensino básico das escolas públicas do 269 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira estado. Em 2001, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprova a Lei n. 3.708, que determina, também, para as duas universidades estaduais, a reserva de 40% de vagas para estudantes autodeclarados negros e pardos. Em 2003, acontece o primeiro vestibular para atender à instituição dessas leis. Foram feitos dois vestibulares distintos visando a atender as duas leis citadas – o Vestibular Estadual e o Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio (Sade). O primeiro volta-se para os candidatos que não podiam ou não se candidataram ao sistema de cotas e o segundo, para os que desejavam participar do sistema de cotas. Quanto ao cumprimento das cotas para negros e pardos, a Uerj optou por aplicar o percentual sobre a cota de 50% para escolas publicas (Sade) e em seguida sobre as vagas não reservadas do Vestibular Estadual. Ainda no ano de 2003 é aprovada a Lei n. 4.061 que reserva 10% vagas para deficientes físicos. No ano seguinte, a Lei n. 4.151 revoga todas as anteriores e institui mudanças nos critérios de seleção e admissão de estudantes nas universidades estaduais, como: a unificação das duas modalidades de cotas, comprovação de carência financeira e no percentual das cotas destinadas aos diferentes beneficiários. Para o vestibular de 2004 foram estabelecidos os seguintes percentuais de cotas: 20% para negros, 20% para egressos de escola pública, 5% para pessoas com deficiências e outras minorias étnicas. Os candidatos às cotas só poderiam concorrer a uma das modalidades e tinham que comprovar a carência financeira familiar, ou seja, renda máxima de R$300,00 per capita. Dada a exigência da baixa renda, ao longo dos últimos seis anos, a universidade tem recebido estudantes que apresentam um novo perfil socioeconômico. Este fato é um dos obstáculos enfrentados pelos cotistas e pela universidade, impondo a necessidade de programas de permanência desses cotistas. 270 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... Em 2007, a Lei n. 5.074, que altera a Lei n. 4.151, introduz no sistema de reserva de vagas novos beneficiários. São eles, os filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço. Atualmente, acrescidos os beneficiários impostos pela Lei n. 5.074, são considerados grupos contemplados no sistema de reserva de vagas: estudantes da rede pública do Estado, negros, pessoas com deficiências, indígenas e outras minorias, todos comprovadamente carentes financeiramente. Neste contexto de implantação do sistema de reserva de vagas, em 2003 é criado o Sempre Negro – Coletivo de Professores Negros da Uerj. Este coletivo reúne docentes de diferentes unidades acadêmicas da universidade e pesquisadores externos associados interessados na temática da questão racial brasileira. Desde sua fundação, tem desenvolvido atividades de extensão e pesquisa com a participação de alunos afro-brasileiros. As políticas de cotas causaram um grande impacto na sociedade civil brasileira. Foram e são produzidos artigos jornalísticos, programas de televisão e de rádio, monografias, dissertações e teses, cartas, manifestações de apoio e protesto. Enfim o tema tem mobilizado a população de diferentes maneiras. Em 2006 e em 2008, intelectuais manifestaram suas opiniões a favor e contra as políticas raciais por meio de manifestos. Entre outros assuntos, os quatro manifestos tratam das políticas de ação afirmativa para negros no Brasil. Esses documentos foram encaminhados ao Supremo Tribunal Federal e tinham como finalidade servir de canal de pressão para aprovar ou vetar o Estatuto da Igualdade Racial e do Projeto de Lei n. 73/1999, que propõe a adoção de cotas nas universidades federais. Nesse confronto, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi tomada como paradigma das ações afirmativas no país. Por meio dos argumentos expostos nesse conjunto de documentos é possível discutir o papel dos intelectuais como 271 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira grupo de pressão, dois distintos modelos de políticas de inclusão na educação superior como também duas interpretações da nação brasileira. Esses acontecimentos vêm reforçar a importância do acompanhamento e avaliação da experiência da Uerj e das demais universidades brasileiras que optaram pelo sistema de reserva de vagas para negros. 1 O campo das políticas públicas A análise de políticas públicas guarda uma tradição intelectual anglo-saxã e, mais especificamente, norte-americana. A institucionalização desse campo ou subdisciplina, mesmo entre os anglo-saxões e norte-americanos, é muito recente. Isso decorre, em parte, do caráter interdisciplinar da produção intelectual compartilhado por várias disciplinas das ciências sociais – sociologia, ciência política, economia, direito entre outras (MELO, 1999). O caráter interdisciplinar da área políticas públicas é observado por Nelson (apud MELO, 1995, p. 63): “a historia do campo de políticas publicas é mais a história de um discurso do que de uma disciplina convencional composta de idéias, mais instituições, revistas e controle de recursos essenciais. Na realidade, a ausência nessa área de um aparato material característico de um campo intelectual é um achado notável de pesquisa”. E notória a ausência de um aparato material característico de um campo intelectual. Deste modo, dificilmente pode-se falar em disciplina acadêmica no sentido literal de uma comunidade que exerce controle (“disciplina”) sobre padrões de qualificação profissional, qualidade da produção e conduta de seus membros, além de controle de recursos organizacionais com acesso a carreiras, conclui Melo (1995). Lowi (1994, apud MELO, 1999) observa que a área de política pública se converteu em subdisciplina acadêmica hegemônica nos EUA em virtude de