ANGELA CRISTINA DE SOUZA REGO DA POESIA DE INTERVENÇÃO AO SIGNO ERÓTICO-AMOROSO: alteridade e subjetividade na poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha Tese de Doutorado Niterói, 2º semestre de 2008. UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DOUTORADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DE LITERATURA LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E VIDA CULTURAL DA POESIA DE INTERVENÇÃO AO SIGNO ERÓTICO-AMOROSO: alteridade e subjetividade na poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense por ANGELA CRISTINA DE SOUZA REGO, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Literatura Comparada. Orientador: Mário César Lugarinho Niterói, 23 de setembro de 2008. Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá R343 Rego, Angela Cristina de Souza. DA POESIA DE INTERVENÇÃO AO SIGNO ERÓTICO-AMOROSO: alteridade e subjetividade na poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha / Angela Cristina de Souza Rego. – 2008. 286 f. Orientador: Mário César Lugarinho. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2008. Bibliografia: f. 283-286. 1. Literatura comparada – Brasileira e moçambicana. 2. Poesia. 3. Subjetividade na literatura. 4. Realismo. 5. Amor na literatura. 6. Erotismo na literatura. I. Lugarinho, Mário César. II. Universidade Federal Fluminense. III. Título. CDD 800 ALTERIDADE E SUBJETIVIDADE NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E DE JOSÉ CRAVEIRINHA Da poesia de intervenção ao signo erótico-amoroso Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Literatura Comparada. Aprovada em setembro de 2008. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Mário César Lugarinho Orientador Universidade de São Paulo / Universidade Federal Fluminense Profª Drª Simone Caputo Gomes Universidade de São Paulo Profª Drª Carmem Luc ia Negreiros de Figueiredo Universidade do Estado do Rio de Janeiro Profª Drª Dalva Calvão Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Silvio Renato Jorge Universidade Federal Fluminense Profª Drª Teresa Salgado (suplente) Universidade Federal do Rio de Janeiro Profª Drª Maria Lucia W. de Oliveira (suplente) Universidade Federal Fluminense A Carlos Alberto, meu grande companheiro, pela constância de seu amor e por acreditar em mim mais do que eu mesma. A Mário Lugarinho, um amigo que me indicou caminhos vários, para além do saber. À minha mãe, que trocou suas habilidades de artesã por aulas e livros que iniciaram meus estudos; por sua memória, por seu amor, por sua luz. AGRADECIMENTOS SINCEROS A Carlos Alberto, pelos sonhos que temos sonhado juntos, pela vida que construímos e pelo respeito mútuo que nos fez pessoas melhores do que éramos antes de nossos caminhos se encontrarem. Ao Prof. Dr. Mário César Lugarinho, mais uma vez e sempre, orientador isento o suficiente para fazer as restrições justas e os elogios sinceros, e amigo cuja grandeza de alma pude comprovar em nosso longo tempo de convívio. A Carmen Lucia Borges de Abreu, colega que sempre acreditou em mim, oferecendome as melhores oportunidades de evolução profissional. A Maria Isabel Fróes Cruz, amiga sincera, primeira companheira de muitos trabalhos acadêmicos, que me acolheu em dias difíceis e com quem dividi muitas risadas. À Universidade Federal Fluminense, em seu Instituto de Letras, e aos professores que me ajudaram a traçar caminhos e a vencer obstáculos durante a Graduação e o Mestrado. Aos meus alunos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá, os quais, ao me elegerem como orientadora, sem o saber, estavam aprimorando em mim propriedades da investigação científica. Aos professores que compõem a banca examinadora da minha tese, pelo tempo e saber a mim dedicados, e em especial aos que foram leitores atentos de meus textos durante a minha jornada acadêmica. RESUMO Este trabalho propõe a compreensão dos processos de alteridade e subjetividade na poesia de Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha. Pretende-se investigar de que forma o “eu” cede lugar ao “outro”, objetivando a construção de uma poesia que se define como “poesia de intervenção” ou “poesia revolucionária” e, inversamente, como se podem vincular os temas e signos selecionados pelo autor a um processo subjetivo. Por outro caminho, tenciona-se reconhecer a subjetividade que delineia a poesia erótico-amorosa produzida por essas duas vozes poéticas. A compreensão teórica fundamenta-se, para investigação da alteridade, na formação da poesia realista, decorrente de um processo mimético que adquire novos conteúdos e formas a partir do século XIX, e na filosofia da linguagem condicionada à ideologia marxista. Quanto à subjetividade erótico-amorosa, propõe-se a construção de um estudo que se alicerça nas teorias elaboradas para investigação do amor e do corpo erótico, fundados ambos na proposta de retorno a si mesmo que se evidencia nos poemas produzidos por Drummond e Craveirinha após a fase de realismo a que se dedicaram a maior parte de suas vidas. Palavras-chave: poesia – subjetividade – alteridade – realismo – amor – erotis mo. RESUMEN Este trabajo propone la comprensión de los procesos de alteridad y subjetividad de Carlos Drummond de Andrade y José Craveirinha. Se pretende investigar de qué forma el "yo" cede su lugar al "otro", apuntando a la construcción de una poesía definida como "poesía de intervención" o "poesía revolucionaria", e inversamente, cómo podemos vincular los temas y signos seleccionados por el autor a un proceso subjetivo. Por otro camino, intentaremos reconocer la subjetividad que delinea la poesía erótico amorosa, producida por esas dos voces poéticas. La comprensión teórica se fundamenta, para la investigación de la alteridad, en la formación de la poesía realista, resultante de un proceso mimético que adquiere nuevos contenidos y formas a partir del siglo XIX, y en la filosofía del lenguaje condicionada a la ideología marxista. En cuanto a la subjetividad erótico amorosa, se propone la construcción de un estudio cimentado en las teorías elaboradas para la investigación del amor y del cuerpo erótico, fundados ambos en la propuesta de retorno a sí mismo que se evidencia en los poemas producidos por Drummond y Craveirinha, después de la fase de realismo a la que se dedicaron la mayor parte de sus vidas. Palabras clave: poesía – subjetividad – alteridad – realismo – amor – erotismo. ABSTRACT This paper suggests the understanding of alterity and subjectivity process in Carlos Drummond de Andrade and José Craveirinha’s poetry. The purpose of this paper is to investigate how the "ego" is replaced by “the other”, in order to build a poetry defined as “intervention poetry” or “revolutionary poetry” and, conversely, how we can connect the themes and sign selected by the author to the subjective process. To put it another way, we try to recognize the subjectivity that outlines the erotic and love poem produced by these two poetic voices. The theoretical understanding is based on, to the alterity investigation, in the building of realistic poetry, resulting from the mimetic process acquires new contents and format from XIX century and in the Philosophy of Language depending on Marxist Ideology. Regarding the erotic and love subjectivity, it is suggested the research building based on theories prepared for the love and erotic body investigation, both founding in the oneself return proposal shown in the poems by Drummond and Craveirinha after the realism movement to which they dedicate most part of their lives. Key-words: Poetry – Subjectivity – Alterity – Realism – Love – Eroticism. ADVERTÊNCIA Serão utilizada as seguintes obras dos poetas analisados no corpo do texto desta tese, identificadas segundo as respectivas legendas: PC – Poesia Completa, de Carlos Drummond de Andrade (2003) C1 – Cela 1, de José Craveirinha (1980) M – Maria, de José Craveirinha (1998) OP – Obra Completa, de José Craveirinha (1999) PE – Poemas Eróticos, de José Craveirinha (2004) PP – Poemas da Prisão, de José Craveirinha (2004) SUMÁRIO 1. O SUJEITO EM RISCO: O “EU” E O “OUTRO” EM MOVIMENTO DIALÉTICO ..Erro! Indicador não definido. 2. ALTERIDADE E SUBJETIVIDADE: EVIDÊNCIAS TEÓRICAS E CONJUNÇÕES POÉTICAS .............................................................................. Erro! Indicador não definido.8 2.1 - Drummond, o mundo e a percepção do “outro”.......... Erro! Indicador não definido.8 2.2 - Craveirinha e a palavra- nação ....................................... Erro! Indicador não definido. 2.3 - Convergências poéticas: o “eu” e o “outro’ .................................................................34 3. A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE ATRAVÉS DO TEXTO LITERÁRIO, SEGUNDO AUERBACH ............................................................................................................................41 3.1 - Textos realistas: a consciência clara do mundo............................................................41 3.2 - A mimesis da realidade: um processo de subjetividade................................................46 3.3 - A presentificação da subjetividade no texto literário: uma interpretação do leitor .Erro! Indicador não definido.8 3.4 - A imitação da realidade por uma concepção estética e estilística ................................69 3.5 - Literatura social: uma nova perspectiva do realismo ...................................................78 4. AINDA SOBRE MARXISMO: O SIGNO NA “POESIA DE INTERVENÇÃO ” .............88 4.1 - Em defesa da “poesia de intervenção” .........................................................................88 4.2 - A individualidade psíquica refletida na ideologia social..............................................94 4.3 - O mundo exterior como ideologia do mundo interior: um percurso do “eu” para o nós” ..............................................................................................................................................99 4.4 - Ideologia do cotidiano: uma expressão marxista .......................................................102 5. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: A EXPERIÊNCIA DA REALIDADE E DA SUBJETIVIDADE .................................................................................................................111 5.1 - A arte da imitação e o discurso social: o objeto no espelho do sujeito ......................111 5.2 - Signos do homem real: subjacentes ao mundo, libertos no verso ..............................119 5.3 - A subjetividade como expressão estética e estilística na poesia drummondiana .......130 5.4 - Uma leitura dos textos de Drummond, segundo a evidência do “eu”........................136 6. UM PAÍS NA VOZ POÉTICA DE JOSÉ CRAVEIRINHA: O EU E O “MUITOS”......151 6.1 - A construção do sujeito pelo apagamento do “outro” invasor ...................................151 6.2 - O “eu” e o “outro”: a coexistência no verso transformadorErro! Indicador não definido.68 6.3 - A experiência estética da poesia: um caminho subjetivo de reconstrução da realidade ............................................................................................................................................186 6.4 - O “outro” em si: o equilíbrio na formação da subjetividade na poesia de Craveirinha ............................................................................................................................................196 7. SIGNOS DE AMOR NA CONSTRUÇÃO DO “EU”.....................................................205 7.1 - Em repouso de alteridade: o poema na estância do sujeito ......................................205 7.2 - A experiência drummondiana de amar...................... Erro! Indicador não definido.10 7.3 - Carlos Drummond de Andrade: o corpo em êxtase ...................................................219 7.4 - Por ausência de Maria, o amor de Zé Craveirinha .....................................................235 7.5 - José Craveirinha: a subjetividade erótica e a boneca de jagreErro! Indicador não definido.252 8. FIM DA TRAMA POÉTICA: O QUE FICOU DO “EU” E DO “OUTRO”................Erro! Indicador não definido.75 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................283 Fui mais poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Carlos Drummond de Andrade A poesia é a essencialidade da escrita. José Craveirinha 11 1. O SUJEITO EM RISCO: O “EU” E O “OUTRO” EM MOVIMENTO DIALÉTICO A poesia coloca o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao seu ser original: volta-o para si. Octavio Paz Conjugar interesses e transformá- los em projeto acadêmico não é tarefa fácil; mas nenhum trabalho será autêntico se não tiver origem em idéias particulares e desejos individuais. Poesia e subjetividade, Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha: dois conceitos, dois poetas, um só objeto. Construir voz uníssona do que, em princípio, se inscreve mais como desarmonia do que como concerto é tarefa que exige muita reflexão e método cuidadoso. Assim, a construção de um paralelo teórico e analítico entre a poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha pode parecer, à primeira vista, um projeto que se realize, apenas, pela composição de analogias fundadas na língua que comungam e na estrutura socioeconômica e política desenvolvida em seus países. O que não seria tarefa simples, cons iderando-se a complexidade que envolve as estruturas sociais e lingüísticas a serem estudadas. Entretanto, na investigação da poesia lírica de caráter realista, podemos planear um estudo que nos faça compreender a motivação desses poetas em sua escritura e perscrutar os caminhos trilhados no verso, sem estarmos limitados pela comparação de suas formas, o que, pretendemos, revelará outras propriedades da existência poética de Drummond e de Craveirinha, a fim de que o “outro” a quem consagram seus poemas possa se evidenciar, sendo a poesia o espaço privilegiado dos que ficam relegados à margem da sociedade. Estamos, evidentemente, diante de uma literatura que se insere para além de qualquer proposta estética, pois o poeta compreende o seu fazer literário como espelho que o identifica diante do mundo e, dessa forma, o estabiliza como sujeito social. Assim, os versos coadunam-se com as ideologias mais prementes e instauram-se nos discursos que são investigados 12 muito mais à luz das teorias políticas e sociais do que sob os códices da crítica literária. Identificam-se, portanto, nos poemas de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha, os movimentos percebidos por Michel Löwy: Acrescentando o termo social — visão social de mundo —, queremos insistir em dois aspectos: a) trata-se da visão de mundo social, isto é, de um conjunto relativamente coerente de idéias sobre o homem, a sociedade, a história, e sua relação com a natureza (e não sobre o cosmos ou a natureza enquanto tais); b) esta visão de mundo está ligada a certas posições sociais (...), isto é, aos interesses e à situação de certos grupos e classes sociais. (LÖWY, 2003, p. 13) A poesia, de fato, cumpre uma missão que se lhe foi destinada pelas imposições sociais a que estavam condicionados os autores. Entretanto, não se constitui objeto deste trabalho fazer um estudo sobre a “poesia de interve nção”, considerando as modalidades reducionistas do conceito. O que se propõe como análise é a expressão de uma subjetividade que perpassa o verso realista e de caráter ideológico, pois que podem ser deflagradas no texto poético estâncias de subjetividade mais ou menos claras, de acordo com o signo que lhe dê conformidade. Advêm da análise, todavia, novos espaços de configuração da subjetividade. Arrefecidos os ânimos e os discursos revolucionários, acende-se no texto poético o desejo em diversas manifestações, desde a auto- identificação ao conhecimento do corpo, passando pelos riscos de amor a que se submete o sujeito da poesia. Enveredamos, por conseguinte, nos estudos que identificam a vo ntade do ser, nos quais conceitos ligados à teoria da subjetividade (o conhece-te a ti mesmo e o cuidado de si, entre outros) e aos discursos sobre sexualidade, amor e erotismo prometem guiar a compreensão de versos que se inscrevem sob o registro do desejo. Para tanto, faz-se necessário nos concentrarmos em questões teóricas, exigência de cuidados e atenções especiais com o texto a ser elaborado. Dessa forma, relevaremos o saber que vem sendo consolidado pela crítica a respeito dos poetas em evidência e de um projeto literário que não exige esforços de compreensão, mas de um planejamento na exposição das idéias, consideradas as formas complexas 13 de construção poética. Antes, porém, do registro de qualquer pensamento, é fundamental conhecer os instrumentos de que se disporá para a realização de um trabalho árduo, embora saibamos que, qua nto mais assim o for, maior a promessa de contentamento. Estudos comparativos oferecem riscos, e não estamos dispostos a assumi- los sem restrições, por prudência ou por vontade de exatidão. Assim, damos início a uma pesquisa que objetiva, antes de tudo, consolidar o exercício de cotejo proposto. Primeiro, uma voz alentadora: Progride rapidamente o número dos que levam oficialmente a etiqueta de “comparatistas”. O que vale ainda muito mais é que a idéia comparatista atrai cada vez mais especialistas de todas as disciplinas. (...) Vemos uma razão muito simples para essa real popularidade: a literatura comparada não é uma técnica aplicada a um domínio restrito e preciso. Ampla e variada, reflete um estado de espírito feito de curiosidade, de gosto pela síntese, de abertura a todo fenômeno literário, quaisquer que sejam seu tempo e seu lugar. (BRUNEL, PICHOIS, ROUSSEAU, 1995, p. 16) Não tarda, e os métodos se impõem à vontade e lançam dúvidas. A literatura comparada exige que se pense sobre a procedência das analogias (gêneros literários, estilos, experiências vitais, universalismo dos textos) e a aplicação das teorias (ideologias políticas e religiosas, induções científicas e morais, filosofia e psicanálise, conteúdo e forma). Acende-se o alerta: Qualquer que seja o método (...), filiações e parentescos serão minuciosamente fixados, para evitar o passar das abstrações através do mundo, segundo o gosto de falaciosas semelhanças. Pela análise do veículo sensível da idéia, da sua estrutura típica, por uma dosagem prudente da influência positiva e das constantes humanas eternas, cuidar-se-á de não comparar senão o comparável. (ibid., p. 84-5) Entre o entusiasmo e a técnica, iniciamos uma pesquisa da poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha, objetivando investigar os textos literários sob o impacto da emoção que nos levaria ao estabelecimento de semelhanças, mas atendendo as injunções que se prescrevem como método, considerando, antes de tudo, o valor das diferenças. 14 E entre Brasil e Moçambique foram erguidas pontes diversas, vias duplas de conhecimentos e labores que trouxeram ao saber os conceitos de alteridade e subjetividade. Então, fazem-se notar os pontos de intercessão entre Drummond e Craveirinha. A chamada “poesia realista” ? com sua semântica revolucionária e seu verso contundente, marcada por uma ideologia social tenaz e pela fixação da concretude da vida ? cobre um longo tempo do fazer poético dos dois autores em análise. É a primeira e mais evidente aproximação entre os poetas. As diferenças, sempre destacadas na observação dos textos para que não haja equívocos de interpretação, não anulam os pontos de convergência. 1 Ocupando um lugar de destaque nas Letras, Drummond e Craveirinha projetaram, em sua poesia, a mesma preocupação com questões sociais, especialmente quando relevam nos versos os homens comuns de seu país, marginalizados e legados ao esquecimento, nomeandoos, destacando-os no mosaico confuso de uma sociedade imersa na desordem. 2 Os poetas nar- 1 Não podemos prosseguir nossos estudos sem que se faça uma advertência ao leitor sobre as razões que nos levam a ainda discutir uma literatura ideológica, visto que: a) essa tendência analítica é corrente e consolidada — especialmente quando o objeto de estudo é a obra de Carlos Drummond de Andrade — por vozes que se destacaram na crítica literária, o que poderia parecer discurso gasto; b) a práxis marxista tem sido revista com freqüência e não sem uma dose de intolerância por parte dos estudos teóricos sobre arte; c) confere-se ao estudo das ideologias um certo receio por parte de quem nele se aventura e uma certa desconfiança por parte de quem dele se ocupa, pois sempre há um alerta sobre as precauções que se deve tomar antes de se dedicar a uma aplicação teórica das ideologias, como o fez Michel Foucault, em Microfísica do Poder, em argumento que nos interessa reproduzir: “A noção de ideologia me parece dificilmente utilizável por três razões. A primeira é que, queira-se ou não, ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem fa lsos. Segundo inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito. Enfim, a ideologia está em posição secundária com relação alguma coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinação econômica, material, etc. Por estas três razões creio que é uma noção que não deve ser utilizada sem precauções”. (FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999, p. 7) Embora não seja este argumento fundador nem instigador de nossos estudos, e ainda que não discordemos totalmente do ponto de vista apresentado, dele retiramos os contra-argumentos que ora expomos, e que fundamentam nossa proposta: 1 – não buscamos a verdade dos discursos, mas os caminhos de verdade do sujeito; 2 – por se tratar de poesia o objeto da pesquisa, é exatamente a matéria poética virtual que nos interessa; 3 – os “efeitos de verdade” destacados pelo autor, e que se condicionam ao que historicamente se estabelece nos discursos, é realmente o que possibilita a inventividade poética; 4 – se a ideologia fixa -se na figura de “alguma coisa como o sujeito”, então acreditamos ter condicionado corretamente conceito e objeto; 4 – como estamos lidando com arte, consideramos distintas e não incluídas em nossa proposta outras esferas em que se (des)estabilizem a ideologia. Assim, paradoxalmente, o pensamento de Foucault é verdadeiramente contributivo de nossa análise. 2 Há críticas feitas a Carlos Drummond de Andrade sobre o papel que o poeta exerceu na literatura brasileira. Ainda que não dis cordem de seu valor literário, algumas vozes se levantam contra o que a crítica considera ver na poesia de Drummond, qual seja, uma literatura engajada. Uma dessas vozes é a de Luís Carlos Prestes, adver- 15 ram a vida desses homens: suas feridas no corpo e no espírito e suas mortes banalizadas; seus sonhos esquecidos ao amanhecer; o enrijecimento da mente e o enfraquecimento do corpo. Evidentemente, entre Drummond e Craveirinha há uma distância circunscrita não apenas à sociedade e à realidade que não comungam de maneira efetiva. Entre os dois escritores há o que Roland Barthes define como a Natureza da linguagem: para o escritor brasileiro, a literatura é uma escolha de consciência, não de eficácia; para o escritor africano, a literatura se configura no seio de uma revolução, por esse motivo, além da consciência, é necessário pensar em sua eficácia em termos de expansão. Todavia, a convergência do processo se explica no mesmo Barthes: (...) a escrita é uma realidade ambígua: por um lado, nasce incontestavelmente de um confronto entre o escritor e a sua sociedade; por outro lado, por uma espécie de transferência mágica, remete o escritor dessa finalidade social para as fontes instrumentais de sua criação. (BARTHES, 1997, p. 21) Drummond e Craveirinha elaboraram, em sua poesia, espaços semelhantes, às vezes de luta, às vezes de reconstrução quimérica da realidade. Explodiram gritos de revolta e alerta nos versos, mas também contaram, com voz desalentada, as muitas dores que andaram presenciando ao longo de sua existência.E é assim que, em ambos, forma-se um fazer literário de desvanecimento do “eu” e elaboração do “outro”. O “outro” é aquele por quem se é responsável politicamente, projeto que ultrapassa a responsabilidade social. A massa do pão é substituída pela palavra: alimento de sonho, não de corpo. A estética alia-se a uma voz revolucionária, ilusão de que a escritura possa revelar a face amarga do sofrimento e inaugure uma nova ordem social. A poesia realista promove a extensão do ser, dinâmica em que o “eu” apaga-se para dedicar-se à observação crítica e criteriosa do “outro” (ora severa, ora cúmplice). Com sário político histórico do escritor mineiro, que declarou: “Qualquer brasileiro que avalie sabe que ele pode ter bons poemas. Mas a posição de Drummond era a de um conformista. Conformado com essa ordem, não se interessa absolutamente pela miséria do nosso povo ? que deve revoltar qualquer brasileiro. Não vejo, por parte de Dru mmond, nenhuma revolta nesse sentido”. (MORAES NETO, Geneton. O dossiê Drummond. São Paulo: Editora Globo, 2007, p. 106) Todavia, como nosso trabalho não é fundamentalmente biográfico, fica apenas o registro como visão ampliada do tema. 16 Drummond e com Craveirinha é- nos permitido ver objetivamente o que angustia, o que fere, o que rouba o sonho e a vida. Muito mais que um projeto social que se alheia do sujeito poético, o texto de Drummond revela um “eu” no “outro” e deste se pretende alicerce. Tais registros percebem-se em A Rosa do Povo (1945). O sujeito poético leva consigo e em seus poemas o seu compromisso, a sua ideologia: o “outro”. Quer alienar-se, mas não consegue e reclama contra si, impiedosamente. O “eu” poético não aceita o silêncio e insiste no chamado: Vem do mar o apelo, / vêm das coisas gritos. / O mundo te chama: / Carlos! não respondes? (PC, p. 121) Se o compromisso com o “outro” faz o poeta revelar a dor, da mesma forma ele se exige a construção da esperança, ainda que por vias de revolta. É o que se registra no poema “A flor e a náusea”: Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918 chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima. 3 (ibid., p. 119) A propalada consciência que a crítica literária reconhece em A Rosa do Povo foi assumida pelo próprio poeta: Escrito [o livro] durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu.4 Entretanto, o texto não disfarça uma realidade que atua decisivamente sobre a disposição intelectual do sujeito poético: Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos. (...) tempo de gente cortada. (ibid., p. 125-6) E, finalmente, o “eu” coletiviza-se, assumindo, na superfície do texto, sem sofisticar 3 A título de esclarecimento, o qual ajudará na compreensão das futuras abordagens que faremos em relação aos conceitos de alteridade, identidade e subjetividade, informamos que o “menino de 1918” é uma referência autobiográfica. Naquele ano, o poeta, que contava 16 anos, foi premiado no Colégio Anchieta da Companhia de Jesus em Nova Friburgo, RJ, pela apresentação do poema “Onda”; em 1919, foi expulso do mesmo colégio, onde era aluno interno, sob a acusação de “insubordinação mental”. Cf. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. LXXV. 4 Texto introdutório inserido em ANDRADE, Carlos Drummond. A Rosa do Povo. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 5. 17 em demasia o signo, o compromisso com o “outro”, com a realidade social em que está inserido e com a ideologia com a qual comunga : O poeta / declina de toda responsabilidade / na marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas / promete ajudar / a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta, / um verme. (ibid., p. 130) Atendendo a outra dinâmica, deixando de lado o “eu” coletivo que se elabora em alteridade, o poeta permite-se a constituição de um “outro” individual. O poema orga niza-se com signos que revelam uma alteridade que não é mais a do ser social, mas de alguém individualizado que perscruta a própria existência. Nesse processo, constatamos que o sujeito poético de Carlos Drummond de Andrade, em muitos textos, lança-se na emoção do ser por ele intentado com a máxima genialidade, porque ganha vida em diversas estâncias desse “outro” individual. No poema “José”, o “outro”, completamente individualizado na sua dor, vê-se integrado a um “eu” solidário na voz poética: E agora, José? / A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José? (ibid., p. 106 ) Na mesma seara de um “outro” individual, o sujeito poético harmoniza-se e enreda-se na emoção de um “outro” sem identificação, como nos versos de “Consolo na Praia” que, organizados em sentenças breves, imprimem um tom de cumplicidade e alento. Aqui, o sujeito poético despe-se da dicção política, da amargura e do ceticismo e constrói uma proposta de acalanto: Vamos, não chores. / A infância está perdida. / A mocidade está perdida. / Mas a vida não se perdeu. // O primeiro amor passou. / O segundo amor passou. / O terceiro amor passou. / Mas o coração continua. (...) Dorme, meu filho. (ibid., p. 181) Uma terceira representação de um “outro” individual faz o sujeito do poema lançar mão de um recurso que pode confundir o leitor. Utilizando signos que remetem não a ele (sujeito poético), mas ao próprio autor, numa referência biográfica (salvaguardados todos os conceitos inibidores da teoria literária a respeito do tema), o sujeito do poema, que deveria estar ligado a este “outro” que se apresenta, ao contrário, dele se distancia, como em “Não se 18 Mate”: Carlos, sossegue, o amor / é isso que você está vendo: / hoje beija, amanhã não beija, / depois de amanhã é domingo / e segunda-feira ninguém sabe / o que será. (ibid., p. 57) Ir ao encontro do “outro” e transformar-se nele atende a especificidades não só do estilo de um escritor, mas da realidade intrínseca ao “fazer poético”. Transformar-se em “outro”, muito mais do que abdicar de sua emoção individual, pode significar renunciar ao próprio ser constituído como humano. No que concerne à África, a guerra colonial exigirá a preeminência de um processo literário de abandono do “eu” para construção do “outro”. Mesmo vivenciando a dor do cárcere, o poeta busca em si mesmo o “outro”, a voz coletiva com a qual construirá a liberdade. Da prisão, José Craveirinha substitui um “eu” que sente na carne a dor por um “outro” que projeta no verso e no qual se projeta: História, Mãe África ou uma formiga, companheira de cela: Havia uma formiga / compartilhando comigo o isolamento / e comendo juntos. (C1, p. 16) Neste caso, a relação com o “outro” funda-se no contexto histórico de colonização: E / tenho no coração / gritos que não são meus somente / porque venho de um País que ainda não existe. (OP, p. 17) No texto poético de Craveirinha intitulado “Quero Ser Tambor”, não há apenas a complacente abnegação de si, mas o desejo de ser um “outro”, estranho em matéria, mas não em essência, por considerar que esse “outro”, nova proposta de ser, eleva-se em grandeza ante o “eu” do sujeito poético: Tambor está velho de gritar / ó velho Deus dos homens / deixa-me ser tambor / só tambor gritando na noite quente dos trópicos. (ibid., p. 177) Assim como Drummond, Craveirinha também edifica o “outro” no poema, individ ualmente. Crianças, homens e mulheres da África clamam a esperança, gritam a revolta, calam a dor; constroem o verso: e eu sei poesia / quando levo comigo a pureza / da mulata Margarida / na sua décima quinta blenorragia. (ibid., p. 39) Do mesmo modo que Drummond, Craveirinha não permite ao sujeito poético a desistência da vida, que é luta. Também ele carrega 19 seu fardo, sua poesia em que estão todos os da África: Eu sou carvão! / Tenho que arder / E queimar tudo com o fogo da minha combustão. (ibid., p. 12) E, mais uma vez, como Drummond, Craveirinha cria em si mesmo a alteridade, e reclama a um Zé o compromisso maior, que não é consigo mesmo, mas com o “outro” ao qual se conj uga: Meu amor: / Desculpa-me se tão cedo / te não escrevo cartas sentimentais / fechadas com o terno adeus de praxe: ? Amo-te. Saudades. Mil beijos. / E assinadas: teu Zé. (ibid., p. 179) O “outro” que se identifica como Zé, “José Mulato”, exige a não desistência, porque se sabe comprometido com um ideal maior do que a própria vida: E se canto assim / oiçam atentos a voz / humana / do filho moçambicano que se gerou. (PP, p. 39) Contudo, fazendo a elisão temporária da consciência social que sempre operou em primazia, e abdicando do processo de alteridade, os poetas refugiam-se na subjetividade que se consagra no amor e no corpo erótico, onde os encontraremos repousando de longas viagens pela existência do “o utro”. Em Carlos Drummond de Andrade, o amor se anuncia, antes, em textos dispersos, pausas dissonantes dos muitos poemas de alteridade e de voz revolucionária. Destacam-se, nesses intervalos, o tom mais intimista, a voz mais melancólica, a métrica mais suavizada que se decalcavam do conjunto de textos em que se haviam inserido: Como nos enganamos fugindo ao amor! (PC, p. 1275) O cotejo de versos e formas evidencia uma clara tendência para a compreensão racionalista do amo r, o que promove um distanciamento do sujeito poético pela visão perscrutadora, às vezes sagaz e austera, às vezes irônica, do sentimento amoroso. Em 1930: E o amor sempre nessa toada: / briga perdoa perdoa briga. (ibid., p. 8); em 1934 (Como é maravilhoso o amor / (o amor e outros produtos) (ibid., p. 43); em 1940: O amor não tem importância. / No tempo de você, criança, / uma simples gota de óleo / povoará o mundo por inoculação (ibid., p. 75) O tempo passa, as páginas se sucedem, e, em 1973: Que é que vou dizer a você? 20 / Não estudei ainda o código / de amor. (ibid., p. 1024) O código de amor, que o próprio poeta/sujeito poético declara não haver ainda examinado, representa um desafio à investigação científica. Todavia, chega-se à recompensa em poema do ano de 1984, quando o corpo se mostra em pleno exercício de subjetividade: A metafísica do corpo se entremostra / nas imagens. A alma do corpo / modula em cada fragmento sua música / de esferas e de essências / além da simples carne e simples unhas. (ibid., p. 1232) O corpo, soberano sobre o “eu”, exige, paradoxalmente, que o “eu” se consagre em si mesmo: Eis que se revela o ser, na transparência / do invólucro perfeito. (ibid., p. 1233) E, não deixando dúvidas sobre o que já se apreendia como evidência, encontramos a publicação póstuma de O Amor Natural (1992), livro em que Drummond descortina os códigos de amor erótico por ele estabelecidos, e no qual, no primeiro poema, faz a proposição de seus textos: “Amor — pois que é palavra essencial”. Identifica-se, na natureza do corpo, a expressão máxima da subjetividade em Carlos Drummond de Andrade. O sujeito partido, o sujeito cortado, o sujeito em silêncio que não vive mais o tempo das mãos dadas, que removeu pedras e às vezes removeu caminhos, que colheu a feia flor do asfalto recupera-se no improvável: o corpo erótico-amoroso como instrumento de redenção, refrigério das desilusões. A proposta de poesia amorosa, tendo o corpo como centro do texto, volta à cena. Em 1996, com a obra Farewell, o corpo assume, definitivamente, sua representação de subjetividade. Esquecido da sentença anterior (Não faças poesia com o corpo), o autor promove novas possibilidades, sugere uma “Missão do Corpo”: Claro que o corpo não é feito só para sofrer, / mas para sofrer e gozar (ibid., p. 1418); e com ele reconcilia-se, quase em êxtase: Salve, meu corpo, minha estrutura de viver / e de cumprir os ritos do existir! / Amo tuas imperfeições e maravilhas, / amo-as com gratidão, pena e raiva intercadentes. (ibid., p. 1419) E, finalmente, o corpo drummond iano faz transcender o sujeito drummondiano: Meu corpo, minha 21 dor, / meu prazer e transcendência, / é afinal meu ser inteiro e único. (ibid.) José Craveirinha possibilitou uma pesquisa menos complexa, porque delimita tempo e espaço de composição do seu sujeito amoroso. Após os poemas do cárcere, da “inclandestinidade” e do projeto de revolução, o sujeito poético isenta-se de toda ideologia política e social, para inscrever-se no verso através do sentimento de amor. Maria, amada, empresta seu nome ao livro que dela falará já em ausênc ia: Ausência do corpo. / Amor absoluto. (M, p. 41) Em Maria (1988), sentidos versos traçam o ritual da morte no Livro I, com signos que inscrevem a dor: «pêsames», «urna», «cruzes» e «lágrimas». A pesada realidade da ausência, no Livro II, constrói-se com «inventário», «desarrumação», «memória», «olhos enxutos» e «cicatriz». No Livro III, o sujeito amoroso, sem Maria, reage contra a vida e depois consola-se: Não há morte / quando se viveu / a face da vida que se quis. (ibid., p. 107) O sujeito poético reaprende a viver sem Maria, envolvido com vassouras, netos, chás amargos e cafés frios. A subjetividade é construída pelo “outro”, mas agora “o utro” é, intrinsecamente, o próprio sujeito. Não fosse o livro Maria mergulho suficiente na subjetividade — o que valeria, por si só, um longo estudo —, José Craveirinha, generosamente, oferece mais um caminho de pesquisa: a publicação de seu livro Poemas Eróticos (2004), cujos originais foram entregues pelo poeta, aos cuidados da pesquisadora Fátima Mendonça, sob a condição de serem apresentados ao leitor postumamente. 5 A obra compõe-se de textos poéticos divididos em quatro conjuntos de poemas: “Rezas de Amor”, “Arte Barroca”, “Frenesi dos Zangãos” e “25 Unhadas às Gatas”. O objeto do poema — e do desejo erótico — é a “boneca de jagre”, nem sempre revelada ao leitor. O corpo se prioriza sobre outros elementos que formam um todo erótico, como a sedução e o desejo. E ? em mais uma dinâmica que desafia teoria s e instiga a crítica literária ? mesclam-se, nos versos, o poeta, o sujeito poético e o sujeito erótico-amoroso, sem fronteiras que os defi5 Encontramos, nesse informação, mais uma coincidência entre Craveirinha e Drummond: ambos decidiram não publicar, em vida, seus textos eróticos. 22 nam claramente, como em “Sinfonia do Zé”: Entretanto / quando me gemes / as duas simples letras / do meu banal diminutivo / ao meu ouvido / o sussurrante som da sílaba / na pauta dos teus lábios / ultrapassa um sinfónico / ditirâmbico universo / de milhentos Zés. (PE, p. 71) Apresenta-se um sujeito sem culpas: na encantação arterial dos solfejos / orando no teu corpo de igreja. (ibid., p. 23); um sujeito sem interditos: Dedos / e bocas / em manuais / de Sade. (ibid., p. 17); um sujeito identificado na transcendência de amar: E... / Todas as homilias suplicando / de dentro para mais dentro / gorjeios no altar da mútua assunção. (ibid., p. 24) Apresentados os poetas e identificados os temas, a pesquisa exige a fundamentação teórica que consolide o que se nos apresenta como tese. A poesia requer, para sua análise, que sejam consideradas as propostas de criação que fundaram a literatura ocidental. Assim sendo, de Erich Auerbach destacamos o trabalho int itulado Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (2004), cuja diretriz fundamental é a identificação de um processo mimético da realidade, a partir de fragmentos de textos canônicos, em um recorte que compreende três milênios de literatura, iniciando-se com a Odisséia de Homero e finalizando-se com To the Lighthouse de Virginia Wollf. A trilha de investigação proposta por Auerbach parte de um momento em que a literatura expressa a realidade, e o escritor pode aventurar-se no desvendamento de outras experiências, marcadamente periféricas às grandes questões políticas. Ganham expressão no texto literário: o saber cotidiano; as relações humanas desenvolvidas fora da corte, consideradas então “baixas”; os comportamentos vulgares; as paixões amesquinhadas pela simples cond ição de pertencerem ao homem do povo. Fazendo a mimesis da realidade mais cotidiana, o escritor chamado realista pôde contribuir para o estamento dessa mesma realidade, com características próprias de cada época. Outra proposição teórica, a qual converge para a mesma visão sobre literatura realista, é a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (2004) de Mikhail Bakhtin. A proposta do autor 23 avança sobre uma hipótese de que a literatura realista, plenamente formada, engendra novas concepções atendendo aos anseios sociopolíticos e ideológicos de uma época, datada pelos fatos históricos que a marcaram e modificaram a poesia moderna. Os estudos de Bakhtin possibilitarão a demarcação do discurso ideológico na poesia estudada, permitindo que os signos sejam investigados à luz de conceitos da sociolingüística que permitam o seu aprofundamento analítico, distinguindo significação e identidade, individualidade e universalismo, enunciação e enunc iado. O projeto que intentamos, a princípio, é decalcar idéias, estilos e estéticas que deflagraram a realidade na literatura em poemas selecionados dos autores que compõem o corpus desta pesquisa. Assim, faremos uma revisão da criação da realidade através da observação do homem comum e de sua vida cotidiana. Foi preciso, muitas vezes, buscar em teses estranhas à teoria da literatura e à crítica literária — mas que, a elas associadas, ampliaram o saber sobre os textos poéticos coligidos — possibilidades de formulação de uma análise menos conve ncional da poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha que vise reconhecer os percursos literários desses poetas para além das ideologias sociais das quais emerge a ma ior parte dos estudos a eles dedicados. A realidade forjada por Drummond e por Craveirinha possibilitou o projeto literário das chamadas “poesia de intervenção” e “poesia revolucionária” que, durante três décadas, nortearam a sua escritura, envolvidos que estavam por um processo político acachapante e marcados por uma ideologia impregnada de realismo social. Outrossim, devemos destacar que, ao discutir a chamada “literatura de esquerda”, pretendemos inferir o processo criativo dos autores e seu compromisso individual com a sociedade em que vivem, sem investigar a verdade de sua atuação política. Ao fazer uma reflexão sobre essa “literatura de intervenção”, Barthes revela um pensamento que vem ao encontro de nossa proposta: Literatura de luta? Sem dúvida alguma. Mas de uma luta à altura das indagações formuladas pelo homem histórico e pelo homem eterno. O escri- 24 tor não luta por uma mudança de ministério, ainda que essa mudança seja muitíssimo desejável, mas por uma transformação das condições externas e internas que determinam o indivíduo, seus pensamentos, sua moral. (BARTHES, 2005, p. 38) Seguindo as pistas dos versos, aportamos na subjetividade, eixo central de todo o estudo proposto. É por tal conceito que procuraremos empreender, desde a primeira análise, um alcance da dimensão do sujeito poético formado tanto por Carlos Drummond de Andrade quanto por José Craveirinha. Entendemos que, no processo de criação dos poetas — marcadamente nos textos selecionados neste estudo —, não se dá, efetivamente, o alijamento do sujeito na constituição da alteridade, idéia comum atribuída ao seu fazer poético, visto terem suas obras assinalado períodos importantes da história de seus respectivos países. Assim, como início de percurso, a literatura engajada de um e a literatura revolucionária de outro serão, de fato, o centro de nossa pesquisa; paradoxalmente, é por elas que empreenderemos um exame das pistas de uma subjetividade que foi relegada nas apreciações que se estabilizaram como saber votado ao aplauso irrestrito, e do qual, evidentemente, não dispensaremos a ajuda na elucidação dos problemas que surgirem durante o estudo que empreenderemos em busca do conhecimento mais ampliado da escritura de Drummond e de Craveirinha. A subjetividade que transpassou a alteridade reforça-se na poesia amorosa e eróticoamorosa de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha. Os seus textos têm características específicas, mas convergem em muitas das hipóteses que serão levantadas. O que as une, porém, em um mesmo projeto, é um dado circunstancial, mas de extrema relevância para que compreendamos essa vertente literária a que os autores se dedicaram: um intervalo temporal na sua vida poética. Dedicado à poesia de caráter realista e social desde sua estréia, em 1930, com Alguma Poesia, o poeta mineiro cede sua voz e seu lirismo a poemas que representam o sentimento amoroso em espaços de intermitência entre um e outro texto de aguçada vertente política. Em meio a palavras que acutilam a realidade, quase sempre difícil, de seu país e de sua gente, o 25 poeta propõe a suavidade em um texto marcado pelo signo amoroso; em meio a uma obra que projetou o ideal, surgem textos dedicados ao erotismo, à fala do corpo e da sedução. Poemas como “A metafísica do corpo” e o livro O Amor Natural (1992) inauguram um espaço de subjetividade latente e luminosa, não condicionada a um saber universal, mas apenas ao sentir de um indivíduo em estado de amor. Da voz moçambicana mais representativa, do “grito ne gro” mais intenso e reproduzido ao som de tambores ancestrais e revolucionários, ouve-se também o gemido, o sussurro, o apelo amoroso. José Craveirinha, o poeta combativo e audaz, abre uma lacuna no seu tempo histórico, tempo em que foi país, em que foi “outro”, em que foi irmão, para inaugurar-se como sujeito em estado de arrebatamento na sua poesia amorosa e na sua poesia erótica. O livro Maria (1998) é a voz dolente e dolorida do enlutado, de quem perdeu o amor de uma vida inteira. Não há revolução em seus versos nem arma em seus signos. Marcados por lamentos e lágrimas, os poemas representam o sujeito que se permite afastar de todos os ideais para estar sozinho com sua imensa solidão. Porém, interstício de dor e de vida, Craveirinha também se dedicou ao corpo intensamente e à paixão erótica por uma “boneca de jagre”, sedutora e liberta, objeto amoroso único de Poemas Eróticos (2004), e que promove a libertação do sujeito que se negara a evidenciar os prazeres individuais durante a sua vida dedicada à revo lução que planejou. Nos dois poetas, portanto, mais uma via em comum: o retorno à subjetividade, seja pelo olhar-se no espelho, pela primeira vez, como “eu” e não como o “outro” que insistiu em forjar em si mesmo, seja pela identificação do amor. Nos dois poetas, a licença autoconsentida de expressar, enfim, e com a máxima intensidade, o erotismo que se calara dentro do sujeito que cada um é, e que agora se expressa sem ideologias, ou antes, tendo como única ideologia a assunção do prazer carnal. O conceito de subjetividade que desenvolveremos foi pesquisado segundo as proposi- 26 ções indicadas por Michel Foucault em A Hermenêutica do Sujeito (2004); os preceitos literários de Denis de Rouge mont apresentados na obra O amor e o Ocidente (1988); as teorias psicana líticas, literárias e lingüísticas de Julia Kristeva em Histórias de Amor (1988); as questões que suscitam o amor carnal, segundo Georges Ba taille, na obra O Erotismo (1987); e novamente Foucault, que com seus livros História da Sexualidade I – a vontade de saber (1979), História da Sexualidade II – o uso dos prazeres (1984) e História da sexualidade III – o cuidado de si (1985), responde a algumas indagações sobre o comportamento sexual e erótico ao longo da História. Dessa forma, ideamos reunir teorias que iluminem a formação dos discursos erótico-amorosos que se refletiram, por afirmação ou negação, nos versos dos poetas Drummond e Crave irinha. Consideramos, para efeitos de análise, que as teorias sobre o sujeito, o amor, o erotismo e a sexualidade, a despeito de se desenvolverem, por vezes, em projetos distintos, devem associar-se para elucidação dos códigos poéticos estabelecidos no corpus. Poesia Completa (2003), antologia que colige as obras de Carlos Drummond de Andrade publicadas entre 1930 e 1996, e Cela 1 (1980), Maria (1998), Obra Poética I (1999), Poemas da Prisão (2004) e Poemas Eróticos (2004) de José Craveirinha fornecem os textos que nos permitem lançar luz sobre versos que consideramos melhor representar as diversas faces poéticas reveladas neste estudo. 