Provisoriedade e Vínculo nas Instituições Abrigo: A Potencialidade dos Encontros Cristina de Souza Sandra Ungaretti Este trabalho discute a articulação dos termos provisoriedade e vínculo presentes nas relações instituídas no abrigo – acolhimento institucional para crianças e adolescentes privados do convívio familiar - e suas ressonâncias na subjetivação dos que aí vivem. Os desenvolvimentos teóricos no campo da psicologia e da psicanálise levaram, por um lado, à compreensão de que o trabalho do abrigo poderia associar necessidades de pertencimento, vínculo e separação. Para muitos, essa possibilidade estaria relacionada à maior duração do período de acolhimento das crianças e dos adolescentes no abrigo. Por outro lado, muitos estudos ao tomarem como objeto o regime disciplinador, controlador e autoritário que caracterizava estas instituições num passado recente, mostraram os prejuízos da massificação e da ausência do convívio familiar e comunitário ao desenvolvimento dessas crianças e desses adolescentes. Esses estudos justificariam a provisoriedade expressa na Lei – Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. O ECA define: “O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade” (Art.101, Parágrafo Único). Reconhece, assim, a família como o lugar privilegiado de desenvolvimento dessas crianças, o que tem trazido como correlato a desvalorização do acolhimento institucional. É comum o fato de os profissionais de abrigo representá-lo e se representarem de forma depreciativa. Quando a valorização da família e a desvalorização do abrigo confluem e se ligam ao princípio de provisoriedade, pressionam para ações de desabrigamento muitas vezes precipitadas, que nem sempre levam em conta o que de fato é o melhor para as crianças. Apresentamos o caso de Elias para, por meio dele, pensar a tensão inerente a esses dois termos. Elias chegou ao nosso atendimento há dois anos, com oito anos de idade. Há dois anos e meio vive no atual abrigo, mas fora encaminhado ao acolhimento institucional pela primeira vez aos quatro anos. Elias, nesse período, foi “devolvido seis vezes” por famílias adotivas. 1 No início, a psicanalista que o atende soube de um novo processo de adoção a caminho. Nossa equipe colocou em movimento ações com os responsáveis por E. – técnica do fórum, gestor e técnica do abrigo – a fim de inaugurar novas formas de pensar que pudessem interromper o circuito de repetições – adoção/ devolução. Nessas interlocuções analisamos que todos, no conjunto dessas relações, agem comprometidos com o bem estar da criança. Entretanto, cada protagonista, à revelia do que quer, acaba por levar a essas repetições; inclusive a criança. Constatamos que para os envolvidos existe a crença de que a família é o único lugar possível para o afeto e o desenvolvimento saudável. Nesse sentido, para os profissionais do abrigo as manifestações negativas de E. serão “anuladas” pelo afeto que ele receberá na família adotiva. Com isso, não reconhecem os vínculos afetivos que estabelecem com E., levando-o a não valorizar suas relações no abrigo. Os profissionais da Vara da Infância agilizam os processos de adoção, pois sabem que as crianças de pouca idade têm mais chances de serem adotadas. As famílias candidatas, movidas pelo desejo de adotarem, e pelo desejo dos profissionais da Vara e do abrigo de colocarem a criança em uma família, acabam não considerando suas incertezas sobre uma possível adoção. A criança explicita seu desejo de ir para a família candidata, mas quando lá, por motivos que respondem à sua história de abandono e ruptura, “age” de modo a dificultar sua permanência, culminando em sua “devolução”. Tomemos algumas contribuições da psicanálise sobre o estabelecimento de vínculos em contextos diferentes do familiar. Para Winnicott, a estabilidade ambiental e a continuidade dos cuidados oferecidos nos primeiros anos de vida de uma criança são fundamentais para sua constituição psíquica. Em geral, crianças e adolescentes que chegam aos abrigos nunca tiveram a experiência de um ambiente primário estável, ou seja, adaptado às suas necessidades especiais e, caberia ao abrigo fornecer a elas essas experiências, que por serem tardias, precisariam ter a duração de alguns anos. Para esse autor, a estabilidade é central para a vida