seu potencial para abordagens quantitativas, nas quais 272 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... se importam instrumentos conceituais da ciência econômica – a que denomina “ a nova linguagem do Estado” em substituição ao direito. Note-se que a recente difusão e popularização da expressão “política pública” pode ser vista como concomitante aos processos de democratização e institucionalização liberal. O campo de estudos das políticas públicas é bastante recente no Brasil. Sua análise esteve associada aos governos e à avaliação dessas políticas realizadas por instituições governamentais. Os estudos acadêmicos sobre a área temática análise de políticas públicas se iniciam na década de 1980, reunindo um conjunto heterogêneo de contribuições. A agenda de pesquisa sobre política pública de corte social foi subsumida durante muito tempo no Brasil. Somente no final do regime autoritário, durante a década de 1980, foram produzidos os primeiros trabalhos sobre a reconstrução da política social brasileira sob a égide do projeto reformista da Nova República. Mais recentemente, com a adoção das chamadas políticas neoliberais que visavam a reduzir o escopo de intervenção pública, o Estado brasileiro vem apoiando políticas particularistas, entre elas as políticas afirmativas, em varias áreas: saúde, educação, mercado de trabalho, para os grupos minoritários, entre eles as populações negras. Melo (1999) observa que, não obstante lacunas significativas – subáreas clássicas da literatura internacional, como os estudos de impacto das políticas sobre as dimensões de gênero e etnicidade, atraíram um número muito reduzido de pesquisas –, a qualidade e o volume da produção apontam para a maturidade já alcançada pela produção cientifica da área. Schwarcz (1999) identifica a emergência de pesquisas mais diretamente engajadas com o debate sobre “ação afirmativa”. Neste contexto destaca o patrocínio oficial a um seminário realizado em 1996, sobre a validade de se estabelecer uma política oficial de “affirmative action” no país (1999, p. 303). 273 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira A produção acadêmica na área das ciências humanas e sociais sobre ação afirmativa no Brasil cresce (HENRIQUES, 2002; MACHADO, 2004; MOEHLECKE, 2002; MUNANGA, 1996; SANSONE, 2004; SILVA JR. 2000; TELLES, 2003; SISS, 2003, entre outros), principalmente após a adoção do sistema de cotas por algumas instituições públicas de educação superior nos primeiros anos do século XXI. Justamente com essa política, acirra-se o debate em torno da adequação, legalidade e abrangência desse tipo de política para o país. No âmbito do acesso à educação superior, esse debate polariza-se. Os críticos às ações afirmativas se colocam em posições opostas e inconciliáveis. As políticas de ação afirmativa são apontadas ora como responsáveis pela cisão do Brasil em dois brasis, ora como solução para a inclusão dos setores sub-representados na educação superior. As políticas universalistas são apresentadas como incompatíveis com as focalizadas. No entanto, todos defendem um maior investimento na educação básica e a necessidade de expansão da educação superior. Na revisão bibliográfica sobre a produção acadêmica do campo das políticas públicas elaborada por Souza (2006, p. 40), a política pública é tratada como um campo de conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar o governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A autora concorda com o fato de que a política pública é um campo que reúne varias disciplinas, porém seu caráter holístico não significa que ela careça de coerência teórica ou metodológica, mas sim que ela comporta vários “olhares”. Conclui que é “um campo do conhecimento que busca integrar quatro elementos: a própria política pública, a política (politics), a sociedade política (policy) e as instituições onde as políticas públicas são decididas, desenhadas e implementadas”. A autora afirma ainda que “o principal foco analítico da política pública está na identificação do tipo de problema que a política publica visa corrigir, na 274 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... chegada desse problema ao sistema político (politics), à sociedade política (policy), e nas instituições/regras que irão modelar a decisão à implementação da política pública” (SOUZA, 2006). Frey (2000) alerta para a falta de teorização comumente direcionada à policy analysis. Porém a falta de teoria é explicável, se levarmos em consideração o interesse de conhecimento próprio da policy analysis, que é, a saber, a empiria e a prática política. No Brasil, estudos sobre as políticas públicas foram realizados só recentemente. Nesses estudos, ainda esporádicos, deu-se ênfase à análise das estruturas e instituições ou à caracterização dos processos de negociação das políticas setoriais especificas (FREY, 2000, p. 214). 1.1 As políticas sociais A política social é um tipo de política pública. Conforme Lavinas (2007), a idéia de que cabe ao Estado intervir para proteger os cidadãos remonta ao século XVIII e foi cunhada por Adam Smith. O termo tem sido utilizado com vários sentidos, ou seja, não é um termo técnico que tenha um significado preciso, segundo Marshall (1965). A política social de um Estado abrange tanto o sistema de proteção social quanto o gasto social. Em geral diz respeito às políticas de governo que visam ao bem-estar dos cidadãos por meio da oferta de serviços ou da transferência direta de renda – seguro, assistência pública, serviços de saúde, proteção social, políticas de habitação e educação. Titmuss e Marshall (ALCOCK et al., 2001:209 apud LAVINAS, 2007) consideram a política social um instrumento de intervenção positivo para provocar mudanças. É parte constitutiva de um conjunto mais vasto de mecanismos que tem por finalidade alterar