6 A crítica literária brasileira e muitas teses africanas objetaram sobre interpretações impressionistas e esclareceram signos menos afeitos à decifração imediata. Outros tantos autores e outras tantas teorias se tornaram pertinentes em momen- 6 O livro Babalaze das Hienas, publicado em 1997, apesar de também compor-se de poesia lírica, não foi incluído como corpus deste trabalho por considerarmos que a voz poética, que se permitiu nessa obra uma impetuosidade indisfarçável contra a condição colonial em Moçambique, não atende a nossa proposta, visto que o sujeito poético, nos poemas, compõe uma vis ão pictórica de um país em flagelo, registrando-se, então, os textos, como poemas-denúncia. Nesse caso, não há, entendemos, uma relação dinâmica e dialética entre o “eu” e o “outro”. Para melhor explicar, recorremos à síntese de Fernando J. B. Martinho, em prefácio do livro, pela qual destaca a indignação do poeta/sujeito poético ante um estado de privação absoluta da dignidade humana e da vida, e enumera as cenas que formam o quadro social: “o sangue, o latrocínio, os ataques cegos e indiscriminados de armas brancas e de fogo, a violação, a mutilação, a degolação, o esquartejamento, o rebentamento de minas”. (CRAVEIRINHA, José. Babalaze das hienas. Maputo: Minerva Central, com o apoio de ASDI – Instituto Camões, 1985, prefácio) 27 tos diversos da pesquisa, visando sempre pôr em evidência as duas vozes poéticas que se alternam na construção da alteridade e da subjetivid ade. Muitos poemas, muitos estudos e uma certeza apenas: a de que uma análise comparativa das formas literárias de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha pode se revelar um exercício de investigação que não se insere, unicamente, em conceitos teóricos anteriormente formulados, mas que se apresentam sob o efeito de rupturas nos saberes consolidados e formalizados. Disso resultam o risco e o encantamento. 28 2. ALTERIDADE E SUBJETIVIDADE: EVIDÊNCIAS TEÓRICAS E CONJUNÇÕES POÉTICAS 2.1 - Drummond, o mundo e a percepção do “outro” Escuto vocês todos, irmãos sombrios. No pão, no couro, na superfície macia das coisas sem raiva, sinto vozes amigas, recados furtivos, mensagens em código. Carlos Drummond de Andrade Carlos Drummond de Andrade, poeta nascido na cidade mineira de Itabira, não negou seus versos ao sentimento interiorano de que fez parte e que nunca abandonou, mas também não permitiu que os limites das pequenas cidades reduzissem sua visão contemporânea sobre o mundo. Expandiu-se por grandes metrópoles, saindo de Belo Horizonte e chegando ao Rio de Janeiro; abdicou das montanhas para compreender o complicado desenho dos prédios; se viu estrelas, viu luzes; e do bucolismo de uma “cidadezinha qualquer”, confrontou-se com a sofisticação de bairros como Leblon e com o cosmopolitismo de Moscou e Berlim. Assim ampliada a sua percepção do mundo, soube identificar como ninguém o homem que o habitava: o operário e o político; o atônito e o artista; as mulheres todas: mães, irmãs, amas, amadas namoradas ou amantes amargas e abandonadas. E soube, além de tudo, expandir-se por discursos e idéias várias, múltiplas possibilidades de realização poética. A mesma proposição é atestada por Ângela Maria Dias: Como, em Drummond, nada é puramente intelectualista, sua poesia metafísica conflui, quase sempre, para os mais diferentes temas e perspectivas: o 29 discurso da elocução em primeira pessoa, o discurso mais impessoal, o erotismo, o lirismo memorialista de diversa fatura e a celebração. (DIAS, 2007, p. 158) E se dizemos que o homem marginalizado o habitava, balizamos a afirmação no entendimento de uma construção intelectual, cujos registros se dão, claro está, na sua experiência como ser político. É consenso, entre os estudiosos de Drummond que estabelecem paralelos entre sua biografia e sua obra, assinalar o registro de homem burguês, cuja conseqüência é o fato de que o poeta “jamais alimentou ilusões quanto à possibilidade de superação dos limites impostos por sua formação burguesa e, conseqüentemente, de uma identificação dessa ordem”. (CAMILO, 2001, p. 77) Todavia, voltando ao pensamento inicial, queremos destacar a elevação do “outro” no ser poético drummondiano por uma visão ideológica. Assim, se cabe a discussão, em outras esferas, do seu caráter burguês, esse dado não é significativo no registro que fazemos do poeta. Preferimos, então, identificar uma dinâmica literária que corrobora a visão social e a visão do “outro”, a mesma que o fez construir o gauche e transcender a sua existência pessoal. Realce absoluto damos, portanto, ao fazer literário, muito embora o homem Drummond não desmereça o sujeito poético com que se constitui: essa insatisfação com a situação do mundo ultrapassa o poeta e vai inquietar também o pacato cidadão que ensaia alguns passos na tentativa de participar mais vivamente da sociedade que integra, para mudar um pouco do muito que havia de errado. Os gestos, no entanto, serão sempre tímidos, indicando que a sua forma mais aguda de atuação social seria mesmo através da literatura. (CHAVES, 1993, p. 14) O sujeito poético de Drummond arriscou todas as experiências: da guerra e do desejo de paz; do engajamento político e da desilusão; do amor e do desamor. Identificou os caminhos das igrejas (E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações.) (PC, p. 17) e os mistérios da Umbanda (Yemanjá, filha de Oxalá, / mãe de Xangô e de todos os orixás, / sarava!) (ibid., p. 1510). Drummond “muitos” participou intensamente da vida do mundo. Sua morte, em 17 de agosto de 1987, quando contava 85 anos, doze dias após a morte de 30 sua filha, Maria Julieta (sobre quem o poeta escreveu: “Assim terminou a vida da pessoa que mais amei neste mundo.”), parece não ter acontecido. Longe de falarmos da imortalidade do artista, falamos da imortalidade dos temas. Porque o poeta assistiu o nascimento do século XX, e seus olhos de menino registraram as impressões da Primeira Grande Guerra enquanto os olhos de homem analisaram a Segunda Grande Guerra; porque se ordenou nas tendências políticas e desordenou-se em seus ditames; porque soube compreender que o objeto de sua poesia, em dado momento, não poderia mais se incumbir da coletividade, mas se ocupar da individualidade humana, na busca de compreender a subjetividade que nos move, apesar do mundo. Essa particularidade de Drummond foi avaliada por Antônio Callado: Drummond é o poeta que dá toda a inquietação do Brasil, toda a inspiração. Há uma grande forma que a vida brasileira reclama. Drummond parece que tem disseminado pela poesia todas essas coisas, inclusive a extrema simplicidade, como em “E agora, José?”, uma expressão que vive na boca de todo mundo porque exprime o sentimento do povo. Os poemas mais difíceis exprimem a aspiração de um país inteiro à ordem, à coisa clara, o que reflete a inquietação do povo brasileiro. Drummond não é apenas um poeta de uma maneira de expressão ou de um tema. É um poeta vário, um poeta que tem a faculdade de ser múltiplo, um poeta e várias regiões geográficas”. (MORAES NETO, 2007, p. 145) Todavia, o que mais se destaca na poesia drummond iana é a capacidade de interseção com o que é exógeno ao homem. Drummond não se sobrepõe ao que vê; insere-se. Lá está ele no campo de pastagem, e também o encontramos no campo de guerra. Se analisa o mundo, as atitudes, os acontecimentos e os sentimentos, elabora uma auto-análise. O “outro” depura-se pela existência do “eu”. Por esse caminho segue a crítica de Silviano Santiago: “o leitor não deve dissociar a sua própria experiência autobiográfica da experiência de vida transmitida pelo poema”. (PC, p. IV) Mas não propomos uma compreensão estanque da obra drummondiana. Não se trata de colocar lado a lado homem e obra, sentimento e verso. Nossa proposta é partir de uma unidade homem- mundo para compreender os mecanismos utilizados em sua dissociação, quando o poeta passou a investigar a realidade. Na poesia de Carlos Drummond de Andrade, o seu sen- 31 timento é o sentimento do mundo: angústia e esperança; desânimo e vontade; solidão que é a de todos, que é coletiva. Seus ombros suportam o eu e o mundo. Os versos de Drummond não são excludentes do “outro” nem de si mesmo. Drummond convida o leitor a fazer parte, pelo verso, de um mundo que se esconde em olhos anuviados pelo receio de enxergar mais claramente o que se perde em labirintos, se esconde nos becos, se espraia nas favelas fora do alcance das vistas. Move-o, talvez, a sua experiência como jornalista; mas, acima de tudo, move-o a vontade de comunicar a todos a realidade que o incomoda, porém, da qual não quer se desobrigar. 2.2 - Craveirinha e a palavra- nação E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!! E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!! E outros nomes da minha terra afluem doces e altivos na memória filial e na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza. José Craveirinha O processo de transferência para um “outro” que se impõe sobre o “eu” dá-se inequivocamente na poesia de José Craveirinha, o poeta que se revela com seus “belos e curtos cabelos crespos”, sorrindo com seus “dentes brancos de marfim espoliado”. Craveirinha que se subscreve África, que se designa Moçambique, que se chama Maputo. Isso porque José Craveirinha é o cidadão antes de haver nação; é o homem liberto por vontade própria, antes da própria liberdade; é o poeta que se inventa entre grades e insetos, homem e formigas na cons- 32 trução do país. José João Craveirinha nasceu no bairro da Mafalala, em Maputo, em 1922, e faleceu em 2003, também na capital moçambicana. Filho de pai algarvio e de mãe negra africana, pertencente à etnia ronga, desde sempre seu olhar volta-se para o “outro”, porque o diverso em si mesmo assim o exigia. Seus poemas não negam a disposição de ver o “outro” para verse no “outro”: “Jambul”, “Mulata Margarida”, “Felismina”, avós e mães, náufragos de navios de carga, meninos famintos, menina Detinha no “céu sem anjos da África”. Sua poesia é Moçambique, é África. Todas essas personalidades que povoam a poesia de Craveirinha foram resultado de uma criação poética assim compreendida por Fátima Mendonça e Michel Laban: “A realidade social exerceu uma tal determinante na poesia de José Craveirinha, dando origem à construção de personagens edificados, que entraram no imaginário literário moçambicano ”. 7 (MENDONÇA, LABAN, 2008) A escritura de Craveirinha corrobora a resistência africana contra a colonização portuguesa. Acusado de pertencer à FRELIMO, foi detido pela PIDE/DSG e condenado, tendo cumprido pena até 1969. A poesia foi a sua principal arma na luta pela libertação. Entre as paredes da cela, escreveu poemas que deram origem aos livros Cela 1 e Poemas da Prisão. Ao escandirmos os versos de José Craveirinha, desvendamos signos que compõem culturas étnicas, que desenham corpos conformados à natureza, que não se valem por si mesmos, mas em cosmogonia. Retomando “Sábado nos musseques”, de Agostinho Neto, poeta conciliado na dor e na esperança, podemos dizer que na poesia de Craveirinha todos os seres e coisas significam. O dizer África é a principal fonte literária do autor, como atesta Ana Mafalda Leite: “Com efeito, o autor de Karingana ua Karingana faz o elogio da sua terra e da sua cultura, apontando crítica e indignadamente alguns dos episódios, dos factos históricos e 7 Texto transcrito do filme José Craveirinha, realizado por Fátima Mendonça e Michel Laban, disponível no site www.macua.org/video/jose_craveirinha_2001a.wmv. Acesso em 25/mai/2008, às 13:20h. Advertimos que esta citação e as que doravante utilizaremos, retiradas do site indicado, foram transcritas de áudio. 33 do quotidiano, que dentro e fora do seu país são um resultante da opressão e da injustiça”. (LEITE, 1998, p. 116) Tal projeto literário inicia-se, como ocorre com outros poetas africanos, pela necessidade de denunciar o jugo colonial e expressar o sonho de liberdade. Com Craveirinha, entretanto, o verso fugiu ao tom panfletário e adquiriu o estilo e a estética que farão do autor ? ainda que não se configurasse um projeto seu ? ser um “Camões moçamb icano”, fundador de uma nação. Segundo Benjamin Abdala Junior, Craveirinha “não aceita continuar do ponto em que a literatura colonial parou. Sua estratégia é de confronto e procura sua legitimação num novo campo comunicativo de caráter nacional e popular”. (ABDALA JR, 1995, p. 79) O projeto literário assim identificado tem origem na construção de uma consciência social e ideológica que fará da poesia de Craveirinha a expressão múltipla de uma existência moçambicana, em que o sujeito poético engendra uma moçambicanidade que não se detém nas prerrogativas de um discurso pós-colonial que se consolidou nas fórmulas gastas do verso revolucionário. Longos poemas narrativos ? seguindo uma proposta neo-realista que se casava bem à valorização do africano humilhado pela colonização ? trarão à superfície do verso as pessoas simples de Moçambique. Por outra via de criação poética, textos concisos promoverão a tensão no ato de leitura, pois que se delimitam por signos cuja densidade dramática não permite a ocultação da dor. As tragédias coloniais, cotidia nas, são expressas tanto na língua estrange ira quanto na língua ronga. Poemas laudatórios e de caráter épico contarão histórias de heróis; poemas elegíacos lembrarão as mortes anônimas nos porões dos navios, nos machimbombos, nos úteros, nos braços e nos olhos de mães desesperadas. José Craveirinha é dor, mas também ressoa a esperança no som forte do tambor. “Quero ser tambor”, grita o poeta, porque assim poderá transpor seu verso para além dos limites da clandestinidade; poderá transcender sua voz, voz de tambor, e alcançar a consciência de todos os homens. Portanto, antes de chegarmos à Maria, projeto de amor, caminharemos com o 34 poeta pelos bairros de Moçambique, perscrutando suas tragédias. Craveirinha exige muito de seu leitor: a compreensão de seu universo, a disposição para entender o diferente, a vontade de vida que, muitas, vezes, excede os limites de nossa percepção. Contudo, ao nível da exigência corresponde a tessitura do verso que associa ao conteúdo árduo a sofisticação da fo rma. 2.3 - Convergências poéticas: o “eu” e o “outro’ Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. Carlos Drummond de Andrade Nesta civilização o que descubro é o ódio no coração do mundo. Mas persisto porque da seara da vida ao hábito de procurar o amor dos homens restam sempre os grãos ao fundo. José Craveirinha O projeto de unir as vozes poéticas de Drummond e de Craveirinha poderia seguir o caminho das teorias intertextuais. No entanto, desejamos compreender não somente o poeta, mas o “eu” que o engendra; não apenas o objeto, mas o “outro” no qual se configura; não unicamente o verso, mas como se constrói o sujeito poético que neles se expressa. Ao investigarmos o processo de escrita literária que gerou essas vozes, vemos que ele 35 tem início com o advento do cristianismo, prosseguiu com o pensamento científico que ma rcou o Renascimento e chegou ao realismo moderno do século XIX, o qual impôs ao texto literário uma análise dos fenômenos e acontecimentos cotidianos, identificando nos versos o homem comum, decurso que analisaremos oportunamente. Validaram-se os personagens e os fatos corriqueiros, os quais, durante toda a Antigüidade clássica, foram considerados como temário cômico ou satírico, representados em estilo baixo. Essa nova apreensão do mundo é designada por Michel Foucault como “vontade da verdade”, decorrente da vontade de saber da cultura clássica, mas que resulta de uma dinâmica que procura investigar a realidade, e que desembocará nos discursos do século XIX: Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia -se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como os sistemas dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela também é reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. (FOUCAULT, 1999, p. 17) A representação mimética do mundo ganha ares de cientificidade na constituição da literatura européia, ocupando-se Erich Auerbach de estudá- la através da obra Mimesis - representação da realidade na literatura ocidental (2004). O autor elabora sua tese considerando que a arte desempenha, no século XIX, o papel investigativo de uma sociedade que emerge de uma “vontade de verdade” que se aplica à percepção do real circundante. A metodologia adotada por Auerbach inclina-se para a compreensão do texto selecionado de modo particular, constituindo, assim, tendências e não leis, como afirma o próprio autor. (AUERBACH, 2004, p. 501) Seguimos esse caminho, e somente a partir da análise literária proposta, pudemos depreender os conceitos que nela se manifestavam. Dessa forma nos foi dado conhecer um projeto que concebeu a arte literária como um movimento dinâmico em relação ao “outro”, mimetizando-o para melhor investigá-lo, chegando mesmo o “eu” do ficcionista ou do poeta a diluir-se na voz daquele que se colocava na cena ou no verso. Tal 36 percurso, o de concretização da realidade na literatura, sofreria, evidentemente, a ação dos elementos exógenos ao “eu”. Tendências, idéias e ideologias atuariam sobremaneira na construção do texto literário, propondo, não raras vezes, uma metodologia de escritura. Retomando o pensamento científico, o artista redireciona sua obra para a relação entre o indivíduo e o contexto social em que se insere. Sob esse aspecto, fundamentalmente pela teoria de Mikhail Bakhtin, apresentada em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2004), podemos compreender o signo poético, que, para o autor, transforma-se em ponte que une interação social e consciência individual. A proposta do marxismo, segundo Bakhtin, seria inscrever na consciência do indivíduo uma psicologia objetiva. Dessa forma, a ideologia antecederia qualquer pensamento individual. A teoria marxista, ao pensar sobre a evolução da consciência humana, estabelece sua relação com a linguagem, ambas existentes, apenas, por se vincularem ao “outro” e ao meio social: A linguagem é tão velha como a consciência ? a linguagem é a consciência real, prática, que, existindo para os outros homens, existe para mim próprio pela primeira vez e, tal como a consciência, a linguagem só aparece com a necessidade imprescindível do trato com os outros homens. Onde existe uma relação ela existe para mim. (...) A consciência é, pois, à partida, um produto social e continuará a sê-lo enquanto, em geral, existirem homens. A consciência, bem entendido não é, antes de tudo, outra coisa senão a consciência do meio sensível mais próximo e a do elo limitado com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência. (MARX, ENGELS, 1989, p. 20) Pelas ideologias inerentes ao tempo histórico e ao espaço social, podemos identificar na escrita literária o “outro” e a sociedade que se constituem no verso. A linguagem é marcada pelas propostas coletivas que se fazem valer sobre a subjetividade, exigindo do sujeito poético que ele se integre no que lhe é exterior ou que se apague no discurso elaborado, a fim de que apenas o que perscruta possa ser colocado como objeto do poema. Entretanto, o retorno à subjetividade deflagrado na poesia de Drummond e de Craveirinha exige uma compreensão dos recursos utilizados pelos dois autores para trilhar o caminho de volta ao “eu”. 37 Existir em alteridade por opção, por ideal, exige tanto do escritor que sair do “outro” para imergir-se no “eu” pode ser um doloroso processo de renúncia. A transferência de objeto literário requer do escritor a capacidade de reconfiguração do sujeito do poema, processo que impõe não somente o olhar para si, como também o olhar para dentro de si, espelho e contraespelho posicionados, imagem e contra- imagem de quem não se habituara à sua própria presença. Por esse motivo, os versos caminham lentamente em direção à subjetividade que reclama o direito de se expressar. Aqui e ali, vemos, disfarçados em alteridade, um sujeito que, vez por outra, se prenuncia mais que se anuncia. Seja em Drummond: Eu estava sonhando... (PC, p. 16); seja em Craveirinha: e com raiva ou sem raiva / quantas vezes chorámos sem mais lágrimas para chorar / quantas vezes, Maria? (M, p. 110) O processo de re-descoberta da subjetividade é sempre doloroso. Sair do “outro”, estância confortável na qual a voz poética triunfa em altruísmo, para assumir-se como “eu” individual promove incertezas e angústias. Ser é arriscar-se, é expor-se, é ter de buscar a expressão mais adequada para revelar sentimentos, intenções e emoções individuais. Independente dos processos políticos, históricos e sociais em que está inserido, o projeto literário pode perpetuar ideais, ampliados e universalizados, a fim de retirar as marcas do espaço/tempo em que foram criados. Por isso mesmo, por existir além de fronteiras artificiais, desarticuladas sob efeito de mudanças drásticas, desalojar-se de um idealismo é custoso para o poeta, e ele necessita de um esteio em que possa refazer-se como “eu” único, em exercício de subjetividade. E o alicerce que identificamos na concepção da subjetividade que pretendemos investigar em Carlos Drummond de Andrade e em José Craveirinha é o sentimento amoroso, em todas as suas formas e possibilidades. O amor por princípio e como fim é uma proposta literária já ampla mente discutida nos meios acadêmicos. Ainda que não possamos considerar esgotado o tema, visto o dinamismo da construção amorosa, o foco de atenção desse estudo é a subjetividade e suas nuances. O 38 que nos motiva é observar um sujeito literário que transfere o interesse pelo “outro” para um “eu” que se calou por tanto tempo. Seria correto, dessa forma, que fundamentássemos a análise apenas em uma teoria da subjetividade que autorizasse nossa tese, não fosse uma proposta autoral que se evidenciou desde as primeiras leituras de Drummond e de Craveirinha e tem se tornado inconteste quanto mais os estudos se aprofundam. O retorno ao “eu” de que falamos trilhou os caminhos do amor e do erotismo com todas as angústias e delícias que instigam e professam. Vimo-nos, assim, instados a sobrelevar os estudos sobre amor, erotismo e sexualidade aos da teoria da subjetividade. Então recorremos a autores que desvendam os segredos do corpo e do espírito, quando imersos no sentimento amoroso. Michel Foucault propõe uma compreensão histórica da sexualidade. Com ele, procuramos minuciar os desenhos do corpo que vão se esboçando no desejo, telas vivas e dinâmicas projetadas por Drummond e por Craveirinha, libertos após terem cedido aos discursos moralizantes, como, ademais, todos os amadores o fizeram: Evoca-se com freqüência os inúmeros procedimentos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o corpo; mas, pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais, há vários séculos, fizeram-nos amar o sexo, tornaram desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo o que se diz a seu respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade; pelos quais nos culpabilizaram por tê-lo desconhecido por tanto tempo. (FOUCAULT, 1979, p. 149) O corpo não contém o erotismo que o move e vota-se inteiramente ao ato de amar. Insubmisso às normas morais, o corpo transcende seus gestos fugindo aos interditos, transgredindo as leis pelo insustentável desejo que não se reduz mais aos seus próprios limites. George Bataille oferece muitas pistas para se compreender o erotismo no contexto da criação poética de Drummond e de Crave irinha. Destacamos uma delas: A experiência [do pecado] leva à transgressão realizada, à transgressão bemsucedida que, sustentando o interdito, sustenta-o para dele tirar prazer. A experiência interior do erotismo exige de quem a pratica uma sensibilidade 39 bem maior ao desejo que leva a infringir o interdito que à angústia que o funda. É a sensibilidade religiosa, que liga sempre estreitamente o desejo e o medo, o prazer intenso e a angústia. (BATAILLE, 1987, p. 36) Antes, porém, de entendermos o corpo em dinâmica amorosa, é preciso resgatar os discursos que instituíram a existência do amor erótico. No entanto, esclarecemos que não se trata de, neste trabalho, discutir o erotismo em si, com teses e formulações que procurem investigar a expressão erótica sob conceitos morais ou sociais, mas de perceber a sua atuação sobre o sujeito. Denis de Rougemont revisita os textos que fundaram o amor no Ocidente, e revela- nos o que virá a constituir alguns dos mais belos versos a serem investigados, visto que se consagram para além do amor erótico: A dialética de Eros introduz na vida algo totalmente estranho aos ritmos da atração sexual, um desejo que não decresce jamais, que nada mais pode satisfazer, que até mesmo desdenha e foge à tentação de se realizar em nosso mundo, porque só deseja abraçar o Todo. É a superação infinita, a ascensão do homem para o seu deus. E esse movimento é sem retorno. (ROUGEMONT, 1988, p. 48) Aportando na compreensão psicanalítica, Julia Kristeva abre espaço para investiga rmos, pela linguagem, a constituição do “eu” e do “o utro” na experiência amorosa: O amor é o tempo e o espaço onde “eu” se dá o direito de ser extraordinário. Soberano sem sequer ser indivíduo. Divisível, perdido, aniquilado, mas também, e pela fusão imaginária com o amado, igual aos espaços infinitos de um psiquismo sobre-humano. Paranóic o? Eu estou, em amor, no ponto mais alto da subjetividade. (grifo nosso) (KRISTEVA, 1988, p. 25) Iniciamos, dessa forma, a análise das mais intensas manifestações do sentir que se propuseram e se permitiram Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha, ao se dedicarem a uma poesia subjetiva que reinaugurou no verso as existências do corpo, permitindo-o expressar-se intensamente. Os prazeres e as angústias que se manifestam através da paixão e do desejo revelam a emergência do “eu” sobre o “outro”, este que se fez soberano durante a fase realista dos poetas, ainda que não tenha sido possível aos autores, como estudaremos 40 adiante, o apagamento absoluto do “eu”. Esses dois caminhos de apreensão da arte — objetividade e subjetividade — guiam o percurso da poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha. A arte vinc ulada à realidade, longe de ser um desvanecimento da subjetividade, é, ao contrário, o reencontro com a subjetividade que representa — em diferentes graus e sob diferentes formas de expressão — a consciência de uma missão social cumprida à larga, mas da qual os poetas podem, finalmente, se afastar, planeando uma instigante viagem em direção à própria existência, reconstruindo a subjetividade a partir de um profundo reconhecimento de si mesmo e de seu fazer poético. O “outro” que se fez presente nos versos da poesia realista, na “poesia de intervenção” impediu, por longo tempo, a expressão singular do sujeito. No projeto literário que impelia o olhar do sujeito para fora de si mesmo, cabiam apenas as emoções não expressas pelas vozes desses muitos “outros” que andaram habitando os conteúdos poéticos. O poeta fala em alteridade, mas é exatamente a prática desse falar que o leva ao encontro de sua própria subjetividade. Uma nova dinâmica se impõe ao verso: o sujeito que se lacerava pelo “outro” recolhe em si mesmo o que foi ofertado. Silencia as imensas dores, cultiva novas rosas, cala em si mesmo todas as vozes e todos os sons para ouvir sua própria voz. E dessa voz que se consagra na poesia pode emergir, de maneira incontida, o que os constitui como sujeito: a emoção de amar. 41 3. A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE ATRAVÉS DO TEXTO LITERÁRIO, SEGUNDO AUERBACH 3.1 Textos realistas: a consciência clara do mundo Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Manuel Bandeira Ao planear um estudo da “imitação” literária, Erich Auerbach partiu de uma teoria que se estabeleceu como linha mestra de sua pesquisa: a história da literatura registra uma ruptura nos textos clássicos, os quais só permitiam a representação do real na comédia ou na escrita de “estilística baixa ou média”8 (AUERBACH, 2004, p. 132) . Por essa ruptura, os escritores permitiram-se pensar uma realidade até então ausente da escrita e construir um processo mimético que configurasse na ficção e na poesia uma representação do que fosse feio, pobre e corriqueiro dentro de um contexto de seriedade. Dessa forma, as experiências do homem e da realidade por ele construída puderam ser observadas e consideradas em um âmbito de estudos que consagrou, definitivamente, os textos chamados realistas, e contribuíram para a formação de conceitos que foram validados, posteriormente, por estudos sociológicos, filosóficos e políticos. A vida periférica à corte imperial e os temas cotidianos deflagrados no núcleo familiar passaram a direcionar os saberes relativos ao mundo e ao ser humano. 8 Auerbach informa ao leitor que, “na antiga teoria, o estilo de linguagem elevado e sublime chamava-se sermo gravis ou sublimis; o baixo, sermo remissus ou humilis; ambos deviam permanecer severamente separados”. Acrescenta, ainda, o autor, que no texto cristão ambos os estilos foram fundidos na mesma construção de realidade. AUERBACH, Erich. Mimesis São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 132. 42 Auerbach chama a atenção para o fato de que, embora o realismo tenha solidificado suas bases durante o século XIX, não foi nesse período que houve a primeira resistência à ideologia literária classicista. Antes, durante os séculos XVI e XVII, românticos — com sua proposta de unir o sublime ao grotesco — e realistas enfrentaram uma severa corrente ideológica que propunha a manutenção da doutrina clássica. Assim, foram nesses três séculos que houve um enfrentamento entre as duas tendências das artes. 9 (ibid., p. 367) Portanto, durante toda a Idade Média e no Renascimento, registra-se a existência de um realismo fora da comicidade e inserido nos padrões da alta estilística. E isso se deve, segundo Auerbach, ao discurso cristão, visto ter sido o advento do cristianismo que inicialmente promoveu a ruptura nas normas gregas de estilo. A história de Cristo, com sua mistura de sublimidade trágica e cotid ianidade elevada à condição de incontestável e impugnável, fixou uma realidade impensada antes independente do seu caráter não-científico , qual seja a de atribuir excelência a pessoas humildes, inserindo um argumento de insubordinação às normas sociais vigentes: um rei nascido do povo, com estatuto de protagonista da história. A tragédia cristã, que então adquire primazia sobre as demais, redimensiona a noção de realidade. A perspectiva de uma historicidade nos textos da Antigüidade foi limitada por uma questão meramente regulamentar: não havia o interesse em investigar a representação do mundo através das idéias sociais; os acontecimentos eram vistos apenas sob o prisma da moralidade, o que exclui qualquer proposta de compreensão da realidade por uma visão “histórico-evolutiva”. A nova compreensão do mundo, relativa aos saberes advindos da experiência das classes populares e do homem comum, reconfigurou a literatura. A poesia fundada no real não pôde ignorar os fatos cotidianos e o homem do povo. Em 9 Lembramos que o século XVIII foi marcado pelo retorno à estética e à ideologia clássicas. Nesse contexto, o realismo aparece sempre a serviço das idéias iluministas, as quais moldam a arte, caso específico de Voltaire. Segundo Auerbach, “Voltaire constrói a realidade adaptando-a a seus propósitos. É inegável que, em muitos dos seus escritos, se encontra a realidade quotidiana, cheia de vida e de cor; mas ela é incompleta, conscientemente simplificada, e, portanto, apesar da seriedade da intenção didática, brincalhonamente superficial.” (AUERBACH, op. cit., p. 367) 43 grande escala, os ficcionistas e os poetas voltaram o olhar para as circunstâncias rotineiras, não determinantes na história. Até então ignorado, o homem simples e suas pequenas aspirações, suas emoções e desejos abafados na angústia de existir deslocam-se do espaço da existência ignorado pelas elites sociais e intelectuais e tornam-se sujeitos do texto. Assim como Auerbach não se propôs a definir minuciosamente conceitos sobre irrealismo e realismo, estilo “baixo” ou estilo “elevado”, também aqui passaremos ao largo de concepções parafrásticas que definam o fazer literário, a fim de investigarmos mais objetivamente as diretrizes que proporcionarão a compreensão dos textos selecionados nesta pesquisa. Para traçarmos nossa linha de raciocínio, buscamos as propostas elaboradas por Auerbach no seu estudo sobre arte e realidade, a partir de uma leitura da obra homérica Odisséia. No capítulo intitulado “A cicatriz de Ulisses” (ibid., p. 1-20), o filólogo faz seu leitor percorrer um caminho que poderá nos servir de modelo. Inicia ele suas observações a partir do momento em que Euricléia, velha ama, reconhece Ulisses pela cicatriz existente em sua coxa. Descoberta a identidade do herói através da marca em seu corpo, foi necessário que o “viandante fatigado” impedisse a revelação de seu nome para Penélope, que, neste momento, encontrava-se distraída. Tomada de alegria, a velha Euricléia teria revelado estar diante do herói, não fosse a pronta intervenção de Ulisses, que lhe dirige palavras lisonjeiras dosadas com ameaças. Toda a ação desenvolve-se em discurso direto, e Auerbach chama a atenção para as descrições pormenorizadas, em perfeitas “articulações sintáticas” que não permitem ao leitor homérico aproximar-se do que se considera uma tensão. À descoberta da cicatriz sucede uma narrativa que dá conta de todo um passado de Ulisses, mas sem deixar em suspenso a expectativa do leitor, porque, indica Auerbach, Homero constrói o seu texto sem segundos planos, impedindo uma sobreposição de consciência entre o presente e o passado. É nesse ponto que o autor retoma Schiller, corroborando a sua idéia de que Homero descreve “meramente a tranqüila existência e ação das coisas segundo a sua na- 44 tureza”. 10 (ibid., p. 3) Por essa compreensão, Auerbach conclui que o estilo homérico prevê que os fenômenos sejam representados de maneira concreta e visível, definidos os espaços e os tempos das ações desenvolvidas. E a construção do discurso coloca a serviço dessa reprodução da natureza das coisas (demarcada no tempo presente) todos os instrumentos sintáticos disponíveis no sistema lingüístico (temporais, locais, causais, finais, consecutivos, comparativos, concessivos, antitéticos e condicionais). Para Auerbach, a realidade criada por Homero apresenta, no texto, a “alegria pela existência sensível” (ibid., p. 10) presente em um mundo no qual o leitor é inserido sem que lhe seja exigida uma participação subjetiva no processo de construção analítica. Neste mundo, o leitor regozija-se com as aventuras e paixões de um herói, relatos de uma realidade existente por si mesma. Nesse sentido, vemos que há um distanciamento entre os textos épicos e a poesia moderna no tocante à participação do leitor no processo de interpretação de uma realidade a partir de estados de consciência da figura objeto do poema ou do sujeito poético. O mundo homérico mantém o ser como unidade absoluta. Não cabem nesse espaço as projeções passadas ou futuras de uma existência ambivalente, capaz de dissociar a realidade dos fatos concretos. Por esta aná lise inicial, entendemos que se nos apresenta uma proposta teórica que explica o surgimento dos textos realistas na literatura. Os textos homéricos não permitiam o exercício da subjetividade, seja do narrador, seja do le itor. Mas a força dos relatos envolve o sujeito leitor em sua narrativa, fazendo-o partícipe de um mundo no qual ele se insere, por isso o encantamento. O leitor é exigido na medida em que precisa relacionar os códigos que 10 Auerbach reporta-se, aqui, à correspondência mantida entre Goethe e Schiller através da qual os autores travariam uma discussão sobre o sentido do efeito “retardador” na poesia homérica, efeito que, no poema épico, não estabeleceria uma tensão, como no texto trágico, por uma elaboração estética proposta por Homero. Auerbach, nesse ponto, discorda de Schiller e Goethe, alegando ser inverossímel que o aedo grego tivesse, realmente, uma preocupação relevante com a estética; mais provável, ainda segundo o filólogo alemão, é que a interpolação do efeito retardador tenha sido introduzido no texto apenas como uma “necessidade do estilo homérico de não deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado”. Entretanto, Auerbach concorda que o efeito conseguido seja o de realmente descrever uma realidade cuja finalidade estaria já estabelecida em cada um dos pontos do movimento traçado no texto épico. (AUERBA CH, op. cit., p., 3) 45 apreende no texto com o mundo convencionado, ainda que não necessite de um exercício de interpretação. Essa condição fundamental de leitura perpetua-se e intensifica-se na literatura moderna. Os textos realistas exigem do leitor — ainda que para eles a objetividade da linguagem e das imagens elaboradas seja marca literária sine qua non — uma consciência clara do mundo em que se inscreve. Discutiremos com mais clareza essa proposta ao evidenciarmos o nosso corpus. Por ora, tomamos de Craveirinha um exemplo que nos parece adequado. O seu texto revolucionário discute uma situa ção política que permanecia ignorada — ou pelo menos sem o alcance de sua gravidade ? para muitos leitores. Ainda que sua poesia seja, a priori, extremamente visual, fazendo uso de uma sintaxe que não deixa dúvidas sobre o estado de guerra em Moçamb ique, o leitor necessita construir o contexto de seus versos. Além disso, os códigos apresentados, dos quais o autor não pode prescindir, pois representam a africanidade, exigem um conhecimento que excede o texto em si. O papel do leitor, nesse caso específico, é compreendido por Umberto Eco como o de um “operador (não necessariamente empírico) capaz de abrir, por assim dizer, o dicionário para toda palavra que encontre e de recorrer a uma série de regras sintáticas preexistentes para reconhecer a função recíproca dos termos no contexto da frase”. (ECO, 2002, p. 35) Esse procedimento de leitura corresponde a, ainda segundo o autor, “aceitar uma série de postulados de significado” (ibid., p. 36), e exige que o leitor complete a significação dos códigos utilizados no texto a partir do contexto estabelecido. Trata-se de apreender o não-dito do texto, atualizando os conteúdos propostos para além da superfície do texto. O leitor de Craveirinha deve recorrer a tais procedimentos para a leitura do poema “Jambul”, da obra Xigubo, estabelecendo, em cooperação com o autor, a realidade projetada: I Jambul levantou a cabeça levantou e vibrou sua azagaia 46 Jambul cantou últimos hinos de guerra Jambul cantou últimos hinos do seu povo. Jambul foi derrotado pelas espingardas foi derrotado Jambul o primeiro homem tráfico de Jambul primeiro xibalo começou! (...) (OP, p. 36) Aproximar-se da proposta autoral implica, além de identificar signos da língua autóctone, ter conhecimento da guerra colonial em Moçambique, reconhecendo em Jambul a figura de um herói da resistência contra o colonialismo português. A realidade na poesia de José Craveirinha somente se concretiza pelos signos e códigos inerentes ao seu universo moçambicano. O signo poético investe-se da representação da vida estruturada em conformidade com o real vivenciado pelo sujeito poético. O poeta reveste sua própria linguagem da expressão que representa o homem de seu povo. 3.2 A mimesis da realidade: um processo de subjetividade A obra de arte, fundamentalmente, consiste numa interpretação objetivada duma impressão subjetiva. Fernando Pessoa A construção do texto realista não o isenta de sinas de subjetividade. O fato de estar o autor comprometido com o objeto e com os elementos, fixos ou circunstanciais, que o cercam, não determina a ausência de uma compreensão subjetiva ? seja pela voz narrativa ou poética, seja pela visão de uma personagem ? do que se apresenta ao leitor. 47 O texto de Petrônio utilizado por Auerbach no início de seu estudo, e que corresponde à parte do episódio sobre o banquete de Trimalcião 11 , exemplifica essa tese. Encólpio, narrador do texto, pergunta a um conviva quem seria a mulher que anda pela sala. Ouve como resposta que se trata de Fortunata, mulher do anfitrião. Entretanto, o interlocutor de Encólpio não se limita a ident ificar a mulher, mas descreve em detalhes a sua relação com Trimalcião. O que se lê, então, é uma avalancha de pareceres desonrosos sobre a figura do casal e dos que com ele convivem como seus subalternos. A todos, o comensal atribui desqualificações de comportamento e caráter. Também é importante notar que, ao reputar cada personagem, o falante confere a si mesmo, em paralelismo, uma qualificação que o eleve à vista de seu interlocutor, por imediata oposição de seu temperamento e atitudes ao daqueles por ele descritos. Analisando o texto, Auerbach leva seu leitor a uma reflexão paradoxal: a realidade então construída pelo comensal só se materializa mediante sua própria subjetividade. Pela linguagem utilizada ? típica de um falante de baixa extração social ? , podemos destacar propriedades da subjetividade através das emoções reveladas, como espanto, admiração, indignação, inveja. Esse é o filtro utilizado pelo discursador para construir a realidade em torno dos personagens de quem fala. Advém de sua subjetividade um juízo de valor que dá o tom realista ao fato destacado. Opõem-se, claramente, a realidade objetiva, concreta, inequívoca do texto de Homero e a realidade subjetiva proposta por Petrônio. A intervenção da subjetividade na elaboração da realidade é mais do que um processo individual e isolado. Faz parte dessa planificação um saber histórico relativo ao mundo. Se em 11 Petrônio foi um escritor de destaque na corte de Nero, que descreveu com sarcasmo a sociedade romana do século I da era cristã na obra Satíricon. Foi conselheiro de Nero, no ano 63, e recebeu do imperador, por seu estilo, a designação de arbiter elegantiae. Os capítulos mais conhecidos de Satíricon são “Matrona de Éfeso”, com anedotas sobre as mulheres, e “O festim de Trimalcião”, em que o dono da casa, ansioso por mostrar-se culto, torna-se ridículo ao desfiar uma série de citações equivocadas. Considera-se que o objetivo da obra, sem intenções moralistas, foi ridicularizar a oposição burguesa e intelectual feita a Nero. O certo é que Satíricon tornou-se o primeiro romance realista da literatura universal, e deu origem à novela moderna. Vítima de intrigas, Petrônio foi condenado ao suicídio por conspirar contra Nero. Passou suas últimas horas de vida em uma festa. Antes de cortar os pulsos, no ano de 66, catalogou todos os vícios do imperador e enviou-lhe a lista. Nova Enciclopédia Barsa. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações. 18v., 1999, vol. 11, p. 309. 48 Homero a realidade vivenciada foi organizada pelos deuses ? e cabe ao homem apenas deflagrar, por suas atitudes e seus méritos, uma vontade superior ? , em Petrônio a realidade submete-se à observação de um processo histórico do ser humano; no caso, o enriquecimento, as mudanças de comportamento promovidas pelas relações humanas, as diferenças sociais que organizam castas. Há, ainda, em Petrônio, conforme Auerbach, mais um modelo fixado que se aproxima do realismo moderno: a “imitação não estilizada de um meio quotidiano contemporâneo qua lquer, com sua infra-estrutura social, deixando que as pessoas falem seu próprio jargão”. (ibid., p. 26) O texto de Petrônio é um romance que ? a despeito dos elementos mágicos e da retórica estilística utilizada como padrão em sua época, e da comicidade que esvazia o texto de complexidade quanto aos comportamentos, como veremos no realismo de Balzac ou Flaubert ? abre uma trilha em direção à literatura realista que se firmará posteriormente, e que, por processo contínuo, levará à “poesia de intervenção” do século XX. Esse cotejo entre as formas modernas de representação da realidade e a forma antiga, submetida à moralidade vigente, foi desenvolvido por Auerbach no trabalho aqui referenciado. O romance de Petrônio é validado como primeiro passo para uma investigação mais aprofundada da visão realista construída pela subjetividade, expressa no texto literário. É a partir dele que podemos distinguir no texto lírico a formação de uma subjetividade que, voltada para a realidade, reelabora uma compreensão e uma apreensão do mundo tangível. Assim identificamos, no corpus deste estudo, uma construção subjetiva que perpassa a mimesis da realidade, em processos literários que intensificam a proposta inicial de literatura realista. O conhecido texto poético “Morte do Leiteiro”, de A Rosa do Povo (1945), segue essa proposta autoral. Imagens objetivam-se no texto, seqüenciando ações cotidianas, reconhecíveis no mundo real. O poema roteiriza uma história, mas denuncia ao leitor atento impressões a respeito do que se coloca como tema, além de representar um sentimento de solidariedade 49 que se constrói, apenas, em estado de subjetividade. Cada verso é factível, delineado por referências ao mundo real: nominação, categorização, descrição de atos. O leitor acompanha o desenrolar da trama, marcada pela constatação da violência, da tragédia que vai se anunciando aos poucos: Há pouco leite no país, é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro. (...) Na mão a garrafa branca não tem tempo de dizer as coisas que lhe atribuo nem o moço leiteiro ignaro, morador na Rua Namur, empregado no entreposto, com 21 anos de idade, sabe lá o que seja impulso de humana compreensão. E já que tem pressa, o corpo vai deixando à beira das casas uma apenas mercadoria. (...) (PC, p. 168-9) A mimesis da realidade joga luzes sobre a vida cotidiana, a exemplo do texto de Petrônio destacado por Auerbach. Os códigos estabelecidos por quem vive à margem dos estratos sociais elevados determinam a seqüência da ação registrada nos versos drummondianos. Notemos, todavia, que existe uma posição assumida claramente pelo sujeito poético, evidenciando sua preferência por um dos atores da cena descrita: Mas este acordou em pânico (ladrões infestam o bairro), não quis saber de mais nada. O revólver da gaveta saltou para sua mão. Ladrão? se pega com tiro. Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro. Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, 50 não sei, é tarde para saber. (...) (ibid., p.169) A posição de observador assumida pelo sujeito poético transfere momentaneamente a atenção de quem lê da imagem da vítima para a figura de um outra personagem envolvido no acontecimento narrado: o homem que matou o leiteiro. O poeta realiza, então, uma dinâmica de falares sobrepostos que descortinam dois movimentos subjetivos, quais sejam, o da figura poética em ação ? o assassino do leiteiro, tomado de horror e arrependimento ? e o do próprio sujeito poético ? que condena e reprova o assassinato daquele a quem vinha chamando de meu leiteiro: Mas o homem perdeu o sono de todo, e foge pra rua. Meu Deus, matei um inocente. Bala que mata gatuno também serve pra furtar a vida de nosso irmão. Quem quiser que chame médico, polícia não bota a mão neste filho de meu pai. Está salva a propriedade. A noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiro estatelado, ao relento, perdeu a pressa que tinha. (...) (ibid., p. 170) A última estrofe é marcada por uma subjetividade que não mais se contém ao ser construída uma nova imagem, de todo alheia à realidade proposta anteriormente. O sujeito poético, em confusão de sentimentos que já vinham se manifestando ? indignação, revolta, pesar ? elabora versos que melhor representem o que vê, reconstrói a cena com um véu de subjetividade, não para se furtar à dor ou fugir do real, mas para intensificar na impressão do leitor a cena que o angustia: Da garrafa estilhaçada, 51 no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite, sangue... não sei. Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora. (ibid., p. 170) O poeta tem a dimensão da realidade, vê o homem que nela se insere, solidariza-se com ele, movimento possível que tem origem na subjetividade: A aproximação com os homens leva Drummond a observar mais intensamente a dor e a sua atenção se volta para algumas histórias que certamente não seriam tão bonitas quanto a de Robinson Crusoé ou a sua na infância entre mangueiras, ou cujo fim fosse ainda mais difícil de aceitar. Desse modo, seus olhos descobrem “o moço que é leiteiro”, abatido a tiros por um cruel engano, numa manifestação da violência urbana”. (CHAVES, 1993, p. 53) Sabemos que Carlos Drummond de Andrade tem recebido da crítica uma atenção especial em relação ao seu texto objetivo e realista. E se, em decorrência de uma visão mais aprofundada, algumas vezes discute-se a expressão da subjetividade na poesia drummondiana, ela se dá, como o fez Affonso Romano de Sant’Anna, por vias de uma compreensão autobiográfica 12 , evidentemente autorizada pelos versos de Drummond, repletos de referências de sua própria vida. As proposições estabelecidas valem- nos como respaldo ao nosso argumento, pois não ignoramos o que se nos é oferecido generosamente pelo poeta e pela crítica literária. Entretanto, optamos por também pôr em realce a manifestação subjetiva que transpõe a figura do homem Drummond. Ao ler cuidadosamente os poemas de Carlos Drummond de Andrade, percebemos que as figuras humanas evocadas nos versos não o são por caracteres destacados da percepção do sujeito poético, mas que o sujeito poético desloca-se de sua posição de observador do “outro” para envo lver-se com o universo do “outro”. Por esse caminho, toda objetividade do poema 12 Cf. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond, o guache do tempo. Rio de Janeiro: INL, 1972, passim. 52 mescla-se com a subjetividade de quem fala no s versos, evidenciando impressões, desejos, angústias, desânimos ou esperanças. Assim, o sujeito-poeta não assinala sua identidade no texto, porque um outro sujeito, produto de muitos recursos de criação, como ainda discutiremos, ascende sobre o primeiro, reclamando seu direito de manifestar-se. Representativo desse processo de criação em Carlos Drummond de Andrade é o poema “Convite Triste”, que compõe o livro Brejo das Almas (1934), em que a voz poética revela um sujeito que, desencantado, dá-se a si mesmo, em melancolia. Evidencia-se nos versos um sujeito, que, se convida um amigo, é pela necessidade que sente de não estar só: Meu amigo, vamos sofrer, vamos beber, vamos ler jornal, vamos dizer que a vida é ruim, meu amigo, vamos sofrer. (...) Meu amigo, vamos cantar, vamos chorar de mansinho e ouvir muita vitrola, depois embriagados vamos beber mais outros seqüestros (o olhar obsceno e a mão idiota) depois vomitar e cair e dormir. (PC, p. 57) Em A Rosa do Povo (1945), o longo poema “Nosso Tempo” investiga a existência pela visão de um engajamento político que, segundo epígrafe do próprio Drummond em uma das edições da obra, “reflete um ‘tempo’, não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo ? e está dito o necessário. 13 (grifo nosso) A voz do sujeito poético constrói-se pela constatação dos fatos que presencia e das circunstâncias que identifica; por definições do que vê, apoiadas em uma subjetividade que, por 13 ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. 53 princíp io, configura o real sob uma perspectiva ideológica de aparente isenção do “eu”: (...) IV É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina. Tempo de cinco sentidos num só. O espião janta conosco. (...) No beco, apenas um muro, sobre ele a polícia. No céu da propaganda aves anunciam a glória. No quarto, irrisão e três colarinhos sujos. (...) (ibid., p. 127-8) Entretanto, apesar do que se constrói como factível, propondo um afastamento do “eu”, a voz subjetiva se expressa nos versos finais, consciente da realidade: VIII O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas promete ajudar a destruí-lo como uma pedreira, uma floresta, um verme. (ibid., p. 130) Em “A Flor e a Náusea”, também publicado em A Rosa do Povo, o sujeito investe-se da vontade de mudar o mundo. Questiona-se sobre o seu papel social e sobre o seu poder de subverter a ordem. Assume o seu compromisso com a vida e segue em frente. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, nesta obra e mais especificamente nestes versos, “verifica-se uma verdadeira axis. É o ponto em que a personagem está na parte mais aguda de sua luta aberta com a realidade”: (SANT’ANNA, 1972, p. 21-2) 54 Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me? Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse. Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos. O sol consola os doentes e não os renova. As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase. (...) (PC, p. 118-9) Mas, para quem tem a consciência do existir e a ciência de compreender, a realidade limitadora dos sentimentos e das utopias não isenta o poeta de assumir uma atitude, a despeito de acusações de “insubordinação mental”: (...) Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. Ao menino de 1918 chamavam anarquista. Porém meu ódio é o melhor de mim. Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima. (...) (ibid., p. 119) E porque se reconhece na arte a possibilidade de enxergar para além das fórmulas impostas e dos objetos visíveis, o mais comum dos fatos — inacessível aos olhos embaçados e às mentes entediadas — anuncia a transformação pela natureza, em constatação poética de que a vida se impõe pela vida: (...) Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silê ncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. 55 Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura. Do lado da montanha, nuvens maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio .(ibid.) A arte salvadora imprime sua marca até sobre o que não se define. Gastaram-se as teorias, agastaram-se os ideais. Mas a poesia revivesce o sujeito isento de racionalismos. Instintivamente, ele se salva pelo verso que ainda não sabe revelar. O processo de criação poética se representa na anterioridade do ato poético: POESIA Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira. (ibid., p. 21) A proposta teórica assim formulada indica que a compreensão do mundo só é verdadeiramente possível se elaborada sob uma perspectiva estética, segundo a qual até o que parece inaceitável, feio ou tenebroso nada mais é do que uma representação estética da realidade. Assim compreendemos que a mimesis elaborada pela arte não consegue apreender verdadeiramente a realidade, mas o que as nossas paixões transformam em realidade, subjetividade que não se omite na visão do objeto ou em sua configuração narrativa. A grandeza do homem encontra-se, pela proposta de José Craveirinha, na humildade de seu nascimento e de sua vida. A cor negra e a classe desfavorecida até de liberdade consagram o homem moçambicano no texto poético. O poema “Cântico do pássaro azul em Sharpeville”, da obra Karingana ua Karingana 56 (1974), retrata o homem humílimo que se faz em excelência pela força de sua raça: Os homens magros como eu não pedem para nascer nem para cantar. Mas nascem e cantam que a nossa voz é a voz incorruptível dos momentos de angústia sem voz e dos passos arrastados nas velhas machambas. (...) (OP, p. 127) Os poemas de Craveirinha procuram retratar a realidade de um país em chamas e de um povo que sobrevive em meio à guerra. Entretanto, espelhando-se no que vê, o poeta utiliza recursos que irrompem no verso uma subjetividade que expressa a mesma dor que reflete. No poema “Afinal... a bala do homem mau”, do livro Xigubo (1964), a voz poética conta a estória de um menino faminto e um homem mau. História corriqueira em país colonizado que resulta na tragédia de sempre. O fato é contado sem os disfarces de metáforas ou de alusões. Mas a repetição dos versos marca um ritmo de dor e morte que surpreende o leitor e envolve-o no mesmo processo de construção subjetiva. Há uma clara necessidade de autoconvencimento, de depuração da dor do “outro”, a fim de que essa dor seja sentida em toda sua dimensão. Não bastasse compartilharem, poeta e leitor, do grito de lamento do menino, é preciso ainda, para perscrutação total da tragédia, ouvir o menino/sujeito poético invocar tristemente a mãe, que não pode ajudar: Era noite o menino vadio tinha fome na papaeira a papaia estava madura e o menino vadio estendeu a mão. Oh... Mamanôôô...! O menino vadio estendeu a mão cor da fome o menino vadio estendeu a mão cor da fome estendeu a mão sobre o branco muro de cimento (Ah! Tinha mil fomes de uma única papaia o menino) e a papaia estava ali no Ch amanculo toda madura mais madura que uma libra de oiro no bolso do mulungo Sousa. E o menino descalço estendeu a mão 57 estendeu a mão estendeu a mão mas de repente o homem atrás do muro mas de repente o homem atrás do muro calmo e certeiro puxou o gatilho e o silêncio da noite ficou mais silencioso e a escuridão da noite ficou mais escura e o coração vermelho do menino ficou mais vermelho e o calor da bala ficou mais quente e as mil fomes do menino acabaram na fome do chumbo maduro na barriga do menino. Era noite na papaeira a papaia estava bem madura o escuro no meio do escuro estava mais escuro e sobre o muro branco o menino estendeu a mão mas o homem mau deu um tiro mas o homem mau deu um tiro mas o homem mau deu um tiro Oh... Mamanôôô... e o menino caiu! Oh... Mamanôôô... e o menino caiu! Menino vadio já não pede mais esmola menino vadio já não quer mais papaia menino vadio já comeu toda a bala menino vadio já não tem mais f ome. Era noite! Era noite e o menino estendeu a mão e afinal não era o menino que tinha fome e afinal a bala do homem mau no Chamanculo é que tinha mais fome do menino. Afinal... Afinal... Afinal era a bala Afinal era a bala que tinha fome da fome do menino do Ch amanculo!14 (ibid., p. 45-7) A partir dos conceitos estabelecidos, concluímos que a poesia lírica, admitida a sua capacidade imitativa, apóia-se, analogamente à tragédia, ao drama e à comédia, nas ações humanas, como propõe, em seu amplo sentido, o conceito aristotélico de mimesis. Dessa forma, torna-se um elemento pendular das formas literárias tradicionais. Pensar em “ações humanas” implica em pensar paixões que promovam as ações. Portanto, a representação mimética elaborada pela poesia lírica poderia estar vinculada não apenas à verossimilhança e à cre- 14 Optamos, aqui, por reproduzir o poema integralmente por considerarmos que o ritmo impresso pelo autor é que permite a compreensão da subjetividade formada no texto. 58 dibilidade propostas por um aspecto cognitivo, mas à tensão anterior à deflagração de qua lquer ação. Os poetas conferem ao texto uma visão subjetiva que estrutura a realidade apresentada. As seleções circunstanciais que se sucedem no texto de Drummond e o idealismo nacionalista de Craveirinha evocam o ser subjetivo no fundo de cada perspectiva objetivada. 3.3 A presentificação da subjetividade no texto literário: uma interpretação do leitor Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida. Carlos Drummond de Andrade Diferentemente da poesia épica, a poesia lírica propõe-se à construção do que Auerbach chama de “processo subjetivo-perspectivista”, pelo qual são interpostos planos de consciência simultâneos, transformando o processo mimético da realidade em representação verossímil. Concluímos, assim, que a realidade elaborada no texto poético dependerá da representação articulada pela subjetividade presentificada no texto, na qual o leitor exerce papel de suma importância. 15 A poesia não é uma propriedade do poeta intransferível ao leitor, e nem A proposta teórica que continuamos a desenvolver e que pretende dar conta do processo mimético da realidade em poesia lírica desencadeia-se, no estudo de Auerbach aqui referenciado, pela contraposição entre o texto épico Odisséia, e o texto bíblico. O autor utiliza como exemplo a passagem em que Deus se dirige a Abraão, que responde: Hinne-ni! (Eis -me aqui). Comparada a Homero, que conforma o seu texto à noção clara de tempo e espaço, a narrativa bíblica deixa o leitor perplexo por omitir exatamente as referências mais precisas no texto homérico: tempo e espaço. Igualmente, a causa que instigou Deus a pôr Abraão à prova não fica evidenciada. Valer-se de uma explicação fundamentada na noção judaica de Deus, que desde de sua origem desértica não tinha um logos definido, segundo Auerbarch, é superficial demais. O que se propõe em seu estudo não é a realidade per si, mas a sua forma de representação (no caso, a compreensão judaica de Deus). Assim, por se tratar o 15 59 ele aquele assim o deseja, posição destacada por Octavio Paz: Na realidade, todo poema é coletivo. Em sua criação intervém, tanto ou mais ainda que a vontade ativa ou passiva do poeta, a própria linguagem de sua época, não como palavra já consumada, mas em formação: como um querer dizer da própria linguagem. Depois, queira ou não o poeta, a prova da existência de seu poema é o leitor ou ouvinte, verdadeiro depositário da obra, que, ao lê-la, recria -a e outorga-lhe sua significação final. (PAZ, 2005, p. 117) Não se pretende do leitor, apenas, a assimilação imediata de um mundo pronto, dado como real, que é o caso da epopéia, mas a sua inserção em um mundo ao qual ele, leitor, se submete, desenvolvendo as estruturas mais profundas desse universo que se lhe apresenta pelo texto literário. A subjetividade necessária à construção desse mundo de que a literatura nos faz partícipes ? proposta pelo autor e assumida pelo leitor, ainda que em planos e proporções distintas ? organiza-se tanto por elementos estéticos quanto por elaborações psíquicas em um processo de construção literária que solidificará a noção de poesia lírica. Carlos Drummond de Andrade serve a esse projeto pelo seu compromisso com o real tangível, ao ponto de seus poemas submeterem-se à concretude do mundo. Seus títulos e ve rsos propõem ao leitor a apreensão do real de forma inequívoca: são nomes de cidades e ruas, prédios, lojas, elementos factuais. Mas não se pode negar a interferência da subjetividade que, pela trama estética, planifica o real de maneira que o leitor compartilhe da idéia pelo processo analítico. texto de uma representação, uma maneira de ver a realidade dada, todas as referências a tempo e espaço aparecem de forma sugerida ao leitor (p. ex., “de manhã cedo” não possui uma “demarcação temporal”, mas um “significado moral”, pois estabelece a imediata obediência de Abraão a Deus; e “Jeruel, na terra de Moriá” não indica um limite espacial, visto não serem especificadas as fronteiras geográficas desse espaço). A comparação estabelecida é sintetizada assim pelo autor: no texto homérico, temos fenômenos acabados, definidos no tempo e no espaço, em um só plano, os sentimentos são expressos e os acontecimentos narrados lentamente e com pouca tensão; no texto bíblico, somente o que há de mais relevante é pontuado, tudo o mais depende da interpretação do leitor, que deve seguir as pistas de uma narrativa marcada por silêncios e discursos fragmentários. O que devemos salientar é que Auerbach estabelece um ponto de comparação entre os dois textos: ambos são igualmente antigos e épicos. Todavia, as considerações do autor levam-nos a três questões fundamentais para nossos estudos: a interpretação (propriedade do leitor); a interposição de um plano psíquico a um plano objetivo; e a simultaneidade e multiplicidade de sentimentos e paixões que se revezam no texto por processos de individualidade e coletividade, subjetividade e alteridade. E é por essas três vias as quais desenvolveremos neste capítulo que o exemplo bíblico utilizado por Auerbach se aproxima do nosso objeto de investigação, que é a poesia lírica. (AUERBACH, op. cit., 6-8) 60 Em sua obra de estréia, Alguma Poesia (1930), já percebemos a intenção autoral de conduzir o leitor pelo caminho da mimesis. No jogo de poemas int itulado “Lanterna Mágica” (PC, p. 10-13), os nomes dos lugares que o autor evoca prendem o leitor à realidade que se compõe como objeto: “Belo Horizonte”, “Sabará”, “Caeté”, “Itabira”, “São João Del-Rei”, “Nova Friburgo”, “Rio de Janeiro” e “Bahia”. O que se dá a conhecer dos locais investe-se da subjetividade do sujeito poético e do que por ele foi vivenciado: (...) Mas tudo é inexoravelmente colonial: bancos janelas fechaduras lampiões. O casario alastra-se na cacunda dos morros, rebanho dócil pastoreado por igrejas: a do Carmo ? que é toda de pedra, a Matriz ? que é toda de ouro. Sabará veste com orgulho seus andrajos... Faz muito bem, cidade teimosa! (...) (PC, p. 11) E somente pela subjetividade é dado conhecer o que não foi vivenciado: É preciso fazer um poema sobre a Bahia... Mas eu nunca fui lá. (ibid., p. 13) A máxima intervenção de subjetividade pode ser apreendida no poema “Cidadezinha Qualque r”, também de Alguma Poesia, no qual o sujeito reinterpreta a realidade objetivada, causando estranhamento no leitor, que, da mesma forma, pela interpretação que se vê obrigado a realizar, percebe que também ele, leitor, expressou-se subjetivamente na construção do poema. Seguindo a proposta de Umberto Eco, o resultado da leitura somente torna-se produt ivo na medida em que o leitor interpreta todos os códigos e ? aqui mais cuidadosamente ? as relações sintáticas e as pausas propostas pela pontuação: Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. 61 Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus. (ibid., p. 23) O leitor de Drummond deve ser partícipe de seu texto, porque o poeta identifica o verso em linguagem artificiosa, que estranha e inquieta, mas desafia e instiga. Sob esse aspecto, Álvaro Lins definiu a poesia de Carlos Drummond de Andrade como uma “linguagem mágica”, que “faz cada palavra encerrar um significado múltiplo e oscilante; faz, de cada palavra, um pequeno universo que se prolonga no leitor, que o obriga a se continuar nele, participando da experiência do conhecimento do poeta”. (LINS, 1963, p. 7) A interpretação subjetiva ? e não tratamos ainda de um processo exegético que reconstrua o texto literário ? possibilita novas realidades a partir do real elaborado pelo autor. Como tal, ela ressignifica o mundo, a vida, as relações humanas e os significados místicos (permitidos nesse novo processo de relação com a escritura) em um movimento contínuo e conflituoso que leva o leitor às camadas profundas do texto. Identificamos esse percurso poético com a teoria de Paul Ricouer apresentada em A Metáfora Viva: Esse dinamismo semântico, próprio à linguagem natural, confere à significância uma “historicidade”: novas possibilidades de significância são abertas, encontrando apoio nas significações já adquiridas. Essa “historic idade” é conduzida pelo esforço de expressão de um locutor que, querendo dizer uma nova experiência, procura na rede já fixada de significações um portador adequado de sua intenção. É então a instabilidade de significação que permite ao objetivo semântico encontrar o caminho de sua enunciação. Portanto, é sempre em uma enunciação particular ? que corresponde ao que Benveniste chama “instância de discurso” ? que a história sedimentada das significações mobilizadas pode ser retomada em um objetivo semântico novo. (RICOUER, 2000, p. 457) Assim é que o leitor submete-se a um esforço interpretativo duplo: primeiro, necessita construir as referências históricas que sustentam o texto; depois, refaz os signos à procura do 62 saber subjetivo que o poema exige para a interpretação. Na poética de Craveirinha, pelo contexto histórico de produção de seus textos, o leitor participa mais intensamente da construção da subjetividade literária a partir da interpretação que elabora. Entretanto, o jogo proposto pelo autor não é o da fixação das formas, mas o de mobilidade das significações. O autor oferece ao leitor o signo historicamente delimitado; mas, concomitantemente, propõe a instabilidade necessária à permanência do signo em outros campos semânticos, conduzidos pelo leitor, para além da historicidade subjacente ao texto. No poema “Segredo”, de Karingana ua karingana (1975), o que se revela não se contém no tempo e no espaço delimitados pela guerra colonial. O signo «noite» propõe uma compreensão de existência sem fronteiras, em que o mesmo segredo compartilha-se por muitas mentes: A noite estava escura escura e fechada até à beira do mar escura e fechada estava a noite. E os langues olhos dos dois encontraram no céu o Cruzeiro do Sul Xi-Ronga e uma poalha de estrelas cobriu confidências mundos de silê ncio o litúrgico frenesi dos dedos e o desejo ardente de não ser mais do que um. A noite estava escura e fechada à beira do mar. Mas o beijo dos dois no te mpo esquecido transformou a noite. (OP, p. 185) O tema da subjetividade desenvolve-se, ao longo do estudo de Auerbach, sob diversos aspectos e diferentes representações literárias. Em “Na Mansão de la Mole” (AUERBACH, 2004, p. 405-441), Auerbach faz uma análise da obra realista Madame Bovary de Flaubert. A passagem escolhida apresenta Emma Bovary profundamente insatisfeita com a vida que leva, a seu modo de ver, medíocre e aquém dos seus méritos. A mudança para uma pequena pro- 63 víncia, a adaptação à casa deselegante e a convivência com o marido desatento afetam seu estado de espírito, enchendo seus dias de tédio. Uma cena cotidiana introduz o leitor na percepção de Emma sobre a realidade que a cerca. Flaubert descreve minuciosamente o cenário (“pequena sala do andar térreo, com a estufa que fumegava, a porta que rangia, os muros que ressumavam, os pavimentos úmidos”) e todo ele tem uma direta correspondência com a subjetividade da personagem (“toda a amargura da existência parecia- lhe servida no seu prato e, com a fumaça do cozido, subiam do fundo de sua alma como que outras baforadas de enjôo”). A subjetividade presente no texto de Flaubert ainda não se dá no nível da autoconsciência crítica da personagem, como será corrente em textos posteriores. Há, porém, um avanço no sentido de construção da subjetividade, visto que o autor não expressa suas próprias opiniões, não comenta os fatos e os sentimentos, não emite juízos de valor. A linguagem utilizada no texto realista libera a personagem para sentir por si mesmo o mundo ao seu redor, e permite ao leitor conceber a personagem via sua própria interpretação. Consideramos que não somente o romance realista obedeceu ao estilo de sua época, como também seria inverossímil, do ponto de vista de um leitor contemporâneo, que uma mulher burguesa, casada, jovem e entediada do século XIX pudesse ter uma consciência precisa de sua responsabilidade no processo de construção da realidade que a submete e enfada. Auerbach contrapõe essa proposta com um texto do século XX, To the Lighthouse16 (ibid., p. 471-498) de Virginia Woolf, no qual a subjetividade se manifesta intensamente pela observação e inter-relação com as coisas cotidia nas, corriqueiras, aparentemente insignificantes. Os personagens do romance desenvolvem uma aguda percepção crítica de si mesmos e da 16 O romance To the Lighthause, de Virgina Woolf, foi publicado pela primeira vez em 1927. Trata-se de um texto que conta a história do casal Ramsay, sempre cercado de alguns amigos, e de seus oito filhos. Na passagem selecionada por Auerbach, Mrs. Ramsay havia prometido ao seu filho caçula James, de seis anos de idade, que velejariam, no dia seguinte, até o farol, caso fizesse bom tempo, quando então entregariam presentes aos moradores do local, entre os quais um par de meias marrom. Diante da convicção de Mr. Ramsay e de alguns convidados de que o tempo não seria propício à excursão, o menino mostra-se decepcionado e infeliz. Mrs Ramsay ainda confeccionava as meias, e as media nos pés de James que, revoltado com o prognóstico feito, não colaborava com a mãe. Durante esse breve momento, entre repreensões severas e tentativas de consolo, Mrs. Ramsay percebe a existência do mundo externo através de suas emoções, lembranças e pensamentos que divagam, colocando em relevo, esporadicamente, sons, imagens e idéias. (AUERBACH. op. cit ., p. 471 et seq.) 64 realidade que os cerca, e o leitor interpreta cada objeto, palavra ou gesto pelos princípios que regem sua moral, seus sentimentos e suas expectativas, os quais são apreendidos por quem lê diretamente do pensamento de cada um. O mundo exterior funciona como elemento deflagrador das camadas mais íntimas do ser. Vozes que se alternam distanciadas da cena principal, imagens sugeridas, uma lembrança insubmissa que se impõe ao estado mais racional compõem um quadro literário que permite ao leitor instruir-se sobre a subjetividade dos personagens. A profundidade subjetiva que se estabelece no texto é tal que, diz Auerbach, há momentos em que “nem mais parece que são seres humanos a falar, mas ‘espíritos entre o céu e a terra’, espíritos carentes de nome, que podem penetrar nas profundidades de um ser humano, sabem algo a seu respeito, mas não podem ter uma visão clara acerca do que lá acontece”. (ibid., p. 467) Não há, no texto, manifestações objetivas sobre os personagens; o autor apenas traça conjecturas incapazes de responder a alguns enigmas. O que destacamos, para além da proposta de elaboração de uma mimesis da realidade através da subjetividade da personagem de um romance, é o jogo interpretativo que se estabelece tanto nos textos do século XIX quanto nos do século XX. Nos romances realistas, o autor constrói a realidade perceptível através da personagem, revelando, na sua concepção do mundo, os sentimentos e as emoções que planeiam a sua subjetividade. Isento, o escritor procura apenas trazer para a impressão do leitor o que o mundo externo provoca na personagem. É a interpretação do leitor que atuará sobre a construção da subjetividade. Em relação aos textos do século XX, nos quais, por um processo histórico que investigaremos mais amiúde no próximo capítulo, a autoconsciência das personagens direciona a leitura, a interpretação entra em cena para ativar um exercício de autofagia pelo qual cada personagem vai desvendando-se lenta, minuciosa e ininterruptamente frente a si mesmo, ao escritor e ao leitor. Para melhor compreendermos a interpretação de uma realidade construída pela subje- 65 tividade, extraímos dos dois textos referenciados passagens que nos indiquem claramente essa dimensão de análise. No texto de Flaubert, vemos que a realidade exterior surge como um todo absoluto que impõe à personagem uma vida de tédio. O mundo, alheio às suas necessidades, faz de Emma Bovary uma mulher infeliz, e suas sensações são reflexos dos elementos externos que sobre ela atuam. Portanto, sua subjetividade constrói-se a partir de uma realidade que ela abomina, mas que a submete: Mais c’était surtout aux heures dês repas qu’elle n’em pouvait plus...17 (ibid., p. 432) Há uma realidade indissociável de sua existência contra a qual ela não reage, e que a domina, determinando sua subjetividade. Inversamente, no romance de Virginia Woolf, a realidade que se constrói é derivada da subjetividade expansionista de cada personagem, que atua sobre os fatores externos, modificando sua concretude, delegando-os insuspeitadas existências: Her simplicity fathomed what clever people falsified. Her singleness of mind made her drop plumb like a stone, alight exact as a bird, gave her, naturally, this swoop and fall of the spirit upon truth which delighted, eased, sustained – falsely perhaps. 18 (ibid., p. 473) Essa dupla e reversa proposta de construção textual impele- nos a uma discussão mais aprofundada sobre a elaboração da subjetividade no texto literário, considerando a função do leitor no movimento de criação da realidade. Ao lermos atentamente os poemas de José Craveirinha, percebemos que, em seus primeiros textos, o discurso elaborado situa a realidade no primeiro plano de recepção do leitor. Dessa forma, a subjetividade, não aparente na superfície do texto, vai sendo construída a cada verso pela expressão da difícil realidade que submete o sujeito poético. O leitor compreende a mensagem: o homem está submetido a fatores externos que o massacram, porque exógenos à 17 “Mas era sobretudo às horas de refeição que ela não agüentava mais...” . “A sua simp licidade sondava o que as pessoas inteligentes falsificavam. A singularidade da sua mente fazia -a cair no prumo como uma pedra, iluminada exatamente como um pássaro, dava-lhe, naturalmente, esta queda do espírito sobre a verdade que deleitava, aliviava, sustentava – falsamente, talvez”. 18 66 sua cultura. Em “Civilização”, poema de Karingana ua Karingana, o leitor percebe claramente que o enunciador investiga a realidade que o cerca, considerando que os elementos de que ela se compõe atuam sobre o homem ? neste caso, não apenas africano — de forma negativa. Duas épocas distintas da História da humanidade são aproximadas sob um único código ? “civilização”. O que oprimia o homem no passado reconfigura-se no presente: Antigamente (antes de Jesus Cristo) os homens erguiam estádios e templos e morriam na arena como cães. Agora... Também já constroem Cadilacs. (OP, p. 76) Um outro movimento de concepção da realidade identificado por Auerbach ? quando o concreto sofre a ação da subjetividade ? pode ser depreendido no poema “Suelito”, da mesma obra de Craveirinha. Apenas duas estrofes apresentam uma realidade imposta ao homem africano. A utilização do signo «lobo», associado à ciência, e do signo «esqueletos», associado ao cristianismo, determina a presença, na vida de Moçambique, de elementos impostos pela colonização. Os signos destacados, em outro contexto, indicariam possibilidades semânticas diversas, mas no poema revelam a subjetividade do discursador atuando sobre o real, alterando-lhe as propriedades: No laboratório o lobo dirige a radioactividade e concentra o cobalto. Na igreja pequenos esqueletos juntam no catecismo os metacarpos e rezam. (ibid., p. 77) Além da dolorosa realidade imposta pela colonização e pela guerra de libertação, o mundo circundante atua sobre o sujeito para representar o compromisso com a África que precisa reagir ao processo de aculturação estabelecido como projeto político salazarista. Os 67 elementos naturais dão cor ao homem africano, que desse modo constrói sua subjetividade. Destacamos, para estabelecer a compreensão teórica, versos do poema “Manifesto”: (...) Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes Eu caçador de leopardos traiçoeiros Eu xiguilo no batuque E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti Eu-cidadão dos espíritos das luas carregadas de anátemas de Moçambique. (ibid., p. 34) Proposta diversa é apresentada por Carlos Drummond de Andrade. É certo que vários de seus poemas organizam o mesmo processo de construção textual que destacamos em Craverinha. Mas chama atenção o fato de que, já em 1930, em seu livro de estréia, Alguma Poesia, e no primeiro texto apresentado ao leitor, “Poema de Sete Faces”, as duas possibilidades de representação da subjetividade do texto indicadas por Auerbach alternam-se, marcando uma estrutura sintática em que cada estrofe torna-se independente da anterior. Inicialmente, o sujeito poético apresenta ao leitor com que disposição emocional e psicológica irá estabelecer-se o compreender da existência: Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. (PC, p. 5) As imagens do mundo externo são avassaladoras, e o real concreto constrói a possível subjetividade apreendida pelo leitor. Casas são vigilantes de um comportamento masculino lascivo; o bigode determina a virilidade do homem: As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. 68 O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do big ode. (...) (ibid.) Mais adiante, a subjetividade se estabelece inequivocamente, independente da decodificação proposta pelo leitor, pois altera substancialmente as significações anteriormente formalizadas ao introduzir novos contextos, o que levou o crítico Gilberto Mendonça Teles, a propósito do mesmo texto, a declarar que “dentro de cada poema as estrofes, às vezes os ve rsos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inteligência, as quedas de timidez se interseccionam aos pinchos”: (ibid., p. XLIV) (...) Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, Se eu me chamasse Ra imundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. (...) (ibid., p. 5) Tão intenso torna-se o exercício de subjetividade, que o sujeito poético descortina, frente ao leitor, uma relação eu-tu de intimidade e inconfidência: (...) Eu não te devia dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. (ibid.) Essa dinâmica que contrapõe subjetividade e mundo tangível e, ao mesmo tempo, relaciona o sujeito à realidade exterior de que participa realiza-se apenas se o leitor atuar decis i- 69 vamente no processo de construção do texto. Se as personagens Madame Bovary e Mrs. Ra msay tornaram-se exemplos lapidares do processo de construção da subjetividade na literatura realista, os poemas elaborados por Drummond e por Craveirinha exigem que o leitor identifique os elementos constitutivos dos versos para associá-los devidamente ao sujeito que se anuncia, não esboçado na superfície do texto, mas evocado e constituído no ato de leitura. 3.4 A imitação da realidade por uma concepção estética e estilística O objeto estético é uma criação que inclui em si o criador: nela o criador se encontra e sente intensamente a sua atividade criativa, ou ao contrário: é a criação tal qual aparece aos olhos do próprio criador, que a cria com amor e liberdade (é verdade que não é uma criação a partir do nada, ela pressupõe a realidade do conhecimento e do ato, que ela apenas transfigura e formaliza). Mikhail Bakhtin A mimesis da realidade atendeu a estilos literários de acordo com a época de produção dos textos. Como já destacado antes, na Antigüidade, a vida cotidiana, com seus personagens e seus fatos corriqueiros, só tinha representação no texto cômico, apoiado em uma linguagem de estilo “baixo”, cuja intenção era agradar a um leitor que olhava de cima para essa realidade representada, pois a ela não pertencia. Mas a linguagem também promove uma modificação no estilo de imitação da realidade. Na tentativa de contrastar a realidade comum, portanto cômica, com a realidade sublime, o escritor tem de buscar um estilo que possa dar conta dos conteúdos apreendidos em seu texto e da estilística elevada. Assim o estilo, não obstante pre- 70 cisar manter a distinção entre as classes sociais ? a representada e aquela a quem se destina o texto ? deve adaptar-se ao conteúdo, ficando a sintaxe e o vocabulário em desarmonia, “sobrecarregados e crus, oprimidos contraditoriamente pelo sombrio realismo do conteúdo e pela intenção estilística distinta e irrealista”. (AUERBACH, 2004, p. 48-9) O que decorre disso é uma mistura da retórica intentada como arte e a descrição de um realismo deformado por uma linguagem maneirista, que transfigura a realidade, transitando entre o fantasmagórico e o ho rripilante, o grotesco e a parvo íce. 19 A interpretação da realidade pode construir uma realidade per si, isolada dos padrões sociais pertinentes às camadas populares. É o caso da literatura cortês, plena de formas exteriores que dão conta de um cotidiano afável, elegante e grácil, representativos de hábitos contemporâneos de uma sociedade cortesã que privilegia os interesses feudais, como se tais hábitos fossem toda a realidade existente. O amor surge aí como uma prática que tenciona proporcionar prazer e leveza à existência. Todavia, a literatura cortês, por ter um estilo que se conforma facilmente aos conteúdos da realidade, mas sem abdicar dos ideais cavaleirescos, foi menos aproveitada como referência à construção da literatura realista. Mesmo quando os ideais corteses aproximaram-se de uma cultura de caráter mais urbano, o texto literário cortês não se aproximou dessa nova realidade; antes, manteve-se distante da realidade observável, aprofundando na estética a sua visão de mundo, transpondo para a linguagem a inócua experiência de um ethos cada vez menos reconhecido pela sociedade. Inclui-se, nesse processo, o celebrado amor cortês, presente na historiografia literária, mas que não serviu de modelo à literatura realista. A literatura cortês, segundo Julia Kristeva, “foi uma invenção miraculosa do século XII que pela primeira vez impõe maciçamente ao mundo o fin amor, essa perfeição 19 Cabe, aqui, voltarmos ao advento do cristianismo e à escrita dele decorrente. A tradição da escritura cristã valeu-se de um estilo elevado para contar a história de um rei de classe social baixa. Marca-se, dessa forma, o fim da separação dos estilos: “Todos os acontecimentos da História Universal estão contidos fundamentalmente neste grande drama [a vida de Cristo], e todas as posições de altura ou baixeza de comportamento humano, assim como todos os níveis da sua manifestação estilística, têm no seu seio a sua justificativa moral e estética de existência, justificativa bem fundamentada. De tal forma, não há motivo para uma separação entre o sublime e o baixo -quotidiano, os quais já aparecem na vida de Cristo unidos de maneira indissolúvel.” (AUERBACH. op. cit, p. 137-138) 71 depurada, tão alegre quanto ideal, de que guardamos ainda a nostalgia pós-romântica”. (KRISTEVA, 1988, p. 313) Auerbach conclui que “a cultura cortesã foi decididamente desfavorável para o desenvolvimento de uma arte literária que abarcasse a realidade em toda sua amplidão e profund idade”. (AUERBACH, 2004, p. 123) A realidade como estilo e estética, submissa a uma interpretação criativa do autor e do leitor, teve sua máxima representação, na visão de Auerbach, na obra Comédia, de Dante. Nesse texto aparecem todos os recursos de imitação que o engenho de Dante foi capaz de projetar: conceitos cosmológicos, éticos e políticos; passado e presente; sublimidade e vulgaridade; história e lenda; tragédia e comédia; homem e paisagem; e, ainda, a história da salvação da humanidade. (ibid., p. 164) Tudo isso se constrói no plano de uma concepção estética que determina a imitação da realidade pela “experiência sensível da vida terrena” (ibid., p. 166), qualidade inerente ao processo de mimesis da realidade, da qual o escritor não pode prescindir, pois que incorreria no erro fatal de afastar-se em demasia do devir humano associado a um processo histórico representado pela arte literária. Alfredo Bosi afirma que “o convívio do saber sensível e idealização formal altera, sob um novo aspecto, a noção de mímesis, deixando aflorar uma outra tendência antropológica do homo faber: a estilização”. (BOSI, 1991, p. 31) Considerando que a mimesis não se dá pelos mesmos artifícios e nem com os mesmos objetivos, é preciso ter em mente que ela não é um processo semelhante nas suas diversas manifestações. “Conhecer quem mimetiza, como, onde e quando, não é uma informação externa, mas inerente ao discurso sobre o realismo na arte”. (ibid.) Destacamos, porém, que a noção de mimesis que, pela estética, levou a um realismo sublimado, encontra na literatura realista moderna o seu processo inverso. O que ocorre no texto realista é a dessublimação das formas, cabendo à estilização e à estética propor um conhecimento de mundo que refreie a exaltação dessas formas. 72 Estilo e estética têm como instrumento de sua realização, primordialmente, a língua utilizada pelos escritores. O latim vulgar era aquele com o qual se apreendia o real cotidiano. Exatamente por isso os textos confrontavam-se com a impossibilidade de utilização de um estilo mais elevado e a necessidade cada vez mais iminente de expressar a realidade. Auerbach aponta o clérigo Gregório como precursor de uma estética que irá possibilitar uma imitação mais aproximada do real cotidiano, pelo seu interesse particular em investigar o que de fato impressiona o homem do povo. O clérigo permite que as deliberações sobre os fatos concretos da vida construam-se através do discurso direto, autorizando seus personagens a relatar o mundo apreensível; além disso, recorre à visualidade das cenas como estética a serviço da imitação da realidade. O bispo Gregório ocupa-se de narrar os acontecimentos de sua época, relacionados a traições e violências de toda ordem, e isso faz com que sua retórica aproximese ainda mais do “real- material”, muito embora haja, no autor, uma aspiração a um estilo mais elevado. Entretanto, é através do latim vulgar que a realidade se apresenta e, dessa forma, se presentifica no texto de Gregório. 20 Houve, então, um avanço no fazer literário, estética e estilisticamente, através do latim vulgar que passou a ser utilizado, sobretudo na poesia, como recurso que permitiu a presença mais legitimada de uma vida real, estreitada nos limites impostos pelas ordens sociais, mas que foi reinventada com vigor a partir do momento em que a imitação aproxima-se, pela linguagem, mais individualmente do ser humano. A parataxe, recurso estilístico destacado por Auerbach como dos mais importantes no desenvolvimento de uma retórica mimética, deixa de ser um enfileiramento de caracteres para assumir a forma de laisse, cuja displicência aparente na disposição das qualidades reais aproxima-se mais amiúde da vida real. Explicitamos melhor citando Auerbach: 20 “Sicário e Cramnesindo”. In: AUERBACH. op. cit., p. 67-82, passim. Esse capítulo refere-se a um estudo da obra História dos Francos de Gregório de Tours. A história versa sobre um período de extrema violência deflagrada na cidade francesa de Tours, em que os personagens Sicário e Cramnesindo protagonizam uma cena de vingança com assassinatos e saques. 73 Somente a poesia em língua vulgar (...) fez salientar os quadros isolados, de maneira que as personagens ganharam plenitude humana e vida, vida que está, evidentemente, limitada pela rigidez e estreiteza das categorias, que permanecem inalteráveis e que pode ser também facilmente interrompida pela falta de movimento progressivo e que, porém, justamente pela oposição que lhe oferece a moldura das rígidas categorias, ganha em efetividade e poder. Somente os poetas da língua vulgar viram o homem como ser humano e encontraram a forma na qual a parataxe possui força poética. Em lugar de um frágil e monótono gotejar de justaposições, agora surge a forma da laisse, que avança e retrocede aos trancos, cria em toda parte arrancadas enérgicas, e se constitui num novo estilo elevado. Se a vida, tangível nas suas obras é, também, estreitamente limitada e sem multiplicidade, ainda assim é uma vida plena, humanamente movimentada e vigorosa, uma liberação do estilo pálido e intangível da lenda da tardia Antiguidade. Os poetas da língua vulgar também souberam valorizar o discurso direto como tom e como gesto. (AUERBACH, 2004, p. 102) Paralelamente à teoria da mimesis no texto lírico, desenvolve-se uma composição teórica mais técnica, apoiada no estudo da linguagem utilizada na poesia. Um novo percurso analítico estabelece-se então, evidenciando na poesia a seleção das palavras e a sintaxe organizada literariamente, o que aprimoraria a imitação dos estados de ânimo (paixões). Não se trata mais de esperar a verdade das ações humanas, mas a verossimilhança dos elementos, cuja apropriação se dá pela estética, fator endógeno e universalizante da poesia. Apropriando-se de uma noção estética que viesse a nortear a poesia ? o que só é possível por uma visão científica da arte ? , o escritor e o leitor devem ter em mente que a “imitação” da vida não se limita mais à experiência particularmente e essencialmente vivida. Todo o material que a vida, o mundo e a existência humana têm a oferecer passa agora por um tratamento literário que compreende todos os aspectos da cultura de que se nutre o texto poético. A produção de um texto poético, e sua apreensão pela leitura, agora, devem servir-se de vários domínios do saber. Recorremos a Bakhtin, em antecipação aos estudos que empreenderemos mais adia nte, a fim de consolidar esta tese: Realmente, o estético, de certo modo, encontra-se na própria obra de arte, o filósofo não o inventa, mas para compreender cientificamente a sua singularidade, a sua relação com o ético e o cognitivo, seu lugar no todo da cultura humana, e, enfim, os limites de sua aplicação, necessita-se da filosofia sis- 74 temática com os seus métodos. O conceito de estético não pode ser extraído da obra de arte pela via intuitiva ou empírica: ele será ingênuo, subjetivo e instável; para se definir de forma precisa e segura esse conceito, há necessidade de uma definição recíproca com os outros domínios, na unidade da cultura humana. (BAKHTIN, 1998, p. 16) Na literatura moderna, é possível que pessoas e histórias comuns a um estrato social mais popular tenham tratamento literário sério ou mesmo trágico. E isso se deve, segundo Auerbach, a um reconhecimento das forças históricas que movimentam a realidade, as quais somente são identificáveis, nos textos antigos, por um estudo atemporal, já que não existia, na Antigüidade, uma preocupação com o desenvolvimento social e com a historiografia das idéias. A literatura desenvolve-se no sentido de comprometer-se com a sociedade, reve lando-a tanto sob a subjetividade das figuras que são colocadas em evidência no texto, quanto sob uma subjetividade autoral. E, neste segundo aspecto, a estética inscreve a subjetividade do autor no texto, sendo o leitor partícipe do processo. Ainda Bakhtin: A particularidade principal do estético, que o diferencia nitidamente do conhecimento e do ato, é o seu caráter receptivo e positivamente acolhedor: a realidade, preexistente ao ato, identificada e avaliada pelo comportamento, entra na obra (mais precisamente, no objeto estético) e torna-se então um elemento constitutivo indispensável. Nesse sentido, podemos dizer: de fato, a vida não se encontra só fora da arte, mas também nela, no seu interior, em toda plenitude do seu peso axiológico: social, político, cognitivo ou outro que seja. A arte é rica, ela não é seca nem especializada; o artista é um especialista só como artesão, isto é, só em relação ao material. (ibid., p. 33) Aspectos sociais tornam-se flagrantes no texto literário realista, corrompendo a noção de belo. Além disso, há um processo de engajamento que não pode ser negado, considerandose o próprio caráter da arte realista: Quanto ao realismo do século XX, afim com uma ciência mais complexa e mais perplexa que a positivista, não se contenta em reproduzir os temas e as técnicas do verismo do século XIX. Propõe-se uma tarefa ousada: construir obras que possam atravessar os reflexos da vida presente para se constituírem em projeto de uma realidade futura. Uma arte verdadeira e revolucionária a um só tempo. Uma arte que produza a imagem densa e dramática de uma Humanidade em mudança, carente, dominada, mas rebelde. Uma arte na qual a consciência mais lúcida do universal penetre a representação mais viva de cada partic ular. (BOSI, 1991, p. 47) 75 Diante dessa nova proposta, o escritor investe-se de uma noção de estética que não se nivela nas formas consagradas do belo. A arte moderna, realista, reconfigura a estética para submetê- la às imagens que lhe são apresentadas. A mimesis não atende mais a uma interpretação objetiva, mas a uma interpretação subjetiva da realidade. Na evolução do conceito, diz Antoine Compagnon, a teoria literária entra em conflito com a ideologia da mimesis, visto que a primeira concebe “o realismo não como um ‘reflexo’ da realidade, mas como um discurso que tem suas regras e convenções, como um código nem mais natural nem mais verdadeiro que os outros”. (COMPAGNON, 1999, p. 107) Confrontar o leitor com a realidade ? às vezes considerada mínima dentro do processo artístico por seu caráter figurativo em que se presume m como elementos fundamentais os conteúdos exemplares como o heroísmo, o amor sublime e a religiosidade — torna-se a proposta literária dos escritores do século XIX. Tal proposta intensifica-se no século XX, a partir do momento em que entra na cena literária o texto revolucionário, e a mimesis adquire função social. Nessa nova perspectiva, ? pela qual a estética serve ao real e amplia o fazer literário? , não podemos deixar de lembrar os personagens que circulam na poesia drummondiana: o pai que vai a cavalo para o campo, enquanto a “mãe ficava sentada cosendo” e o “irmão pequeno dormia”, imagens retidas pela mente da criança em “Infância”, de Alguma Poesia. A descrição da realidade, em sintaxe mínima, contrasta com o mundo da leitura em que está imerso o menino. O retorno ao passado mantém na memória do sujeito poético o mundo subjetivo. Somente em outro tempo, distante do tempo da infância, o sujeito poético percebe o mundo real que o circundava, ao qual a sua fantasia não lhe permitia acesso. E que agora relembra, em memória subjetivo-afetiva : Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais. 76 (...) E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé. (PC, p. 6) E, com mais destaque, surge o homem simples elevado à condição de objeto e sujeito do texto, como o próprio Carlos, ser configurado pela cotidianidade: NÃO SE MATE Carlos, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será. (...) O amor, Carlos, você telúrico, a noite passou em você, e os recalques se sublimando, lá dentro um barulho in efável, rezas, vitrolas, santos que se persignam, anúncios do melhor sabão, barulho que ninguém sabe de quê, pra quê. (...) (ibid., p. 57-8) A realidade na arte nutre-se de um valor estético que só o artista é capaz de lhe conceder a partir dos valores que se lhe impõem quando avista e perscruta o objeto de sua arte. Considera-se, dessa forma, que a estética é um elemento fundamental na compreensão do poema: Somente na obra de arte, na medida em que a mesma se defina e se imponha como tal, inverte-se a relação dos valores. Os valores estéticos, mesmo não se tornando totalmente autônomos, passam a ser critério decisivo para a avaliação do objeto (ou ato, ação, movimento etc.), ao passo que os outros valores21 se tornam agora acessórios ou se revestem de função serviçal. (RO21 Rosenfeld refere-se a outros valores por ele analisados que se relacionam com a arte. São eles: os valores de utilidade (que servem de meio para realização dos outros valores); os valores hedonísticos (relativos ao prazer); os valores vitais (saúde, força, viço,vigor e juventude); os valores morais (intenções ou atos de pessoas reais, e que se opõem diretamente aos valores estéticos); os valores científicos (verdade, objetividade, correção lógica etc.); os valores religiosos (o valor do sagrado em particular). (ROSENFELD, 2000, p. 241-248) 77 SENFELD, 2000, p. 255) A realidade concebida pela proposta estética do poeta, em que as imagens da vida cotidiana são recriadas por recursos de escrita que redimensionam a existência, ganha novas cores e formas na poesia de José Craveirinha. Salvato Trigo ressalta, em prefácio à obra A Poética de José Craveirinha de Ana Mafalda Leite, que o poeta, “mesmo nas fases de mais agrilhoada reivindicação, soube sempre procurar o equilíbrio entre o estético e o social, numa manifestação clara de que nele existe conscientemente uma política da poética a suplantar-se a uma poética da política”. (LEITE, 1991, p. 8) O real pode ser a guerra e, decorrentes dela, a fome, a dor e a morte, razão pela qual o mundo que o sujeito poético enxerga precisa ser reconstituído antes que o leitor dele se aposse e perceba que, por vezes, a escritura inverte a propriedade do real: GUERRA Aos que f icam resta o recurso de se vestirem de luto ............................................. Ah, cidades! Favos de pedra macios amortecedores de bombas.