no abrigo. Destaca seu aspecto fundamental: adultos que juntos assumam a responsabilidade pela criança. Assim ela poderá expressar seu impulso para separá-los e sentir alívio por não conseguir fazê-lo. Poderá descobrir que suas idéias agressivas não conseguem realmente destruir e, por conseguinte, diferenciar fantasia e realidade. Poderá amar e odiar a mesma pessoa e assim sentir culpa e desejo de reparar. Essa estabilidade não deveria depender da capacidade das crianças para criá-la ou mantê-la. 2 Marin (1999) conclui que os abrigos poderiam propiciar boas condições para as crianças se desenvolverem. Para isso os profissionais deveriam relativizar o modelo de família como único possível, bem como precisariam lidar com o desamparo dessas crianças e com o deles próprios. Assim, poderiam valorizar o seu lugar de educador e oferecer à criança possibilidades de entrar em contato com a sua história, elaborar as suas experiências e se abrir para outras perspectivas de futuro. Parece-nos que o encaminhamento, a qualquer custo, dessas crianças para uma família constituir-se-ia, também, em uma defesa desses profissionais frente ao sofrimento deles próprios, provocado pelo contato com as perdas e rupturas vividas por elas. Em um movimento oposto a esse de desvalorização do abrigo, constatamos que muitos deles se valorizam bem como as experiências das crianças. Entretanto, diante do princípio de provisoriedade perguntam: Quais as possibilidades de favorecerem o desenvolvimento dessas crianças que “estão de passagem”? Como se ligar afetivamente à criança, que logo será desabrigada, e, da qual, logo deverão se desligar? Para Freud, em Sobre a Transitoriedade (1915), o psiquismo humano se rebela contra a idéia de fim, de luto por algo perdido, rebelião contra a morte; há uma tendência no humano a ver na transitoriedade um impedimento ao gozo e desfrute de tudo que esteja fadado ao fim. Freud faz uma reflexão sobre o luto, assinalando que o desprendimento da libido de seus objetos tende a ser um processo doloroso. Afirma, na contramão da tendência à desvalorização do efêmero, que o caráter transitório de certos acontecimentos, ao invés de desvalorizá-los, incrementa seu valor; as limitadas possibilidades de usufruí-los os tornam ainda mais preciosos. Cyrulnik (2005) trabalha com a idéia de trauma e com as condições que favorecem a retomada do desenvolvimento após o mesmo. Para ele, após um acontecimento traumático, o sujeito não é mais o mesmo: “o traumatismo inscrito na memória passa a fazer parte da história do sujeito” (p.07). O que a criança encontra em seu meio após a experiência traumática faz toda diferença. Esse poderá lhe oferecer a oportunidade de “acontecimento significativo” que mude a narrativa do sujeito sobre si. Nas palavras de Cyrulnik “o acontecimento é uma inauguração, como um nascimento para a representação de si” (p.15). Quando um ambiente familiar é deficiente, outros contextos podem oferecer maneiras de viver e propiciar condições para novos acontecimentos. Para ele, não se sabe a priori o que terá para cada criança esse efeito, mas a possibilidade de vínculo com o outro humano e de atribuir sentido ao vivido são 3 condições para a retomada de desenvolvimento dessa criança. Seria no encontro que essas possibilidades se apresentam. Para concluir... A provisoriedade prevista no ECA foi assumindo sentidos além dos originalmente pensados. Aparece como correlata à desvalorização da instituição em relação à família; é vista em si mesma como um impedimento para o estabelecimento de vínculos; parece-nos ser, ainda, uma defesa frente ao desamparo vivido pelas crianças do abrigo. São sentidos que não se excluem, mas se entrelaçam configurando uma complexidade que precisa ser desvendada. Assim, poderemos pensar o abrigo como um lugar de encontros capaz de possibilitar o vir a ser da criança no percurso de novos trajetos. Bibliografia: CYRULNIK, B. O murmúrio dos fantasmas. São Paulo: Martins Fontes, 2005. FREUD, S. Sobre a Transitoriedade. Rio de Janeiro: Imago. Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud, vol. XIV, 1974. MARIN, I. S. K. FEBEM, família e identidade: o lugar do outro. São Paulo: Editora Escuta, 1999. WINNICOTT, D. W. Privação e Delinqüência. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 4