situações, sistemas, práticas e comportamentos. Implica escolhas com o intuito de promover e priorizar mudanças sociais. Para Laffite (1962, 275 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira apud LAVINAS, 2007), a política social é uma tentativa de conduzir a vida da sociedade numa direção que ela não tomaria se tal rumo fosse deixado ao acaso. Marshall (1965) define política social como políticas de governo cujas ações têm impacto direto no bem-estar do cidadão, através da provisão de serviços de saúde, proteção social em geral e da política de moradia. A dimensão aparente da política social é aquela que diz respeito à provisão de bens públicos – saúde, educação, saneamento, segurança pública – ou de transferência direta de renda – aposentadorias, pensões para os inativos, programas de combate à pobreza e outros programas compensatórios e assistenciais. Há, entretanto, outros tipos de política social menos visível como a política fiscal e tributária e a política de emprego. Segundo Briggs (1969, apud LAVINAS, 2007) o sistema de bem-estar tem como objetivo, por meio de políticas e da administração, modificar as forças de mercado ao menos em três direções: assegurar renda mínima; reduzir grau de insegurança – doença, velhice, desemprego –; e garantir um melhor padrão de atendimento nos serviços sociais disponíveis aos indivíduos e famílias. Uma política social será mais ou menos justa dependendo do grau de desmercantilização de bens e serviços (ESPING-ANDERSEN, 2002), ou seja, quando o bem ou serviço é assegurado na qualidade de direito ao indivíduo garantindo o seu padrão de vida independentemente do mercado. 2 A análise da política pública A análise das políticas públicas possibilita a compreensão do problema para o qual a política pública foi desenhada, seus possíveis conflitos, a trajetória seguida e o papel dos indivíduos, grupos e instituições que estão envolvidos na decisão e que serão afetados por ela (SOUSA, 2006). Uma política pública percorre as seguintes etapas 276 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... de análise: (a) Identificação da política pública (o que é feito, por quem, onde, quando, proposto por quem, para mudar o quê e que resultados esperamos) e (b) as fases para análise do impacto na sociedade civil sobre a formulação e implantação da política; o processo de formulação e modalidade de decisão; o processo de implementação, a avaliação (interna e externa e a definição de indicadores sociais). Das diversas definições e modelos sobre políticas públicas, Souza (2006, p. 36) extrai e sintetiza seus elementos principais: • Avaliar as políticas públicas permite distinguir entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato, faz. • A política pública envolve vários atores e níveis de decisão, embora seja materializada através dos governos, e não necessariamente se restringe a participantes formais, já que os informais são também importantes. • A política pública é abrangente e não se limita a leis e regras. • A política pública é uma ação intencional, com objetivos a serem alcançados. • A política pública, embora tenha impactos no curto prazo, é uma política de longo prazo. • A política pública envolve processos subseqüentes após sua decisão e proposição, ou seja, implica também implementação, execução e avaliação. 3 Ação afirmativa: um tipo de política pública A reserva de vagas é uma política recente na história das políticas públicas brasileiras. A reivindicação de políticas de ação afirmativa destinadas à inclusão de negros no ensino superior e em outros campos acontece com a redemocratização do país. Os movimentos sociais começam a exigir uma postura mais ativa do Estado diante de ques277 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira tões como raça e gênero, por meio da adoção de políticas de ação afirmativa. Apesar das diferenças, a experiência brasileira tem sido exaustivamente comparada à experiência norte-americana. As políticas estadunidenses vêem sendo reformuladas, avaliadas e em alguns casos extintas. No Brasil essas políticas surgem como uma resposta ao problema da sub-representação de segmentos minoritários na educação superior, entre eles os negros. Essas políticas contaram com o apoio e/ou participação do governo, de organismos internacionais e da sociedade civil (movimento negro, intelectuais, artistas e outros setores) em sua implantação e difusão e adoção por diversas instituições de educação superior brasileiras. Esses diferentes grupos influenciaram na forma como as ações afirmativas estão sendo implementadas no Brasil. A política de ação afirmativa para negros no Brasil tem estimulado a polarização entre universalidade versus seletividade das políticas e introduzido novas categorias para identificação de beneficiários como negros e carentes. Há que se acompanhar e avaliar essa experiência com a intenção de criar mecanismos mais amplos e ágeis de inclusão dos setores sub-representados na educação superior brasileira. A relevância do tema se justifica, entre outros motivos, pelo fato de as universidades estaduais do Rio de Janeiro serem as primeiras instituições de ensino superior a reservar vagas em seu vestibular para as populações sub-representadas. Ademais, essa experiência suscitou grande polêmica em torno do reconhecimento da existência de desigualdades raciais no país. O melhor modelo de política social seria o focal ou o universal? Ou a conjugação dos dois modelos? Até hoje, essa temática tem provocado tanto a produção de conhecimento no campo acadêmico quanto debates na mídia e nos movimentos negros, enfim envolvendo toda a sociedade civil. 278 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... 