(OP, p. 67) A visão do poeta, a partir do sujeito do poema, de suas experiências e vivências ? ainda que nele não se transforme ? indicará novos caminhos a serem trilhados pela literatura realista, para além dos processos de conhecimento e rebeldia textual. O verso recria a realidade por meio dos recursos estéticos que o artista elabora através de seu engenho. 78 3.5 - Literatura social: uma nova perspectiva do realismo É uma náusea a manifesta piedade e cobarde a inteligência se não interpreta a realidade. José Craveirinha A literatura atende, sempre, ao contexto em que se insere, delineando-se pelas marcas sociais, históricas e estilísticas que predominam em determinada época. Sendo assim, a literatura realista seguiu a trilha da literatura social. Necessário se torna, então, compreender os caminhos trilhados pelos autores até que chegássemos às propostas literárias de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha. Para tanto, optamos por traçar um breve panorama da literatura realista a partir dos estudos da obra de Auerbach, o qual aponta uma alteração na estrutura social como de fundamental importância pra a transformação da literatura, que de reflexo de uma casta elevada passa a investigar mais a realidade, procurando uma mimesis mais perfeita dos fatos sociais. Trata-se do surgimento da classe burguesa que, a partir do século XIV, muito embora ainda mantivesse costumes ligados ao feudalismo, passou a desenvolver, por influência de um humanismo nascente, uma visão de mundo mais fundamentada em características pessoais. Essa nova forma, mais “realista”, de estar no mundo consolidou-se com a conquista do saber, tradicionalmente consagrada apenas ao alto clero. Uma das mais importantes transformações destacadas por Auerbach é a linguagem: A linguagem, que recentemente ainda era frágil e desajeitada, tornou-se maleável, rica, matizada e florescente, e colocou-se a serviço das necessidades da vida social, escolhida e preenchida de elegante sensualidade; a literatura social obteve o que até então nunca possuíra: um mundo real presente. (AUERBACH, 2004, p. 190) Apesar desse movimento progressivo da literatura, não temos ainda, nos primeiros sinais de humanismo presentes, uma visão construtiva da realidade. Volta-se, um pouco, ao 79 estilo médio do fazer literário, que não dá conta da problematização dos acontecimentos reais, a não ser pela via do erotismo, como o fez Boccaccio em seu Decameron, mas no qual se manteve aquém de um aprofundamento humano pertinente à problemática erótica. (ibid., p. 198-9) Não obstante todas as dificuldades enfrentadas pelos escritores a partir do fim da Idade Média, quando já se faziam notar nos saberes que se desenvolviam as propostas humanistas que iriam desembocar no Renascimento, a classe burguesa ofereceu à literatura os meios para a construção de uma mimesis da realidade mais solidificada 22 . A intimidade do cotidiano, ainda que fosse comum também ao principado e ao feudalismo, nunca se havia mostrado tão intimamente e com tanta diversificação de matizes. Além disso, os conceitos de individualidade, sofrimento e mortalidade 23 , apresentados ao espírito humano pela Paixão de Cristo, tornam-se essenciais para o realismo que servirá de base para a sociedade vindoura. A visualidade realista promovida pelas encenações da Paixão de Cristo, comuns no mundo medieval, recai muito mais substancialmente sobre a parte terrena do fenômeno, tornando ilimitados os temas explorados pela arte realista (ibid., p. 217-226). Dessa forma, concluímos, a sociedade de fins da Idade Média precisou redescobrir uma realidade que se coadunasse mais com a prática existencial, abandonando, se não totalmente, ma s significativa22 Antoine Compagnon questiona o valor de se discutir a mimesis como vetor da literatura realista. Trata-se, segundo o autor, de um processo pelo qual a “pretensa imitação da realidade” favorece o objeto imitado frente ao objeto imitante. Considera ele que existia uma inocência relativa à mimesis, como no marxismo de Georg Lukács, que não é mais possível no século XX. Hoje, é preciso considerar que “recusar o interesse pelas relações entre literatura e realidade, ou tratá-las como uma convenção, é, pois, de alguma maneira, adotar uma posição ideológica, antiburguesa e anticapitalista. Mais uma vez a ideologia burguesa é identificada a uma ilusão lingüística: pensar que a linguagem pode copiar o real, que a literatura pode representá-lo fielmente, como um espelho ou uma janela sobre o mundo, segundo as imagens convencionais do romance”. COMPAGNON. O Demônio da Teoria – literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 106-107. Neste ponto, consideramos ser oportuno esclarecer que o veículo motor de nosso trabalho não é o de uma compreensão de teorias ou críticas literárias que engendrem uma discussão acerca da validade deste ou aquele modelo, conceito ou quaisquer parâmetros que estabeleçam pressupostos teóricos fundamentais da literatura. O que buscamos, com nossa pesquisa, é, antes de tudo, compreender o sujeito que se intenta nos fazeres literários, considerando a origem, o suposto apagamento, o ressurgimento e a permanência de sua constituição. Não enquadramos nosso trabalho na discussão de propostas idealistas sobre o fazer literário, embora não seja nosso propósito ignorar completamente a discussão projetada. Por ora, apenas optamos por não pôr em relevo o que se deve validar ou não como pressuposto teórico. 23 Tais conceitos são denominados, por Auerbach, como realismo “criatural” (neologismo que em alemão chama-se kreatürliches), o que expressa o sofrimento a que o homem é submetido como criatura mortal. (AUERBACH. op. cit., p. 215) 80 mente, a primazia da teoria cristã de humanidade, cuja representação dramática efetiva-se no quadro místico da salvação eterna. Esse redimensionamento do ser e do existir será pragmaticamente absorvido pela cultura e determinará as nuances da literatura social. Prosseguindo na trilha da construção dos textos realistas, evidenciamos o conceito de realismo criatural, o qual se ilustra mais vivamente com Shakespeare. Seus personagens apresentam-se corporeamente, sentem fome e frio, ficam bêbados ou loucos e se repugnam com sensações desagradáveis, e a vida apresenta-se concretamente. Todavia, dentro da mesma proposta de imitação da realidade, Shakespeare destina o trágico e o sublime apenas a personagens de um estrato social mais elevado, pois é assim que entende a vida, com suas normas que diferenciam os homens, ainda que seus elementos, em conjunto, representem um todo de tragédia (ibid., p. 279-280). Por essa evidência, compreendemos que a tragédia shakesperiana infunde-se de uma noção de realidade que foge à tradição cristã de igualdade humana pela marca trágica da mortalidade e pela possível ascensão ao plano divino, e aproxima-se das disposições que regem a sociedade, com suas divisões de classe e sua inclinação para a mediocridade e o amesquinhamento dos gestos mais nobres, que resvalam, invariavelmente, para a obtusidade ou para a alienação (ainda que desses gestos se faça a tragédia). O que se destaca na compreensão da formação de uma literatura social é a perspectiva histórica que o humanismo ofereceu à arte nos últimos anos da Idade Média, promovendo uma comparação dessa época com a Antigüidade, compreendida então como paradigma. Acresce-se a isso o fato de que, a partir do século XVI, descortinou-se um mundo novo para o homem, com uma amplitude cultural e geográfica jamais vista, além de importantes transfo rmações sociais demarcarem mais profundamente as relações sociais, como a dissidência religiosa que permitiu aos homens serem os protagonistas de sua própria condição humana, arbitrando, mesmo que equivocadamente em diversas ocasiões, sobre os rumos que deveria traçar para o seu destino. 81 A literatura, então, segue por uma vereda que leva o leitor à investigação mais problematizada da existência real, cotidiana, indissolúvel nas elevações espirituais inerentes tanto ao classicismo quanto ao cristianismo ? pois aqui se fundem as duas ideologias, no sentido de atribuir ao ser humano de uma sublimidade desejável ? fossem por que vias isso pudesse ser alcançado, ou, pelo menos, sonhado. O texto literário investe-se, a partir do Renascimento, da autoridade de diligenciar minuciosamente o ser humano, sua essência e seu antropomo rfismo negado ao longo de sua história. Partindo da compreensão de si mesmo, o homem passa a interessar-se mais amiúde pelas condições históricas, geográficas e temporais que determinam a sua existência. Já no século XIX, a literatura foi marcada inexoravelmente por uma realidade de cores locais, fragmentada e limitada, sem que fossem desenvolvidas idéias mais amplas sobre a sociedade e a condição humana, pois que todos os temas permaneciam em busca de um equilíbrio entre as formas de vida existentes e as aspirações espirituais de pequenos grupos representativos da sociedade, o que só poderia realizar-se no âmbito de uma individuação da noção de realidade. Esse é um processo compreendido por Benedito Nunes como uma reação ao fato de estar o homem diante de um contexto social que o oprime: A estrutura social emergente dessas mudanças [sociais] não oferecerá ao processo de individualização condutos abertos para a vida coletiva. Tornada menos móvel e mais estranha, como um mecanismo alheio à consciê ncia, atrofiando a individualização à falta de reajustamentos internos, a vida coletiva contribuirá para a “alienação, a introjeção, a subjetividade e a introversão das energias sublimadoras”. (GUINSBURG, 1993, p. 55) Uma visão mais ampla da realidade se fará presente na obra de Stendhal24 O Vermelho 24 Auerbach apresenta ao leitor uma pequena biografia de Stendhal, a qual é relevante reproduzir. O escritor foi um homem da administração napoleônica e desfrutou, até os trinta e dois anos de idade, de toda a influência que o cargo lhe permitia e do mundo elegante francês. Após a queda de Napoleão, perde muito do status social adquirido. Auerbach deixa claro a necessidade de envolver o autor de uma obra no processo de escritura realista ao qual se destina. No caso de Stendhal, a pobreza e o ostracismo fizeram com que ele adquirisse consciência do mundo que o cercava: “a literatura realista de Stendhal brotou do seu mal-estar no mundo pós-napoleônico, as- 82 e o Negro (1830), pois toda a mediocridade e enfado dos personagens não advêm exclusivamente da estúpida condição humana, mas são causados, sobretudo, por fatores externos da época da Restauração. Abre-se, assim, uma nova perspectiva de literatura social e do processo de imitação da realidade, no sentido de que os personagens são delineados muito mais pelas pressões externas sofridas do que por uma marca individual de sua personalidade, ou ainda, como ocorria na Idade Média, por uma mística que o levasse à salvação ou à purgação eterna. Stendhal se dispôs a conhecer plenamente o homem de sua época e os acontecimentos históricos e sociais que intentaram no povo uma consciência moral e política que traçaria o perfil do homem moderno. Conclui Auerbach: Todas as figuras humanas e todos os acontecimentos humanos apresentamse, na sua obra, sobre uma base política e socialmente movimentada. (...) Na medida em que o realismo moderno sério não pode representar o homem a não ser engastado numa realidade político-sócio-econômica de conjunto concreta e em constante evolução ? como ocorre agora com qualquer romance ou filme ? , Stendhal é o seu fundador. (AUERBACH, 2004, p. 413) A literatura de Stendhal refletiu-se não apenas em matizes espirituais, mas num todo corpóreo coletivo que viria a justificar a literatura social. O mesmo se pode dizer do autor aliado à corrente romântica 25 Balzac, apontado por Auerbach como “sendo, ao lado de Stendhal, o “criador do realismo moderno”. (ibid., p. 419) Balzac foi mais além, entretanto: Ele não somente localizou os seres cujo destino contava seriamente, na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada, como fazia Stendhal, mas também considerou essa relação como necessária: todo espaço vital torna-se para ele uma atmosfera moral e física, cuja paisagem, habitação, móveis, acessórios, vestuário, corpo, caráter, trato, ideologia, atividade e destino permeiam o ser humano, ao mesmo tempo que a situação histórica geral aparece, novamente, como atmosfera que abrange todos os espaços vitais individuais. (ibid., p. 423) sim como da consciência de não pertencer ao mesmo e de não ter nele um lugar certo”. (AUERBACH. op. cit., p. 411.) 25 Auerbach atribui à corrente romântica, com sua característica de misturar estilos, a responsabilidade pelo desenvolvimento do realismo moderno, já que possibilitou que personagens de diversas classes sociais tivessem “representação literária séria”. (Cf. AUERBACH. op. cit., p. 424) Entretanto, o fato de pertencer à geração romântica fez com que Balzac desse um tratamento grandiloqüente a qualquer fato mais corriqueiro, e transformasse qualquer personagem em herói, santificando ou demonizando as suas criaturas. (ibid., p. 431) 83 Balzac propôs-se a reconhecer no humano de seus personagens as influências oriundas tanto da sociedade quanto da natureza. Por esse motivo, investiga “a figura individual, concreta, internamente corpórea e histórica, social, física etc., e em constante mutação” (ibid., p. 425). Todavia ainda persiste em Balzac e em seus contemporâneos, como acusa Auerbach, uma impossibilidade de apreender a ideologia imanente ao povo; primeiro, porque as classes mais baixas são vistas de cima, portanto, sujeitas a uma compreensão da realidade que não está permeada pela existência social dos mais humildes; segundo, porque o próprio povo ainda não tem uma consciência real de sua existência e de seus ideais, pois suas aspirações são um espelhamento da classe burguesa. (ibid., p. 446-7) Essa dificuldade será vencida por Èmile Zola, um escritor oriundo de uma classe menos privilegiada do que os autores que o antecederam, e que pôde compreender e representar melhor a plasticidade de uma gente pobre e parca, a despeito das críticas ferozes sofridas então por parte daqueles que repudiavam a estética do feio. É importante destacar que esses críticos aplaudiram antes o feio, mas por estar ele vinculado ao estilo cômico. Agora, com Zola, o feio é um estilo literário que pretende mimetizar a realidade das classes mais populares e, portanto, recebe um tratamento literário sério. (ibid., p. 458) A literatura, nesse cenário, surge como arte que “não interfira de forma alguma, nos acontecimentos práticos do tempo; que evite qualquer inclinação a influir moral, política ou praticamente, como quer que seja, sobre a vida dos homens, e cuja única tarefa seja o desenvolvimento do estilo”. (ibid., p. 452). Tal idéia foi defendida direta e claramente por Zola, em “O Romance Experimental” (1880): Escreverá melhor, não aquele que galopar estouvadamente através das hipóteses, mas aquele que caminhar direto no meio das verdades. Estamos atualmente podres de lirismo, acreditamos muito erradamente que o grande estilo é feito de um deslumbramento sublime, sempre prestes a dar cambalhotas na demência. O grande estilo é feito de lógica e de clareza. (ZOLA, 1982, p. 70). Concluímos, após essa revisão teórica, que a percepção da realidade social deriva de uma classe mais abastada para uma classe mais baixa. Enquanto professava a vida de deuses, 84 reis e heróis, a literatura partia do princípio de que a tragédia seria a verdadeira arte, pela qual se tornaria possível fazer a mimesis não da realidade concreta, mas da realidade planificada como ascensão do ser humano. O que não pertencesse à ascese da plenitude humana somente poderia ser concebido sob o viés da comicidade. Com o surgimento da literatura realista, e com seu desenvolvimento, o escritor precisou passar por diversas fases de apreensão da realidade concreta. Sua primeira investida foi no sentido de retirar todo desluzimento possível dos matizes reconhecíveis nas classes baixas. Entretanto, o escritor não havia conseguido ainda ir além de um gosto pela percepção sensorial dessas classes, não construindo uma ideologia a ela inerente. A literatura social, todavia, já se manifestava inegavelmente nas páginas dos escritores franceses dos séculos XVIII e XIX, pois o operário pobre, a doméstica, o desempregado assumiram o texto, fazendo valer ao le itor os seus pressupostos sociais. Na poesia, não se percebe tão claramente essa disposição dicotômica, o que não impede a tensão que fundamenta a literatura realista. O verso exige muito mais do leitor; exige o investimento na análise das formas literárias, a fim de que não se percam as propostas ideológicas intentadas pelo poeta. Inaugurados os estilos e ideologias, e propostas a teoria e a crítica literária, cabe ao le itor-pesquisador a árdua tarefa de unir o conceito ao signo, a análise vigilante da criação à percepção do verso. A literatura realista lança as bases da poesia nos primeiros decênios do século XX, recrudescidos ainda pelos sistemas ditatoriais de composição similar que se espelham por vários países. É notório, então, que o texto poético ressalte aqueles que mais sofrem a opressão do regime político em voga. Cada poeta, com seus ritmos e suas propostas de criação, levará ao leitor a figura, a voz e o silêncio, a dor não expressa na própria fala das classes populares. No poema em prosa “O operário no mar”, de Sentimento do Mundo (1940), Carlos Drummond de Andrade foge à inclinação ao populismo, à exaltação das massas que se torna, 85 por vezes, o repouso de consciência de muito artista pretensamente aliado ao discurso engajado de esquerda. O poeta investiga o operário, perscruta-o: Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na sua blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. (...) (PC, p. 71) A voz poética interroga-se, questiona a existência do outro e admite sua incapacidade de alcançá- lo: Para onde ele vai, pisando assim tão firme? Não sei. (ibid.). Não há irmandade possível; não há mão estendida; não é o poeta o porta- voz do operário. Pertencem a mundos diversos: A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. (...) (ibid., p. 71-2) O operário sorri e não há, para o poeta, significado algum nisso, porque, embora sinta a proximidade desse sorriso, não consegue decifrar o seu sentido, simplesmente porque não consegue compreender o “outro”. O poeta vê o operário afastar-se na noite, e o máximo de idealismo alcançado é a esperança de um dia vir a compreendê- lo: (...) Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei? (ibid., p. 72) Com Craveirinha, podemos voltar mais efetivamente ao real de Stendhal e Balzac. O poeta moçambicano tem plena consciência de que os fatos contemporâneos que ocorrem em seu país, marcados pela violência e pela intolerância, ? e que atuam sobre o sujeito que se 86 configura em coletividade ? estão ainda construindo a História que será contada mais tarde. Fica claro, então, para o poeta, que o objeto deve ser privilegiado sobre o sujeito, e que ele mesmo, sujeito, deve investir-se da condição de objeto. O Neo-realismo, adotado pelo autor no início de sua produção poética, é a conformação ideal para uma poesia que se exige construída pela narratividade, destacando personagens, elucidando fatos, iluminando porões, celas e escuros campos de batalha. O livro Karingana ua Karingana tem em sua primeira parte, denominada “Fabulário” (1945-1950), exatamente essa proposta elucidativa, clarificadora das circunstâncias históricas, como analisa Pires Laranjeira: Cada poema é como que um pequeno quadro pictórico (em geral, uma cena, um ambiente, um tema). O fabulário alude, por outro lado, à tradição popular, ancestral, tribal, de contar fábulas, aqui com personagens humanas dentro, emersas em dramas sociais e pessoais. Há uma denúncia em moldes alusivos, expositivos, em linguagem descarnada, contida, não propriamente contundente. Por outro lado, a composição do tema, a imagética, porque voltados para uma finalidade unívoca, baseadas em meios simples, apresentamse sem grande elaboração, denunciando uma fase cronológica ainda algo incipiente, privilegiando a mensagem sobre os meios expressivos. (LARANJEIRA, 1995, p. 279) Tal projeto literário aproxima a poesia de Craveirinha de uma narrativa, um contar histórias (como propõe o título Karingana ua karinga, que em língua ronga significa “Era uma vez...”) em que se destacam as cenas da realidade moçambicana. Essa escritura é compreend ida por Ana Mafalda Leite: Lendo-se a generalidade dos poemas, fica-se com a noção de que se trata de uma lírica muitíssimo narrativizada (desenham-se linhas diegéticas espáciotemporais, desenvolve-se um assunto, surgem “personagens” com nome próprio, etc.) (LEITE, 1998, p. 115) Ainda que, como temos visto, sejam redefinidos pela estética e pela subjetividade, os poemas realistas de Craveirinha não prescindem do ato de contar uma estória (processo oral) para se comunicar com seu leitor. E “este jeito de contar as nossas coisas”, que o poeta assume, permite a apreensão do tempo e do espaço, estes, muitas vezes, delimitados entre a cidade 87 e o subúrbio, segundo Ana Mafalda Leite, “tópico fundamental, e isto porque o poeta, oriundo da zona marginal da cidade, se coloca como observador crítico dos contrastes que entre os dois mundos transitam”. (LEITE, 1991, p. 115) As coisas da terra e as circunstâncias em que se deu a colonização compõem o mesmo poema, a mesma “História do Magaíza Madevo ”. As ações e emoções das figuras poéticas ganham destaque e sobrepõem-se à subjetividade do sujeito poético. O emigrante mineiro, o “doido” Madevo vai no comboio; a dor de sua mãe se expressa esteticamente, pois esconde o coração na blusa, mas percute na recepção do leitor como dor de mau pressentimento: Madevo foi no comboio do meio-dia casa de caniço ficou lá na terra mamana escondeu coração na xicatauana água de chuva secou no céu. (... )(OP, p. 107) E a história de Madevo multiplica-se e transforma-se na história de um povo escravizado: Madevo foi embora. Filho foi no rio buscar água senhor chefe ficou no posto beber «bebida» (e homens petrificam baptizados de mãos-de-obra e multiplicam-se em milhões de randes com pernas e braços de xibalo). (...) (ibid.) A literatura social que evidenciamos nesta análise não deságua no comum do verso panfletário, de protesto. A excelência dos poetas investigados possibilitou descortinar uma nova perspectiva literária. O verso ainda põe em cena o homem simples; o ritmo ainda traz a indignação e a dor; as metáforas ainda propõem a transformação. No entanto, cada signo utilizado inscreve-se na dimensão de uma outra realidade: a que insere o sujeito na investigação do objeto e promove novas leituras da realidade. 88 4. AINDA SOBRE MARXISMO: O SIGNO NA “POESIA DE INTERVENÇÃO” 4.1 - Em defesa da “poesia de intervenção” Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade. Mikhail Bakhtin Em seus estudos sobre marxismo e filosofia da linguagem, Mikhail Bakhtin compreende o signo como a materialização de uma ideologia. Assim, um objeto físico convertido em signo reflete uma outra realidade além daquela, material, na qual se insere. Estendendo o seu raciocínio, concebe que fenômenos naturais, instrumentos de produção ou produtos de consumo podem adquirir uma forma simbólica na fusão entre signo e objeto, sem que deixem de manter, individua lmente, cada um o seu estatuto. O signo, por conseguinte, não apenas retrata uma realidade; pelo caráter ideológico que assume, pode alterar, deformar ou intensificar uma realidade quando a projeta. Mesclam-se signo e ideologia, pois, de acordo com Bakhtin, “tudo que é ideológico possui um valor semiótico.” (BAKHTIN, 2004, p. 32) A consciência sobre a realidade, sobre as coisas circundantes faz gerar o signo, mas não o antecede, visto que compreender uma realidade que se materializa em signos só é possível porque, antes, houve uma oposição de um signo a outro signo, ao qual se responde com outro signo. Considerada essa hipótese metodológica, os estudos de Bakhtin avançam para a compreensão de que “a consciência individual é um fato sócio-ideológico”. (ibid., p. 35) Portanto, a construção de uma consciência da realidade através dos signos não se dá como fenô- 89 meno natural, mas como produto de uma organização social instruída por uma ideologia: A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem. (ibid., p. 35-6) Nesse complexo de signos e símbolos, e compreensões sociais e ideológicas dos quais fazem parte, destaca-se a palavra, visto ser ela um signo neutro que se aplica a qualquer função ideológica. E é na palavra que se constitui um dos problemas fundamentais da filosofia da linguagem, porque ela, ao mesmo tempo em que se estabelece como signo social, determina o discurso interior que forma a consciência individual. Embora a palavra não substitua outros fenômenos ideológicos, como os rituais, a obra de arte, a música, é certo que todos os atos e fenômenos ideológicos constituem-se de palavras. (ibid., p. 36-38). E é por esta via de pensamento que Bakhtin considera a filosofia da linguagem como o caminho mais seguro para a compreensão da ideologia marxista: A única maneira de fazer com que o método sociológico marxista dê conta de todas as profundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas ‘imanentes’ consiste em partir da filosofia da linguagem concebida como filosofia do signo ideológico. E essa base de partida deve ser traçada e elaborada pelo próprio marxismo. (ibid., p. 38) Reside na palavra, e na interação verbal dela resultante, a indicação das ideologias sociais, porque imanente a ela está a percepção cumulativa e gradual ? lenta ou acelerada, classificada qua litativa ou quantitativamente ? das transformações que se processam no ind ivíduo e na realidade em que se fixa ou se movimenta. Assim se forma a psicologia do corpo social, pois, segundo as teorias marxistas, ela não se dá no interior do indivíduo, mas num processo de exteriorização. Na psicologia do corpo social, nada há de “inexprimível, de interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente no 90 material verbal.” (ibid., p. 42) Mikhail Bakhtin orienta o estudo da psicologia do corpo social por duas diretrizes básicas: do ponto de vista do conteúdo, relativo aos temas, e do ponto de vista dos tipos e formas de discurso, ou seja, como são estruturados esses temas. (ibid.) Indo ao encontro da proposta do autor, não serão destacados, a priori, para a constituição de uma psicologia do corpo social que desvende os signos poéticos que comporão o corpus de nossa pesquisa, documentos que fundem uma época social, mas os signos e a enunciação que se estabelecem nas estruturas sociopolíticas. Os temas concernem aos objetos sociais que adquiriram valor em determina estância interindividual e se projetam nos signos, retornando, com vigor, à consciência individual. A manifestação verbal que se engendra assume uma forma específica. Então, conteúdo e forma são indissociáveis no processo analítico. Ampliando a proposta de compreensão da psicologia do corpo social através dos signos, Bakhtin estabelece regras metodológicas que nortearão a análise do corpus selecionado para este trabalho. Elas dizem respeito à não dissociação do signo da ideologia em que ele se insere e das formas concretas da comunicação social, e, ainda, à não dissociação entre a comunicação e as fo rmas de sua base material (infra-estrutura). (ibid., p. 44) O resultado dessa discussão, para Bakhtin, é o entendimento da “refração do ser no signo ideológico” (ibid., p. 46), o que se dá pela luta de classes. É somente por essa construção ideológica que o signo ganha valor e prevalece, porque seu estabelecimento ocorre dialeticamente, já que se manifesta sob a influência do poder dominante que o mantém, e do poder revolucionário que o faz emergir na vida social. Pelas tensões sociais, um signo ideológico passa das infra-estruturas às superestruturas, o que permite mantê-lo vivo. (ibid., p. 45-47) Nesse sentido, a “poesia de intervenção” adquire especial relevância, na medida em que espelha, mais que qualquer outra forma de expressão poética, as representações sociais. Os signos tecem no verso a relação 91 entre a consciência individual do poeta e a sua compreensão do mundo que o cerca, e dá- nos a dimensão das ideologias que o compõem. Entretanto, cabe a ressalva de um entendimento das políticas sociais que engendraram a poesia ideológica que investigamos. Para tanto, destacamos a compreensão desse processo feita por Boaventura de Sousa Santos. Segundo o autor, houve um agravamento da tensão ente subjetividade e cidadania, quando foi preciso admitir que o Estado capitalista, ao contrário do que previu Marx, não fomentou um confronto entre seus postulados e a classe operária; ao contrário, embora o operariado não tenha se tornado o sujeito do pós-capitalismo, “foi sem dúvida o agente das transformações progressistas (emancipatórias, neste sentido) no interior do capitalismo”. (SANTOS, 1999, p. 244) Em decorrência, as lutas de classe, que reivindicavam uma cidadania social, foram direcionadas, objetivando o abrandamento das contendas, para uma integração entre o Estado e as classes trabalhadoras, o que acabou por legitimar o Estado capitalista. Assim, conclui Santos: Em face disto, não surpreende que neste período se tenha agravado a tensão entre subjectividade e cidadania. Por um lado, o alargamento da cidadania abriu novos horizontes ao desenvolvimento da subjectividade. A segurança da existência quotidiana propiciada pelos direitos sociais tornou possíveis vivências de autonomia e de liberdade, de promoção educacional e de programação das trajectórias familiares que até então tinham estado vedadas às classes trabalhadoras. Mas, por outro lado, os direitos sociais e as instituições a que eles deram azo foram partes integrantes de um desenvolvimento societal que aumentou o peso burocrático e a vigilância controladora sobre os indivíduos; sujeitou estes mais do que nunca às rotinas da produção e do consumo; criou um espaço urbano desagregador e atomizante, destruidor das solidariedades das redes sociais de interconhecimento e de entreajuda; promoveu uma cultura mediática e uma indústria de tempos livres que transformou o lazer num gozo programado, passivo e heterónomo, muito semelhante ao trabalho. Enfim, um modelo de desenvolvimento que transformou a subjectividade num processo de individuação e numeração burocráticas e subordinou a Lebenswelt às exigências de uma razão tecnológica que converteu o sujeito em objecto de si próprio. (ibid., p. 245) Contrapondo-se, porém, às estruturas sociais derivadas do esvaziamento dos ideais marxistas, os poetas serão vozes quase solitárias na busca de compreensão do homem que tem sua genealogia fundada no operariado do século XIX. O comportamento que se padroniza na estabilidade das práticas e no esgotamento das idéias se concretiza nas figuras humanas, quase 92 apagadas, enfarruscadas e melancólicas que serão matéria poética. Situados em pólos da sociedade distantes entre si, Drummond e Craveirinha não convergem seus poemas no tempo histórico. Em 1930, data do primeiro livro de poesia do escritor brasileiro, o menino moçambicano mal se dava conta dos horrores da colonização, certamente sem compreender direito os estigmas que viria a enfrentar. Em 1965, Drummond publica, em Portugal, sua Antologia Poética, e Craveirinha era preso por determinação da ditadura colonial portuguesa. Em 1975, Drummond publica Amor, amores e Craveirinha desponta como o cidadão livre prefaciado tantas vezes em sua poesia. Todavia, se não há coincidências de datas, o mesmo não ocorre com as idéias e os ideais. Cada um, a seu tempo, fez da carne envilecida do homem pobre sua mais bela imagem poética; cada um a seu modo, com os signos que convinham ao contexto social em curso, construiu o ideário da liberdade, da cidadania efetiva e da sobrelevação do ser humano sem as tradicionais cantilenas humanistas, porque o verso canta, antes, o direito à dignidade social. Essa visão de mundo ideológica, que se reflete no verso poético, tem forma em estruturas profundas de significação. Segundo Michael Löwy, “as ideologias e as utopias contêm, não apenas as orientações cognitivas, mas também um conjunto articulado de valores culturais, éticos e estéticos que não substituem categorias do falso e do verdadeiro”26 (LÖWY, 2003, p. 12). A poesia de caráter ideológico contém, intrinsecamente, a utopia, mas isso não a torna ilegítima na concepção do leitor, visto que “a mesma visão de mundo pode ter um caráter utópico num dado momento histórico para tornar-se, em seguida, numa etapa ulterior, uma ideologia”. (ibid., p. 13) E, não esgotando a questão, como não se esgota a utopia, pensamos 26 Michael Löwy contesta, com essa afirmação, a tese de Karl Mannheim, explicitada em Ideologia e utopia, de 1929, pela qual “ideologia” seria um termo condicionado ao conceito de “ideologia total” que legitima a compreensão de muitos teóricos marxistas, entre eles Lenin, e que pode ser definida como “a estrutura categorizada, a perspectiva global, o estilo do pensamento ligado a uma posição social”. Prosseguindo com a reflexão, Löwy lembra que, na mesma obra, Mannheim apresenta outra definição de “ideologia”, considerando o conceito como “sistemas de representação que se orientam na direção da estabilização e da reprodução da ordem vigente ? em oposição ao conceito de utopia, que define as representações, aspirações e imagens-de-desejo que se orientam na ruptura da ordem estabelecida e que exercem uma função subversiva. LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o barão de Münchausen. São Paulo: Cortez, 2003, p. 10-11 93 com Barthes: Para que serve a utopia? Para fazer sentido. Em face do presente, de meu presente, a utopia é um termo segundo que permite o desencadeamento do signo: o discurso sobre o real se torna possível, saio da afasia na qual me lança o desassossego de tudo o que vai mal em mim, neste mundo que é o meu. A utopia é familiar ao escritor, porque o escritor é um doador de sentido: sua tarefa (ou seu gozo) consiste em dar sentidos, nomes, e ele só o pode fazer se houver paradigma, desencadeamento do sim/não, alternância de dois valores: para ele, o mundo é uma medalha, uma moeda, uma dupla superfície de leitura, cujo avesso é ocupado por sua própria realidade e cujo direito, pela utopia. (BARTHES, 1975, p. 84) Dessa forma, é no estatuto da palavra fundada na compreensão de marxismo que buscaremos analisar os signos que serão destacados na poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha. Sendo a teoria marxista amplamente discutida, ela se nos oferece como amparo à análise dos versos selecionados. Entretanto, não convém discutir largamente as muitas interpretações a respeito do tema. Até porque, como atesta Barthes, o estudo sobre ma rxismo “está longe de ser esgotado pela História”. (BARTHES, 2005, p. 11) Mas entendemos, outrossim, ainda associando- nos à compreensão do autor, “que as propostas marxistas ao menos constituem pontos ativos de discussão para o mundo moderno”. (ibid.) O fenômeno ideológico que se configura no fazer poético dos autores que formam nosso corpus constrói-se a partir da palavra que se quer, preliminarmente, a constituição de um ser social. O fazer poético serve a uma ideologia que tem sua gênese no marxismo e, portanto, os signos literários atendem à proposta de construção da realidade que identifica a escrita literária como uma “linguagem de valor”, porque sempre esteve associada a uma ação.27 Temos, assim, um sujeito poético que atende aos imperativos da objetividade, e que se expande para além de uma subjetividade latente. Por essa via, propomos uma leitura já manifesta em diversos estudos anteriormente elaborados, mas sem a qual não nos será possível trilhar o caminho que objetivamos em nossa pesquisa. Intentamos, por conseguinte, refletir sobre uma 27 Cf. BARTHES, Roland. O Grau zero da escrita. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 26-7. 94 proposição literária que atendeu aos princípios impostos pela consciência social, mas que, antes, revela-se como conseqüência de um signo ideológico que insta pela realidade tencionada pelos autores em concepção subjetiva, identificada, o mais das vezes, na utopia. 4.2 - A individualidade psíquica refletida na ideologia social Aquilo que revelo e o mais que segue oculto em vítreos alçapões são notícias humanas, simples estar-no-mundo, e brincos de palavra, um não-estar-estando, mas de tal jeito urdidos o jogo e a confissão que nem distingo eu mesmo o vivido e o inventado. Carlos Drummond de Andrade A tese de que as estâncias do indivíduo e do social dão-se em esferas separadas revelase falsa, segundo Mikhail Bakhtin, quando se compreende que “a realidade do psiquismo interior é a do signo”. (BAKHTIN, 2004, p. 49) Tal proposta se concretiza na concepção de que a atividade mental torna-se tangível na expressão do signo, portanto, a construção psíquica do indivíduo relaciona-se com o mundo exterior através de um material semiótico que lhe confere valor. Apesar de todos os recursos semióticos de que se possa dispor, é na palavra que se concentra a força de representação do discurso interior. De acordo com a teoria de Bakhtin, não é possível estabelecer um limite entre a ideologia e um psiquismo subjetivo individual. Todo conteúdo ideológico pode ser compreendido pelo signo interior; da mesma forma, o 95 signo ideológico é tangível somente porque se realiza, antes, na consciência individual, submetido aos critérios de compreensão, às emoções e à capacidade de assimilação subjetiva. (ibid., p. 57). A tese bakhtiniana evidencia-se na análise do corpus deste trabalho. Os autores estudados têm em comum um projeto literário fundamentado na ideologia social. Todavia, diferenciam-se pela forma de seus poemas, estruturados com signos que atendem a uma “consciência individual”, a uma visão de mundo particular e a experiências deflagradas em confo rmidade com o processo histórico e social no qual estão inseridos. Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha comunicaram a guerra a seus leitores. Diferentes guerras, formas diversas de representar o conflito armado e a dor dele resultante. Drummond, no poema “Visão 1944”, concebe a guerra mundial pelos olhos de quem dela apenas soube. Assim, sua “visão” é emblemática de uma proposta humanista. Seus “olhos pequenos” recusam-se a enxergar a dimensão terrífica da guerra. O que o poema significa é o conhecimento dos fatos, poema noticioso, e o sujeito poético reage humanisticamente ante o que vê e denuncia : Meus olhos são pequenos para ver a massa de silê ncio concentrada por sobre a onda severa, piso oceânico esperando a passagem dos soldados. (...) Meus olhos são pequenos para ver o general com seu capote cinza escolhendo no mapa uma cid ade que amanhã será pó e pus no arame. (...) Meus olhos são pequenos para ver o transporte de caixas de comida, de roupas, de remédios, de bandagens para um porto da Itália onde se morre. (...) Meus olhos são pequenos para ver 96 a fila de judeus de roupa negra, de barba negra, prontos a seguir para perto do muro — e o muro é branco. (...) Meus olhos são pequenos para ver o mundo que se esvai em sujo e sangue, outro mundo que brota, qual nelumbo — mas vêem, pasmam, baixam deslumbrados. (PC, p. 205-208) O poeta moçambicano José Craveirinha participou da guerra colonial. Sua experiência foi além da percepção social ou histórica. Craveirinha, portanto, constrói sua consciência da guerra a partir do ato revolucionário e da prisão; e, ainda mais, a partir da comunhão da dor: A MINHA DOR Dói a mesmíssima angústia nas almas dos nossos corpos perto e à dista ncia. E o preto que gritou é a dor que se não vendeu nem na hora do sol perdido nos muros da cadeia. (OP, p. 69) As diferenças percebidas e aqui estabelecidas inserem-se na proposta de compreensão de um individualismo psíquico, o qual controla as informações recebidas pelos autores. É dessa forma que destacamos, nos poetas, propriedades específicas de seu fazer literário. Na consciência de Drummond, a negação de uma guerra, por não a compreender ideologicamente; na de Craveirinha, a exaltação individual dos que se sacrificaram por uma guerra necessária para a independência e para a paz. O fenômeno de atuação da consciência individual sobre o signo é esclarecido por Bakhtin: O indivíduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, enquanto autor dos seus pensamentos, enquanto personalidade responsável por seus pensamentos e por seus desejos, apresenta-se como um fenômeno puramente sócio-ideológico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo “individual” é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a própria e- 97 tapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica, e internamente condicionada por fatores sociológicos. Todo signo é social por natureza, tanto o exterior quanto o interior. (BAKHTIN, 2004, p. 58) A partir da compreensão de que o psiquismo individual é também social, tanto quanto a ideologia, uma outra idéia relevante é apresenta pelo autor. Considera Bakhtin que toda ideologia é marcada pela individualidade de seu produtor. Estabelece-se, nesse caso, uma relação dialética fundamental: a ideologia é composta por signos individuais e o signo individual, por sua vez, só subsiste como signo social. E convém notar, nessa integração homem/ideal, que os signos que, a princípio, parecem sugerir uma relação intrínseca com o indivíduo sem confo rmidade com a sociedade ou o contexto histórico no qual está inserido, na verdade refletem uma posição ideológica, porque infe rem um reflexo do ser social no ser psíquico: UM HOMEM NUNCA CHORA Acreditava naquela história do homem que nunca chora. Eu julgava-me um homem. Na adolescência meus filmes de aventuras punham-me muito longe de ser cobarde na arrogante criancice do herói de ferro. Agora tremo. E agora choro. Como um homem treme. Como chora um homem! (C1, p. 20) Caminhamos, assim, para uma tese que pode ser defendida na análise dos poemas de intervenção: a voz poética que representa a sociedade não o faz como o ator de um espetáculo que se encena, mas como parte de um conjunto de expressões sociais que se organizam em sua subjetividade. Isso equivale a dizer que, embora não se isente o autor de sua capacidade analítica dos fatos sociais, a sua interpretação não se estrutura pela aquisição e apreensão dos objetos e circunstâncias da sociedade, assimilando-os e retransmitindo-os. A voz poética re- 98 presenta uma voz subjetiva expressa por signos eleitos para a composição do poema que atendam a propostas individuais. Assim, o “autor como hipótese interpretativa”, na definição de Umberto Eco, corresponde a um Autor-Modelo que “põe em jogo o universo que está atrás do texto, atrás do destinatário e provavelmente diante do texto e do processo de cooperação (no sentido de que depende da pergunta: ‘Que quero fazer com este texto?’)” (ECO, 2002, p. 49) Tem sido possível, no desenvo lver deste estudo, relacionar as propostas literárias de Drummond e de Craveirinha. Dessa forma, identificamos signos que, pelo caráter da “poesia de intervenção” e pelo empirismo dos autores, tornam-se símbolos de luta e resistência, sem que se configurem poesia panfletária. Bakhtin chama atenção para o fato de que quanto mais um indivíduo se associa ao seu signo interior e quanto mais penetra em seu próprio psiquismo, mais distante estará de uma expressão ideológica. Por outro lado, se o indivíduo torna-se mais informado e realizado ideologicamente, consegue libertar-se das amarras do seu psiquismo que o impedem de interagir mais ativamente com o mundo exterior. Ou seja, estabelece uma relação das infra-estruturas com as superestruturas. (BAKHTIN, 2004, p. 60) Consideramos, dessa forma, que os poemas analisados inserem-se numa proposta autoral em que a subjetividade direciona-se, pelo signo social e pela via ideológica, para a coletividade. Seguindo a indicação posterior de Bakhtin, devemos entender que toda expressão semiótica ou se dirige para o sujeito, ou, a partir dele, para uma ideologia: No primeiro caso, a enunciação tem por objetivo traduzir em signos exteriores os signos interiores, e exigir do interlocutor que ele os relacione a um contexto interior, o que se constitui um ato de compreensão puramente ideológico. No outro caso, o que se requer é uma compreensão ideológica, objetiva e concreta, da enunciação. É assim que delimitamos o psíquico e o ideológico. (ibid., p. 60-1) Ao evidenciar duas tendências antitéticas de compreensão da linguagem, Bakhtin propõe a síntese que nos interessa. A tese que apresenta para análise é a do “objetivismo abstrato”, ligado ao Racionalismo e ao Neoclassicismo, segundo a qual a língua é transmitida de 99 geração a geração, num processo mecanicista que exclui a concepção de evolução da língua e sua relação com os fatos sociais. A antítese estabelece o “subjetivismo individualista”, ligado ao Romantismo 28 , como base da natureza da linguage m, circunscrevendo-a ao ato de fala, explicando-a sob o ponto de vista do psiquismo individual do sujeito falante. A síntese proposta pelo autor é a de que “a enunciação é de natureza social”. (ibid., p. 109) Expomos aqui, mais uma vez, agora pela teoria de Mikhail Bakhtin, o cerne de nossa tese: a compreensão dos limites e interseções entre individualidade e coletividade, subjetividade e alteridade. 4.3 - O mundo exterior como ideologia do mundo interior: um percurso do “eu” para o nós” Ufano da condição começa na tua humanidade por seres tão humano que menos pena tenhas de ti quando tiveres pena dos outros. José Craveirinha O subjetivismo individualista orienta a compreensão da linguagem no sentido de ser ela uma expressão da essencialidade individual, estância do ser que realmente importa, sendo o mundo exterior um material passivo, obediente às regras interiores. Entretanto, Bakhtin ale rta para o fato de que a mesma expressão semiótica serve, igualmente, ao conteúdo interior e à sua materialização externa. Assim, segundo o autor, “não é a atividade mental que organiza a 28 Mikhail Bakhtin explica que os românticos, defensores da tese do “subjetivismo individualista”, foram os primeiros filólogos a reagir contra o domínio cultural que a palavra estrangeira exerceu sobre as categorias do pensamento. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 110. 