3.1 A política de corte racial no Brasil como resposta a um problema Uma política pública caracteriza-se por ser uma intervenção deliberada do Estado sobre a sociedade civil. Apresenta um foco preciso em temas empiricamente contextualizados. Cabe destacar o caráter simbólico das políticas públicas, pois o conceito engloba tanto as decisões quanto as não-decisões do governo. As políticas focalizadas em grupos minoritários são recentes no Brasil. No final dos anos 1990, as mulheres foram beneficiadas com a reserva de 30% das vagas nos partidos políticos para que estas possam se candidatar às eleições municipais, estaduais e federais. O negro só será o publico alvo de políticas de ação afirmativa no início do século XXI, com a adoção de políticas de inclusão na educação superior e no funcionalismo público. A difusão internacional das reformas neoliberais, que visavam a reduzir o escopo da intervenção pública, estimulou a proposição de políticas particularistas no Brasil. O tema entra na agenda governamental a partir dos anos 1990. Durante duas gestões de presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), alguns eventos e medidas foram determinantes para o processo de formulação de políticas de ação afirmativa para negros. Entre eles, o seminário internacional Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos (1996) que, entre outros objetivos, visava a buscar soluções para situações de discriminação e racismo; a atuação do Grupo de Trabalho Interministerial (1996) para a valorização e elevação dos padrões de vida dos afro-brasileiros e a instituição do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH (1996). Nesta mesma década surge o movimento dos pré-vestibulares comunitários, que visam a preparar alunos de baixa renda e/ou negros para o ingresso no ensino superior. Em 2000, o então deputado federal Paulo Paim elabora o Projeto de Lei n. 3.198, por 279 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira meio do qual institui o Estatuto da Igualdade Racial (SISS, 2003; MACHADO, 2004). Durante o ano de 2001, o Brasil se prepara para participar da III Conferência Mundial contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e formas correlatas de intolerância, convocada pela Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida em setembro de 2001 na África do Sul. Neste mesmo ano, o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) reúne em um texto para discussão dados sobre as desigualdades raciais no Brasil. Henriques (2001) apresenta as conclusões de várias pesquisas sobre relações raciais que reforçam a tese da desigualdade estrutural entre brancos e negros na sociedade brasileira. A tese da desigualdade racial funda-se na comparação do desempenho social de negros e brancos com base em dados dos censos demográficos brasileiros. Em 2001, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprova a primeira lei que reserva vagas para negros e pardos nas universidades estaduais do Rio de Janeiro. Em 2003, estimulados pelos debates em torno da questão racial ocorridos no interior da universidade e na sociedade civil, um grupo de professores negros institui o Coletivo de Professores Negros da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj. No ano seguinte os núcleos de estudos afro-brasileiros e grupos correlatos reunidos em Brasília assinam um acordo de cooperação com a Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação. Esta secretaria lança o Uniafro – Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação Superior, que, por meio de um concurso, oferece recursos financeiros que possibilitam a consolidação dos núcleos e o desenvolvimento de projetos em três eixos: formação, publicação e permanência de estudantes. 280 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... 3.2 O sistema de reserva de vagas para negros na Uerj: a formulação. O que é a política de reserva de vagas? A literatura sobre política pública considera a política de reserva de vagas como uma política social que: (1) Barr (2003) classifica como uma política residual e (2) Lowi (1964) como uma política redistributiva. De acordo com Barr, a política social residual visa a atender somente os grupos que necessitam do apoio do Estado. Já Lowi entende que a política redistributiva é orientada para o conflito, ou seja, pelo desvio e o deslocamento consciente de recursos financeiros, direitos ou outros valores entre camadas sociais e grupos da sociedade. O processo político que visa a uma redistribuição costuma ser polarizado e repleto de conflitos (FREY, 2000, p. 224). A primeira iniciativa no estabelecimento de políticas afirmativas para educação superior no Rio de Janeiro somente aconteceu durante o governo Anthony Garotinho, por meio de leis que instituem cotas para grupos sub-representados nas universidades estaduais. A Lei n. 3.524/00, que institui a reserva de 50% das vagas para alunos egressos da rede pública. A Lei n. 3.708/01, que institui a reserva de 40% das vagas para as populações autodeclaradas negra e parda. O critério cor/raça foi objeto de questionamentos desde a aprovação da lei. Cabe informar que o sistema de classificação de cor/raça adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE compreende cinco possibilidades: branco, preto, pardo, amarelo e indígena, portanto, a lei introduz um novo sistema de classificação de cor/raça para selecionar seus beneficiários (REZENDE GONÇALVES, 2004). O projeto de reserva de vagas para negros e pardos foi proposto pelo deputado José Amorim, do Partido Progressista Brasileiro - PPB-RJ, apresentado e aprovado por aclamação em sessão ordinária da Alerj 281 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira e em seguida sancionado pelo governador Garotinho. Segundo o deputado Amorim (apud MACHADO, 2004, p. ???): [...] a decisão do presidente Fernando Henrique Cardoso de criar a cota de 20% para negros no serviço público é, sem dúvida, uma iniciativa que acaba com o dilema que as populações negra e parda vivem. [...] Precisamos, agora, exigir do governador Anthony Garotinho que regulamente a lei obrigando as universidades estaduais a aplicar 40% das vagas para as populações parda e negra. Estamos nos associando às medidas aplicadas pelo presidente da República, porque aqui no estado do Rio foi uma iniciativa inovadora, que representa um passo importante para a sociedade enfrentar os problemas raciais (MACHADO, 2004, p. ???). O governador Anthony Garotinho propõe a junção das duas leis – a Lei n. 3.524 e a Lei n. 8.708. Para cumprimento das cotas, foi criado o Sistema de Acompanhamento e Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio – o SADE, de acordo com o artigo primeiro da Lei n. 3.524, “os órgãos e instituições de ensino médio oficiais situadas no Estado do Rio de Janeiro, em articulação com as universidades publicas estaduais, instituirão sistemas de acompanhamento de desempenho de seus estudantes, atendidas as normas gerais da educação nacional”. As referidas leis foram impostas às universidades estaduais sem que houvesse discussão no interior das instituições. Depois de aprovadas as leis, a então reitora, Nilcéa Freire, realiza uma consulta às unidades acadêmicas da Uerj e constata haver uma grande rejeição à implantação das leis. No ano de 2002, antes do Vestibular 2003, a reitora institui uma comissão composta de docentes e representantes da sociedade civil para elaborar um programa de permanência para 282 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... os alunos que ingressariam na universidade pelo sistema de reserva de vagas. Os que são favoráveis à seletividade lançam mão de argumentos que defendem a política de cotas, como: o principio da eqüidade – tratar desigualmente os desiguais; a necessidade de se formar uma elite negra com curso superior; em curto prazo as políticas afirmativas são eficientes e eficazes para a promoção da população negra. Em contrapartida os que defendem políticas universalistas combatem as políticas de cotas usando argumentos como: leis somente para beneficiar os pretos e pardos naturalizariam construções sociais como raça e cor; o acesso à universidade por meio de políticas raciais é um privilegio; o investimento governamental deveria ser direcionado para a melhoria da qualidade do ensino básico; as políticas universais voltadas para as populações de baixa renda acabariam por atingir os pretos e pardos já que esses grupos encontram-se super-representados nos setores de renda mais baixa da sociedade brasileira e, finalmente, as políticas com corte racial e de renda criam uma nova categoria classificatória de beneficiários das políticas sociais – os negros e os carentes ou negros carentes. Os dois grupos reconhecem a necessidade de reforma e melhoria da qualidade do ensino fundamental e médio. Os grupos a favor de políticas sociais exclusivamente universais as defendem argumentando que são mais democráticas e mais justas, porque atendem a todos. Os defensores das políticas de cotas afirmam ser conciliáveis os dois tipos de política, ou seja, a universal e a seletiva. Em 2003 as universidades estaduais são surpreendidas com uma nova lei de reserva de vagas – a Lei n. 4.061, que dispõe sobre reserva de vagas para portadores de deficiências. 283 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira 3.3 A fase de implantação e implementação Na época em que as leis foram promulgadas em cascata, a comunidade acadêmica da Uerj protestou contra a ausência de tempo para uma discussão aprofundada no interior da universidade em relação à propriedade e contra as formas de implementação dessas leis. Visando ao cumprimento da lei, a Uerj realizou, em 2003, os dois processos seletivos distintos que serão descritos a seguir. Os dois processos seletivos foram – um no formato tradicional (Vestibular Estadual) para atender a todos os inscritos e outro para atender à reserva de vagas (Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes no Ensino Médio). Para cumprimento da reserva de vagas para pardos e negros com base no critério da autodeclaração, o Departamento de Seleção Acadêmica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro verificou se o número de candidatos autodeclarados pardos e negros classificados no vestibular destinado à reserva de vagas alcançava os 40% de vagas previstas na lei. Como foi inferior, o percentual foi completado com os candidatos autodeclarados pardos e negros classificados no vestibular tradicional. Devido a essas peculiaridades, o Vestibular 2003 diferenciou-se de todos os demais processos seletivos realizados pela universidade. O resultado desse processo seletivo inflamou ainda mais o debate. Os candidatos reprovados entraram com recursos na justiça reivindicando vagas seja por conta da média superior à de um candidato pardo ou negro seja por discordarem dos critérios de autoclassificação. A coordenação do vestibular da época avaliou que o sistema de reserva de vagas para pretos e pardos teve reduzido impacto na aprovação de alunos somente pelo critério cor/raça, ou seja, a maior parte deles teria sido aprovada sem a reserva de vagas. Esse foi um dos argumentos determinantes para a proposição de novas mudanças no processo seletivo. 