100 expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina a sua orientação”. (ibid., p. 112) A enunciação é formada pelos fatos sociais contemporâneos vigentes que atuam sobre o sujeito falante. É o contexto externo, no qual se destacam os interlocutores, que determina a expressão do discurso interior; ele a molda, interfere em suas inflexões, seleciona, dialeticamente, os signos que serão utilizados na enunciação. Em outras palavras, o mundo exterior reconstitui, ideologicamente, o mundo interior. Na primeira edição do livro Lição de Coisas (1962) de Carlos Drummond de Andrade, em nota da editora atribuída ao poeta, é apresentada uma proposta que se coaduna com a teoria bakhtiniana formulada. Diz o poeta: “O mundo de sempre, com problemas de hoje, está inevitavelmente projetado nestas páginas.” (PC, p. 454) O poeta denuncia , na mesma ocasião, que se sentia entediado com os acontecimentos, alterando nele o projeto ideológico que se havia iniciado com A Rosa do Povo. Todavia, tais acontecimentos de novo ofendem e, “sem motivos para esperança, usa entretanto essa extraordinária palavra, talvez para que ela não seja de todo abolida de um texto de nossa época”. (ibid.) Composta de elementos exteriores ao ser, a poesia de Drummond, na referida obra, evidencia o objeto, e o sujeito espelha o que se revela no mundo exterior, construindo, assim, ideologias no seu mundo interior. A “Janela” é um símbolo que representa o mundo exterior, e o sujeito poético, diante dela, oferece ao leitor, através de sua poesia, o mundo possível de apreensão, elaborando a ideologia final: Tarde dominga tarde pacificada como os atos definitivos. Algumas folhas de amendoeira expiram em degradado vermelho. Outras estão apenas nascendo, verde polido onde a luz estala. O tronco é o mesmo e todas as folhas são a mesma antiga folha a brotar de seu fim enquanto roazmente a vida, sem contraste, me destrói. (ibid., 489) 101 A poesia de José Craveirinha é plena de signos externos que se refletem no mundo interior do sujeito poético. Mas ocorre, aqui, um movimento diverso daquele que projeta a poesia de Drummond. Na construção ideológica de Craveirinha, percebemos uma atuação do indivíduo no sentido de imprimir ao verso uma nota de esperança. O que não o isenta de uma constatação permanente do negativo da vida.A práxis africana, a natureza, a ancestralidade e todos os elementos identificáveis com a raça negra compõem os signos poéticos de Craveir inha. A “Pátria” revela-se em seus versos: Essência dos intumescidos lábios quilhas fendendo as ondas in-amor rubro de férteis azagaias. Ruge o leão dos nervos. A bússola norteia entretanto irmãos das micaias a juba e as folhas cujo destino o vento impele norte a sul. E landinizados f ilhos meus crescendo realizam-se genuínos com a própria terra. (PP, p. 45) A relação do falante com seus interlocutores imediatos, pertencentes a um contexto social irredutível à atividade mental do enunciador, polariza-se, no dizer de Bakhtin, em atividade mental do eu e atividade mental do nós. (BAKHTIN, 2004, p. 115) A primeira tende à auto-eliminação na medida em que se potencializa, visto que perde toda ideologia e grau de consciência. A segunda, ao contrário, tende a se intensificar, já que se molda na orientação social de uma coletividade. Resulta disso que o mundo interior do sujeito torna-se distinto e complexo na mesma proporção que a coletividade com a qual interage define suas tendências e ideologias. Outro destaque a ser feito é quanto à categoria de uma atividade mental para si individualista. O sujeito institui o direito de ser unitário, mas, na verdade, essa posição funda-se numa atividade mental do “nós”, característica da “intelligentsia ocidental contemporânea”. 102 Quando expressa uma consciência mental interior, o indivíduo está, de fato, expressando uma atividade mental coletiva, visto ser ele um produto das inter-relações sociais: Quando a atividade mental se realiza sob a forma de uma enuncia ção, a or ientação social à qual ela se submete adquire maior complexidade graças à exigência de adaptação ao contexto social imediato do ato de fala, e, acima de tudo, aos interlocutores concretos. (ibid., p. 117) Mais um caminho de análise se nos apresenta pela teoria bakhtiniana: a “poesia de intervenção” é, não relutamos em afirmar, uma expressão de atividade mental voltada para o nós, resultante da consciência individual orientada por um saber social e um comp romisso com a sociedade da qual fazem parte os autores. 4.4 - Ideologia do cotidiano: uma expressão marxista As idéias só se tornam efetivas se, ao final, elas se juntarem a uma constelação particular de forças sociais. Stuart Hall À parte os sistemas ideológicos constituídos, a atividade mental projetada sobre a vida cotidiana compõe, conforme a proposta de Mikhail Bakhtin, uma ideologia do cotidiano, não fixada e desordenada, mas que acompanha o ser em existência. Todavia, essa ideologia do cotidiano, equivalente, na teoria marxista, à “psicologia social”, relaciona-se em sua estrutura profunda com os macrossistemas ideológicos (artes, ciência, religião etc.) que se alimentam de sua consciência crítica, ao mesmo tempo em que sobre ela exercem influência. A obra submete-se à ideologia do cotidiano que determina o seu lugar na sociedade: A obra estabelece assim vínculos com o conteúdo total da consciência dos 103 indivíduos receptores e só é apreendida no contexto dessa consciência que lhe é contemporânea. A obra é interpretada no espírito desse conteúdo da consciência (dos indivíduos receptores) e recebe dela uma nova luz. É nisso que reside a vida da obra ideológica. Em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano de uma determinada época, que ela é capaz de viver nessa época (é claro, nos limites de um grupo social determinado). Rompido esse vínculo, ela cessa de existir, pois deixa de ser apreendida como ideologic amente significante. (ibid., p. 119) As atividades mentais ocasionais, mesmo que tenham matizes ideológicos, não resistem ao tempo ou a uma crítica social mais elaborada. As atividades mentais que se inscrevem na ideologia do cotidiano de maneira criativa e responsável, ao contrário, inferem o pensar social com mais mobilidade do que as ideologias constituídas. Portanto, interferem mais diretamente na consciência social, sendo capazes de rever paradigmas, questionar tendências e rivalizar com as ideologias oficiais. A teoria de Bakhtin orienta-se, a partir dessas análises, no sentido de recusar firmemente “a teoria da expressão subjacente ao subjetivismo individualista”. (ibid., p. 121) Refo rça o autor a proposta já discutida anteriormente segundo a qual toda enunciação se organiza em função do meio social que envolve o indivíduo. Compreendemos, pelos estudos até aqui formulados, que não se trata de negar que no cerne de toda enunciação está o sujeito. O que se estabelece é que toda enunciação reflete uma interação social, o que contradiz a concepção do subjetivismo individualista que defende ser toda ideologia dedutível ao psiquismo individual. (ibid., p. 122) A situação de fala insere-se num contexto exterior, definido pelos receptores da enunciação. No dia a dia, podem-se construir discursos estereotipados, que tendem a necessidades de convívio social por uma identidade comportamental comum. Por outra via, as “formas de comunicação ideológica”, apesar de amplamente pesquisadas pela retórica e pela poética, não foram devidamente esclarecidas quanto ao seu aspecto de interação social. Assim, declarações e discursos do saber político e do direito, bem como a arte poética e os tratados científicos não 104 foram elucidados em seus aspectos de linguagem e de comunicação social. Decorre disso que somente a “filosofia marxista da linguagem deve justamente colocar como base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura sócio- ideológica”. (ibid., p. 126) É nesse contexto que consideramos a “poesia de intervenção”. Organizada, elaborada, crítica e criativa, ela opõe-se aos sistemas ideológicos estabelecidos e reflete mais profundamente os anseios da coletividade. O sujeito poético que expressa o seu discurso interior ultrapassa as fronteiras do eu, exatamente porque sua consciência individual só existe em função de uma consciência coletiva. A “poesia de intervenção” foi, em maior ou menor grau, um caminho comum a todos os poetas que viveram intensamente a experiência social e política no século XX. Portanto, mesmo que pretendamos fugir ao comum dos discursos, a “poesia de intervenção” é uma via obrigatória para quem se propõe a estudar os caminhos da construção da poesia. Octavio Paz ordena um pensamento sobre poesia e revolução de origem marxista que ratifica nossa proposta: Nunca como nos últimos trinta anos pareceram de tal modo incompatíveis a ação revolucionária e o exercício da poesia . Não obstante, algo os une. Nascidos quase ao mesmo tempo, o pensamento poético moderno e o movimento revolucionário se encontram, ao fim de um século e meio de querelas e alianças efêmeras, diante da mesma paisagem: um espaço preenchido de objetos, mas desabitado de futuro. A condenação da tentativa da poesia de encarnar na história alcança também o principal protagonista da era moderna: o movimento revolucionário, particularmente de seu ramo marxista. Suas insuficiências e limitações estão à vista. Já se notou que são também as nossas? Seus erros são os da parte mais ousada e generosa do espírito moderno, em sua dupla direção: como crítica da realidade social e como projeto universal de uma sociedade justa. (PAZ. 2005, p. 99) Assim pensando, concluímos que, ainda que a crítica possa apontar ? e o tem feito de forma até visceral ? os equívocos e contradições da poesia revolucionária, é inegável que os erros detectados nos versos da “poesia de intervenção” refletem os nossos erros; a razão neles expressa foi a nossa última tentativa ? um desejo marxista ? de unir sociedade e ideal; e o 105 sonho que deles resta é o alento que nos revivifica das trevas que têm nos assolado o espírito. Aí, então, os poetas todos nos salvam, e deles elegemos ? contrariamente à aspiração quase incontida por andar em diversas searas poéticas, colhendo das vozes múltiplas o alimento que farte o espírito ávido ? Drummond e Craveirinha, que melhor conformam a cena literária à nossa vivência e aspiração do saber. Incorreríamos, aqui, em repetição do dito, não fosse a obra de Carlos Drummond de Andrade rica em possib ilidades interpretativas. Evidentemente, quando procuramos decifrar os signos e os códigos da realidade, automaticamente estamos nos referindo, também, à “poesia de intervenção”. Dessa forma, para compor uma análise que se valide como elucidativa do fazer poético de Drummond, optamos por selecionar poemas que tenham o caráter específico de um discurso político e que autentiquem, inegavelmente, o eu poético como sujeito contestador da sociedade, desarticulador das fórmulas, transformador das idéias e dos ideais, seja pela ironia, pelo ceticismo ou pela amargura, marcas discursivas do poeta Drummond. Defendemos a idéia de que quase toda a sua obra, desde Alguma Poesia, deixa falar o homem político atento às esferas sociais, das quais participa não como observador distante — ainda que em muitos poemas o sujeito procure um distanciamento do objeto que faz representar nos versos, atitude de alheamento que, acreditamos, se configura em protesto ? , mas como alguém preocupado com as questões sociais. O poeta vê o que se passa. Seus olhos são o instrumento de que se vale para se relacionar com o mundo, mantendo a distância segura de quem deseja observar sem ser observado, ainda que se diga o verso em primeira pessoa. “Olhar, ver, contemplar, espiar são aqui sinônimos de conhecer, perceber, entender, revelando um processo metonímico na fala humana”. (SANT’ANNA, 1972, p. 50) Buscamos agora a metonímia da vida. Planejamos investigar o percurso dos objetos de poema que contam a sua própria história, autenticada pelo sujeito poético que especula a existência do “outro” para revelar seu ideal sem se revelar. 106 “Outubro 1930”, data significativa para a política do país, guerra pátria, brasileiro alvo de brasileiro, é um poema que compõe Alguma Poesia. A visão drummondiana da guerra passa ao largo de questões simbólicas. Drummond desfia o cotidiano da guerra, protesta como quem conta, deixa que o alerta se realize na recepção do leitor. O poema é intercalado por textos em prosa que funcionam como notícias da guerra, esvaziando o lirismo que se constrói quando o sujeito/observador volta seus olhos para o interior do conflito, evidenciando objetos que são a metonímia do sofrimento imposto pela vontade política: Suores misturados no silêncio noturno. O companheiro ronca. O ruído igual dos tiros e o silêncio na sala onde os corpos são coisas escuras. O soldado deitado pensando na morte. De 5 em 5 minutos um ciclista trazia do Estado-Maior um feixe de telegramas contendo, comprimida, a trepid ação dos setores. O radiotelegrafista ora triste ora alegre empunhava um papel que era a vitória ou a derrota. Nós descansávamos, jogados sobre poltronas, e abríamos para as notícias olhos que não viam, olhos que perguntavam. Às 3 da madrugada, pontualmente, recomeçava o tiroteio. (...) Olha a negra, olha a negra, a negra fugindo com a trouxa de roupa, olha a bala na negra, olha a negra no chão, e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis. (...) (.PC., p. 34-5) Sentimento do Mundo (1940) é ? juntamente com Alguma Poesia e A Rosa do Povo ? apontada pelos crít icos como uma das obras mais engajadas de Drummond. Insere-se a obra no legado da geração modernista que, após a fase do poema-piada, deixou vir à luz “uma geração grave, preocupada com o destino do homem e com as dores do mundo, pelos quais se considerava responsável”. (COUTINHO, 1959, p. 299) 107 O gênio de Drummond, ainda que submisso a uma ordem idealista comum a seus pares, não se deixa limitar. Prova disso é a pungente “Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte”, na qual o poeta autoriza o testemunho de uma vida que, mesmo após a inexistência, ainda deseja revelar a sua dor: Eu sou a Moça-Fantasma que espera na Rua do Chumbo o carro da madrugada. Eu sou branca e longa e fria, a minha carne é um suspiro na madrugada da serra. Eu sou a Moça-Fantasma. O meu nome era Maria, Maria-Que-Morreu-Antes. (PC, p. 69) O livro A Rosa do Povo é todo ele um discurso ideológico em que o homem fatigado de tanta desordem, divergências, injustiças e hipocrisias se apropria do sujeito poético. O poema, muitas vezes, constitui-se de um protesto indisfarçável contra a realidade que presencia. Nesses casos, a voz poética compromete-se, expõe-se na medida em que declara sua insatisfação e sua angústia ou propõe novos parâmetros para o homem e a sociedade. De todos os versos, de todas as metáforas poderíamos recolher os sinais da poesia que se rebela, fossem eles flores, fossem eles pedras. De todas as vozes que gritam nos poemas, poderíamos direcionar nossa atenção para qualquer uma que reclame a dor, em ato resignado ou não. Poderíamos selecionar algumas tragédias, alguns esquecimentos, alguns abandonos, e qualquer um seria a metonímia perfeita de um todo discursivo que se faz sob o signo da “poesia de intervenção”. Optamos, entretanto, por destacar o longo poema “Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin”, porque nele Drummond não faz um protesto dirigido a um tema, a uma circunstância apenas. O poeta utiliza o recurso da oposição para expor sua negativa a tudo o que fere, tudo o que ofende e limita o homem, representado em metonímia pela figura de Chaplin. A imagem chapliniana confunde-se com os desvalidos, com os abandonados, e o sujeito poético a eles fala; mas percebe que são eles ? os párias? que detêm o discurso in- 108 vectivo: (...) vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia, e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua. Bem sei que o discurso, acala nto burguês, não te envaidece, e costumas dormir enquanto os veementes inauguram a estátua, e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas, só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram. Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço, eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum, nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti como um ramo de flores absurdas mandado por via postal ao inventor dos [jardins. Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de [tudo, que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida, são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música, visitemos no escuro as imagens ? e te descobriram e salvaram-se. Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração, os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados, os oprimidos, os solitários, os indecisos, os líricos, os cismarento s, os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos. (...) (ibid., p. 221) E da mudez de Carlitos surgem as palavras que compõem os versos da poesia drummondiana: (...) Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo. Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos [exaustos. Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo, crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria [dos ditadores, Ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa [estrada de pó e esperança. (ibid., p. 226-7) Os excertos deste poema não deixa margem a que possamos, ainda, especificar o pro- 109 jeto literário de Carlos Drummond de Andrade apenas no que concerne à poesia realista que se constrói com voz de protesto. O poeta faz desfilar, em cada verso, todos aqueles que precisam de sua lucidez, do seu engajamento e da sua capacidade lírica para calar, em todos nós, o veemente ideal que professa. E assim, mais do que protestar, o sujeito poético movimenta-se para um “nós”, na medida em que identifica o seu signo com as identidades dos que exalta. Também a poesia de José Craveirinha tem uma inegável dimensão social. Mais que isso: acura com visão objetiva o ser e o estar do homem moçambicano. A “poesia de interve nção” de Craveirinha direciona-se na perscrutação da vida cotidiana de sua terra, a fim de elevar o simples à condição de evidência, para, aí sim, relevar um discurso que, de aparente louvor do homem simples, transforma-se em desafio, revisão de idéias, reflexão sobre ideais, desfazimento de no rmas. Sob essa perspectiva, podemos depreender da poesia de Craveirinha os dois tópicos que sit uam este capítulo: cotidiano e ideologia marxista. Ampliando o quadro em que se localizam os personagens e as cenas em que atuam, podemos ver que há mais do que representantes pobres e humilhados de um país colonizado, o que converge para uma definição de Michel Foucault sobre uma nova perspectiva da história, que passa a considerar a “emergência de um material plebeu”. (FOUCAULT, 1999a, p. 129) Seguindo uma proposta de Ana Mafalda Leite, vemos, na escritura de Craveir inha, a existência de um herói (..) colectivo, agora já não apenas representado pela profissão, como no caso do magaíza ou da prostituta, ou ainda do trabalhador do cais, mas sim pela totalidade dos moçambicanos, na sua dimensão de povo, que vive uma odisseia simultânea de repressão e de libertação. (LEITE, 1991, p. 121) São os personagens de Craveirinha, de sua poesia narrativizada, heróis de um país colonizado, reconfigurados pela civilização estrangeira. Estão marcados por intensas dores, mas, muitas vezes, essas dores são traduzidas pelas cores e sons de Moçambique, pelos gestos e falares, pela palavra que não altera sua identidade. E o poeta faz um “msaho”, homenagem justa aos timbileiros que enchem de vida as terras de Moçambique: 110 MSAHO DE ANIVERSÁRIO Negro chope subnutrido canta na noite de lua cheia e na timbila de ânforas de massala toca audível msaho da virgem tonga. E borboleta amarela no estrénuo palpitar das asas sozinha escreve na atmosfera agrimensurada a fábula incrível das novas casas estranhas e dos minérios sempre descobertos pelos outros nas minhas terras familiares de xingombela ao norte e ao sul do rio agora chamadas claim. (...) (OP, p. 48) Ao narrar o “outro”, Craveirinha não o faz com os métodos clássicos, pelos quais o narrador detém a existência daquele que narra para as revelar aos poucos ao leitor, suspendendo a ação e garantindo o interesse pela narrativa. Essa técnica exigiria ver no “outro” o objeto que conduz a arte. José Craveirinha, ao contrário, vê no “outro” a razão de sua arte. Por esse motivo, abdica do”eu” e caminha em direção a esse o “outro” que se elegeu como objeto de sua poesia, constituindo o “nós”. E, por vezes, não nomeia o “outro”, não nomeia o “eu”, porque o “nós” é a única expressão possível de um existência multiplicada na dor e na resistência à dor: Aqui nem um pide nos ouve a gritar no dialecto nacional dos oprimidos os mais fantásticos sonhos construímos com o invisível material da esperança a realidade universal dentro do povo lá fora! (...) (C1, p.27) Criar um espaço outro de existência reflete, no sujeito poético, uma consciência ideológica do tempo em que ele vive, das condições sociais que lhe são impostas. E as identidades de que se nutre o verso envolvem o “eu’ porque lhe são contemporâneas. Há um irrefutável “nós” ideológico que se transforma em sujeito do poema. 111 5. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: A EXPERIÊNCIA DA REALIDADE E DA SUBJETIVIDADE 5.1 - A arte da imitação e o discurso social: o objeto no espelho do sujeito Quando o mundo interior e o exterior se tocam, aí se encontra o centro da alma. Novalis Fazer a análise dos versos de Carlos Drummond de Andrade leva o examinador a correr demasiados riscos. A imensa fortuna crítica e a generosidade dos críticos com seus leitores, escandindo os versos para sua melhor compreensão, ao mesmo tempo em que elucidam dúvidas, limitam a investigação.Por outro lado, não se pode deixar de palmilhar a longa estrada da obra drummondiana desde o seu começo, para que almejemos, em algum momento, chegar ao ponto ? não ao fim ? projetado como o objetivo maior, em nosso caso, a investigação da subjetividade. Assim, necessário se torna retomar caminhos. Partiremos, portanto, da ideologia que, no comum dos saberes, associa-se sempre a um movimento de alteridade. Consideramos, para início de análise, a argumentação de Benjamin Abdala Junior, que propõe a compreensão da ideologia numa “perspectiva produtiva e estrutural”, na medida em que permite ao homem construir a realidade em relação dialética com o objeto que constrói. E conclui: O conceito de ideologia aproxima-se, assim, do de cultura, que apresenta tais esquemas de pensamento (trabalho), mas com uma diferença: a ideologia vincula os modelos culturais a um processo de particularização, de acordo com as aspirações de classe (conscientes ou não). Na atualização da cultura, em cada momento histórico, há uma apropriação, dentro da dinâmica 112 da série ideológica, do patrimônio cultural coletivo. (ABDALA JR., 2003, p. 123) A poesia drummondiana vincula-se à realidade que ela apreende e reconstrói ? como, ademais, qualquer fazer poético ? , mas, como denuncia Abdala Jr., essa relação é dialética e, dessa forma, o poeta/sujeito poético identifica-se na realidade que propõe, construindo, no cerne de sua práxis, a subjetividade que se exp ressará nos poemas, ora de maneira subliminar, ora de maneira incisiva. São muitos os percursos de alteridade e várias as nuances da subjetividade impressos à poesia de Drummond. Ângela Maria Dias, em ensaio sobre o autor, destaca que, desde Alguma Poesia, a pesquisa da alteridade na obra do poeta mineiro leva à absorção de um “decisivo acento trágico, na medida em que o signo do disjunto, do incompleto, do falível, durante o desdobrar-se da obra, amplifica-se gradativamente”. (DIAS, 2007, p. 118) Ao constituir o objeto de seu poema, o sujeito poético de Drummond se reconstitui como sujeito através dos elementos que referencia e redefine. Todavia, apreender as marcas poéticas desse sujeito tornar-se-á possível se, antes, soubermos identificar a constituição do real que o autor imprime em seus versos. Planeamos, assim, um caminho de alteridade em Drummond que nos leve diretamente ao encontro de sua poesia social. Neste capítulo, é importante observarmos a fo rtuna crítica que espelha, de modo relevante, o traçado literário de nosso poeta, entremeando-o com o estudo já elaborado anteriormente sobre mimesis e realidade, pela voz de Auerbach, e filosofia da linguagem e teoria marxista, proposta teórica de Bakhtin. Ultrapassadas as fronteiras do classicismo, o escritor realista impõe o seu estilo ao texto literário, permeando-o de descrições pormenorizadas que lançam o leitor na mais evidente realidade. Entretanto, já não o faz sob a égide de Homero, pois o escritor moderno não mais exige do leitor um distanciamento que o faça enxergar tudo como se estivesse postado diante de uma vitrine, através da qual vê o narrador/sujeito poético manipular os acontecimentos sem permitir uma interferência subjetiva de si mesmo ou de outrem. Essa condição da escritura 113 poética evidencia-se nos poemas drummondianos. Carlos Drummond transpõe para o texto a realidade que vivencia, convidando o leitor a participar de sua visão de mundo. “A poesia drummondiana é o homem dentro de uma objetividade subjetiva. É o retrato do homem. O poeta procura conhecer filosoficamente o Ser. Mas também psicologicamente, suas vivências, suas arestas da face oculta, seus tentáculos invisíveis”. (LAUS, 1978, p. 19) Conhecer a poesia de Drummond é conhecer o mundo que o(nos) cerca e, por conseguinte, empreender uma busca pelo “outro” nos movimentos individualizantes a que nos reduzimos pela existência afora. A experiência literária de Carlos Drummond de Andrade revela que “o poeta se debate entre a posição individualista (...) e a correção dessa hipertrofia da individualidade, pelo reconhecimento de que a medida do homem reside na relação do eu com uma instância que o transcende”. (CORREIA, 2002, p. 47) O “outro” no espelho do “eu” propõe uma troca de experiências entre o mundo exterior, real, e o mundo interior, subjetivo, do poeta Carlos Drummond de Andrade. Leitura como reflexo de si mesmo; arte como revelação do “outro”. Drummond é um “homem do seu tempo”, já diziam todos os seus críticos e leitores. E o tempo de Drummond é longo. A poesia de Carlos Drummond de Andrade testemunha décadas de História. De Alguma Poesia (1930) a Farwell (1996), o poeta externou nos seus ve rsos a compreensão dos fatos que o cercavam, com maior ou menor incidência sobre eles, de acordo com a intensidade de sua subjetividade. Portanto, a palavra que desenha o mundo visto por Drummond é, concomitantemente, histórica e atemporal; palavra social, palavra individual. É sob este duplo estatuto de interpretação que o poeta rompe as barreiras do tempo em que foram inscritos seus poemas. Ao poeta, a faculdade de ultrapassar-se, como propõe Octavio Paz: As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias. Por um lado, são históricas: pertencem a um povo e a um momento da fala desse povo: são algo datável. Por outro lado, são anteriores a toda data: são um começo absoluto. (...) O poema é um tecido de palavras perfeitamente datáveis e um ato anterior a todas as datas: o ato original com que principia toda história social ou individual; expressão de uma sociedade e, simultaneamente, fundamento dessa sociedade, condição de sua existência. Sem palavra 114 comum não há poema; sem palavra poética, tampouco há sociedade, Estado, Igreja, ou comunidade alguma. A palavra poética é histórica em dois sentidos complementares, inseparáveis e contraditórios: no de constituir seu produto social e no de ser uma condição prévia à existência de toda sociedade. (PAZ, 2005, p. 52) É comum ver, na fortuna crítica de Drummond, considerações sobre ser ele uma voz de esquerda, crítica, inquieta e desnudadora de falsas ideologias. Todavia, cada crítico que compõe o legado de conhecimento da obra drummondiana buscou empreender uma compreensão de sua poesia que não se justificasse apenas ? o que, de resto, já seria toda uma literatura ? pelo discurso de esque rda. Voltamos a Auerbach para discutir a relação entre poesia e realidade, tema que preocupou Otto Maria Carpeaux, em ensaio crítico datado de 1943. Para este autor, pode ser um equívoco aproximar “movimento poético” e “movimentos da realidade socia l”, visto que “realidade social faz parte de uma realidade geral”.(PC, p. XLV) Acrescenta, à idéia estabelecida, que a poesia de Drummond é objetiva, mas conceitual, não apoiada em imagens. (ibid., p. XLVI) De acordo com o estudo de Auerbach, foi a imagem que permitiu a constituição de uma literatura realista. Da experiência de Homero com o uso de minuciosas descrições, que não permitiam ao leitor participar subjetivamente do texto, passamos a várias outras propostas literárias, que vão, aos poucos, autorizando uma leitura mais subjetiva. Em todas, porém, a imagem, a visualidade, o descrever pormenorizado do mundo circundante permitiu que a realidade se tornasse objeto da literatura, da poesia. Evidentemente, a arte literária é uma expressão individual. O que relevamos, no entanto, é que a realidade estabelecida pelo escritor não se dá plenamente em sua individualidade, sua instância psicológica ou sua subjetividade. O que o poeta inscreve no seu texto é conseqüê ncia do que ele vê fora de si, muito embora se inscreva como ser social em todas as circunstâncias que o rodeiam. Claro está, como diz Otto Maria Carpeaux, que a poesia de Drummond é conceitual, exemplificada pelo crítico com os 115 conhecidos versos Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo, / seria uma rima, não seria uma solução. (ibid., p. XLVI) Mas o conceito identifica uma realidade social na qual se espelha o sujeito, modificado que foi pelas manifestações externas que o recriam. Não há dúvidas de que o realismo conceitual é uma marca literária evidente na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Mas não se deve eximir do texto drummondiano o projeto de articular uma realidade como sua consciência a detém, e de transmiti- la ao leitor tal e qual a percebe. Sem esforço de interpretação ou de compreensões teóricas, é possível perceber a realidade concebida pela percepção aguda do sujeito poético e oferecida ao leitor sem disfa rces, ainda que uma leitura cuidadosa não deixe de conceber uma conceituação do plano real, mas nada que altere substancialmente o mundo apreensível pelas sensações. Aqui a lição dos primeiros realistas não se exclui do fazer literário contemporâneo; ao contrário, agrega-se a todos os outros elementos que foram oferecidos por escritores de diversas épocas. Isso porque se conserva no cerne da literatura realista uma proposta fundamental do marxismo, segundo a qual a consciência se elabora na matéria. Serão, assim, os poemas de Drummond factíveis, ordenados de acordo com a realidade que o poeta presencia e de que faz parte. Em nosso parecer, o poeta não concebe a poesia fora do mundo de que participa, mesmo quando planeja negá-lo. E esse mundo é oferecido ao leitor que, ao apreender os versos, percebe uma outra revelação ainda mais promissora: o indivíduo que se insinua por entre rimas e metros. Encontramos em Octavio Paz a sustentação do argumento: O poeta não escapa à história, inclusive quando a nega ou a ignora. Suas experiências mais secretas ou pessoais se transformam em palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e com essas mesmas palavras, o poeta diz outra coisa: revela o homem. Essa revelação é o significado último de todo poema e quase nunca é dito de modo explícito, mas é o fundamento de todo dizer poético. (PAZ, 2005, p. 55) O que ressaltamos, para além da pura concepção de imagens conceituais, é o fato de que estão elas associadas ao mundo que o escritor vivencia, e que transforma, como sujeito poético, em versos que serão oferecidos ao leitor para que também participe de um processo 116 de investigação da realidade. Confere- nos um certo sabor de segurança analítica a compreensão que Antônio Houaiss fez de Drummond, ao explicitar a conhecida máxima que insere Drummond como um “poeta de seu tempo”. Entre muitas argumentações sobre tal perspectiva, destacamos: [Carlos Drummond de Andrade] é poeta do seu tempo no fato de que eleva ao ou insere no seu poetar todas as entidades do seu real objetivo e subjetivo, desclassificando (mas usando deles) os assuntos, motivos, temas, tópicos, antes admitidos em poética, e classificando os até então proscritos, construindo assim um poliedro poético de milhares de faces, algumas muito iluminadas por retornos no seu fazer criador, sempre a uma nova luz”. (HOUAISS, 1976, p. 17) A expressão máxima de uma realidade que se apreende pela cons ciência de um ser social, sem a necessidade de se construir novas realidades a partir de conceitos individuais, encontramos em “Poema de Jornal”29 , da obra Alguma Poesia: O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia. O marido está matando a mulher. A mulher ensangüentada grita. Ladrões arrombam o cofre. A polícia dissolve o meeting. A pena escreve. Vem da sala de linotipos a doce música mecânica. (PC, p. 19) Na poesia de Drummond registram-se os elementos cotidianos e os discursos sociais que protocolaram o homem em sua época. Em Drummond, o Gauche no Tempo, Affonso Romano de Sant’Anna observa: A melhor poesia é sempre uma súmula cultural. A poesia de Drummond articula um protótipo do mundo moderno ? o gauche. Aí está o sentimento de uma região, de um país e o sentimento do mundo. Aí o problema central é o tempo: o crescimento e o desgaste do personagem, e a obra que resta ao final. (SANT’ANNA, 1972, p. 37) 29 É interessante notar que a atividade jornalística de Carlos Drummond de Andrade foi, segundo definição do próprio poeta, sem “a emoção da grande reportagem e dos grandes acontecimentos”. (MORAES NETTO, Geneton. O dossiê Drummond. São Paulo: Globo, 2007, p. 37) Consideramos ? seguindo a trilha autobiográfica tantas vezes evidenciada pela crítica e pelo próprio Drummond ? a possibilidade de este fato ter contribuído para a constituição de sua poesia de caráter realista e social, tangível e modelada pelo cotidiano. 117 O gauche de que nos fala Sant’Anna foi construído ao longo de décadas, observando a realidade, às vezes sendo por ela devorado, em ato dramático. Não fugiu ao seu destino, não se refugiou a olhar pelas frestas o mundo que se lhe mostrava. Absorveu os dados, investigou os fatos, transformou-os ou não em outra realidade, mas, acima de tudo, viu, registrou, devo lveu o que foi apreendido ao seu leitor. A proposta de construção de uma poesia que se origina na realidade não exige, obrigatoriamente, a elaboração do verso comum, espelhamento fiel do que se vê. Ainda que não consideremos apenas uma poesia conceitual na obra de Drummond, claro está que de todo não é possível pensar em registro inequívoco do real. A festejada obra A Rosa do Povo é o maior exemplo de uma poesia que propicia ao leitor a compreensão da realidade circundante, perpassada pela visão crítica do autor. Não é leitura para muitos. Os poemas delineiam-se por uma estética que, no dizer de Álvaro Lins, contém “uma substância em parte popular, ao lado de uma forma difícil e não disposta às concessões, um estilo aristocrático e por isso inacessível ao grande público”. (PC, p. XLVIII). Todavia, outra possibilidade de compreensão do real é a construção subjetiva de quem o observa. Essa proposição foi seguida pelos escritores contemporâneos, mesmo durante o Realismo, ainda que seus proponentes indicassem uma extrema objetividade no fazer literário. É importante notar que Auerbach defende a idéia de que somente através de uma visão subjetiva do mundo a literatura adquire verossimilhança, visto aproximar-se mais do leitor, o qual melhor se identifica com o texto. Assim, por mais que se insista na tese de objetividade literária, especialmente na poesia política, na “poesia de intervenção”, consideramos, como Auerbach, a impossibilidade de se excluir do texto uma ação da subjetividade sobre o que é fato literário. Tal ação subjetiva deu-se muito claramente, como vimos, na arte de Flaubert. Destaca- 118 mos, mais uma vez, a disposição autoral de permitir que o leitor interprete, pelos dados que lhe são oferecidos, o mundo e a personagem que nele atua ? ou, mais precisamente, no caso de Madame Bovary, interpretar o mundo que atua sobre a personagem. Esse recurso de construção do texto não foi esquecido pelos nossos escritores contemporâneos. Na evolução do texto que mimetiza a realidade, a subjetividade alcança maior importância na medida em que passa a ser a estância onde todas as coisas adquirem valor. A personagem se compreende pelas circunstâncias que o rodeiam e o leitor apreende o texto porque lhe é permitido vivenciar subjetivamente cada cena, visto que o narrador pouco interfere em sua leitura. Tal recurso também se faz presente na poesia, quando o sujeito poético evidencia mais o objeto do poema e o oferece diretamente ao leitor, sem que a sua própria interpretação impeça uma construção do real pela subjetividade de quem lê: SINAL DE APITO Um silvo breve. Atenção, siga. Dois silvos breves: Pare. Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna. Um silvo longo: Diminua a marcha. Um silvo longo e breve: Motoristas a postos. (A este sinal todos os motoristas tomam lugar nos seus veículos para movimentá-los imediatamente.) (ibid., p. 24) O poeta Drummond ainda realiza um outro movimento subjetivo, na elaboração da realidade em seus textos. Neste caso, o sujeito poético domina a realidade, investiga-a, para, aí, sim, refazê- la com as marcas de sua subjetividade. A realidade entranha-se em seus versos, neles fica, e caprichosamente deixa-se observar ou ? conceitualmente ? analisar. É dessa forma que consideramos o poema “Diálogo”, do livro A Falta que Ama, publicado na segunda parte de Boitempo (1968). O sujeito poético perscruta a realidade, mas não se isenta de compreendê- la através da própria subjetividade, destacando relações que passariam despercebidas a um observador comum. Os recursos de linguagem que se fazem instrumento 119 de construção do poema redimensionam o real e possibilitam ao sujeito evidenciar novos valores. Os elementos que observa são tangíveis, mas a maneira como os inter-relaciona o poeta reveste cada um de configurações diversas: No banco do jardim o velho conversando uma forma de flor. O amor dos cachorrinhos oferta -se em exemplo inútil para o velho maligno para a flor. O velho conversando o banco no jardim de onde a flor deserta. O velho conversando-se é banco de jardim mas em jardim nenhum. (ibid., p. 682) Ao eleger o objeto de seu poema, Drummond traduz a realidade que observa. Todavia, a imagem que capta e o conceito que nela se identifica participam de uma subjetividade que se pretende especular do real. A inter-relação sujeito/objeto inscreve nos versos um movimento poético dúplice: o elemento exterior ao ser conforma-o na medida em que sobre ele atua através do processo de mimesis; o sujeito reconduz e redefine as coisas externas mimetizadas a partir do momento em que, absorvendo as suas propriedades, é capaz de reinventá- las e redimensioná- las no espaço/tempo em que subsistem. 5.2 - Signos do homem real: subjacentes ao mundo, libertos no verso Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas. José de Almada Negreiros 120 Através da exposição das aspirações, angústias e problemas cotidianos da classe burguesa, a mimesis da realidade pôde estender-se para além da imaginação do escritor. Agora, é possível, pela observação da vida, explicitar a realidade no texto literário. Além disso, após o evento da Paixão de Cristo, cada indivíduo adquiriu o direito de expressar seu próprio sofr imento, colocando-se em evidência num mundo que, na Antigüidade, promovia o seu apagamento social e humano. Por outro lado, apesar dessa nova possibilidade cristã de exaltação da individualidade, a sociedade ainda exerce sobre o homem uma força que o impele, muitas vezes, a caminhos e sentimentos que não sejam a eles imanentes. Assim, com Stendhal descortina-se uma tendência da literatura realista pela qual o homem, pressionado por fatores externos, adquire consciência social. E Balzac também investe nessa forma de fazer arte mimética, intensificando a proposta de Stendhal na medida em que também observa o confronto de seus personagens com a natureza, e não apenas com as questões sociais. Entretanto, a ideologia das classes menos privilegiadas só terá voz pela literatura de Zola, que, ao proclamar a prevalência da medicina experimental sobre outras formas intuitivas de saber, assume a estética do feio, mas não se isenta de empreender um novo estilo no qual a realidade possa, de fato, com todos os seus matizes, estar presente no texto literário. Esse novo posicionamento do escritor leva, mais adiante, à compreensão da tese bakhtiniana, segundo a qual todo signo possui uma carga ideológica que atua sobre a realidade, modificando-a.Vemos, aqui, uma nova concepção do fazer literário e das suas relações com a realidade, pois não se trata mais de mimesis, mas de reinterpretação do real, o que se dá pela palavra. Trata-se, na verdade, de um processo de autoconsciência que se expressa no texto, destacando do real o que o autor/sujeito poético determina seja essencial como ideologia. Por essa proposta, objetos do poema ganharão nome e forma humanos, segredarão dores, serão consolados ou alertados pelo sujeito poético que entende e expressa a sua vivência, compartilha de sua desesperança. Esses objetos vão nos contar suas histórias; a realidade tor- 121 nar-se-á, muitas vezes, tensa para o leitor; mas a densidade com que é exposta, verso a verso, impele quem o lê à cumplicidade do que lê, por um exercício de subjetividade que se instiga em cada signo. Do cotidiano saltam aqueles que habitam os versos do poeta, como em “Caso do Vestido”, de A Rosa do Povo, poema no qual a realidade triste de uma vida sem cores é percebida em matizes subjetivos que conferem ao texto enorme dramaticidade: Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego? Minhas f ilhas, é o vestido de uma dona que passou. Passou como, nossa mãe? Era nossa conhecida? Minhas f ilhas, boca presa. Vosso pai evém chegando. (...) Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida, se fechou, se devorou, chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, (...) (ibid., 160-1) A figura da pessoa simples, alijada durante séculos da literatura, aparece sem a comicidade que os textos antigos lhe conferiam. O poema revela uma consciência social do sujeito poético que os signos expressam por pertencerem ao âmbito do real, e intensificam uma subjetividade que aproxima o leitor do objeto configurado, atribuindo a tal objeto uma importância antes não obtida devido aos olhares desatentos da sociedade. O reconhecimento do homem como centro da dinâmica do mundo, condutor e conduzido, possibilita a criação de versos que se constroem a partir de uma figura central. Girando em torno dela, os fatos e as ocorrências podem alterar- lhes a configuração ou serem por ela alterados. 122 Os poemas elegíacos de Viola de Bolso I (1952) evidenciam tal proposta. Poetas, pintores, livreiros e até personagens que transcendem a existência das letras possuem, nos versos de Drummond, os mecanismos que dinamizam o mundo e interferem na realidade. O mundo concretiza-se a partir das propriedades que o poeta lhes atribui: A LYGIA FAGUNES TELES Após a leitura de tua novela (é Literatura!) quem se esquece dela? Miro-me no espelho. Vejo, com assombro, um cacto vermelho florir no meu ombro. (ibid., p. 329) Proposta antitética é apresentada na obra Fazendeiro do Ar (1954), em cujos poemas o mundo real submete o homem às suas vontades. A concretude do mundo pesa sobre a existência: enfeia, muitas vezes; desilude, quase sempre; joga-a no vazio. O mundo é o “Domicílio” do homem real, pobre e irresoluto, inadequado à vida, sem consciência de si mesmo: ...O apartamento abria janelas para o mundo. Crianças vinham colher na maresia essas notícias da vida por viver ou da inconsciente saudade de nós mesmos. A pobreza da terra era maior entre os metais que a rua misturava a feios corpos, duvidosos, na pressa. E do terraço em solitude os ecos refluíam e cada exílio em muitos se tornava e outra cidade fora da cidade na garra de um anzol ia subindo, adunca pescaria, mal difuso, problema de existir, amor sem uso. (ibid., p. 400) É assim que, por inúmeras vezes, o mundo real se apresenta ao poeta com propriedades insubmissas. Sofre a crítica, mas não se dobra ante a visão devastadora do sujeito poético; o gume das palavras não redesenha a realidade. 123 Versiprosa (crônica da vida cotidiana e de algumas miragens), de 1967, é um livro de temática exclusivamente política. Em nota introdutória, Drummond esclarece que “as farpas dirigidas nestes escritos à ação de políticos jamais filtraram paixão ou interesse partidário nem assumiram cunho pessoal”. (ibid., p. 508) O sujeito poético põe em discussão os políticos e suas ações à luz da História; investiga os fatos, reflete sobre os resultados, questiona e contraargumenta; e, como o poeta mesmo admite, dirige suas farpas. A escrita literária registra-se como escrita da História, pois os signos que se apresentam de maneira formal falam da sociedade, das circunstâncias e dos fatos históricos, em relação profunda. “A História apresenta-se então ao escritor como o advento de uma opção necessária entre várias morais da linguagem; obriga-o a significar a Literatura segundo possíveis que ele não domina.” (BARTHES, 1997, p. 12) Não escapariam ao verso drummondiano os desmandos da ideologia política, denunc iados no poema “HF”, datado de 9-12-1956: (...) Diz-que os comunas vão levar no coco de norte a sul, entendes? se o Congresso aprovar essa lei. Repórter Esso, já te escuto gritar o fato louco: “Atenção, atenção, foi preso agora D. Helder Câmara. Este perigoso agitador que entre favelas mora, pregava a caridade, no Matoso”! Estão eles mandando, lá na Guerra? Há quem diga. Mas pensa o Condestável expungi-los somente se a implacável lei vigorar em nossa pobre terra? Fidelidade, amor, fidelidade, não a de som e tom e alto -falante... Antes sem som nenhum, enquanto invade nosso país a noite sufocante. (ibid., p. 533-4) O mundo real é apreensível pelo verso. É preciso deter imagens e fatos, para que se possa compreendê- los, refletir sobre eles, e, se possível e necessário, modificá-los. 124 Em As impurezas do branco (1973), os signos desvelam a realidade, sem subterfúgios, como no longo poema “Diamundo – 24 H de informação na vida do jornaledor”, no qual o poeta constrói seu texto a partir de notícias e anúncios sobre o mundo, em segmentos e dimensões diversos. Os fatos do mundo devoram o dia, devoram o homem: (...) A China é azul no Teatro Ipanema Teólogos holandeses observam: Jesus jamais se declarou Deus (...) Mortalidade infantil decresce em países do 3. o mundo mas a dieta dos sobreviventes diz J.M. Bengos da Organização Mundial de Saúde continua deficitária e os cromossomos se alteram nas crianças mal nutridas segundo pesquisadores mexicanos (...) Viúva fluminense, 37, almeja travar relação de alto nível com senhor de maneiras aristocráticas tendo em vista somente pura degustação intele ctual. (...) Bomba francesa explode no Pacíf ico Seqüestrador faz explodir avião Nasce em Bogotá um menino inteiramente verde-mar. UPI-AP-AFP -ANSA -JB (ibid., p. 709-718) O homem não pode subverter a verdade inexorável: o fim de sua existência. É assim que o poeta investiga o que há no mundo de mais real. Desenha “Cemitérios” em versos, e entre muitos até mesmo o cemitério “De bolso”: Do lado esquerdo carrego meus mortos. / 125 Por isso caminho um pouco de banda. (ibid., p. 405) O tempo determina a disposição anímica do ser. O tempo se faz-desfaz em espelhos que revelam a face em mutação, trazem desordem para a vida, destroem as certezas. Na lírica revela-se a possibilidade de existência, apesar do mundo acossar o sujeito, que se propõe a “Habilitação para a Noite”: Vai-me a vista assim baixando ou a terra perde o lume? Dos cem prismas de uma jóia, Quantos há que não presumo. (...) E não quero ser dobrado nem por astros nem por deuses, polícia estrita do nada. Quero de mim a sentença como, até o fim, o desgaste de suportar o meu rosto. (ibid., p. 399) O homem pode, entretanto, desafiar a força esmagadora da realidade. O tempo cronológico, concreto e implacável domina o homem. O sujeito poético compreende a proximidade do fim. Mas não se deixa vencer por completo, retém o tempo, que um minuto lhe serve como existência infinita: A DISTRIBUIÇÃO DO TEM PO Um minuto, um minuto de esperança, e depois tudo acaba. E toda crença em ossos já se esvai. Só resta a mansa decisão entre morte e indiferença. Um minuto, não mais, que o tempo cansa, e sofisma de amor não há que vença este espinho, esta agulha, fina lança a nos escavacar na praia imensa. Mais um minuto só, e chega tarde. Mais um pouco de ti, que não te dobras, e que eu me empurre a mim, que sou covarde. Um minuto, e acabou. Relógio solto, indistinta visão em céu revolto, um minuto me baste, e as minhas obras. (ibid., p. 402) 126 O sujeito poético não apenas presencia o mundo, mas sobre ele atua e dele sofre a dinâmica do existir. A vontade do mundo que nele se manifesta, força que determina os seus movimentos e seus sentimentos, impede a expressão liberta da subjetividade. Uma necessidade se impõe, e o sujeito poético a ela concede o seu movimento e, em conseqüência, intensifica seu estar-no-mundo, o que “pode ser um modo de capacitar o olhar para ‘enxergar’ o outro, afinar a sensibilidade para predispor-se ao convívio”. (MARIA, 1998, p. 17) Ter os olhos voltados para o mundo é atitude que se traduz no “Poema da Necessid ade”: É preciso casar João, é preciso suportar Antônio, é preciso odiar Melquíades, é preciso substituir nós todos. É preciso salvar o país, é preciso crer em Deus, é preciso pagar as dívidas, é preciso comprar um rádio, é preciso esquecer fulana. É preciso estar volapuque, é preciso estar sempre bêbedo, é preciso ler Baudelaire, é preciso colher as flores de que rezam velhos autores. É preciso viver com os homens, é preciso não assassiná-los, é preciso ter mãos pálidas e anunciar o FIM DO MUNDO. (PC., p. 68-9) O sujeito poético pode ou não interferir no destino do ser que tenciona no verso, pela dramaticidade que imprime, pela vo ntade a que se curva. Há uma consciência de que a poesia lhe confere um poder incomum aos homens; que o signo que se liberta, no verso, de opressões diversas, também promoverá a liberdade. O poeta poderia salvar os homens, utopicamente. Mas a realidade que se impõe prevê uma dinâmica destrutiva, na qual podemos reconhecer uma certa finitude antropológica, sem que, no entanto, se vislumbre a figura do super-homem em retorno no fim da História. 