284 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... Em 2003 ocorreram as primeiras alterações nas referidas leis. A Uerj estabelece as modalidades e os percentuais de cotas que vigoram ate hoje. Uma comissão – constituída de membros da comunidade acadêmica e externos – elaborou uma proposta embrionária da Lei n. 4.151/03, que regulou o Vestibular 2004. Por essa lei, caberia às universidades públicas estaduais reservar 20% de suas vagas para negros; 20% para egressos da rede pública estadual e 5% para portadores de necessidades especiais e indígenas. Os candidatos às cotas só concorrem por uma das modalidades e precisam comprovar o atendimento a outro critério – a carência financeira. Em 2004, o teto admitido para a renda era de R$300,00 líquidos por pessoa da família. Atualmente, para o Vestibular 2008, é precondição para a candidatura a qualquer cota a renda per capita de R$630,00. Desde a formulação da primeira lei até as alterações impostas pela Lei n. 4151/03, o processo seletivo mudou. Para o Vestibular 2004, foram feitas alterações no percentual e na classificação de cor/raça dos beneficiários. No caso das populações negras, a primeira lei estabelecia o percentual de 40% para negros e pardos. Esse percentual mudou para 20% e o grupo beneficiário passa a ser chamado de negro. No que diz respeito à população alvo, a primeira lei classifica a cor/raça dos beneficiários como pardos e negros. A opção por esse sistema classificatório de cor/raça apresentou problemas por ser híbrido, ou seja, faz uso da categoria pardo do sistema de classificação de cor/raça do IBGE e da categoria negro ausente desse sistema. Em geral, a denominação de cor/raça negro significa a soma dos brasileiros que se autoclassificam como pretos e pardos. Já a segunda lei classificará os beneficiários como negros, deste modo torna-se mais objetiva na medida em que opta por somente um sistema classificatório de cor/raça. Neste sentido são considerados negros todos os candidatos que se autoclassificam com tal. Uma ou285 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira tra mudança observada foi a ampliação dos beneficiários do sistema de reserva de vagas. Desde 2007, são também contemplados os filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária mortos ou incapacitados em razão do serviço, por meio da Lei n. 5.074. Essas inovações modificaram o perfil do corpo discente da universidade e reforçam a necessidade de políticas de permanência seja para alunos que já freqüentavam a universidade e para os novos oriundos do sistema de reserva de vaga. Cabe lembrar que a regulamentação dessas leis não foi acompanhada de dotação de recursos para a permanência desse novo alunado. Atualmente, a universidade conta com recursos da Faperj – Fundação de Amparo à Pesquisa Carlos Chagas, que destina algumas bolsas para estudantes cotistas no primeiro ano de ingresso e outras concedidas por uma empresa. Visando a receber o novo alunado, a universidade criou um programa de permanência, intitulado Programa de Iniciação Acadêmica (Proiniciar), que compreende oferecimento de bolsas-auxílio e atividades como oficinas de arte, cultura, disciplinas instrumentais. Essas atividades pretendem “contribuir para o enriquecimento cultural e resolver algumas lacunas deixadas quanto à formação intelectual no ensino médio” (ARRUDA, 2007, p. ??). Uma das principais barreiras encontradas para o desenvolvimento de um programa de permanência que possa atender a todos os alunos da universidade é a falta de recursos financeiros. O programa não faz qualquer distinção entre os alunos, ou seja, não são identificados segundo o tipo de cota que permitiu seu ingresso. Todos são considerados cotistas. Sabe-se que nos últimos governos têm ocorrido cortes no orçamento da Uerj. A Constituição Estadual de 1989 determina o repasse nunca inferior a 6% da receita tributária líquida exclusivamente para a Uerj. O 286 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... parágrafo 1 do artigo 309 diz que: “o poder publico destinará anualmente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ dotação definida de acordo com a lei orçamentária estadual, nunca inferior a 6% da receita tributaria liquida, que lhe será transferida em duodécimos, mensalmente”. A ação Direta de Inconstitucionalidade – Adin 780-7, aprovada em 1992, impediu esse pagamento até dezembro de 2007. O Supremo Tribunal Federal – STF derrotou a Adin, mas o governo ainda não cumpriu o que determina a lei. Estima-se que, com a revogação da Adin, a verba anual da Uerj passe a girar em torno de um bilhão, o que ainda esta abaixo de suas necessidades. Em 2007, o orçamento aprovado pela Alerj foi de 697 milhões de reais, porem, após cortes e contingenciamentos, só foram repassados 468 milhões de reais. Se a lei fosse cumprida, a universidade receberia 923 milhões (receita tributaria liquida), conforme informações da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro (Jornal dos Trabalhadores da UERJ, julho de 2008, p. 4). Os cortes no orçamento e o rapasse insuficiente para as demandas da universidade potencializadas com a adoção do sistema de reserva de vagas têm dificultado a implantação e implementação de uma política adequada à permanência do corpo discente, em especial aqueles que carecem de apoio acadêmico e material para cumprirem as exigências da vida universitária. O gasto social é aquela parte do gasto público – qualquer que seja o nível de governo – que se destina a atender às demandas sociais (LAVINAS, 2007). No caso do Rio de Janeiro, o governo ainda não inclui em seus gastos sociais as despesas com as políticas de reserva de vagas nas universidades estaduais. A Faperj, ao financiar bolsas para alunos cotistas, desvia os recursos que originalmente deveriam se destinar à pesquisa propriamente dita. A não inclusão de recursos para as políticas afirmativas no orçamento social do Estado parece ser 287 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira um dos pontos que tornam a política de reserva de vagas vulnerável. Desde a sua implantação, o governo estadual não destinou os recursos necessários para sua implementação. Agindo de forma precária, contando com parcos recursos, a instituição, a despeito dos debates em torno das políticas afirmativas, não consegue suprir as carências dos alunos cotistas. Há que se superar essa barreira, pois não há como fazer política social sem orçamento permanente. As mudanças ocorridas em 2004 foram incorporadas aos exames