127 Michel Foucault compreende que a disposição do saber do século XIX fez surgir a finitude da existência humana, concomitantemente com a historicidade da economia e um prazo para o fim da História. O filósofo analisa a finitude antropológica: (...) o tempo dos calendários poderá certamente continuar; mas será como que vazio, pois a historicidade se terá superposto exatamente à essência humana. O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de olvido, de alienação, será captado numa finitude antropológica que aí encontra em troca sua manifestação iluminada. A finitude com sua verdade se dá no tempo; e, desde logo, o tempo é finito . O grande devaneio de um termo da História é a utopia dos pensamentos causais, como o sonho das origens era a utopia dos pensamentos classific adores. (FOUCAULT, 2000, p. 361) Nenhum poema nos aparece com maior expressão dessa dinâmica do que “José”, figura em torno do qual o mundo gira, mas que, embora movido por algum desejo que persiste, não pode escapar ao reconhecimento do fim de si mesmo pelo fim do tempo: E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? (PC, p. 106) Toda e qualquer possibilidade de reconstituição do ser e reconstrução da vida é direcionada para o tempo e o lugar da não-existência: Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu 128 e tudo mofou, e agora, José? (...) (ibid.) Se há uma perplexidade na figura poética composta, o José-sem nada, no leitor sobrevém um desencanto com o próprio sujeito poético, o qual não promove uma ação libertadora. Talvez porque não possa oferecer o que não encontra em si mesmo: Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? (...) Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde? (ibid., p. 107) Todavia, a angústia e o assombro não são as únicas perspectiva s adotadas pelo sujeito poético. É fato que o homem, ao par das possíveis leituras filosóficas que dele se faça e ao par do lugar que se lhe dedique na História, surge com toda sua realidade inconteste. E o poeta submete-o ao mundo que promove sua reificação; mas, por outra dinâmica, pode libertá- lo no verso. Os signos de que se vale propõem recontar sua história, enfrentar o tempo que o torna nulo, ser agente de si mesmo pelo desejo que o poema acusa. O homem busca a completude. Ter um filho realiza-se apenas como vontade. A realidade marca o vazio; o verso, a plenitude. O homem subjaz ao mundo, mas o poeta reinventa-o pela vontade do sujeito poético, restitui- lhe a parte perdida de sua existência. Assim, na obra Claro Enigma (1951), “Ser” constitui-se somente pelo desejo de ser, falta do que se preenche 129 no verso: O filho que não fiz hoje seria homem. Ele corre na brisa, sem carne, sem nome. Às vezes o encontro num encontro de nuvem. Apóia em meu ombro seu ombro nenhum. Interrogo meu filho, objeto de ar: em que gruta ou concha quedas abstrato? Lá onde eu jazia, responde-me o hálito, não me percebeste, contudo chamava-te como ainda te chamo (além, além do amor) onde nada, tudo aspira a criar-se. O filho que não fiz faz-se por si mesmo. (ibid., p. 254-5) É reinventando o homem que o poeta Drummond reinventa a realidade. Se o mundo oprime, aprisiona e esmaga o ser, é possível, através do verso, propor a liberdade do existir. “Em todos os tons — irritado, zombeteiro, sarcástico, irônico, resignado, cruel, brincalhão — Drummond fez a leitura do mundo ao seu redor”. (MARIA, 1997, p. 51) Decalcando caracteres para redimensioná-los no real, investigando a vida conceitua lmente ou pela observação crua dos fatos, projetando a existência, o sujeito poético drummondiano identifica o ser humano na poesia que expressa, antes de tudo, a essência anímica do ser. 130 5.3 - A subjetividade como expressão estética e estilística na poesia drummondiana Para o lado de dentro há outro mundo, maravilhoso. É preciso explorá-lo. A vista do artista concentra-se sobre o lápis; este se move e a linha sonha. Herbert Read Pessoas, lugares, coisas e fatos formam-se como objeto na poesia de Carlos Drummond de Andrade. O poeta comunica ao mundo o que vê e apreende pelo exercício constante da observação. Sua poesia é factual e informa ao leitor sobre o que se presentifica nos ve rsos, quase sempre sem que haja obstáculos entre o signo e o significo depreendido. Se inventaria rmos a poesia de Drummond, veremos que sua obra é marcada por uma inequívoca alteridade, considerando que o objeto que o autor define não se submete a interpretações que desconfigurem substancialmente a matéria de que se forma. Nomes se sucedem em rito poético regular, caminho fácil de análise. Especialmente em Viola de Bolso (1952), Drummond homenageia personalidades diversas, identificadas nos títulos dos poemas. “Abgar Renault”, “Jorge de Lima”, “Murilo Mendes”, “Portinari” e tantos outros têm suas melhores e mais evidentes qualidades expressas em versos. Objetos variados também se transformam em poemas: “Um Livro” “Um Retrato”, “Um Cinzeiro”, “Cadeira de Balanço”. E fatos e circunstâncias: “Setentão”, “No Aniversário do Poeta”, “Passeios na Ilha”. O que ressaltamos, na verdade, é um estilo literário que marcou toda a obra de Carlos Drummond. O caráter noticioso de sua poesia, que já evidenciamos anteriormente, conformou seus versos a uma escritura austera, pouco afeita a excessos de linguagem. Qualquer análise do processo estilístico em Carlos Drummond de Andrade se inicia, necessariamente, com o estudo de Gilberto Mendonça Teles sobre a estilística da repetição. Não recusando a evidência, reproduzimos o pensamento do teórico: 131 O objetivo da repetição é o de ativar a imaginação e levar ao le itor a prolongar em si aquele instante do ato criador em que o esforço da intuição e da inteligência pressiona o material lingüístico, amo ldando-o ao individualismo da fala, ou do estilo. (TELES, 1970, p. 48) Atendendo as duas propostas indicadas por Mendonça Teles, a fala e o estilo, o poema “Censo Industrial”, publicado em Boitempo (1968-1973-1979) ? obra à qual o autor consagra diversas experimentações lingüísticas ? , representa um diálogo que se enquadra perfe itamente na estilística da repetição: Que fabricas tu? Fabrico chapéu feito de indaiá. Que fabricas tu? Queijo, requeijão. Que fabricas tu? Faço pão-de-queijo. Que fabricas tu? Bolo de feijão. (...) (PC, p. 1031) Sob essa perspectiva, o autor avança a análise do recurso da repetição na poesia drummondiana, com destaque absoluto para o caráter estilístico dos textos. O crítico Silviano Santiago, em texto introdutório à obra completa de Drummond, destaca que o processo estético que se exacerba, especialmente em Lição de Coisas, é decorrente de uma desilusão ideológica. (ibid., p. IV) Os poemas que compõem o livro dão conta de uma realidade que se constrói pelo tangível da existência, e que se reconstrói nos versos pela estética drummondiana. Constata-se a busca pela origem de uma língua e de um lugar, em substituição à realidade que se imprimia na percepção do poeta com suas marcas sócio-ideológicas: sapopema erva de chumbo mororozinho salvina água redonda açucena sete sangrias majuba sapupira pitangueira Maria mole puruma puruí rapé dos índios coração de negro aipé (ibid., p. 457) 132 A desilusão ressaltada por Santiago talvez esclareça dois caminhos poéticos que encontramos em Lição de Coisas. O primeiro, como já destacado, é a revelação de um mundo que se apresenta em suas formas reduzidas, o que se explica por estar o poeta seduzido “por um possível significado extranoticial” (ibid., p. 454) O segundo caminho poético que analisamos identifica a existência de uma estesia poética que altera a realidade na qual estão envolvidos os personagens da lírica drummond iana. O resultado, percebemos, é a reconstrução estética da realidade, o que confere ao sujeito poético um distanciamento do objeto em foco, estabilizando-o no campo da alteridade. Assim, figuras da vida comum desfilam no poema e explicam o que é real, como “O Sátiro” Hildebrando; “Ataíde”, o alferes de milícias; ou “O Muladeiro” José Catumbi: José Catumbi estava sempre partindo no mapa de poeira. Almoçava ruidoso, os bigodes somavam-se de macarrão. As bexigas não sabiam sorrir. As esporas tin iam cordiais saudações (ibid., p. 460). Sobre o processo estético em Drummond, Houaiss afirma: Carlos Drummond de Andrade é consabidamente (e pior é o cego que não quer ver) um senhor mestre da língua, cujas atualidades, mas sobretudo cujas potencialidades explora expressionalmente com tais ineditismos e inauditismos, que se lhe há de reconhecer o direito-dever de superpor-se à norma, infringi-la, recriá -la, adentrando-se no sistema da língua e apreendendo deste os filamentos, meandros e conexões potenciais, as células generatrizes, para trazê-las à luz da expressão. (HOUAISS, 1976, p. 19) Essa propriedade de Drummond indicada por Houaiss, a de se sobrepor às normas lingüísticas, tornou exeqüíveis poemas de surpreendente valor estético, que transitam entre o ludismo e a emoção, como na inusitada “Declaração de Amor”: Minha flor minha flor minha flor. Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro. Minha peônia. Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão. Minha gérbera. (...) Violeta... Amor-mais-que-perfeito. Minha urze. Meu cravo-pessoal-de-defunto. Minha corola sem cor e nome 133 no chão de minha morte. (PC, p. 1225) Todavia, não é a compreensão estratificada do estilo e da estética o que elegemos como proposta de trabalho. É nosso desejo identificar a carga de subjetividade que se pode imprimir ao poema, a despeito da estesia do verso, ou, diversamente, reconhecer os mecanismos de construção da subjetividade sob os preceitos da estética e da estilística. Assim é que, para além da simples forma, o verso pretende alcançar, pela estética, o estatuto da existência: O marciano encontrou-me na rua e teve medo de minha impossib ilidade humana. Como pode existir, pensou consigo, um ser que no existir põe tamanha anulação de existência? (ibid., p. 488) Mais uma vez, Antônio Houaiss recebe-nos em sua crítica, quando considera que o leitor não pode apropriar-se do objeto que se oferece no poema e interpretá- lo de acordo com seu livre arbítrio, porque, na obra de Drummond, “se está diante de um objeto poético carregado de sujeito, de todo o mundo subjetivo da Obra: só com essa carga pode ele funcionar”. (HOUAISS, 1976, p. 25) Nesse caso, a subjetividade possível está contida pelo real que a expressa. O verso estético é um elemento do jogo entre o que é tangível e o que é captado pela visão subjetiva do poeta. Porque, ainda que permaneça o recurso estilístico de definir inequivocamente o objeto do poema, agora vem ele adjetivado e redimensionado em propriedades estranhas à sua existência, colhidas pela impressão do sujeito poético: MÁRIO LONGÍNQUO No marfim de tua ausência persevera o ensino cantante, martelo a vibrar no verso e na carta: A própria dor é uma felicidade. (O real, frente a frente, de perfil ou de ponta -cabeça, tal fruto gordo colhido e triturado, transformado, por sobre as altas vergas que emolduram 134 a morte.) (...) Mário arco-íris, mas tão exato na modenatura de suas cores e dores, que captamos a só imagem de alegria e azul disciplinado, lá onde, surdamente, turvação, paciência e angústia se mesclaram. Tão mesquinha, tua lembrança fichada nos arquivos da saudade! Vejo-te livre, respirando A fina luz do dia universal. (PC, p. 479-480) Confirmamos, portanto, o caminho de nossa análise. Muito embora o processo estético atenda, prioritariamente, a uma exegese qualificada na construção formal do verso, o engenho de poetas como Drummond não se restringe a interpretações estruturais. A estética não pode ser uma matriz reducionista da prática literária, proposição que se fundamenta em teses há muito consolidadas: O prazer estético que anima o jogo da criação é, para Kant, puramente subjetivo, pois se exerce com representações e não com a realidade do objeto. Haveria uma verdade estética própria da representação e que não precisa coincidir com a verdade objetiva. (BOSI, 1991, p. 15) Em Alguma Poesia (1930), encontramos um exercício de subjetividade que se ensaia na literatura engajada e Drummond. No poema “Nota Social”, após seguidos versos em que o mundo objetivo se revela sob breves sentenças ? mais um interessante recurso estilístico que se repetirá por toda obra drummondiana ? , o sujeito poético cede à subjetividade que, naquele instante, o oprime, ainda que a construção dos versos indique uma tentativa de distanciamento entre o poeta e o sujeito poético: (...) O poeta entra no elevador o poeta sobe o poeta fecha-se no quarto. O poeta está melancólico. (PC, p. 20) 135 A repetição serve a um propósito maior do que a própria poesia. Reflete o estado de ânimo do sujeito poético frente ao objeto do poema que elege. A repetição intensifica a perplexidade, a constatação de que tudo pode ser igual, mas o homem é “Igual-Desigual”: (...) Todas as guerras do mundo são iguais. Todas as fomes são iguais. Todos os amores são iguais iguais iguais. Iguais todos os rompimentos. A morte é igualíssima. Todas as criações da natureza são iguais. Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais. Contudo, o homem não é ig ual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Não é igual a nada. Todo ser humano é um estranho ímpar. (ibid., p. 1207) Repetir perguntas, “Por Quê?”, é lançar sobre o “outro” a subjetividade que não se contém em si mesma, dúvida, amargura e angústia que se deseja compartilhar por vo ntade de alento: Por que nascemos para amar, se vamos morrer? Por que morrer, se amamos? Por que falta sentido ao sentido de viver, amar, morrer? (ibid., p. 1242) Por fim, destacamos mais um processo estético e estilístico que direciona a interpretação para a subjetividade poética: a rememoração dos fatos. Reproduzimos a opinião de Affonso Romano de Sant’Anna: Como objetivação de um estado da consciência -memória, a poesia drummoniana realiza a síntese do subjetivo e do objetivo. Aí se confirma que ela é um objeto que contém outras objetos, ou ainda melhor: que ela é encontro do sujeito e do objeto numa nova forma. (...) Aqui não há separação entre sujeito e objeto, entre o interior e o exterior. (SANT’ANNA, 1972, p. 204) Memórias de infância, memórias de família, memórias de amigos, memórias de amor. Memórias de si mesmo. Lembrar forma-se como estilo. O sujeito poético drummondiano vale-se da estética para recordar o que, sendo passado, permanece presente na lembrança. A 136 “Memória” interpõe os tempos e vo lta em versos ritmados, breves, nos quais o sujeito registra impressões sobre um objeto que não revela: Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisa tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. (PC, p. 252-3) 5.4 - Uma leitura dos textos de Drummond, segundo a evidência do “eu” Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência E a consciência disso!... Fernando Pessoa A investigação da poesia de Carlos Drummond de Andrade sugere-nos dois caminhos fundamentais e amplamente estudados pela crítica literária: o primeiro diz respeito à sua proposta de discussão da sociedade a partir das grandes questões que a norteiam; o segundo concerne a uma compreensão da realidade considerando fatos cotidianos, o que leva o leitor à imersão direta em sua poesia, alijando-se do sujeito poético. As duas propostas devem ser consideradas, e já foram aqui discutidas. Todavia, projetamos excedê- las e realçar a subjetividade que permeia a construção literária drummondiana. Porque, como denuncia o poema 137 “Máquina do Mundo”, inserido em Claro Enigma (1951), nem sempre o sujeito poético de Drummond esteve a serviço da percepção e análise da realidade. O poema comporta uma subjetividade que pode ser compreendida pela metafísica, como sugere Alfredo Bosi: Lendo “A Máquina do Mundo” de Carlos Drummond de Andrade, recebe-se o impacto de uma narrativa de teor metafísico na qual o eu poético, palmilhando uma estrada de Minas pedregosa, é agraciado pelo dom súbito do universo que se abre às suas retinas fatigadas e lhe concede a visão dos seus mistérios. À graça inesperada seguem-se a fala do mundo e a procissão das suas riquezas. A oferta, porém, é recusada pelo viajor, que outrora já buscara em vão o sentido das coisas, e agora, tomado de pura acídia, deixa que a máquina do mundo se feche para sempre, tornando ele ao clima existencial do início do poema, feito de melancolia e perplexidade”. (BOSI, 1991, p. 61) No texto, o sujeito poético caminha lentamente, quando percebe a sua integração com o mundo, o qual se revela após ele já ter desistido dessa empreitada: E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado, a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. (...) (PC, p. 301) O sujeito poético percebe, então, toda uma realidade que transcende / a própria imagem sua debuxada / no rosto do mistério, nos abismos. (ibid.) É então que uma voz lhe garante ter ele alcançado “essa total explicação da vida”. Contrariamente a uma atitude que tomaria antes, quando o comandava um anseio de conhecer a realidade de todas as coisas ? e que se espelharia na proposta poética secular ? , o sujeito poético declina do oferecimento, e explica: 138 (...) Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, a esperança mais íntima ? esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol se filtra; (...) baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho. A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagoroso, de mãos pensas.(ibid., p. 303-4) O poema nos revela algo que, por uma visão impressionista, já havíamos detectado: o poeta, em determinado momento, desiste de estabelecer-se em relação ao mundo, e imerge no seu silêncio, na sua dor, no sentimento amoroso que se deflagrará em sua poesia, marcas incontestes de subjetividade. Assim explicamos um caminho de labor investigativo que se afasta, ainda que não radicalmente, da crítica comum à obra de Carlos Drummond de Andrade. O problema a ser investigado, no caso de Drummond, é se a sua poesia revolucionária, dotada de paradigmas idealistas e ideológicos, é de fato e tão-somente um real exercício de transferência de si para o “outro”, ou se residiria no alicerce de sua construção poética uma busca pela expressão de subjetividade, possível de se realizar apenas quando se abdica do próprio exercício vital para alcançar o cerne do que está no lado contrário de sua trajetória. O que propomos como análise é se Drummond teria realmente abdicado de sua subjetividade ao aliar-se às tendências marxistas e realistas que vigoravam à época de sua mais extensa produção literária, ou se, ao contrário, a subjetividade que expressa no texto existe, apenas, porque a realidade a constrói e controla. Instiga-nos a possibilidade de que, para Drummond, a subje- 139 tividade poética é imanente à realidade apreensível. Nossa leitura não se dimensiona, necessariamente, sob o valor de conceitos críticos estabelecidos ao longo de toda a análise empreendida sobre a obra drummondiana. Porém, consideramos fazer parte dos estudos que intentamos uma proposta crítica já ordenada que nos alargue a visão que temos sobre a poesia de Drummond. Assim, cedemos a uma compreensão de Gilberto Mendonça Teles que nos parece vir ao encontro de nossos anseios. O autor identifica dois momentos cruciais na obra de Carlos Drummond de Andrade, que assim delimita: Toda a sua obra obedece, de um modo geral, a dois tempos estilísticos e se divide igualmente por eles, não descrevendo uma curva marcada por um estágio ascendente e outro descendente. São dois estágios evolutivos que se completam numa verticalidade bastante nítida: o primeiro termina com a Rosa do Povo, em 1945, nele predominando aquele objetivismo vincado de solidariedade humana, como se percebe nos títulos de obras como Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo; o segundo, evoluindo do primeiro, constitui a vertente luminosa de sua obra poética, prevalecendo aqui toda a inquietação expressiva do poeta, sobretudo em livros como Claro Enigma, A Vida Pa ssada a Limpo e Lição de Coisas, todos eles assinalados por um sentido superior de arte, uma busca ansiosa de um universalismo estético admiravelmente logrado. (TELES, 1970, p. 15) Destacamos, então, duas idéias que nos auxiliam: o “objetivismo vincado de solidariedade humana”, o que nos leva direto para o conceito de alteridade, e a “inquietação expressiva”, indubitável caminho construído pela subjetividade. De 1930, com Alguma Poesia, a 1940, data do lançamento de O Sentimento do Mundo, nosso poeta passou da estética modernista a um acentuado discurso aliado aos ideais de esquerda que desembocará, de maneira insubjugável aos falares sociais, em A Rosa do Povo, livro publicado em 1945. Investigando esse percurso, temos de imediato a definição de um poeta realista que encontra no espelhamento mimético da sociedade de que faz parte a sua diretriz poética. Essa a análise mais premente da poesia drummondiana, discutida mesmo pelo poeta, da qual não nos isentamos. Entretanto, interessa-nos, por ora, identificar marcas de uma subjetividade intensa, expressa na poesia de viés político, visto ser corrente no processo analí- 140 tico considerar a projeção no “outro” uma necessária anulação de si. Cabe, no entanto, interrogar se Drummond não construiu um caminho contrário, ou seja, se em sua poesia percebemos que o sujeito poético não se projeta no “outro”, mas projeta o “outro” em si para ser sujeito. É fato que a experiência autobiográfica presente na poesia é, em primeira instância, exercício de subjetividade. E o próprio Carlos Drummond de Andrade deixou claro para o leitor essa proposição (“Minha poesia é autobiográfica”.) (SANT’ANNA, 1972, p. 28) Ta mbém não negamos a idéia de que toda expressão poética encerra uma visão de mundo que insere o sujeito em cada verso. Todavia, não podemos deixar de ressaltar que os discursos ideológicos de esquerda fundam-se na idéia de alteridade. Ainda que diversas análises sobre a obra de Carlos Drummond dêem- nos conta de uma individualidade presente nos seus poemas, mormente sejam eles de caráter impessoal ? e aí reside, segundo Affonso Romano de Sant’Anna, um dos grandes segredos da poesia drummondiana, o “caráter altamente pessoal de sua impessoalidade” ( ibid.) ? , buscamos a compreensão de uma subjetividade que se intensifica quanto mais cede sua existência ao “outro”. Não há dúvidas de que essa proposição foi plenamente alcançada por Carlos Drummond de Andrade, o que atestam os estudos diversos sobre o autor. Os críticos, de modo invariável, dão-nos conta de uma “proposta de escrever poemas pessoais e originais, e contraditoriamente passíveis de serem transferidos palavra por palavra ao leitor”. (PC, p. V) Constata-se a busca pela origem de uma língua e de um lugar: sapopema erva de chumbo mororozinho salvina água redonda açucena sete sangrias majuba sapupira pitangueira Maria mole puruma puruí rapé dos índios coração de negro aipé (ibid., p. 457) Entretanto, para além da simples forma, o verso pretende alcançar pela estética o esta- 141 tuto da existência: O marciano encontrou-me na rua e teve medo de minha impossib ilidade humana. Como pode existir, pensou consigo, um ser que no existir põe tamanha anulação de existência? (PC, p. 488) A realidade, ousamos dizer, não é apreendida pelo sujeito poético; ao contrário, o sujeito se deixa apreender pelo real circundante, o que impede uma permanência na subjetividade. O sujeito poético drummondiano quer encontrar-se como sujeito em seu ato poético, o que consegue, contraditoriamente, pela escritura da realidade. A poesia reflete os elementos externos que as retinas do poeta e a consciência do sujeito poético apreendem. O que não exclui a condição subjetiva que permeia o texto, expressa fundamentalmente, em Drummond, pelo que de sombrio o eu poético identifica no mundo que vê, considerando a matéria de seus poemas. Caso fosse apenas composta pela objetividade, não seria possível ao leitor envolver-se no arrebatamento que acomete o sujeito poético, para, com um olhar perscrutador, imergir nas mais profundas camadas da vida. A dialética objetividade/subjetividade intensifica os códigos propostos pelo autor. Cabe ao leitor decifrá- los e, nesse processo, decifrar também a subjetividade do sujeito poético. O que se apresenta no poema “Sol de Vidro”, da obra Brejo das Almas (1934) é uma impossível conciliação entre signos que nos indique precisamente a mensagem proposta. As imagens que devoraram o poeta devoram- nos na dificuldade de apreensão do texto. Apenas a sua subjetividade arquiteta esse entrelaçamento, porque o poema não se transfere com segurança ao “outro”; todas as imagens que nele transitam dão-se, somente, na concepção única de quem alcançou a própria subjetividade, a ela se submeteu e por ela expandiu-se em forma poética. A experiência da subjetividade dá-se em contato com a realidade. Há, na objetividade toda que o poema inscreve, um incontrolável grito de subjetividade que se expressa por signos em desequilíbrio, e assim são remetidos ao leitor, que os não define, mas também não se isen- 142 ta do arrebatamento de que se é capaz na interação com o poeta. SOL DE VIDRO O coração na sombra do relógio, que será de nós, que será de vós, as virgens passam implorando o soldado morto na colina. Vem de ti o rumor sem número, pontes, archotes, o que será mais, música e tarde para o fim, este instante não é o soluço. Quieto no tempo um lampião acende as mulheres atrás dos copos você sempre com a mesma boca não sei por que pressentimento acorda, Princesa, é o sol de vidro. (ibid., p. 45) Também pertencente a Brejo das Almas, o poema “Segredo” faz o leitor aventurar-se na busca de uma possível interpretação dos versos. O sujeito poético marca o texto por signos de negação, mas é por eles que intensifica a subjetividade: A poesia é incomunicável. Fique torto no seu canto. Não ame. Ouço dizer que há tiroteio Ao alcance do nosso corpo. É a revolução? o amor? Não diga nada. Tudo é possível, só eu impossível. O mar transborda de peixes. Há homens que andam no mar como se andassem na rua. Não conte. Suponha que um anjo de fogo varresse a face da terra e os homens sacrificados pedissem perdão. Não peça. (ibid., p. 59) O encontro com o “outro” não é negado, porque é através dele que a subjetividade revela-se. Como a realidade apreensível não promete o sorriso e a leve inconseqüência do viver, o “Convite Triste”, ainda em Brejo das Almas, expressa a possibilidade única do sentir, em 143 negativo: Meu amigo, vamos sofrer, vamos beber, vamos ler jornal, vamos dizer que a vida é ruim, meu amigo, vamos sofrer. Vamos fazer um poema ou qualquer outra besteira. Fitar por exemplo uma estrela por muito tempo, muito tempo e dar um suspiro fundo ou qualquer outra besteira. (...) Meu amigo, vamos cantar vamos chorar de mansinho e ouvir muita vitrola, depois embriagados vamos beber mais outros seqüestros (o olhar obsceno e a mão idiota) depois vomitar e cair e dormir. (ibid., p. 57) O que não podemos deixar de notar ainda, na poesia de Carlos Drummond de Andrade, é que a sua subjetividade, muitas vezes, é contida e construída pela realidade em que se insere o sujeito poético. Vemos um movimento poético no qual o sujeito, expandindo-se para além de si mesmo, encontra na realidade absoluta a estrutura que controla a subjetividade, a fim de que ela não se perca. É característica de Drummond e da “poesia de intervenção” não fugir ao propósito de vislumbrar o real tangível, com olhar crítico e perscrutador. Então é que se torna interessante observar como o sujeito drummondiano submete-se à realidade que compõe em seus textos, como se fosse ela instrumento de sua existência. Em O Sentimento do Mundo, vários são os poemas que exemplificam uma subjetividade contida pela realidade, construída pelo que há de apreensível na vida e se manifesta ante os sentidos do sujeito poético, desde um texto claramente autobiográfico, como o é “Confidência do Itabirano”, em cujos versos o sujeito declara ser a sua existência uma conseqüência imediata do que é a sua cidade natal (Alguns anos vivi 144 em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.) (ibid., p. 68) até a elaboração de uma consciência que dá conta do papel do poeta, como em “Mãos Dadas” (abaixo transcrito), da mesma obra, poema no qual a realidade e as coisas tangíveis sobrepõem-se ao sujeito. Não consideramos, entretanto, tratar-se, nesse caso, de uma ideologia que encerre a proposta de alteridade. O que vemos é uma subjetividade que, ao transcender, encontra no real a única via de controle, a fim de que o arrebatamento não seja um caminho sem retorno. A questão que se coloca é se o sujeito drummondiano abre mão de si para evidenciar a realidade, ou se, ao contrário, serve-se dela, com o intuito de não se perder em si mesmo: Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. (ibid., p. 80) O sujeito poético sabe o que não é, o que não vai ser. É a realidade presente que lhe permite compreender a própria subjetividade, que não se constitui como fantasia do real. Pelo contrário, o que se presentifica em sua vida é o que o poeta present ifica na vida: Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suic ida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. (ibid.) Ao poeta que enxerga de forma tão clara a realidade, que às vezes se detém na monotonia de “uma pedra no meio do caminho”, cabe fazer a ressalva de uma subjetividade que se experimenta no diapasão da existência, pois que tudo vibra para além do tangível. A imagem única da pedra compreende uma realidade que se desenha simbolicamente: uma pedra, um caminho e as retinas que absorvem a imagem levam o sujeito ao cerne da realidade construída 145 no fazer poético. Porquanto seja a construção da realidade um ato subjetivo, e ainda que seja a pretend ida compreensão do “outro” e do real a verdade de que se nutre a existência do poeta, há instantes em que um movimento multiplicador de si mesmo leva a criação poética a novamente buscar a exacerbação do sujeito. É o que depreendemos da le itura do poema “Um homem e seu carnaval”, de Brejo das Almas. Percebemos um “eu” que se fala. A poesia não pode recorrer, agora, ao mundo exterior, pois atende a um apelo maior do que as exigências do mundo: Deus me abandonou no meio da orgia entre uma baiana e uma egípcia. Estou perdido. Sem olhos, sem boca sem dimensões. As fitas, as cores, os barulhos passam por mim de raspão. Pobre poesia. (ibid., p. 46) As coisas reais perdem sua função primeva e assumem novas significações no mundo subjetivo construído pela poesia: O pandeiro bate é dentro do peito mas ninguém percebe. Estou lívido, gago. Eternas namoradas riem para mim demonstrando os corpos, os dentes. Impossível perdoá-las, sequer esquecê-las. (ibid.) Assim, experimentando e vivenciando todas as coisas, o sujeito poético descortina-se frente ao seu leitor: Deus me abandonou no meio do rio. Estou me afogando peixes sulfúreos ondas de éter curvas curvas curvas 146 bandeiras de préstitos pneus silenciosos grandes abraços lagos espaços eternamente. (ibid.) Em presença do objeto, o poeta vivencia o conhecimento do real. O que está fora de si exige ser compreendido e falado. Nesse momento, diante do que se estabelece como “outro”, o sujeito se lança no risco da alteridade. Todavia, investigando o que deve ser dito como alheio a si, o poeta entende que ver o que está fora só é possível se ele conseguir alhear-se de sua subjetividade. Assim, transcendendo a si mesmo, vive o arrebatamento da emoção específica que o objeto lhe proporciona. E compreende, enfim, que essa pode ter sido a sua máxima experiência de subjetividade. Essa transcendência subjetiva é o que identificamos no poema “Coração Numeroso”, inserido na obra Alguma Poesia, cujo título já indica a impossibilidade do sujeito poético de permanecer em uma só estância de existência. O texto se inicia como expressão da realidade: Foi no Rio. / Eu passava na Avenida quase meia-noite. (ibid., p. 20) Não demora, entretanto, a revelar que o sujeito do poema permite-se todas as experiências subjetivas que o mundo pode lhe oferecer: Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas numeráveis. (ibid.) O poeta estabelece um jogo no qual a realidade é absorvida pela visão artística, que nada mais é do que expressão do eu; projeta o espaço de sua emoção no espaço real que o circunda: (...) Havia a promessa do mar e bondes tilintavam, abafando o calor que soprava no vento e o vento vinha de Minas. (ibid., p. 20-21) A realidade passa, logo, a ser transpassada pela experiência subjetiva, o que se revela pela sintaxe desordenada, pelas interseções, pelas imagens reinventadas, pela vontade de renúncia denunciada no verso: 147 Meus paralíticos sonhos desgosto de viver (a vida para mim é vontade de morrer) faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente na Galeria Cruzeiro quente quente e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro, nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso. (ibid., p. 21) A realidade impõe-se na percepção do sujeito, ou a subjetividade integra-se ao real? O sujeito poético cede inteiramente ao que vê e o comove, e revela-se: Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas autos abertos correndo caminho do mar voluptuosidade errante do calor mil presentes da vida aos homens indif erentes, que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram. (ibid.) Expresso dessa forma o “eu”, sem subterfúgios, resta ao sujeito do poema fundir-se com a realidade que o cerca: O mar batia em meu peito, já não batia no cais. A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu sou eu a cidade meu amor. (ibid.) Ao realizar no poema a sua subjetividade, o artista como que contempla a si mesmo. Entretanto, confunde o leitor quando estabelece a complexa relação entre o “eu” e o “Outro” que ordena em si mesmo: Como decifrar pictogramas de há dez mil anos se não sei decifrar minha escrita interior? (...) A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco. (...) (ibid., p. 1237) Cabe ao leitor, assim, a percepção desses dois estados que se revelam tanto em sintonia quanto em dissonância. Porque, da mesma forma que o sujeito vê a si mesmo e estranha, vê o mundo e o estranha; mas é nesse estranhamento que se intensifica, muitas vezes, a subje- 148 tividade que se conforma ao texto. A conciliação entre as percepções do “eu” e da realidade circundante não é, portanto, a única via de realização da subjetividade no texto poético drummondiano; não raro, a subjetividade se funda em paradoxos e contraposições. No poema intitulado “Sentimental”, de Alguma Poesia, opõem-se no texto o mundo subjetivo e o mundo objetivo, quando o sujeito poético tenta desenhar no prosaico prato de macarrão o nome da amada. O nome não se completa. E a voz daquela a quem dedicava o suave verso traz para a insuavidade da vida o sujeito em contemplação. Mas, contraditoriamente, é nesse movimento que ele escapa do seu identificável estado de subjetividade e observa todas as coisas circundantes. O sujeito poético desiste da ação subjetiva, a fim de que o real prevaleça e a missão poética maior seja a de compreender a humanidade. O que, de resto, é um movimento constante na obra de Drummond: a realidade contém a subjetividade que se representa no indivíduo, a fim de que o mesmo possa expandir-se para além de si mesmo, lançando-se no “outro”, consciente de sua missão como artista: Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho. Desgraçadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando... E há em todas as consciências um cartaz amarelo: “Neste país é proibido sonhar.” (ibid., p. 16) Nos versos do poema “Mundo Grande”, de Sentimento do Mundo, expressa-se muito mais claramente uma individualidade, visto que o sujeito poético analisa sua relação com o mundo exterior: Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. 149 Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos. (ibid., p. 87) A relação do mundo interior com o mundo exterior propõe o equilíbrio do sujeito, na medida em que espelham a mesma propriedade: Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande. (ibid.) O sujeito poético comunica-se com um “tu” não explicitado. Justifica sua inabilidade de acolher todo o mundo em si mesmo. Até então, seus argumentos orientam-se por uma saber racionalizado, científico: Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem — sem que ele estale. (ibid.) É então que, de forma não intuída pelo leitor, o sujeito poético altera o espaço de comunicação entre ele e o mundo externo, e todo vestígio de racionalidade se desfaz. Ainda na relação com o “tu” estabelecido, a natureza substitui os códigos da civilização e instrui uma nova perspectiva, muito mais subjetiva: Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma. Não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos, tão calma! vai inundando tudo... Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos — voltarão? (ibid.) A subjetividade instaura-se definitivamente pelo processo de auto-análise. Os signos 150 não são mais contidos e o sujeito poético expande-se na revelação de si mesmo: Meu coração não sabe. Estúpido, ridíc ulo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.) (ibid.) Por fim, os códigos que se apresentam no poema dão conta de um espaço não real, no qual o sujeito poético transcende sua subjetividade, utilizando como meio de transporte a metaforização da realidade: Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre. Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convidando ao suicídio. Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor. (ibid., p. 88) Transcender a si mesmo leva o sujeito poético a transpor os limites da existência real, o que o possibilita reinscrever-se como um demiurgo: Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. — Ó vida futura! nós te criaremos. (ibid.) O poeta Carlos Drummond de Andrade percorreu todos os caminhos: objetivid ade/subjetividade, realidade/sonho, contenção do signo/orgia estética. Desve ndar um pouco o seu fazer poético só foi possível à luz das teorias propostas, opção feita entre muitas outras apesar da certeza de que todas ? se fosse possível utilizá- las de uma só vez ? permaneceriam insuficientes. 151 6. UM PAÍS NA VOZ POÉTICA DE JOSÉ CRAVEIRINHA: O EU E O “MUITOS” 6.1 - A construção do sujeito pelo apagamento do “outro” invasor O macaco mora na rocha O negro no funco O mulato na loja O branco no sobrado Um dia virá que o macaco corre com o negro do funco O negro corre com o mulato da loja O mulato corre com o branco do sobrado O branco foge para a rocha e cai no mar. Anônimo José Craveirinha é uma das vozes mais expressivas da africanidade. Moçambicano do bairro de Mafalala, a experiência de vida vivida nos musseques estendeu-se para as instituições de ensino do período colonial, alastrou-se pelas prisões e representou-se em páginas de livros que revelaram, em forma de poesia, a guerra colonial, o massacre de povos africanos e a resistência moçambicana. Craveirinha evidencia, em sua existência e em seus poemas, o “outro”, que se representa, simbolicamente, como nação: “Bom, a partir de uma determinada altura eu tive uma consciência política, uma consciência da África, uma consciência do país. É uma opção. Quando opto por Moçambique, eu estou a optar por África”. (CHABAL, 1994, p. 98) Tal posicionamento alia-se aos movimentos político- ideológicos que atuavam sobre a produção literária e jornalística de intelectuais de diversos países: À semelhança do que aconteceu com outros escritores de sua geração, José Craveirinha procurou dar expressão técnica à realidade produzida pelo sistema colonial, principalmente à realidade do mundo suburbano, em que o bairro da Mafalala figurava consigo. Esta tendência foi sublinhada com a- 152 proximação a movimentos e correntes literárias cuja seção se fazia por via temática e ideológica, tendo por substrato as aplicações da filosofia marxista. (MANDONÇA, LABAN, 2008) Sob esse preceito, Craveirinha estabeleceu parâmetros e fronteiras artificiosas da identidade, atendendo ao estado de exceção em que se encontrava sua gente. Por essa via, alguns princ ípios nortearam a sua escritura e a formação de sua subjetividade: Os termos, os traços da identidade são simples e contundentes, claros e incisivos: o saber-se outro como estratégia de luta. Ou seja: há um saber do externo e do interno de si, que, para o negro, se ergue como estratégia na guerra das linguagens. É uma estratégia poderosa, visto que reivindicada no Tempo e no Espaço imemoriais do inconsciente. (SILVEIRA, 1995, p. 188) Essa transferência de Moçambique a África, do homem individual ao ser coletivo tem origem nas ideologias forjadas pela necessidade de construir a resistência. Quando entramos em contato com a obra de Craveirinha e, antes de tudo, com sua biografia, temos a impressão de que renunciar ao “eu” para destacar o “outro”, ou, mais adequadamente, construir o “eu” a partir do “outro” constituiu-se como única alternativa de existência. Filho de pai branco português, ou como aparece nos textos, algarvio, e de mãe negra moçambicana; transitando entre o espaço urbano colonial e as cubatas; agindo, menino ainda, como herói americano, mas exaltando-se, homem feito, na imagem ancestral; expressando-se em língua portuguesa, mas sobrelevando a palavra ronga, Craveirinha aprendeu, desde seu primeiros anos de vida, a ser um “outro” sem se dar conta do que viria a constituir o “eu”. O que, ademais, é uma condição do homem africano, a qual discutiremos oportunamente. Destaque-se, também, que a oposição, ou, por vias históricas, a conciliação entre o “eu” que ainda se estranha e o “outro” tornase mais emblemática quando entendemos que esse “outro” representa “muitos”. É todo um país, é toda uma nação que precisa da voz poética de Craveirinha. O “outro” que se apresenta no poema deve ser sempre multiplicado, seja ele homem, mulher ou criança; venha de que etnia vier; tenha os temores e as esperanças que tiver. O sonho de liberdade de José Craveirinha não esmorecia em dúvidas. Não planejou 153 sua vida como um revolucionário: fez-se revolucionário; não pensou nas conseqüências dos atos de vontade: foi preso e torturado. Talvez Craveirinha nunca tenha elaborado uma análise distanciada daquele período de guerra colonial. Os “outros”, muitos, que continuaram a viver dentro dele, quando a História dava sinais de mudança, ainda falavam coisas que poucos ouviam: lamentos, gemidos de fome, desesperanças. Aos analistas, as análises. Incômodas, mas necessárias: A luta anticolonial foi impulsionada por ideologias políticas elaboradas pela vanguarda dessa luta e que, se não atingiram os camponeses por não lhes dizer respeito, empolgaram as camadas intelectuais e boa parte das massas urbanas, a quem aliás eram dirigidas. Essas ideologias, como a negritude e o pan-africanismo, foram fruto da dominação colonial. Foram uma resposta a ela. Ao ferrete da inferioridade biológica do negro e da inexistência na África de uma civilização anterior à ocupação européia ? afirmações básicas da ideologia colonial ? havia que se contrapor uma ideologia de afirmação e demonstração dos valores de civilização de todo um continente, mais ainda, de toda uma raça. Era necessária uma ideologia transtribal, pan-étnica, que englobasse e unisse a todos, especialmente aos africanos que já haviam assimilado uma boa dose de cultura européia, melhor dizendo, da ideologia dominante do colonizador. 