de acesso dos anos seguintes permanecendo até os dias de hoje. Cabe esclarecer que o valor máximo de renda familiar per capita do candidato tem sido reajustada anualmente. Em 2006, graduaramse os alunos dos cursos de quatro anos de duração que ingressaram por meio da cotas no Vestibular 2003; em 2007 foi a vez daqueles que matriculados em cursos que exigiam cinco anos para integralização e, agora, em 2008, serão graduados os ingressantes em 2003 para cursos de seis anos. Os últimos anos transformaram a Uerj na instituição que detém o maior número de estudantes cujo ingresso se deu por meio de vagas reservadas no país. Outro fato que merece destaque é o surgimento do movimento estudantil negro. Hoje, há pelo menos duas organizações estudantis compostas por estudantes negros – o Denegir e o Luís Gama. O debate se estendeu ate os currículos dos cursos de graduação e pós-graduação. Alguns cursos incluíram disciplinas sobre a cultura afro-brasileira e, ou relações raciais e estudos sobre a África. 3.4 A avaliação Apesar do interesse das organizações da sociedade civil e da mídia, desde a implantação do sistema de reservas de vagas na Uerj uma avaliação ampla do 288 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... desempenho dos cotistas ainda não foi concluída. Até o momento a universidade produziu textos que subsidiam discussões no interior da instituição. Considerando que ainda não há uma avaliação satisfatória dos primeiros anos da política de reserva de vagas, o atual reitor, Ricardo Veiralves de Castro (2008–....), pretende, por meio de uma comissão avaliadora, realizá-la. Os fragmentos dos documentos que registram os primeiros dados de uma avaliação interna serão citados a seguir. O documento - Acesso à universidade por meio de ações afirmativas: estudo da situação dos estudantes com matricula em 2003 e 2004 (UERJ, junho de 2004) foi encaminhado pela então sub-reitora de graduação, Raquel Vilardi, ao Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão, em junho de 2004. Nas considerações finais, o documento admite que a adoção de políticas afirmativas constitui-se num importante fator de enfrentamento das desigualdades sociais, porém faz severas criticas à implantação dessa política na Uerj: [...] em nosso entender, políticas de ação afirmativa precisam ser praticadas a partir de um tripé: políticas de investimento efetivo na qualidade da educação básica; políticas de acesso; e políticas de permanência. De nada adianta uma sem a outra; não é possível mudar parte da engrenagem, sem investir no sistema (2004, p. 16). Na coletânea Políticas de ação afirmativa na universidade, divulgada em 2007, as informações sobre os estudantes negros limitam-se ao número de vagas para ingresso, e ao número de aprovados. Como ainda não há dados que possam avaliar o desempenho acadêmico dos alunos segundo a cor/raça, não há como avaliálos neste aspecto. Os dados disponíveis apontam para a pobreza dos alunos cotistas da Uerj e para a necessidade de um programa de permanência que forneça 289 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira apoio pedagógico e material a esses alunos. Arruda (2007) apresenta o relato do trabalho realizado para a implantação da política de cotas e avalia os resultados decorrentes da aplicação do sistema de cotas. Os dados apresentados referem-se a dois grupos cotistas e não cotistas. Apresenta os índices de acompanhamento acadêmico, como aproveitamento de estudos, evasão de cotistas e não cotistas. Segundo os dados apresentados, de 2004 a 2007 ingressaram na Uerj 2.409 alunos negros pelo sistema de reserva de vagas nos diferentes cursos de graduação (AMADEI, 2007). No entanto, não há ainda dados disponíveis sobre a cor/raça dos discentes. A publicação se encerra afirmando que a universidade não teve o seu padrão de qualidade acadêmica alterado em função da presença de estudantes cotistas. A política de cotas surge como instrumento para minimizar a desigualdade estrutural e considera, também, necessário promover uma educação básica de qualidade para que não mais sejam necessárias cotas nas universidades. O importante é torná-las desnecessárias no futuro. 4 O Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj O Sempre Negro participou de duas edições do Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação Superior – Uniafro e, por meio delas, recebeu recursos do Ministério da Educação para desenvolver o Programa de Formação e Permanência de Afro-brasileiros da UERJ – o Programa Neab-Uerj. O Programa Uniafro vem sendo implementado pela Secretaria de Educação Superior – SESu e com o apoio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - Secad, ambas do Ministério da Educação. Pela primeira vez, o Ministério da Educação, por meio dos referidos concursos, destinou recursos financeiros para: estruturar os núcleos de estudos afro290 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... brasileiros das universidades públicas e para o apoio das ações afirmativas para afro-brasileiros nas instituições públicas de ensino superior. Foram contempladas tanto universidades públicas em que já havia reserva de vagas quanto outras nas quais a questão da reserva de vagas para negros ainda estava em processo de discussão ou aprovação. O Uniafro tem a finalidade de apoiar propostas desenvolvidas pelos Neabs e grupos correlatos que visem a articular a produção e difusão de conhecimento sobre a temática étnico-racial e o acesso e permanência da população afro-brasileira no ensino superior, de modo a: (a) incentivar ações de mobilização e sensibilização de instituições de ensino superior com vistas à implantação de políticas de ação afirmativas; (b) contribuir para a formação de estudantes afro-brasileiros nas instituições que adotaram o sistema de cotas; (c) adequar a formação inicial e continuada de profissionais de educação básica em questões étnico-raciais; e (d) estimular a integração das ações implantação das diretrizes curriculares étnico-raciais em todos os níveis de ensino. O Programa de Formação e Permanência de Afrobrasileiros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Programa Neab-Uerj. (2006-2008) contemplou três eixos de ações: a pesquisa, a formação e a extensão por meio das seguintes ações: (1) publicação, (2) seminários e cursos e (3) pesquisa (bolsas de iniciação científica). Ao longo do ano de 2006, o programa desenvolveu as seguintes ações: (1) orientou de 12 bolsas de iniciação científica para alunos afro-brasileiros de graduação e 1 (uma) bolsa de extensão para um aluno de pós-graduação; (2) realizou o curso de atualização Historia e Cultura Negra, que teve como objetivo a capacitação para a implementação da Lei n. 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e dos africanos no ensino básico brasileiro; 291 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira (3) realizou de dois seminários sobre a temática étnico-racial brasileira; e (4) realizou atividades extramural (participação em eventos acadêmicos). Em consonância com os interesses do corpo docente e discente da universidade, do Programa Uniafro do Ministério da Educação e das entidades representativas da sociedade civil, as ações do Programa Neab-Uerj atingiram centenas alunos de graduação e pós-graduação, professores municipais e estaduais, ativistas do movimento negro e de outros movimentos sociais e demais interessados na temática. Em 2007, dando continuidade a suas ações, o Sempre Negro pretende: (1) ofereceu um novo curso de atualização e (2) lançou dois volumes sobre a literatura sobre o negro no Brasil. O Programa tem atingido os objetivos de consolidar o Sempre Negro – Neab-Uerj, por meio da promoção da permanência de alunos afro-brasileiros da Uerj (bolsas) e da difusão da Lei n. 10.639/03 (curso de extensão).1 Avaliamos que os reduzidos recursos financeiros impõem limites e reduzem o alcance dessas ações. Este é uma das fragilidades da atual política de apoio aos Neabs desenvolvida pelo MEC. Os Neabs têm defendido a necessidade de as ações afirmativas se transformarem em ações de Estado e não de governo. Como já afirmamos, a permanência parece ser o ponto vulnerável da política de reservas de vagas nas universidades, pois, sem orçamento, não há política pública. Este fato compromete as futuras avaliações das políticas de reserva de vagas para negros bem como o desempenho acadêmico dos cotistas. Em geral, a renda é usada com uma condição necessária da candidatura às vagas reservadas. O regime de reserva de vagas, até então, tem garantido o acesso de negros à educação A Lei n. 10.639/2003 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, introduzindo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura da África e dos afro-brasileiros. 1 292 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... superior, no entanto, a questão da permanência desses beneficiários ainda é um problema. É neste vácuo de iniciativas e carência de recursos que o Programa Uniafro promovido pela Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação ainda que de uma maneira tímida, tem atuado. 5 Considerações finais A política de reserva de vagas é uma experiência nova na política educacional brasileira. Carece ser implantada, implementada, avaliada com todo o rigor. O simples enfrentamento de posições, ou seja, o debate entre modelos diferentes de política social – universalistas ou seletivas – sem o cumprimento rigoroso das etapas dessas políticas compromete o seu sucesso. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro, hoje com mais de sete mil cotistas, entre eles os cotistas negros, enfrenta uma série de problemas nessa fase de implementação e avaliação. No vestibular de 2007, foram oferecidas 1.048 vagas para negros, mas apenas 673 estudantes se inscreveram. Desses, 439 passaram. No inicio do sistema de reserva de vagas havia mais inscritos que vagas, mais, nos últimos dois anos a situação mudou. Tem havido uma redução no numero de inscritos nas vagas reservadas. A universidade pretende realizar estudos para averiguar as causas de tal fenômeno. Enquanto isso, ainda existe perguntas sem respostas: a política de cotas é uma política adequada para promoção do acesso ao ensino superior para os negros? Por que tem havido uma redução de inscritos para as vagas reservadas? Outro problema que torna a política de ação afirmativa na UERJ vulnerável é a sua ausência no orçamento social do Estado. Sem orçamento não se faz política pública. Esse fato compromete o desempenho 293 Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira dos beneficiários e o futuro da política, ou seja, não há como avaliar sua eficiência e eficácia. As ações do Sempre Negro - Coletivo de Professores Negros, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj, que se desenvolvem na universidade com recursos do Ministério da Educação, apontam para a necessidade de sua ampliação, seja no número de beneficiários, seja na quantidade de recursos financeiros destinados à sua programação. Cabe concluir enfatizando a necessidade de políticas de inclusão dos grupos sub-representados no ensino superior, o caráter temporário das ações afirmativas e a necessidade de se garantir a permanência dos beneficiários. São fatores que devem ser considerados quando da análise dessa política pública. Assim será possível a compreensão do problema que deu origem a essa política, seus conflitos e o papel de todos os envolvidos: indivíduos, grupos e das instituições. 294 O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro... REFERÊNCIAS AMADEI, S. M. N. A execução da política de acesso pelas cotas nos dias de hoje. In ARRUDA, J. R. C. (Org.). 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