30 (CHALIAND, 1982, p. 14) Apesar das críticas que se façam ao processo de resistência promovido pelos intelectuais negros ou de origem negra, por distanciamento no tempo, não se pode negar o êxito da ação revolucionária. Isto porque foi no campo da cultura que a revolução se desenvolveu, visto que todos os outros espaços de resistência haviam sido aferrolhados pela ditadura salazarista. Mas a procedência da luta, a força das lideranças e o ânimo da palavra não foram totalmente negados: Tendo eliminado todos os outros campos onde seria possível a elaboração de um projeto político ? associa ções, sindicatos, jornais, partidos ? os colonialistas foram obrigados a constatar que não podiam controlar a totalidade do campo cultural. Razão pela qual os jovens dirigentes políticos começaram quase todos por ser escritores: antes de passar à prática, foram obrigados a 30 Consideramos procedente esclarecer que a referência utilizada cabe perfeitamente no propósito para a qual foi destacada, por sua síntese, mas o texto prossegue como crítica ao movimento revolucionário. Diz ainda o autor: “A negritude não era sensível ao camponês que, apesar da dominação colonial, havia preservado, numa encarniçada resistência, os seus valores étnicos, mas sobretudo aos citadinos, aos exilados nas metrópoles, àqueles que precisavam de um ‘retorno às fontes’. Não foi por acaso que o movimento da negritude nasceu em Paris, no início da década de 1930. (...) A negritude caducou com a causa que lhe deu origem: a ideologia racista primária do colonialismo. Hoje é uma ideologia a serviço exclusivo das elites que a produziram, assim como outras ideologias assemelhadas: a ‘autenticidade’ zairense, por exemplo ”. (CHALIAND, 1982, p. 14-5) 154 escrever a teoria da prática possível. (MARGARIDO, 1980, p. 21) O percurso histórico e literário de José Craveirinha é o mesmo trilhado por outros poetas africanos que se expressaram no período da guerra colonial. A escritura projetada atrás dos muros da intolerância, da violência e da tentativa de apagamento cultural tem sempre o mesmo tom: a luta contra o colonizador, a valorização das raízes culturais negras, a transformação da África dominada na África livre. São caminhos comuns a todos, mas, como vimos estudando, a cada um coube traçar as trilhas e ordenar os passos de acordo com a sua própria consciência psíquica, com a justa apreensão da realidade, com o signo revolucionário que melhor lhe conviesse. E é assim que vemos, em Craveirinha, mais particularmente, uma proposta de identificação do “outro” e de afirmação do “eu”. É por essa condição histórica e social que a poesia de Craveirinha passa a representar múltiplas faces de um só problema: o da alteridade em confronto com a subjetividade. Detecta-se, então, no fazer poético de Craveir inha, um movimento dinâmico que elabora várias faces de uma mesma relação entre o “eu” e o “outro”, o qual, em um primeiro momento, se traduz como “nós”. Uma só ideologia constrói quatro topoi discursivos: a poesia do “eu” que procura destruir o “outro” exógeno; a poesia do “outro” incorporado ao “eu”, pela qual o sujeito do poema investe-se dos muitos objetos que tematiza; a poesia do “eu” em si mesmo, biográfica, em cujos versos o poeta-homem Crave irinha, muitas vezes Zé, revela-se ao leitor inequivocamente; e, finalmente, a poesia do “eu” que reconhece em si mesmo, ainda que forçosamente e não sem sofrimento, a presença eterna e indivisa do “outro”. Na África, em Moçambique de Craveirinha, foi proposta, historicamente, uma revolução; dessa revolução fez-se a palavra poética; da palavra poética, a luta e a esperança. Talvez que os poetas africanos entendessem o que propõe Octavio Paz em seu estudo sobre os signos «revolta», «revolução» e «rebelião» e sua aplicação literária: Revolução é uma palavra que contém a idéia do tempo cíclico e, em conseqüência, a de regularidade e repetição das mudanças. Mas a acepção moderna não designa o eterno retorno, o movimento circular dos mundos e dos astros, e sim a mudança brusca e definitiva na direção dos assuntos pú- 155 blicos. Se essa mudança é definitiva, o tempo cíclico se rompe e um novo tempo começa, retilíneo. A nova significação destrói a antiga: o passado não voltará e o arquétipo de suceder não é o que foi e sim o que será. Em seu sentido original, revolução é um vocábulo que afirma a primazia do passado: toda novidade é um regresso. A segunda acepção postula a primazia do futuro: o campo de gravitação da palavra se desloca do ontem conhecido ao amanhã por conhecer. (PAZ, 2005, p. 265) Assim, as literaturas africanas se consagram como discurso em que o “eu” e o “outro” fixam a trajetória da africanidade. A poesia, em si mesma, já faculta ao escritor o trânsito entre a subjetividade e a alteridade, como destaca Ruy Duarte de Carvalho: Ora é sabido, julgo, embora estes sejam os domínios que eu prefiro delegar à ciência dos analistas da coisa literária, é sabido, dizia, que o processo de individuação poética implica a descoberta dos termos possíveis de uma transferência de captação e de projecção das experiência s de que se urde o conteúdo subjacente a qualquer produção literária disponibilizada e tornada pública. São as questões da outridade poética, da capacidade ou da possibilidade de assumir e veicular como suas as percepções do outro, do outro em si mesmo ou do “OUTRO”, com letra grande, em que se explica ou refaz o “EU”. (CARVALHO, 1995, p. 74) O movimento poético africano, num primeiro momento, dedica-se à escritura que pretende eliminar o processo de reificação em que se encontra o homem colonizado; ne sse caso, é preciso destruir todos os caracteres do “outro” colonizador e invocar, do fundo da consciência ancestral, a voz africana. O que repercute no verso, agora, tem o sabor da vitória sobre o “outro” e da valorização do “eu”. Frantz Fanon compreende, assim, este processo histórico: No decurso da luta, a nação dominadora tenta reeditar argumentos racistas, mas a elaboração do racismo revela -se cada vez mais ineficaz. Fala -se de fanatismo, de atitudes primitivas perante a morte, mas, uma vez mais, o mecanismo doravante deitado por terra já não responde. Os imóveis de antes, os cobardes constitucionais, os medrosos, os inferiorizados de sempre, crispam-se e emergem eriçados. (FANON, 1980, p. 48) O conhecimento da história da África evidencia um problema de identidade que devemos discutir, a fim de compreender os caminhos da alteridade e da subjetividade na poesia de José Craveirinha. A presença do colonizador português em Moçambique, como nos demais países africanos colonizados, promoveu, pela intolerância, a imposição do medo e a humilha- 156 ção, a inferiorização da raça negra frente à raça branca. Muitos são os autores que se dedicam ao assunto, mas destacamos Manuel Ferreira: O colonialismo, todos sabemos, é a negação da personalidade do Outro. Em todos os aspectos. Para além da repressão individual, da exploração económica, da negação do sentimento e da consciência nacionais, projecta a ideia de uma pátria outra. Ele, o colonialismo, nega ou reprime a cultura autóctone e obriga à cultura metropolitana. (...) O colonialismo, de caso pensado ou por força do seu sistema interno, despersonaliza o colonizado, deprime-o, destrói-lhe a imagem que ele forma do seu universo singular, coisifica-o e não lhe permite que ele se torne sujeito da história. Cria -lhe o complexo de inferioridade à sua cultura, deforma-o, aniquila -o como cidadão africano. (FERREIRA, 1989, p. 29) Dois processos de formação de uma nova configuração social, assim, vão ser colocados em curso: a aculturação ? que representa a aniquilação da identidade nativa ? e a assimilação ? posta em prática a partir, principalmente, da adoção da língua do dominador ? através do que serão assumidos os valores culturais do “outro”. Em um primeiro momento, o homem africano, intelectualizado pela política colonial, ou seja, que atenda aos interesses do colonizador, não se dá conta da extrema violência a que é submetido. Pelo contrário, até se engrandece por partilhar com o estrangeiro a sua cultura exógena. O processo de inferiorização do negro ? e de aceitação, por parte do negro, dessa pretensa inferioridade ? tem origem em um veemente discurso colonial que lança sobre a raça negra estereótipos que se consolidam em práticas violentas de alheamento social. Todavia, esse discurso se realiza pela dissimulação. O governo ditatorial português investiu contra o negro a sua cultura européia sob a égide do respeito ao africano, desenvolvendo o discurso de “integração nacional”. É assim que se forma uma instável compreensão de ser africano, aquele que transita entre duas fronteiras por sua condição de assimilado: Sabemos que “assimilado” é um indivíduo que se encontra entre dois mundos. Desenraizado, sem laços que o unam ao seu povo, sem a sua língua, sem os meios de realizar a sua vida conforme a sente, não se encontra também no mundo europeu, cujos costumes adoptou, cuja língua fala, cujos hábitos pratica, sem que todas essas características culturais sejam de facto sentidas, sem que façam parte do seu eu. Pratica-as muitas vezes com repulsa. É o homem marginal dos antropólogos, tendendo a constituir um agrupamento isolado, culturalmente mestiço, flutuante entre dois povos, entre 157 duas culturas, aos quais não se pode ligar. (NETO, 2000, p. 52) Compreender as camadas profundas desse processo colonial possibilita uma consciência mais clara das conseqüências, previsíveis e imprevisíveis, que hoje determinam o devir do homem negro. Desvendar esse devir é uma proposta de Homi K. Bhabha: O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. Apesar do jogo de poder no interior do discurso colonial e das posicionalidades deslizantes de seus sujeit os (por exemplo, efeitos de classe, gênero, ideologia, formações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização, e assim por diante), estou me referindo a uma forma de governamentabilidade que, ao delimitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina suas várias esferas de atividade. (BHABHA, 1998, p. 111) À margem da existência estava o colonizado; e vivenciando, ainda, uma dramática infixidez do ser, os mestiços começavam a “incorporar, assimilando-os, os valores do colonizador, questionando seu saber autóctone que passava a perceber como um menos-saber”. (PADILHA, 2007, p. 101) Todavia, a inevitável conscientização de que se é colonizado e, como tal, muito diferente do branco, não tarda a se manifestar. Os negros ? e mesmo os mestiços, como Craveirinha ? assume m a integralidade de sua raça e o direito de exaltar suas características inatas. Nessa fase, dois espaços aparentemente opostos vão se integrar em um só projeto de libertação das amarras coloniais, a escola e a prisão, assim entendidos por Salvato Trigo: A Escola e a Prisão foram duas instituições de grande valimento para o regime colonial. Na escola, procurava-se dominar espir itualmente os colonizados pelo apagamento dos seus valores culturais e civilizacionais, pelo banimento da sua língua, pela niilificação da sua história. (...) Na Prisão, pretendia -se amedrontar, pela violência física, a resistência dos que não aceitavam a opressão colonial e tinham a coragem de dizê-lo. Mas essas duas instituições, pretensamente aliadas do regime colonial português, são também, e sobretudo, muito úteis aos colonizados, porque elas permitir-lhes-ão desenvolver a consciê ncia política e lutar, cada vez mais, pelos seus direitos. Paradoxalmente, o regime colonial português criava as armas da sua própria destruição. (TRIGO, s.d., p. 148) 158 A resistência ao colonialismo organiza-se em movimentos. Fugindo ao massacre de uma identidade colonial que se presume superior, o homem africano propõe a construção de ideais que, por força da guerra, exigem a anulação da subjetividade, a fim de que os pressupostos da luta pela liberdade possam prevalecer sobre propostas individuais. As identidades étnicas são contidas, esvaziando o significado dos elementos culturais desenhados pela escarificação nos rostos. As línguas dive rsas calam-se para deixar falar a língua do colonizador. O que pareceria, em um primeiro momento, alienação, nada mais é do que a semente da luta. Não abdicando da compreensão ideológica na poesia de Craveirinha, retomamos Bakhtin e seu estudo sobre marxismo e filosofia da linguagem. Compreendendo que o signo “resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação” (BAKHTIN, 2004, p. 44), o autor argumenta que a relação entre o ser e o signo se estabelece na ordem de valor ideológico que se determine por um consenso social e que tem como característica sua inserção na luta de classes: O ser, refletido no signo, não apenas dele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes. Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditório. (ibid., p. 46) É assim que, sem interferir no léxico da língua portuguesa, sem alterar a sintaxe dos enunciados, sem desestruturar a morfologia; é assim que, utilizando a mesma língua do colonizador, Craveirinha comunica ao “outro” estrangeiro sua vivência, indicando que ele, o “o utro”, não se identifica com sua ideologia. O “eu” se autentica no signo estrangeiro, desvanecendo o “outro”: CANTIGA DO BATELÃO Se me visses morrer os milhões de vezes que nasci 159 Se me visses chorar os milhões de vezes que te riste... Se me visses gritar os milhões de vezes que me calei... Se me visses cantar os milhões de vezes que morri e sangrei... Digo-te irmão europeu havias de nascer havias de chorar havias de cantar havias de gritar E havias de sofrer a sangrar vivo milhões de mortes como Eu!!! (OP, p. 35) O poeta/sujeito poético enfrenta as dificuldades impostas pela língua dominadora, não no sentido de elaboração do enunciado, com seu léxico e sua sintaxe, mas pelas fronteiras ideológicas que se apresentam ao tentar, o homem moçambicano, se expressar em uma língua que não o identifica com a nação moçambicana: Aqui estou neurasténico como um cão danado a lamber a salgada crosta das velhas feridas. Em que língua e com que rosto aos meus filhos órfãos de pai eu vou dizer que esqueçam? (C1, p. 56) Desenvolve-se, no discurso de resistência, a consciência de que se apossar da língua do “outro”, manifesta pela escrita, não representa passividade, resignação e entrega. O que se propõe é a transformação da língua do “outro” pelas identidades negras que se expressam pela oralidade. Assim, o escritor africano propõe a transfiguração da arma do “outro” ? a escrita ? em arma contra o “outro”, o que expressa, em sua prosa poética, Manuel Rui: Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instrumento escrita um 160 texto escrito meu, da minha identidade.31 Do aprendizado e domínio da língua portuguesa e da dor que, ao invés de calar, faz gritar o escritor africano, surgem obras que vão expressar um discurso de revolta semeador da liberdade. Agostinho Neto, António Jacinto e José Craveirinha vão escrever, por detrás das grades, apesar do sofrimento físico e espiritual imposto pelo colonizador, versos que expressarão as dualidades que vive o africano: morte/vida, dor/esperança, aprisionamento/liberdade, vergonha/orgulho. Tem início uma transformação histórica que se dá pela linguagem: “Falar é poder usar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de uma ou outra língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”. (FANON, 1983, p. 17) Inverte-se o processo de alteridade. O “outro” que se pensava ser, por aproximação ideológica, agora precisa ser eliminado para que o “eu”, ainda desconhecido, possa emergir da ancestralidade e dos elementos genesíacos. No contra-espelho da colonização, o homem africano, agora em posição inversa, vê refletido o rosto que ele precisa eliminar para que a excelência de sua imagem possa se fazer valer. A literatura será, assim, o instrumento de (re)construção do “eu”. É possível narrar o “eu” africano ? o que representa, a priori, narrar um “outro” também africano que se valida como “eu” na conjugação ancestral e nacionalista ? narrando a si mesmo. Considera-se que todas as experiências convergem para uma mesma experiência fatal: a de ser homem africano, negro e colonizado. E é a partir dessa consciência que será possível destruir o “outro” invasor. Esse princípio, que entendemos como o logos da existência africana em um determinado momento histórico, o da colonização, promove um discurso vinculador das formas e dos conteúdos, um discurso de unidade. A língua portuguesa aprendida nas escolas coloniais estava repleta de lacunas. Havia, no cerne do léxico estrangeiro, vazios que poderiam ser facilmente preenchidos por uma ideo31 Comunicação apresentada no Encontro Perfil da Literatura Negra. São Paulo, Brasil, 23/05/1985. 161 logia que se forjasse no seio da revolta. Aí está o campo fértil do dizer literário, de uma escritura que nasce da ausência, da vontade de dizer e não ter como. O escritor africano é, entendemos, um “sujeito fundante” na expressão de Michel Foucault, “encarregado de animar diretamente, com suas intenções, as formas vazias da língua; (...) que, para além do tempo, funda horizontes de significações que a história não terá senão de explicitar em seguida”. (FOUCAULT, 1999, p. 47) Houve, sem dúvida, um equívoco grave no sistema colonial português ao impedir o uso da língua autóctone, pois acabou por fortalecer os laços do homem africano com suas origens, representadas pela língua emudecida. Com isso, essa mesma língua vai ser instrumento de revolução. Por outro lado, não se pode negar a perda que sofreu o africano por ter se afastado de sua língua-mãe, como lamentou Craveirinha, ao constatar que não dominava a língua ronga: Foi a primeira língua que aprendi e que hoje não domino. Mas também por culpa da negligência dos missionários e da presença portuguesa, que não considerou isso importante. O não falarmos outra língua, principalmente a língua materna, a língua da terra, é sempre uma perda, é sempre uma perda, porque ainda há muitos que falam e só transmitem os seus conhecimentos a partir dessa língua. Portanto, eu a gostaria de dominar. (MENDONÇA, LABAN, 2008) Esses “vazios” da língua portuguesa serão preenchidos tanto pela palavra ronga quanto pelas palavras auto-referenciais, tradutoras das experiências vitais do sujeito poético. Semelhante à antropofagia modernista brasileira, Craveirinha irá deslocar o “outro” de seu espaço de permanência africano, dono que se sentia do alheio, para, lentamente, porque pela Palavra, ocupar o território de sua existência coletiva. O escritor africano veicula na língua do colonizador os elementos que se colocarão contra o colonizador. Se, a princ ípio, a língua o dominava, com o processo de conscientização política, ele entende que pode dispor, como quiser, do sistema lingüístico que o havia lançado para longe de si mesmo. Craveirinha reflete: “Uma língua não pode corresponder a uma pá- 162 tria; mas pode ser um grande lugar de abrigo”. (ibid.) Conhecendo a língua do “outro”, é possível, enfim, dar a ela o tratamento que se quiser para que se elabore em matéria poética: ANTI-LIRISMO INÚTIL Não alfabetizes as palavras. Lê-as uma por uma, meu amor, e solda o sentimento ao que elas juntas e despidas te dizem. Lindo o verso faz-se do alfabeto momentâneo que desejamos liricamente folheando o livro dos sinónimos. Mas o poema esse organiza ou ressuscita visceral consoante a humildade com que somos mexoeira do fértil chão o legível som exterior do xitende o plasma longínquo dos tambores ou a espancada consciência do homem vivo. (PP, p. 43) Em Poemas de Prisão (2004) ? livro que reúne textos provavelmente escritos na prisão e no Hospital Psiquiátrico do Infulene, constantes do Diário de José Craveirinha, entre os anos de 1965 e 1967 ? , o “eu” africano/moçambicano se narra minuciosamente para eliminar o “outro”. Concebidos sob as diversas dores resultantes da condição de ser preso, os poemas não negam ao autor o direito pleno ao exercício do “eu”: sofro, amarguro, calo, grito, sonho, espero. Os signos, em dicotomia, referenciam toda suscetibilidade do homem que se enxerga entre grades e para além delas, porque a vida lateja no espaço representativo da não-vida: A VIDA A vida órfã de sempre dá-me em cada verso uma veia esticada em mim a retinir poesia. Deus deu-me esta arte mínima de confessar as coisas dizendo tudo a fingir. 163 E desta dádiva me sirvo polígamo de nostalgia. (ibid., p. 30) O “outro” se evidencia como o que está no espaço fora da vivência do “eu”. Com menções claras ao mundo real, o poeta/sujeito poético distancia-se daquele que o submete, mas, invertendo o processo, torna-se insubmisso à realidade pelo discurso ideológico que se fortalece na poesia: ANTE-JULGAMENTO Já me sei condenado antes de julgado não pelo pouco que fiz mas pelo muito que amo ser. De outro modo como gerar tanto ódio a quem nada me diz ou muito pelo tanto que um homem sempre é apenas ele se criou. Não devaneio orgulhoso ou louco. Amam-me os que não temem temem-me as consciências dos outros imenso porque são pouco.(ibid., p. 31) Fátima Mendonça, responsável pela organização do livro, registra, em nota introdutória, um alerta ao leitor para o fato de que a estética dos textos não deve minimizar o horror da cela, espaço de criação poética: Este processo de sublimação da realidade, em direção a outras dimensões do Ser, tão peculiar na poesia de José Craveirinha, faz com que estes textos amplifiquem o eco de múltiplas e dolorosas outras experiências, transformando o eu autobiográfico numa entidade sem referência que, exprimindo a subje ctividade universal do lirismo, permite que qualquer leitor nela se possa interar. (ibid., p. 14) Craveirinha poeta, Craveirinha partícipe de um movimento revolucionário, não se ilude: o “outro”, muitas vezes, pode ter o mesmo rosto, a mesma voz e a mesma ancestralidade. Mas preferiu construir uma história diversa. O sujeito lírico reflete, irônico e amargurado, o 164 processo político que se engendra em seu país: ONDE É QUE ESTÃO OS MEUS GRANDES AMIGOS...? Onde é que estão os meus grandes amigos do tempo em que eu era o José Craveirinha e não o preso vigiado pela PIDE? Onde é que estão eles? Não me arrependo de tudo quanto fiz ou dei para bem dos outros. Só me custa ter sido tão pouco que não foi o suficiente para que lembrassem de retribuir com um bocadinho que fosse para valer à minha família. (...) Dá-me ganas de riso essa peça que me preguei a mim mesmo: Preso político. Um gajo metido em revoluções, reuniões pela calada, bombas de relógio, metralhadoras, minas e mapas dos quartéis. Só falta um helicóptero e um submarino e um emissor-receptor. Enfim! Uma anedota. (ibid., p. 50) Pela proposta literária de se narrar e, assim, ideologicamente, eliminar o “outro”, Craveirinha não omite dores, indignações, impressões do real que o esmaga. A dolorosa experiência de estar preso leva-o a um processo de subjetividade que não se contém nos espaços da razão e da consciência do real. Mas o sujeito poético, mantendo a lucidez, ainda estabelece a diferença entre o “eu” e o “outro”: O HOSPITAL DO INFULENE É ISTO? O hospital do Infulene é isto? Estarei doido? Com que então electrochoques? Não quero ficar aqui. A sensação de prisão amarfanha-me duplamente. (...) Não quero ficar aqui. Há mil avisos de que os nervos não resistirão à tensão e estalarão como aramezinhos oxidados. E que eu estou todo oxidado. Molho a cabeça. A água fria dá-me uma ligeira sensação de conforto. Conforto e lucidez. Não durmo. Estou inquieto e não sei porquê. Tenho sede. Bebo. Não tinha sede. Ando e desejaria não parar. Andar, andar até cair e não pensar em nada, nada, nada. Morrer? «Robot» como os outros? (ibid., p. 38) A inconteste subjetividade africana, múltipla, salta de muitos versos. E na prisão, a África, continente unificado na dor e na esperança, envolve momentaneamente o sujeito poético em luz que vem de fora da cela. O “eu” sobrevive no sonho para eliminar o “outro”, e 165 isso é certo, porque, antes, a África sobrevive no sonho, para além do “outro”, para além do “eu” aprisionado: ÁFRICA A sombra exige-me um silêncio meio repleto de sonhos. E o amor sentido é o pressentimento que vai do sentir ao ser. Mas absurda a realidade fantástica é um pontapé acordado. E se perscruto a noite a África sai-me gritando. (ibid., p. 80) “África”, repetidas vezes, é evocada no poema para rememorar a ancestralidade, para gritar dentro do eu africano a sua essencialidade e imperar sobre a cultura do “o utro”: Em meus lábios grossos fermenta a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África e meus ouvidos não levam ao coração seco misturada com o sal dos pensamentos a sintaxe anglo-latina de novas palavras. (...) (ibid.) O que é exógeno ao ser africano acumula-se na negativa de valoração que manifesta o sujeito poético. Um rol de elementos associados a danos e infortúnios compõe os versos identificados com a cultura estrangeira: Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço em rodelas de latão em vez dos meus autênticos mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens do ciúme e da colheita de amendoim novo. E aprendo que os homens inventaram a confortável cadeira eléctrica a técnica de Buchenwald e as bombas V2 acenderam fogos-de-artifício nas pupilas de ex-meninos vivos de Varsóvia criaram Al Capone, Hollywood, Harlem a seita Ku-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville (…) (ibid.) 166 A ironia que reveste o verso sobrepõe o sujeito poético à “bela civilização” ocidental. A seguir, um erotismo cosmogônico propõe uma africanidade fecundada pelo “eu” africano: Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue ouro, marfim, améns e bíceps do meu povo. E ao som másculo dos tantãs tribais o eros do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros... E ergo no equinócio da minha Terra o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga E na insólita brancura dos rins da plena Madrugada a necessária carícia dos meus dedos selvagens é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças belas como altivos falos de ouro erectos no ventre nervoso da noite africana. (OP, p. 16) A língua portuguesa, além de representar, na concepção do homem africano, o servilismo que ele deseja combater, não oferece elementos que possam dar conta do proprium africanum. Assim, a palavra ronga recupera o ser e preenche os espaços que não registram o pensamento e a emoção. Resgatado o direito de expressar a língua autóctone, surgem os sujeitos da enunciação ? integrados ao sujeito do poema ? que, ao retomar o domínio da fala, retomam o domínio de si mesmos e da História que os alijava. A bem da verdade, não há uma recusa pura e simples à língua portuguesa. O uso da língua ronga representa, para Craveirinha, o direito de “simplesmente reivindicar os nomes das coisas. É que ninguém veio encontrar isto despovoado; ninguém veio encontrar gente, mas muda, que não tivesse voz, que não tivesse língua”. (MENDONÇA, LABAN, 2008) A “contaminação lingüística”, matéria necessária na compreensão das literaturas africanas de expressão portuguesa, dá-se, segundo Ana Mafalda Leite, sob dois aspectos: a utilização de termos da língua ronga, no caso específico de Craveirinha, e a utilização de modos discursivos que, ainda que a língua de uso seja a portuguesa, atende uma visão de mundo moçambicana: No que respeita à primeira questão, convém destacar que os poemas se 167 tecem fundamentalmente entre duas línguas, o português e o ronga, língua materna do poeta, que é usada para pôr em evidência a historicidade e carga cultural da sua origem africana. (...) Estas modulações operadas no corpo linguístico do poema afectam de forma original a leitura dos sentidos textuais. José Craveirinha transplanta para a língua portuguesa o germe linguístico-poético moçambicano e procura criar harmonicamente uma nova fala, resultante do confronto e da transformação parcial dos dois sistemas linguísticos. (LEITE, 1998, p. 14) Eis mais um recurso utilizado pelo eu poético de Craveirinha para eliminar de si o “outro” que lhe dominava nas esferas intelectuais, tendo como instrumento maior de dominação a língua. Esse caminho literário, utilizado por tantos outros narradores e poetas, elimina o ser exógeno que germinava no homem africano. Dos tratamentos lingüísticos apontados por Ana Mafalda Leite, “Xigubo” é exemplo mais que perfeito. O próprio título do poema anuncia a proposta que se efetivará. “Xigubo” é, ao mesmo tempo, dança guerreira e onamotopéia de tambores. As palavras rongas dançam no verso, e “negros” e “negrinhos” dançam pela resistência, aqui representada pela poesia, contra o “outro” colonizador: Minha mãe África meu irmão Za mbeze Culucumba! Culucumba! Xigubo estremece terra do mato e negros fundem-se ao sopro da xipalapala e negrinhos de peitos nus na sua cadência levantam os braços para o lume da irmã Lua e dançam as danças do tempo da guerra das velhas tribos da margem do rio. Ao tantã do tambor o leopardo traiçoeiro fugiu. E na noite de assombrações Brilham alucin ados de vermelho Os olhos dos homens e brilha ainda Mais o fio azul do aço das catanas. Dum-dum! Tantã! (...) E as vozes rasgam o silêncio da terra enquanto os pés batem enquanto os tambores batem e enquanto a planície vibra os ecos milenários 168 aqui outra vez os homens da terra dançam as danças do tempo da guerra das velhas tribos juntas na margem do rio. (OP, p. 9) 6.2 - O “eu” e o “outro”: a coexistência no verso transformador Por que, simplesmente, não tentar alcançar o outro, sentir o outro, revelar-me ao outro? Frantz Fanon Construindo o caminho da alteridade, para efeitos de eliminação do “outro” exógeno, o sujeito poético precisa, antes de mais nada, instaurar em seu discurso o “eu” que ele concebe. O homem africano, sujeito historicamente à colonização e aos processos de aculturação e assimilação, quer se olhar no espelho e descobrir sua própria identidade. O “eu” frente ao “outro” é, primeiramente, a resistência à opressão. O “orgulho de ser preto”, de que fala Manuel Ferreira, representa uma luta contra a imagem do “outro” que se impõe ante o negro colonizado. O homem negro africano representa, ele mesmo, a resistência: “Pedra basilar da construção dos impérios coloniais, sujeito à quotidiana humilhação da sua cor, escarnecido na sua própria natureza física, o Negro acaba por ser ele próprio a libertar-se dos anátemas e mitos europeus ”. (FERREIRA, 1989, p. 55) Compreender a subjetividade na poesia de José Craveirinha exige que se investigue a alteridade que com ela se forma. Mais ainda: requer uma compreensão ampliada do que representa o sentimento de africanidade, a dimensão do proprium africanum, a visão do homem sobre a comunidade da qual participa. 169 O “eu” não se configura, apenas, pelo excesso de subjetividade; ao contrário, pode ser instaurado na realidade do mundo que o cerca. Subjetividade e alteridade, portanto, não se fixam em propostas teóricas. Se, como vimos estabelecendo, o eu subsiste na concepção do “outro”, é fundamental compreender que o “outro” também não deve ser identificado por formas rígidas, pois “os conceitos que giram em torno da alteridade ou da outridade não representam mais uma constante inalterável ou invariável, mas sim umas construção ideológica, social e discursiva sujeita a profundas modificações, conforme o contexto”. (HANCIAU, 2007, p. 235) A unidade entre os povos africanos foi uma estratégia política necessária para se alcançar a liberdade, como atesta Frantz Fanon: “Foi na luta nacional contra o opressor que os povos colonizados descobriram, corretamente, a solidariedade do bloco colonialista e a necessária interdependência dos movimentos de libertação”. (FANON, 1980, p. 175) Não fosse a construção ideológica dessa proposta, uma outra ainda a sustentaria, como destaca Honorat Aguessy: Em todo o modo de produção cultural, quer se trate de escrita ou de oralidade, os valores que se tornam de consumo público passam sempre, nem que seja apenas por instantes, pelo indivíduo. Mas o indivíduo não se opõe à colectividade, ao grupo. Que seria desse indivíduo na sociedade sem a língua, por exemplo, ou sem a gramática moldada pela colectividade e o vocabulário que ela lhe lega? (AGUESSY, PATHE, 1977, p. 105) O “eu” está em cena e o “outro”, nessa fase, é conseqüência de si mesmo, de seus atos, de sua vo ntade. Isso porque o “eu” projeta-se em alteridade, mas se sente incapaz de conter os limites de sua própria existência. O projeto ideológico de destruição do “outro” colonizador só é possível a partir da admissão, na constituição do “eu”, de um “outro”, que, agora, é compreendido na mesma esfera de existência: o “eu” poético assume em si o “outro” também afr icano. O poeta cede, a mais das vezes, o lugar ao “outro” que emerge de sua consciência política e social. Mas esse “outro”, estritamente moçambicano, que exige estar no poema, é quase sempre plural, porque, no processo de colonização, não há sentimentos ind ividuais: a dor é 170 múltipla, a indignação se espraia, a revolta se grita em ecos de vozes que repetem a tragédia quantas vezes forem necessárias, para que ela não se apague na história, também repetida, de cada homem africano: UM CÉU SEM ANJOS DA ÁFRICA (...) Oh! África! Quantos anjos já nasceram das tuas Munhuanas de amor e quantas Detinhas partiram para sempre dos teus braços e quantos filhos inocentes deixaram o teu colo maternal geraram rios e rios de lágrimas no teu rosto escravizado e dormiram sem pesadelos na vasta solidão de um coval mínimo de criança infelizmente sem as duas covinhas na face quando sorriam, Senhor? (...) (OP, p. 51) Ainda que o “eu” reclame ao sujeito poético a sobrelevação, no discurso poético, de seus fundamentos, a realidade tangencia o engenho do poeta, que volta seu olhar para o “o utro” que espera por sua palavra. O sujeito poético volta-se para o mundo sensível, mas, num primeiro momento, ainda não consegue perceber o “outro” de forma integral. Antes de tudo, vê-se como em um espelho, e os fatos reais emolduram sua figura. O “outro” é representado em si mesmo : Ah, Mãe África no meu rosto escuro de diamante / de belas e largas narinas másculas / frementes haurindo odor florestal. (ibid., p. 33) Aos poucos, todavia, seus versos fazem, mais uma vez e sempre, o louvor de quem sobrevive na esperança do depois, e o processo se inverte: o “eu” é que passa a existir na estância do “outro", sendo o “nós”: Mas a imagem que prefiro / é a solidão ser uma quizunba / hostil que nos repatria / reconciliandonos connosco. (PP, p. 81) Passando pela desalienação cultural e social, depois pela conscientização e, por fim, pela revolta que se inicia com o discurso de independência, a poesia africana tem como um dos eixos centrais o sentimento de esperança. Não se trata, evidentemente, de uma atitude 171 passiva, que apenas difira da resignação. Ao contrário, a esperança surge no texto poético como combustível para a liberdade. O equilíbrio precisa passar pela estância do indivíduo, através da esperança, para, em seguida, estabelecer-se pela estância coletiva e social, pela luta armada. A cada tomada de consciência, o mundo da subjetividade intensa cede lugar à alteridade. O poeta reassume o seu papel histórico e reconstrói o sujeito poético com os fundamentos de quem se considera responsável pela sociedade de que participa e pelo “outro” que reconhece em meio às circunstâncias aterradoras da guerra. O sujeito deixa de centrar-se em si mesmo para conciliar o “outro” no Ser que intenta poeticamente: (...) O poeta apesar de preso nunca tem o problema de sentir-se completamente só. Porque a poesia não lhe permite estar detido e ficar sozinho. (...) (C1, p. 11) O poeta constitui o sujeito poético de seu poema não como um pai que conduz seu filho, ou um líder extremado que se colocará à frente do corpo do seu seguidor, mas como alguém que alerta, avisa do perigo, propõe a reflexão, permite que em todas as vozes ecoem sua voz indignada. Há em José Craveirinha uma clara consciê ncia de que o seu papel é auxiliar os que sofrem o processo colonial a iluminar seu próprio caminho. A posição de Craveirinha conforma-se à proposta de Michel Foucault, o qua l acredita que não cabe mais ao intelectual dar conselhos. Ele deve ajudar aqueles que vivem os conflitos sociais a “encontrar, eles mesmos, o projeto, as táticas, os alvos de que necessitam. O que o intelectual pode fazer é fornecer os instrumentos de aná lise”. (FOUCAULT, 1999a, p. 151) O “outro” pode se expressar como ser individualizado, mas representa um todo coletivo africano que germina o futuro sonhado através da palavra que se constrói autóctone, atra- 172 vés da fala que se define como ancestral: HINO À MINHA TERRA Amanhece sobre as cidades do futuro. E uma saudade cresce no nome das coisas e digo Metengobalame e Macomia e é Metengobalame a cálida palavra que os negros inventaram e não outra coisa Macomia. (...) Grito Nhazilo, Eráti, Macequece e o eco das micaias responde: Amaramba, Murrupula, e nos nomes virgens eu renovo o seu mosto em Muanacamba e sem medo um negro queima as cinzas e as penas de corvos de agoiro não corvos sim manguavavas no esconjuro milenário do nosso invencível Xicuembo! E o som da xip alapala exprime os caninos amarelos das quizumbas ainda mordendo agudas glandes intumescidas da África antes da circuncisão ébria dos tambores incandescentes da nossa maior Lua Nova. (OP, p. 20-23) O tempo da reconstrução da África não coube no tempo de vida de seus idealizadores, poetas que ousaram sonhar em meio ao caos. Longas trilhas foram reconstituídas, seja para levarem o homem africano de volta à ancestralidade, seja para o lançarem nas tramas da civilização ocidental. Finda a guerra colonial, foi preciso sair do limbo no qual a indefinição de uma ident idade é a pior das conseqüê ncias. Voltar na História ou seguir em frente, buscar a conciliação dos opostos: aí está o dilema do ex-colonizado, discutido por Homi K. Bhabha: O “além” não é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado... Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio do século, mas, neste fin de siècle , encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. Isso porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção, no “além”: um movimento exploratório incessante, que o termo francês au-delà capta tão bem ? aqui e lá, de todos os lados, fort/da, para lá e para cá, para a frente e para trás. (BHABHA, 1998, p. 19) 173 O olhar “além”, interpretamos na dialética tradição- modernidade em que se enquadra a existência africana pós-guerra colonial, como um sonho inconcluso, porque o contextualizamos na percepção poética de José Craveirinha. O tempo surge como elemento fundamental na construção da realidade poética do autor moçambicano. O tempo é futuro, projetado a partir da assunção incondicional do passado e inequívoca consciência do presente. O poema é de um “c idadão de uma Nação que ainda não existe”. (OP, p. 17). O poeta propõe a compreensão do que virá pela interpretação do que se conhece desde sempre. Refletir sobre a história, na visão de Barthes, representa construir o futuro, porque, “como nada, no passado, existe fora da razão histórica, o futuro pode tornar-se propriedade integral dos homens que o farão’. (BARTHES, 2005, p. 16) Consciente de que o futuro é a única fonte de poesia, porque é no tempo que se projeta que estarão o “eu” o “outro” conjugados na liberdade, o poeta constrói em seus versos a imagem do país desejado, e convoca o rito ancestral para a construção mesmo ideal: TIMBILEIROS A maviosa velha canganhiça dos timbileiros acaba os ócios. E toda a Zavala bate e torna a bater agora a cadência dos corações da turba dançando as amotinações voluptuosas das timbilas de ossos. (OP, p. 87) E, assim, o poeta inventa em seus versos o futuro pretendido, mas sem que se exclua dele o passado ancestral. E nesses versos surgem nomes outros, além da África e além de Craveirinha. Mas a identidade desses signos que aparecem estão fundamentalmente ligados à significação de «África» e de «Craveirinha»: (...) Passos soltos tarde Xipamanine de domingo e Tingane rua e viola de Tingane 174 ritmo ritmo velho ritmo inconcebível de uma nova dança! (...) (ibid., p. 142) Às vezes, o poeta tem pressa do tempo, e inventa que o fruto africano amadurece rápido para matar a fome do menino, pelo calor da mão infantil. Os signos «tempo», «fruto» e «menino» são os “outros” que, na função imagética da poesia, projetam o futuro: MAMPSINCHA A mampsincha é um fruto africano rasteiro ali onde nasce e cresce de cor verde enquanto púrpuro se não torna e já sazonado o levanta nas puras mãos de ébano o negrinho na gula do seu caroço. (ibid., p. 66) A natureza também opera o milagre: “Os Galos”, metáfora para quem não se cala, preparam o ressurgimento da manhã de liberdade: Até os galos aqui sabem o delito do alerta que se não canta. E a noite escuta -os na vigília não desperdiçada de galar o embrião na manhã incuba deste sul ao mundo. (ibid., p. 80) Ergue-se, no verso de Craveirinha, o homem marginalizado pela colonização, mas que será um paradigma da História, porque resistiu ao apagamento cultural e social e fez prevalecer uma nova ordem: Nesse sentido salutar, toda uma gama de teorias críticas contemporâneas sugere que é com aqueles que sofreram o setenciamento da história ? subjugação, dominação, diáspora, deslocamento ? que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e de pensamento. Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social ? como ela emerge em formas culturais não-canônicas ? transforma nossa estratégias 175 críticas. (BHABHA, 1998, p. 240) O “eu” o “outro” conjugam-se em “nós” para que, da margem em que estão, um e outro possam juntos refazer a História: (...) E deixem em nós gerar-se irresistível a prole das sementes do beijo consangüíneo do Grande Dia SIA-VUMA! Que um enxame de mãos em prece na orgia fantástica dos augúrios do nhanga há-de voltar deste exílio mais moçambicano connosco SIA-VUMA! (OP, p. 221) O processo de subjugação do negro é refletido por Frantz Fanon de maneira mais subjetiva do que conceitua l, levando-o a se questionar mesmo a respeito de sua condição humana, visto que esta realidade foi negada historicamente: Em outras palavras, começo a sofrer por não ser Branco, na medida em que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, extorque de mim todo valor, toda originalidade, diz que parasito o mundo, que é preciso que acompanhe o mais rapidamente possível o mundo do homem branco (...). (FANON, 1983, p. 82) Mas, apesar do complexo de dependência que acusa Fanon em seu texto, o povo negro, o povo marginalizado reagirá e nele o poeta deposita as esperanças de que o futuro contará uma nova história, a que virá dos que agora foram submetidos pela força: DE UM POVO SUBJUGADO PELAS ARMAS... De um povo subjugado pelas armas nasce irremediavelmente um novo povo, um novo comportamento cultural. É uma questão de tempo entre os vencedores, os vencidos, a terra e as mulheres. O resto é obra dos filhos. (PP, p. 70) Na poesia está a esperança; e o poeta não nega, em meio à dor, na “Cela 1”, a sua missão maior. O corpo está preso, mas o pensamento, a imaginação e a palavra libertam-se em direção ao futuro. E nesse processo de criação, não se vê apenas o “eu”, mas todo um povo no 176 desenho do futuro: Metalizaram-me as portas vãos janelizam-me às barras mas basta reflectir transponho-as atingindo incólume os horizontes. (...) Mas a imaginação mania que não se enclausura permite-me os substantivos e exasperado ou sereno concilio o medo à loucura da profecia que me excede. Meu amor: Deste lado das barras mesmo sem vinganças o raciocínio implacável futuriza o inverso. (ibid., p. 65) A imaginação, o pensamento, a consciência que se liberta enquanto o corpo permanece extático, representa, na poesia de Craveirinha, um dup lo: o “eu” e o “outro” em si mesmo. Mas esse “outro” não se ordena na realidade mundana; ele existe na consciência do poeta, dividido entre o corpo que enfraquece e o espírito que se eleva no sonho de libertar-se. O desacordo entre o corpo físico e o corpo imaterial enquadra-se perfeitamente ao estudo de Henri Bergson sobre a alma e o corpo: Cada um de nós é um corpo, submetido às mesmas leis de todas as outras partes da matéria. (...) Mas, ao lado destes movimentos que são provocados mecanicamente por uma causa exterior, existem outros que parecem provir do interior e que diferem dos precedentes por seu caráter imprevisto: chamamo-los “voluntários”. Qual é a sua causa? É aquilo que cada um de nós designa pela palavra “eu”. E o que é o “eu”? Algo que parece, com ou sem razão, ultrapassar todas as partes do corpo a que está ligado, ultrapassar tanto no espaço quanto no tempo. Primeiramente no espaço, pois nosso corpo se detém precisamente nos contornos que o limitam, enquanto pela nossa capacidade de perceber, e mais particularmente, de ver, alcançamos o que está bem distante de nosso corpo: vamos até as estrelas. Em seguida, no tempo, pois o corpo é a matéria, a matéria está no presente e, se é verdade que o passado aí deixa seus traços, são traços de passado apenas para uma consciência que os percebe e interpreta o que percebe à luz do que ela recorda: a consciência, ela sim, retém o passado, enrola -o sobre si própria na medida em que o tempo passa e prepara com ele um futuro que ela contribuirá para criar. (BERGSON, 1974, p. 89) 177 Retido o corpo, mas não o espírito que se faz com a vontade de liberdade e o desejo de luta, que se move para além do espaço ? limitado por grades ? e do tempo ? definido pelo estado de exceção ? , o poeta elege a “Esperança” como signo que não se reduz à realidade, e convoca o “outro” a partilhar o mesmo ideal: Hoje nada me alcança. Ilícito precedo a gambiarra dos sonhos ao limite dos pássaros gorgeando ritmos entre o céu e as árvores. Face a face aguçada existe a revelação de saberem todos como eu nasci. E entre o após da raiz e eu tenaz a esperança em nós pulsando viriliza-me o verso. (PP, p. 77) Os muitos “outros” de Craveirinha que circulam no pensamento e no verso do poeta se configuram imagens luminosas ante a visão do sujeito poético. Se representam dor, podem ser ressignificados na resistência e na esperança. Não fosse o real objeto da poesia de Craveirinha imagem de profundidade suficiente para validar o “outro” no texto, a própria poesia em si mesma já o faria, porque, segundo Octavio Paz, a poesia é exercício de outridade: A conversão do eu em tu ? imagem que compreende todas as imagens poéticas ? não pode realizar-se sem que antes o mundo reapareça. A imaginação poética não é invenção mas descoberta da presença. Descobrir a imagem do mundo no que emerge como fragmento ou dispersão, perceber no uno o outro, será devolver à linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos outros. A poesia: procura dos outros, descoberta da outridade. (PAZ, 2005, p. 102) O poema que, no título, revela a individuação do sujeito poético, em retomada de consciência social ? “A minha dor” ? , desenvolve nos versos uma proposta de fraternidade do sentimento e da resistência que só se realiza na concepção de um “eu” coletivo”: 178 Dói a mesmíssima angústia nas almas dos nossos corpos perto e à distâ ncia. E o preto que gritou é a dor que se não vendeu nem na hora do sol perdido nos muros da cadeia. (OP, p. 69) O poeta moçambicano reassume a luta por seu país, versando-se em resistência e esperança. E é por esse caminho que o sujeito poético pode, mais uma vez, olhar o “outro” e encenar a sua história individual, que, unida a outras tantas histórias de dor, luta, resistência e esperança, contará a História de Moçambique, que é, também, a história do poeta. Eis mais uma via de aproximação entre o “eu” e o “outro”, os quais se solidarizam para transformar a realidade que vivenc iam. Heróis aparecerão no texto poético, justa homenagem a quem não aceitou o jugo colonial. Todavia, são mais presentes as pessoas comuns, que lutam dia a dia pela sobrevivência. São muitas as mulheres, guerreiras e mães, aguerridas e sofr idas. A voz lírica volta-se para a mulher que se vende, “Mulata Margarida”: (...) E corpo moreno de mulata Margarida é vestido de náilon que senhor da cantina pagou é quinhenta de chá arroz e molho de amendoim de Zeca Macubana que herdou olhos azuis das românticas noites de jazz nos bares da Rua Araújo enquanto a cinta elástica suspende o ovário descaído. E eu sei poesia quando levo comigo a pureza da mulata Margarida na sua décima quinta blenorragia. (ibid., p. 38-9) As tragédias coloniais doem mais tristemente no grito de “Mamanô!”, grito que não se cala na poesia de Craveirinha: 179 Voz de mufana alagou a cidade com seus soluços de acusação pequeno xipocué a tremer de frio passou varando a noite algodoada de cacimba a alma de órfão de mãe viva Espezinhada! Espezinhada! Espezinhada! E toda a sina atirada desesperadamente Num grito cheio de vazio como nossa vida: ? «Mamanôôô...! Mamanôôô...!» (...) (ibid., p. 40) Os personagens moçambicanos desfilam suas histórias na obra poética de Craveirinha. Contam tragédias particulares, falam de esperanças. O “outro” recebe do poeta as homenagens, os louvores, a glória de ser grande na humildade e digno na miséria. E entres tantas dores que fazem quase fenecer o “outro”, a criança surge como instrumento de transformação da vida, de transformação da dor em liberdade. Intuitiva, não marcada em definitivo pelas dores incomensuráveis da existência, a criança, com seu ludismo mágico, modifica a realidade, substituindo amargura por felicidade, como numa “Fábula” africana: Menino gordo comprou um balão e assoprou assoprou com força o balão amarelo. Menino gordo assoprou assoprou assoprou o balão inchou inchou e rebentou! Meninos magros apanharam os restos e fizeram balõezinhos. (ibid., p. 70) É através do tema da infância que o poeta/sujeito poético retorna a um espaço antes da dor, a um “tempo adâmico sem conflitos e sem fracturas psicológicas e culturais”. (TRIGO, s/d, p. 72) O tema da infância tem outra possibilidade analítica que convém destacar neste momento. Segundo Alfredo Margarido, “a infância é o lugar onde foi possível existir um pon- 180 to comum de convergência das cores. A criança, o ascendente mais remoto (...) do poeta, não sabe ainda que é necessário discernir entre o branco e o negro”. (MARGARIDO, 1980, p. 35) Ainda que a criança seja admoestada pela civilização estranha, que a corrompe, o poeta encontra na infância motivos para realizar o “Milagre” da existência, o sonho de ver a vida transformada em liberdade: Nas maternid ades sofrem as mães na velha dor de ter. E nos cinemas bombardeiros de altitude e desintegrações do átomo civilizam as crianças. Mas no coração do poeta eternamente a esperança no sempre novo milagre velho de parir. (OP, p. 74) E é ainda pela lição da infância, aprendida e não esquecida, que o sujeito poético readquire a esperança de que o mal dos dias coloniais não extingue a crença do bem no futuro, porque o “outro” criança vivifica o sujeito, regozijando-se em sua existência: MENINICE Tudo me custa até o ser tão menino que nem réstia de ódio fica no tamanho do coração onde todo o fel dos homens se destilou. Interminável dói mas não me cansa este vício de meninice quando o mundo oiça a nova de que o fel dos homens de tanta acidez em mim finalmente acabou. (PP, p. 101) Autorizado na luta que assume pela libertação de seu país; autorizado por ser um dos muitos a sofrer as marcas da colonização, Craveirinha também é autorizado a falar do “outro” 181 pelo próprio exercício de linguagem, como propõe Paul Ricouer, ao discutir o corpo e os acontecimentos mentais (pensamentos, consciência) como primados da categoria de mesmidade32 : (...) a pessoa a quem atribuímos (...) os predicados mentais e uma consciê ncia não é exclusivamente expressa pelos pronomes da primeira e da segunda pessoa do singular, como seria o caso numa teoria da enunciação reflexiva. Eles são atribuídos a alguém que pode ser também uma terceira pessoa. Se a pessoa é aquilo de que se fala, é admitido que se fale, numa situação de interlocução, da dor sentida por um terceiro que não é um dos interlocutores. (RICOUER, 1991, p. 47) Craveirinha fala de alguém que não é ele ? muito embora se identifique com o seu objeto ? , porque conhece sua dor e sua coragem. Plasticamente, ilustra o “outro” em seu poema, porque a esperança de que o sujeito poético se nutre vem da resistência do “outro”. A maior resistência, entretanto, não se dá pela luta armada, pelo sangue que não se conta como perdido. A maior resistência está nas múltiplas vozes dos muitos seres que carrega em si o sujeito poético, e que fazem o “Manifesto” do ser moçambicano, do ser africano: (...) Oh! E meu peito da tonalidade mais bela do breu e no embondeiro da nossa inaudita esperança gravado o totem mais invencível totem do Mundo e minha voz estentórea de homem do Taganhica, do Congo, Angola, Moçambique e Senegal. Ah! Outra vez eu chefe zulo eu azagaia banto eu lançador de malefícios contra as insaciáveis pragas de gafanhotos invasores. Eu tambor Eu suruma Eu negro suaíli Eu Tchaca Eu Mahazul e Dingana Eu Zichacha na confidência dos ossinhos mágicos do tintlholo Eu insubordinada árvore da Munhuana Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes Eu caçador de leopardos traiçoeiros Eu xiguilo no batuque 32 O conceito de mesmidade compõe o estudo empreendido por Paul Ricouer sobre o si-mesmo e o outro. A mesmidade seria constituída pela “noção cardinal de reidentificação”, o que consiste na idéia de assegurar não somente que falamos da mesma coisa, mas que somos capazes de identificá-la como mesma coisa em uma mu ltiplicidade de ocorrências, o que decorre porque a mesmidade se dá pela localização espaço-temporal, ou seja, uma coisa permanece a mesma em lugares e tempos diferentes. (RICOUER, 1991, p. 45-6) 182 E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti Eu-cidadão dos espíritos das luas carregadas de anátemas de Moçambique. (OP, p. 34) Muitas vozes e muitos seres. Craveirinha sabe que a poesia investe-se de uma existência múltipla e não de propriedades de exceção. E é este o seu projeto literário fundamental: o “homem quer identificar-se com suas criações, reunir-se consigo mesmo e com seus semelhantes: ser o mundo sem cessar de ser ele mesmo.” (PAZ, 2005, p. 122-3) O homem e o seu ideal, o cidadão e o país, o poeta e o desejo compartilham o mesmo verso. “No poema, o ser o e desejo de ser pactuam por um instante, como o fruto e os lábios. Poesia, momentânea reconciliação: ontem, hoje, amanhã; aqui e ali; tu, eu, ele, nós. Tudo estás presente: será presenças”. (ibid., p. 123) A poesia de José Craveirinha apresenta ao leitor o homem comprometido com a ideologia da libertação. A sua voz, que tanto serve a cantar o homem moçambicano, em certos momentos, expressa vivamente a existência de um moçambicano-poeta-revolucionário. Narrar a sua própria história significa rasurar a história oficial da colonização. De dentro da dor, Craveirinha perscruta a si mesmo para, em versos, dizer de sua existência. Ao se narrar, o poeta acredita estar, também, identificando os muitos outros que circundam sua existência real, visto que, ideologicamente, ele desiste de uma subjetividade una para construir uma subjetividade coletiva. Sente como os outros, fala como os outros, sonha como os outros ? ser “eu” representa ser “nós”. É nesse momento que a poesia biográfica de Craveirinha surge como discurso de identidade, e o sujeito poético transcende a si próprio para encontrar a unidade com o “outro” também africano. Foi dessa forma que, mesmo associado aos movimentos que construíram a resistência, o poeta moçambicano José Craveirinha conseguiu investir sua poética de uma subjetividade incomum, estabelecendo com o outro/irmão africano a cumplicidade necessária para falar intimamente de todas as experiências, de todas as mortes, de todas as ilusões e esperanças (Não nasci apenas eu / nem tu nem outro... / mas irmão) (OP, p. 17). O verso de José Craveirinha alinha-se a uma proposta do dis- 183 curso ideológico, mas o homem José Craveirinha não se exime de revelar a sensibilidade com que penetra todas as camadas da história moçambicana. Ao fazer o elogio do “outro”, o poeta não inibe a expressão da subjetividade: VIOLAS DE LATA Minha alma grita súplicas da Mafalala em mutovanas de avós e geme timbilas do músico de Zavala no ritmo das blusas de saca do negro contratado (...) (OP., p. 152) Em prefácio ao livro Poemas da Prisão, Fátima Mendonça atesta: Tal como os de Cela I, também estes Poemas da Prisão não escapam à aproximação biográfica. Neste sentido eles são o testemunho de um percurso vivencial (...). A sua evocação reenvia -nos a um Tempo histórico associado a um espaço preciso: o da conspiração política associada às tentativas da Frelimo de se expandir para Sul, o que parece ter sido gorado com as pr isões ocorridas em finais de 1964. O sujeito/personagem tipo/preso político reitera, no decurso do processo enunciativo, a sua resistência, sob a forma de reacções sucessivas e recorrentes perante a polícia e os torturadores: rebeldia, pânico, raiva, medo, sucedem-se alternadamente, como para dizer que estes poemas não são mero produto da invenção vocabular ou representação directa de vivência pessoal, mas resultado de uma realidade transmudada em poesia. (PP, p. 13) O dizer autobiográfico praticado por Craveirinha não deixa dúvidas quanto à construção de uma identidade que não se limita ao homem José, mas se expande para o homem moçambicano, o líder, o poeta no compromisso inextinguível com sua terra: REMENDOS DE ESTRELAS Remendos de estrelas passajadas no espaço reconstroem todo o céu. Mãe: E se não houvesse estrelas se o teu ventre me não gerasse e se o céu em vez de infinito fosse de pergamanóide azul? Que espécie de poesia, mãe faria um poeta que não renuncia exactamente como eu 184 à cor com que nasceu? (ibid., p. 32) Inequivocamente autobiográfica, a poesia de José Craveirinha constrói um dossiê da violência colonial. Registram-se fatos, denunciam-se torturas, evidenciam-se a resistência à colonização e o inegável amor pelo país que ainda não é, mas cuja nacionalidade se confirma na voz poética: APARÊNCIAS Amigos! Apesar das aparências estarem de acordo com as circunstâncias não sou eu quem morre de medo. (...) Ao bom evangelho dos cassetetes ouvir avoengos pássaros bantos cantarem algures nos ombros velhas melodias de feridas. E depois à sedutora persuasão das ameaças pela décima segunda vez humildemente pensar: Não sou luso-ultramarino SOU MOÇAMBICANO! (C1, p. 38) Uma das mais belas manifestações do “eu” na poesia de Craveirinha registra-se no poema “Manifesto”, já citado anteriormente, do livro Xigubo, no qual o sujeito da enunciação resgata a beleza da raça negra e o valor da cultura africana 33 e promove, “nessa exultante geografia do corpo físico e do corpo pátrio a incomensurável metáfora da reabilitação épica afr icana”: (FERREIRA, 1989, p. 55) Oh! 33 Sobre o valor da raça e da beleza negras, reafirmados em muitos poemas de Craveirinha, há duas visões que merecem ser destacas. A primeira, é a da crítica literária, que associa a valorização de uma estética negra ao movimento de Negritude, conforme atestam Fátima Mendonça e Michel Laban: “Grande parte da poesia de José Craveirinha escrita nos anos cinqüenta aproxima -se do que de mais representativo foi produzido dentro da estética da negritude: exaltação dos valores culturais africanos, oposição aos valores da civilização ocidental”. Entretanto, o poeta apresenta uma outra visão para o mesmo fazer poético: “Quando exalto a beleza eu não estou a procurar, nem quero contrapor, ou negar a beleza de outros atributos considerados mais belos. Mas eu sempre fui contra aquelas pessoas, as mulheres principalmente, que achavam que para ser mais belas, têm de ser mais claras”. Cf. Fátima Mendonça e Michel Laban. www.macua.org/video/jose_craveirinha_2001a.wmv. Acesso em 25/mai/2008, 13:20h. 185 Meus belos e curtos cabelos crespos e meus olhos negros como in ssurrectas grandes luas de pasmo na noite mais bela das mais belas noites inesquecíveis das terras do Zambeze. (...) Oh! Meus dentes brancos de marfim espoliado puros brilhando na minha negra reincarnada face altiva e no ventre maternal dos campos da nossa indisfrutada colheita de milho o cálido selv agem da minha pele tropical. (...) (OP, p. 31-2) Uma série de acontecimentos vão sendo relatados pelo sujeito poético, associados, quase sempre, às pessoas que o ajudam a escrever a sua própria estória: a mãe, o pai, a avó, a amada Maria, em cenas de intimidade que se revelam nos versos: HISTÓRIAS DE AMOR Noite misteriosa de segredos murmurados no cerrar dos dentes e no pulsar das veias e uma canção no ritmo de nós dois e as algas dos teus olhos a gritar nos nervos (ah, Maria, quantas vezes morremos?) (...) (ibid., p. 109) O que se afirma e reafirma nos poemas é a figura de José, de Zé, filho que dedica versos “Ao meu belo pai ex- imigrante”: Pai: / Ainda me lembro do teu olhar / e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade (ibid., p. 157); filho que exalta da mãe o ventre fértil e sua origem negra: Mãe: / concebido no teu ventre / na pura condição de fêmea / quase foi como na Bíblia / o pecado original / com a diferença de não seres Eva / não haver hipóteses de maçã; mas engravidada ficares / negra mais longe do paraíso. (PP, p. 71); amante que, mesmo na dor, preocupa-se com a amada: Constrange-me a expressão / permanente no teu rosto. // Alegra-te, Maria / por favor! (ibid., p. 51) José narra-se, poetiza-se, louva-se mesmo entre as grades, entre as paredes de cal, na 186 solidão e no silêncio, porque precisa vivificar cada minuto de permanência no ser, José que não se rende, “José mulato”: O meu riso é a maquilhagem do mulato à humilhação materna que se abriu resignadamente astuta no útero da negra que se vingou E se canto assim oiçam atentos a voz humana do filho moçambicano que se gerou. (ibid., p. 39) E se registramos José Craveirinha, José, Zé na construção ideológica do “outro” e, mais ainda, na admissão desse “outro” na existência do “eu”, é porque o próprio poeta nunca negou, em si mesmo, o ser múltiplo que a condição colonial nele artificializou, mas que foi transformado na mais pura essência, em seu conceito primeiro. 6.3 - A experiência estética da poesia: um caminho subjetivo de reconstrução da realidade Aquilo que eu sei alguém me legou. Pai Palavra Mãe Palavra Palavra anterior vem e transforma já o meu futuro. Ruy Duarte de Carvalho Quando falham os discursos científicos constitutivos da Humanidade, a poesia proclama-se como única expressão dos males que assomam o homem e da libertação a que aspiam. Isso porque, antes do estudo de linguagem ou de mimesis, estuda-se a palavra. Na simbólica do som encontra-se a gênese da poesia. O processo de criação textual compreende a elaboração de recursos variados que se configurarão em escritura poética. 187 A palavra como expressão fundadora da poesia é assim explicada por Nietzsche: Na seqüência de palavras, portanto por meio de uma cadeia de símbolos, algo de novo e maior deve ser simbolicamente apresentado: a esse nível tornam-se novamente necessárias rítmica, dinâmica e harmonia. Esse círculo mais alto domina agora o círculo mais estreito da palavra isolada: torna-se necessária uma escolha das palavras, uma nova disposição delas, começa a poesia. (NEITZSCHE, 2005, p. 38) E pela capacidade mimética manifestada esteticamente, a poesia torna-se o veículo possível de apreensão da realidade e expressão das experiências humanas e sociais. Propondo uma reflexão sobre a poesia moderna, essa de que falamos, que tem na expressão da realidade seu mote central, Octavio Paz lança a pergunta: “será uma quimera pensar em uma sociedade que reconcilie o poema e o ato, que seja palavra viva e palavra vivida, criação da comunidade e comunidade criadora?” (PAZ, 1996, p. 95) A questão, segundo o autor, não a atende uma resposta objetiva, e talvez não nos aproximemos, sequer, de uma solução para o problema. No entanto, ele não se exime da busca por uma compreensão: A pergunta contém dois termos antagônicos e complementares: não há poesia sem sociedade, mas a maneira de ser social da poesia é contraditória: afirma e nega simultaneamente a fala, que é a palavra social; não há sociedade sem poesia, mas a sociedade não pode realizar-se nunca como poesia, nunca é poética. Às vezes os dois termos aspiram a desvincular-se. Não podem. Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria, sociedade transumana em que todos seriam um ou cada um seria um todo auto-suficiente. Uma poesia sem sociedade seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a uma perpétua conjunção que se resolve em instantânea discórdia, os dois termos buscam uma conversação mútua. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada. (ibid., p. 96) A poesia de José Craveirinha busca a convergência entre a palavra estética e a sociedade, ainda que não possa elaborar a transmutação ideal, em que o seu sonho revolucionário fosse toda a realidade tangível. Sendo sociedade, os fatos e personagens reais circulam no texto oferecido ao leitor e à sua reflexão. Ao formular a poesia, não se limita a uma descrição fria do visto na sociedade; ao pensar a sociedade, não investe em favor de um signo poético que se deseje fora do âmbito social; mas, ao traçar um verso, sabe que tem de aliar ao valor 188 estético o valor da vida. Considerando que o material retirado da realidade, e de que dispunha para o trabalho poético, era o mais importante, Craveirinha abdica das amarras do verso, especialmente da rima: “Quando eu começo a ter uma emoção do universo político e etc ligado à reivindicação de caráter literário, encontro no verso livre maior capacidade para exprimir os sentimentos.” (MENDONÇA, LABAN, 2008) É do advogado que o defendeu em tempos de prisão, Carlos Adrião Rodrigues, um impressionante depoimento sobre o poeta José Craveirinha: Um dia, contou-me ele [Craveirinha], estava a ser interrogado pelo inspetor da PIDE no gabinete deste. A certa altura, o inspector foi chamado de urgência e teve de sair deixando-o sozinho. Em cima da secretária estava um recipiente cheio de canetas esferográficas. Pareciam querer saltar para as mãos do Zé. Era a possibilidade de comunicar, de escrever. Mais importante que as canetas, só a liberdade. Naquele momento, o Zé encheu-se de suores frios. Era medo, era terror, mas era também o desejo de possuir aquele objecto mágico que iria mudar a sua vida na prisão. Rápido, sorrateiro, temeroso, estendeu a mão e apropriou-se de uma Bic que escondeu nas calças. Pouco depois entrou o inspector. Teria as canetas contadas, e daria pela falta? Nada aconteceu: continuava apenas o interrogatório. E o Zé ia respondendo com sorriso de felicidade na face que fazia impressão ao inspector. O Zé tinha agora uma caneta e um escritor com uma caneta tem uma força danada. O inspector olhava para ele desconfiado; mas nunca se apercebeu da razão da grande diferença.34 (PP, p. 24) Exercendo o direito de oralidade e de expressão autóctone, o poeta exerce o direito de fazer poesia; utilizando como matéria poética o cotidiano de Moçambique, o poeta intervém na sociedade a partir do ideal propugnado. O projeto literário inicial de Craveirinha é definido claramente pelo autor e pelos críticos de sua obra: falar a um outro, movê- lo em direção a um desejo de ascensão humana e social a partir da apreensão de um determinado objeto. Consideramos, assim, com Bakhtin, o ato poético de Crave irinha: Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. To34 A informação merece ser completada: José Craveirinha utilizava papel higiênico para escrever os seus poemas de prisão; estava faltando a caneta. Em mensagem ao escritor amigo Luís Bernardo Honwana, em 1965, reflete o poeta: “Quanto poderá valer amanhã esta película de papel higiénico no baú das tuas memórias?” (PP, p. 9) 189 da palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia -se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 2004, p. 113) Foi esse o recurso utilizado por José Craveirinha para falar por seu povo. Não era a literatura, como nos dá conta a sua biografia, sua meta princ ipal. O escritor fez-se poeta, porque esse era o instrumento possível num estado de exceção. O sonho de Craveirinha, de sua “poesia de intervenção”, é o sonho de um homem que se valeu da própria existência, a fim de validar a existência do “outro”. O projeto de Craveirinha ainda mais se esclarece se pensarmos com Octavio Paz: “O poema é mediação entre uma experiência original e um conjunto de atos e experiências posteriores, que só adquirem coerência e sentido com referência a essa prime ira experiência que o poema consagra”. (PAZ, 2005, p. 53) Compreendemos: ao falar do seu próprio desejo, Craveirinha incitava outros a desejar junto com ele a formação de um novo tempo e uma nova África. José Craveirinha falava sobre muitos, para muitos. Entretanto, sua poesia não se limitou a uma comunicação fácil com seu interlocutor. O poeta moçambicano sempre considerou o fazer literário para além da palavra denominativa. Falou a muitos, mas falou como poucos falariam. Diante do real que assola o homem, o poeta valeu-se da palavra em expressão de coexistência não passiva, mas perturbadora, da realidade. Então, deu-se o admirável processo de que nos fala Octavio Paz: “a linguagem, tocada pela poesia, cessa imediatamente de ser linguagem. Ou seja: conjunto de signos móveis e significantes. O poema transcende a linguagem”. (PAZ, 2005, p. 48) A poesia de Craveirinha não se reduz a uma realidade única, qual seja a da guerra colonial. Mesmo com os imperativos ideológicos atuando sobre o texto, ele amplia o mundo de que participa, informando e inserindo seus leitores em realidades diversas, como atestam Fátima Mendonça e Michel Laban: 190 Os seus poemas não constituem uma unidade fixa. Poder-se-ia dizer que neles estão presentes não um discurso, mas vários discursos justapostos ou paralelos. Entre a escrita aberta e peremptória, alusiva à realidade objetiva de alguns poemas de densidade opaca, refratária ao sentido enviado de outros, o que a poesia de José Craveirinha revela é um sentido profundo de construção da linguagem poética. (MENDONÇA, LABAN, 2008) A palavra poética de Craveirinha transcende a palavra mimética; a realidade poética transcende o real. A linguagem é, para além de si mesma, a imagem que se exclui da palavra, ainda que, por insistência do desejo que nos acomete como leitor, seja nela ? na imagem ? que procuremos a expressão mais justa para a emoção que sentimos. Diante do real que não se quer comunicar pela palavra simplesmente, a imagem possibilita ao poeta o verso mais elaborado: A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só a palavra a exprime. A imagem reconcilia os contrários, mas esta reconciliação não pode ser explicada pelas palavras ? exceto pelas da imagem, que já deixaram de sê-lo. Assim, a imagem é um recurso desesperado contra o silêncio que nos invade cada vez que tentamos exprimir a terrível experiência do que nos rodeia e de nós mesmos. O poema é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser até o extremo. Extremos da palavra e palavras extremas, voltadas sobre as suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fala: o silêncio e a não-significação. Mais aquém da imagem, jaz o mundo do idioma, das explicações e da história. Mais além, abrem-se as portas do real: significação e não-significação tornam-se termos equivalentes. Tal é o sentido último da imagem: ela mesma. (PAZ, 2005, p. 48-9) Nessa tese se enquadra a poesia de José Craveirinha. O que há de belo e de trágico em seus versos é o exercício de mimesis que, por organizar-se como poesia, estabelece a estética como elemento de interlocução com o leitor. As imagens elaboradas por Craveirinha referenciam-se na realidade; mas a linguagem que utiliza para representá- las excede o estatuto da palavra. Se o conceito se nega inteirame nte à razão, basta- nos a emoção do texto poético: AFORISMO O preconceito da ave não é o tamanho das suas asas nem o ramo em que poisou 191 Mas a beleza do seu canto a largueza do seu voo... e o tiro que a matou. (OP, p. 72) A poesia, para que alcance a verdade de seu texto ? ainda que não em seu texto ? vale-se tanto da experiência social comum ao escritor e ao leitor quanto da estética elaborada, a qual evidencia a situação experimentada pelo poeta/sujeito poético. A linguagem é o instrumento essencial dessa estética, porque aproxima o texto de cada indivíduo leitor através de histórias comuns que fazem dele um partícipe pela vivência ou pelo conhecimento adquirido. É também pela estética que o mundo, não perdendo completamente suas imagens fundadoras, as tem transformadas pelo deslocamento do signo que só a técnica permite ao poeta. Aliado ao engenho poético, o saber da técnica constrói o poema, como afirma Octavio Paz: A técnica não é nem uma imagem nem uma visão do mundo: não é uma imagem porque não tem por objeto representar ou reproduzir a realidade; não é uma visão porque não concebe o mundo como figura, e sim como algo mais ou menos maleável para a vontade humana. Para a técnica o mundo se apresenta como resistência, não como arquétipo: tem realidade, não figura. Essa realidade não se pode reduzir a nenhuma imagem e é, ao pé da letra, inimaginável. O saber antigo tinha por fim último a contemplação da realidade, fosse presença sensível ou forma ideal; o saber da técnica aspira substituir a realidade real por um universo de mecanismo. (PAZ, 2005, p. 103) No jogo de deslocamento dos signos, o poeta/sujeito poético subverte a hierarquia das formas e apresenta a sua proposta de apreensão do objeto, em processo subjetivo. A amizade entre José Craveirinha e Luís Bernardo Honwana registra-se, para admiração e encanto do leitor, em diversas páginas de Poemas da Prisão. A técnica oferece o verso que se faz pela “vontade humana”, e reafirma pela estética singular o que não se deseja apreender pelo processo mimético usual, porque o que se constrói como verso é o que destrói como realidade: CIVILIZAÇÃO Para o meu irmão, esse garoto Luís Bernardo 192 Peixes de alumínio a jacto nadam rugindo velozes na granja dos ares. Dentro conduzem vermes desumanizados com órbitas automáticas de radar na insaciável gula das ovas que excedem o ventre e explodem no alvo de crianças que não crescerão nunca ou mães que não chorarão mais. E quantos de nós os paranóicos ferros das peseudo-janelas insofisticáveis, Luís, mesmo assim permanecemos inteiros como dantes... (...) (PP, p. 37) A poesia de Craveirinha não é meramente descritiva. Ela lança no interior do discurso uma sucessão de imagens, metáforas construídas em processo estético que não são apenas conceitos, mas novas realidades com as quais o poeta e o leitor devem lhe dar, sem, contudo, perder a relação com a imagem primeira lançada em suas consciências individuais. Nietzsche analisa o ser do poeta e o uso da metáfora em poesia: (...) o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra. Por uma fraqueza peculiar de nossa capacidade moderna, tendemos a complicar o protofenômeno estético e a representá-lo de maneira muito complicada e abstrata. A metáfora é para o autêntico poeta não uma figura de retórica, porém uma imagem substitutiva, que paira à sua frente em lugar realmente de um conceito. (NIETZSCHE, 2005, p. 59) Os versos de Craveirinha restabelecem, no texto, o processo estético pelo qual imprime ao enunciado sua capacidade de ver além do conceito, ver a imagem como metáfora que se realiza sobre a imagem inicial recebida por sua consciência. A realidade é devolvida ao leitor/receptor, que identifica os matizes que se intensificaram pelo recurso de linguagem ut ilizado, construindo uma nova consciência social, política e ideológica: CÃES AO DESBARATO Um género de cães ao desbarato 193 poetas cafres adoçam as nongas ancestrais dos versos na obsessiva carne terra dos açaimos e não choram... Batem! (OP., p. 68) Os poemas de Karingana ua Karingana são exercícios de metaforização da realidade. Todas as imagens recebidas pelo sujeito poético redimensionam-se no fazer literário de Craveirinha, e cabe ao leitor identificar as relações estabelecidas entre o real e o ideológico, para além de um conceito estratificado da situação política que vive o país e o povo moçambicano. Em “Síntese”, duas imagens se destacam no texto como metáforas da esperança que se autentica sobre a inevitável dor e indica um novo tempo de liberdade Toda a dura realidade adquire, esteticamente, imagens de conciliação entre o homem e a natureza: Na cidade alinhadas à margem as acácias ao vento urbanizado agitam o sentido carmesim das suas flores. E um menino com mais outros meninos todos juntos um dia fecundam na síntese da rua cidade e subúrbios meninas e flores. (OP, p. 78) O ser poético de Craveirinha elabora imagens que se sobrepõem em movimento, ainda não definida a forma de sua existência, porque dela depende o engenho do poeta. Bakhtin, ao propor uma compreensão da imagem na literatura, faz a seguinte distinção para a poesia: Na imagem poética, em sentido restrito (na imagem-tropo), toda a ação, a dinâmica da imagem-palavra, desencadeia -se entre o discurso (em todos os seus aspectos) e o objeto (em todos os seus momentos). A palavra imerge-se na riqueza inesgotável e na multiformidade contraditória do próprio objeto com sua natureza “ativa” e ainda “indizível”; por isso, ela não propõe nada além dos limites de seu contexto (exceto naturalmente o tesouro da própria língua). A palavra esquece a história da concepção verbal e contraditória do seu objeto e também o presente plurilíngüe desta concepção. (BAKHTIN, 1998, p. 87) 194 Imagem e contexto, desenhados pela palavra poética, então, propõem uma perspectiva do objeto que não se limite à sua forma aparente. Nesse processo de construção literária, os fatos externos apresentam-se como sínteses da realidade externa, em “3 dimensões”: Na cabina o deus da máquina de boné e ganga tem na mão o segredo das bielas. Na carruagem o deus da primeira classe arquitecta projectos no ar condicionado.E no ramal pés espalmados no aço dos carris rebenta pulmões o deus negro da zorra. (OP, p. 71) São ainda as metáforas em oposição que mostram a realidade dual que não se compreende pela lógica, em expressão científica, mas pelo trágico, em expressão do real, como no poema “Machimbombos”: Nas tépidas ilhargas dos machimbombos os frutos silvestres aos cachos vão amadurecendo ao mobiloil do desespero no estribo enquanto o alc atrão da rua em comissuras de saibro plagia o azimute das mamanas perplexas na paragem radical. (ibid., p. 82) O que há de tragédia na poesia de Craveirinha é o que há de tragédia na vida de Moçambique. Por isso a metáfora é um jogo do qual o poeta participa, porque nele a consciência social atua incessantemente, identificando o cerne da dor. No longo poema “Ode a uma carga perdida num barco incendiado chamado Save”, homens são cargas e o destino fatal é revisitado pelo poeta na mais dolorosa estética. Na epígrafe do texto, o autor atesta o compromisso com a realidade circundante que habita nele como espíritos indomáveis: Quantos morreram nos porões? Os que estavam lá e nós. (ibid., p. 26) Outro recurso estético importante é utilizado no poema: a repetição. O texto ressoa na 195 cabeça do leitor como um tambor que pretende alertar consciências, marcando em cada ato a tragédia que acomete o homem africano : O barco era grande era grande mas não chegava. Os porões eram enormes eram enormes os porões mas não chegavam. Os beliches eram muitos eram muitos os beliches mas não chegavam e o barco encalhou. Mas a mercadoria disciplinada coube e quando o grande barco da Companhia encalhou a carga de fardos de caqui e botões doirados inteira renunciou. (...) II Quem foi que gritou? Foi a carga. Quem foi que ardeu? Foi a carga. Quem foi que explodiu? Foi a carga. Quem foi que desapareceu? Foi a carga. A carga consumiu as forças últimas dos braços e das pernas ardendo últimas dos olhos vítreos e das mãos queimadas últimas dos gritos consumidos pelas chamas últimas da suruma nos hiatos de agonia. (...) (ibid., p. 26-7) A força das imagens utilizadas por Craveirinha para falar da vida colonial em sua Moçambique interfere na realidade, não para a alterar, mas para a clarificar. As imagens elaboradas pelo poeta proclamam em cores subjetivas a existência em Moçambique. A estética que traduz a dor na busca do pleno conhecimento de sua vivência e da sociedade de que participa não inibe, entretanto, a voz de esperança que emerge do mais profundo lamento. 196 6.4 - O “outro” em si: o equilíbrio na formação da subjetividade na poesia de Craveirinha Não gosto muito do termo “raça”; raça negra, raça mulata, raça branca... A raça é humana José Craveirinha O contato entre o homem negro e o homem branco deixou marcas que se inscreveram muito além das estórias de dor e resistência. A cor da pele por vezes alterada; as línguas autóctones em proibição; os costumes modificados: registros de uma convivência que, embora conflituosa, arraigou-se na existência a africana. Do tempo da acultur ação e assimilação ao início do movimento de luta pela liberdade, o homem africano percorreu os difíceis caminhos da convivência forçada com o “outro”. Tendo início o processo de conscientização política pelo qua l discursos ideológicos vão ser inaugurados, a atitude de negação do “outro” faz-se presente nas literaturas africanas de expressão portuguesa. Salvato Trigo esclarece o quadro da emergência do texto literário comprometido com a ideologia da negritude: As literaturas africanas assumem-se como outras, num primeiro momento, em que desejam ganhar distância e afirmar-se como diferentes da literatura colonial. Esta, recorrendo embora a motivos composicionais afric anos, revela um imaginário tipicamente ocidental, afastando-se, portanto, da literatura matricial, a metropolitana, apenas em aspectos verbais ou retóricos superficiais, que lhe conferem um certo sabor local. A sua reclamação de africana é meramente geográfica, uma vez que, antropológica e civilizacionalmente, não reflecte africanidade. (TRIGO, s/d, p. 62) Duas matérias, ainda discutidas e nomeadas por Salvato Trigo, se destacarão nas literaturas, reflexo da situação colonial: a “alteridade verbal” e a “alteridade cultural e psicológica”. A primeira expressa uma contaminação da língua portuguesa pelos falares africanos, por seu índice de oralidade, o que projeta, no cerne do conceito de dominação, a insubmissão. A segunda alteridade assinala-se na construção da identidade do africano, dúplice na medida em que reafirma os valores negros, mas não nega completamente a contribuição dos valores oci- 197 dentais para a sua formação humana e social. Em análise mais específica: Reconhece-se que o equilíbrio cultural e psicológico do colonizado e do africanizado 35 é complexo, na medida em que a assimilação de valores alienígenos a que esteve sujeito não é toda ela negativa. Por outro lado, dos valores culturais negros a que a sua conscientização cívica e política lhe impõe que regresse, nem todos são aceitáveis ou desejá veis, por historicamente anacrónicos ou por inadequação à nova realidade constituída pelo contacto colonial. Assim, há que encontrar o espaço e o tempo anteriores à fractura do “eu”, isto é, a axiologia da ataraxia cultural e psicológica que a nova geração de intelectuais africanos esclarecidos elege como modelo para o seu reencontro com a África, que o mesmo é dizer, consigo próprios. (ibid., p. 70) As duas alteridades de que trata Salvato Trigo ? a verbal e a cultural e psicológica ? representam-se no poema “Fraternidade das Palavras”: O céu é uma m’benga onde todos os braços das mamanas repisam os bagos de estrelas. Amigos: as palavras mesmo estranhas se têm música verdadeira só precisam de quem as toque ao mesmo ritmo para serem todas irmãs. E eis que num espasmo de harmonia como todas as coisas palavras rongas e algarvias ganguissam neste satanhoco papel e recombinam em poema. (OP, p. 203) Tendo a língua como elemento fundador de uma nova identidade, as duas alteridades anteriormente destacadas entremeiam-se no dizer poético de Craveirinha, redefinindo o novo homem moçambicano. A língua, de instrumento de luta e resistência, passa a instrumento de transformação do futuro. A oralidade é tida como expressão máxima da africanidade. A literatura, herança inconteste da civilização e da colonização ocidentais, não negou, em seus ve rsos, a expressão oral, marca mais evidente de tradições culturais que não se permitiam diluir 35 Salvato Trigo faz uma distinção entre “colonizados” e “africanizados”. De acordo com o autor, o segundo termo assinala a existência de europeus ou euro-africanos, especialmente intelectuais, que devendo estar, em princípio, associados ao grupo de colonizadores, optaram por pertencer, por sua ideologia e por sua práxis, ao grupo dos colonizados. (TRIGO, s/d, p. 62-3) 198 em novas formas de expressão. A literatura, assim, não é apenas instrumento de resistência, mas também de prazer, como sintetiza Laura Cavalcante Padilha: “O advento da escrita desloca o gozo do texto da voz para a letra”. (PADILHA, 1992, p.32) A poesia, então, reflete essa proposta ideológica, adequando-se ao signo oral, escapando à racionalidade da escritura que procura submeter os textos em prosa pela excessiva sintaxe, pela delimitação das idéias em complexos morfossintáticos. Corresponde ao estatuto da poesia a flexibilidade exigida pelo deslocamento das formas rígidas da língua escrita para a expressão oral: “A poesia é encarada como perfeitamente compatível com a categoria de ‘oral’, que conota espontaneidade, afinidade simpática com o ser e a espiritualidade”. (LEITE, 1998, p. 16) O poeta tem consciência de que a língua foi o instrumento de sua europeização. Mas sua condição de assimilado não o faz perder, definitivamente, os laços que o mantêm preso às suas origens. Retomando o direito de expressão, o poeta investe o sujeito poético da certeza de que seu verso calará as marcas da colonização para fazer emergir a mais pura nacionalidade, alicerce de qualquer transformação que se pretenda pôr em prática. E quando proibiram a palavra ronga, Craveirinha usou a palavra algarvia para falar. Mas, então, proibiram o poeta também de falar. Porém, o silêncio durou pouco, porque emergiu dele a vontade de luta irmanada no sofrimento. Ressurgiu a palavra, fez-se o poema, o “Poemeto”: Na cidade calada à força agora falamos mais. Que para violar este silêncio basta porem-nos juntos na prisão. (C1, p. 44) Se a língua oficial portuguesa insiste em direcionar o homem africano para uma cult ura exógena, que o leva, fatalmente, a um pensar ocidentalizado, é a oralidade, manifestação de margem, que faz o poeta retornar à sua realidade, investigá-la e relevar, no verso, todos os que a política colonial abandonou. O poeta entende que fazer ressurgir essas vozes e esse jeito de falar africano representa reconstruir África a partir de suas origens. 199 Ao procurar compreender que proposta de nação emerge do povo, Homi K. Bhabha estabelece que “o povo não mais estará contido naquele discurso nacional da teleologia do progresso, do anonimato dos indivíduos, da horizontalidade espacial da comunidade, do tempo homogêneo das narrativas sociais, da visibilidade historicista da modernidade”. (BHABHA, 1998, p. 213) Recorrendo a Foucault, o autor indo-britânico entende que há uma relação intrínseca entre a “integração marginal do indivíduo” e a “totalidade social”, da qual se depreende que a individualidade se intensifica de acordo com a condição marginal em que é colocado o indivíduo, de onde emergem discursos que projetam a nação moderna, à parte a constituição do estado e a ascensão do individualismo burguês. Homi Bhabha conclui o raciocínio: “Essa é uma lição da história a ser aprendida com aqueles povos cujas histórias de ma rginalidade estão enredadas de forma mais profunda nas antinomias da lei e da ordem ? os colonizados e as mulheres”. (ibid., p. 214) A consciência de ser colonizado e marginalizado instrui no poeta duas atitudes complementares: a primeira concerne à valorização da oralidade, marcando a tradição de um povo que, como força integradora, não se submete ao estado totalitário colonizador; a segunda promove, no fundo da marginalidade a que é lançado o indivíduo, a sua elevação histórica, que não se dá pelos discur sos oficiais, mas se glorifica pela memória dos que identificam a própria cultura e a própria existência pelas histórias que contam. E aí o poeta vence o tempo e permanece em sua nação, pela voz de seu povo, eternizado na cultura oral e na valorização da ancestralidade. Se a cultura européia define-se pela escrita, pelos livros que circulam entre os países que formam uma cultura que se homogeneíza, o contrário ocorre com África, visto que “a dominante em matéria de cultura desloca-se do escrito para o oral”. (AGUESSY, DIAGEE, 1977, p. 94) A oralidade pode surgir na poesia como práxis africana, “não só no que se relaciona com as fontes dos valores culturais mas também no que se refere ao estatuto e ao desti- 200 no prático das cond ições e dos agentes de transmissão do modo de concepção do mundo”. (ibid.) As vozes das mamanas repassam as histórias que se perpetuam, garantido a existência da africanidade e do orgulho pátrio. O sujeito poético guerrilheiro terá confirmado, assim, o seu exemplo de resistência e amor por África: DÁDIVA DO CÉU Minha guerra será contra os pára-quedistas suspensos entre céu e terra. Morrerei na minha guerra ou levarei nos braços de guerrilheiro para as crianças da minha terra as sedas lançadas do bojo do bombardeiro. E a minha glória serão as mães contando aos f ilhos a história do primeiro autêntico vestido de seda dádiva do céu. (OP, p. 81) A oralidade, no contexto africano, não é uma expressão individualizada, daí sua força como elemento sintetizador da esperança de liberdade para toda uma nação, pois “quando falamos de oralidade como característica do campo cultural africano, pensamos numa dominante e não numa exclusividade”. (AGUESSY, DIAGEE, 1977, p. 108) A certeza da oralidade a perpetuar a sua história e a história de seu povo, Craveirinha registra nos versos do poema “Karingana ua karingana”. O sujeito poético projeta no futuro o sonho impossível de se realizar no tempo presente. Era uma vez a vida que se inventa pela poesia: Este jeito de contar as nossas coisas à maneira simples das profecias ? Karingana ua Karingana ? é que faz o poeta sentir-se gente. E nem de outra forma se inventa o que é propriedade dos poetas nem em plena vida se transforma a visão do que parece impossível em sonho do que vai ser. 201 ? Karingana! (OP, p. 65) O que evidenc iamos, nessa perspectiva, é a compreensão ulterior do escritor africano de que simplesmente recusar o “outro” em si mesmo é uma atitude que o coloca em confronto na estância do ser, com o que identifica em si, mas não aceita, convergência de imagens que se pretendiam inversas. Durante todo o tempo que planeou a anulação do “outro”, o escritor africano, e em nosso caso o moçambicano Craveirinha, evidenciava esse “outro”, cerceando, a si mesmo, o direito de constituir-se plenamente como sujeito, o sujeito possível de ser em termos de colonização. Ao discutir o problema da alteridade, Frantz Fanon alerta, em Pele Negra, Máscaras Branca: O homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um outro homem, a fim de ser reconhecido por ele. Enquanto ele não é efetivamente reconhecido pelo outro, é este outro que permanece o tema de sua ação. É deste outro, é do reconhecimento por este outro, que dependem seu valor e sua realidade humana. É neste outro que se condensa o sentido de sua vida. (FANON, 1983, p. 176) Como vimos anteriormente, foi movimento poético em Craveirinha o alijamento do “outro” para a sobrevivência do “eu”. Tanto pela inscrição negativa do “outro” branco, quanto pela afirmação positiva do “eu” negro, o discurso do poeta foi o da revivescência do africano pelo aniquilamento do europeu. Mas na dinâmica da escritura, um movimento distinto se revela: o da aceitação do exógeno como elemento partícipe da identidade que se pensava integralizada na fundação do negrismo. Resultado da evolução de um pensamento que não se mantém na fixidez das normas da existência: É na medida em que ultrapasso meu ser imediato que apreendo o ser do outro como realidade natural e mais do que natural. Se fecho o circuito, se torno irrealizável o movimento nos dois sentidos mantenho o outro no interior de si mesmo. Chego ao extremo de lhe tomar até este ser-para-si. O único método para romper este círculo infernal que me reporta a mim mesmo é restituir ao outro através da mediação e reconhecimento, sua realidade humana, diferente da realidade natural. Ora, o outro deve efetuar a mesma operação. (ibid., p. 177) 202 Neste segundo momento histórico, o sujeito poético entende que foi irremediavelmente transformado pela presença do “outro” estranho a ele. O “outro” pode ter sido aniquilado do espaço e do tempo estabelecidos pelas marcas coloniais, mas suas marcas identitárias ficaram impressas no corpo e no espírito do homem africano. O “eu” legitimamente africano é discurso. Ele, de verdade, nunca se qualificou socia lmente, visto que, na ausência do “outro”, não se dava conta de sua própria constituição como sujeito. O “eu” africano somente pode ser compreendido em função histórica, como observa Honorat Aguessy: Trata-se de uma sociedade [africana] onde o universo e a vida não poderiam ser assumidos por um indivíduo reduzido ao solipsismo. O «outro» está sempre implicado e integrado no que condiciona, quando não determina conjuntamente o «eu», o «nós»: a anterioridade ou, pelo menos, a simultaneidade da comunidade, a partir do momento em que surge o «eu». (AGUESSY, DIAGEE, 1977, p. 133) Ao investigarmos a obra de José Craveirinha, vemos nitidamente essa proposta. Em Poemas da Prisão, esta característica se evidencia, o que, a princípio, institui-se como um paradoxo, visto que o poeta vivia as circunstâncias inequívocas da violência colonial. Mas é nesse livro que vamos encontrar, ao lado dos poemas de revolta ou de dor, os textos que inserem o branco europeu na formação cultural e psicológica do negro africano. Consciente de si e do mundo, o poeta-prisioneiro-sujeito poético reflete sobre a cultura estranha que assimilou e tenta compreender que valor ainda persiste na radicalização das idéias. Com fina ironia, faz uma revisão de velhos conceitos e propõe a si mesmo o equilíbrio necessário para a manutenção de sua lucidez: (...)A sede faz-me beber uma “coca-cola” média. Isto de ingerir uma bebida americana-yankee não será um acto de submissão ao dólar? Mau. Começo já a torturar-me com preconceitos e políticas. A “cocacola” é um refresco e... pronto. Se começo a preocupar-me com uma simples “coca-cola” terei de despir a camisa, as calças, as cuecas e as peúgas e não calçar mais sapatos pelo menos estes que eu uso e de que gosto e voltar a um nativismo de tanga e azagaia. Mas o nativismo é inimigo da evolução? Se é, bolas para o nativismo. Mas se não é, então declaro-me nativista -progressivo e está tudo em ordem. 203 E crio um termo. (...) (PP, p. 88) Não se negando a discutir todas as formas de alteridade, buscando soluções às vezes reais e realizáveis, às vezes fruto do sonho irrealizado, o poeta coloca em questão o “Racismo”: Amigo: Tremo o medo de ouvir o medo rastejar em mim adentro no quase hoje ao amanhã. (...) Ah! Espírito de árvores ao vento chocalha-me as missangas do transe e afugenta a enguia do medo... Que a vida é um homem todo eu negro-mulato-branco livre pisando tacões nos asfaltos de todo o mundo. (ibid., p. 87) O reconhecimento do “outro” em si mesmo não se dá sem dor e emoção. E a experiê ncia de alteridade na formação da subjetividade que se revela mais intensa é a relação fraternal do homem Craveirinha, sujeito poético mulato moçambicano, com a imagem de seu pai algarvio: (...) Pai: a ti e à minha mãe perdoo-vos o amor frustrado mulungo e negra sobre a terra ambos luxúria e submissão a copular evoluindo em mim. Querido pai: Algures escuto o lamento da minha mãe no meu parto mãe como todas as mães ao vagido primeiro em que os filhos reagem para o exterior dos sexos. Não faço perguntas. Deixo aos doutores o porquê 204 (até rebentarem de sociologia) e calo -me. (ibid., p. 84) Reconhecer o pai em si mesmo não significa abdicar de sua africanidade mais genesíaca (Oh, Pai: / Juro que em mim ficaram laivos / do luso-arábico Aljezur da tua infância / mas amar por amor só amo / e somente posso e devo amar / esta minha única e bela nação do Mundo / onde minha Mãe nasceu e me gerou / e contigo comungou a terra, meu Pai.) (OP, p. 158); reconhecer o pai em si mesmo representa não alienar de sua experiência as marcas de alteridade que o constituem integralmente José João Craveirinha: (...) E nestes versos te escrevo, meu Pai por enquanto escondidos teus póstumos projectos mais belos no silêncio e mais fortes na espera porque nascem e renascem do meu não cicatrizado ronga-ibérico mas afro-puro coração. E fica a tua prematura beleza afro-algarvia quase revelada nesta carta elegia para ti meu resgatado primeiro extra-português número UM Craveirinha moçambicano! (ibid., p. 161) Por esses processos históricos, sociais e identitários, os falares de Craveirinha multiplicam-se por vozes que se alternam na sua própria voz, porque ele pretendeu, sempre, dar conta de realidades que não se limitavam à sua própria experiência, mas não negou, à realidade, a vivência e a emoção que eram somente suas. 205 7. SIGNOS DE AMOR NA CONSTRUÇÃO DO “EU” 7.1 - Em repouso de alteridade: o poema na estância do sujeito amoroso Perturbação, ferida, aflição ou júbilo: o corpo, de ponta a ponta, arrastado, submerso em Natureza, e tudo isso, no entanto: como seu eu usasse uma citação. No sentimento de amor, na loucura amorosa, se eu quiser falar reencontrarei: o Livro, a Doxa, a Bobagem. Embaralhamento do corpo e da linguagem: qual deles começa? Roland Barthes “Conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), proposta socrática que fundamentou o equilíbrio e a ciência, foi reinterpretada em diversos textos, conforme a ideologia que vigorasse em determinada época. Michel Foucault, ao estudar as relações entre subjetividade e verdade, na obra A Hermenêutica do Sujeito, identifica o axioma socrático com o “cuidado de si mesmo” (epiméleia heautoû). (FOUCAULT, 2004, p. 4-5) Foucault alerta para o fato de que o “conhece-te a ti mesmo” não tinha, originariame nte, o valor que hoje se lhe atribui, no sentido filosófico e de moral, mas como recomendação para que o homem se reconhecesse como mortal e não como um deus, a fim de não se confrontar com as potências divinas. 36 Entretanto, reconhece Foucault que, no âmbito da filosofia, o “conhece-te a ti mesmo” vem associado à figura de Sócrates. E é dessa forma que se a- 36 Segundo o estudo de Foucault, fundamentado no artigo Philologus (1901), de W. H. Roscher, são três os princípio que deveriam nortear o homem que fosse consultar o oráculo délfico. Além do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), havia outros dois: “nada em demasia” (medèn ágan), que concerne a reduzir as questões a serem apresentadas, e “as cauções” (engýe), princípio que orienta a não prometer aos deuses o que não se pode cumprir. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 6. 206 proxima do “cuidado de si”, como no texto de Platão denominado A Apologia de Sócrates. Portanto, “conhece-te a ti mesmo” estaria vinculado à idéia de que “é preciso que te ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidados contigo mesmo”. (ibid., p. 7) Considerando tal análise, encontra-se em Sócrates uma figura paradoxal. Ao mesmo tempo em que incitava os outros a conhecer-se ou cuidar de si, o filósofo tinha, cônscio de ser um enviado dos deuses, o olhar para fora de si, para o outro. Assim, Foucault propõe a compreensão do “conhece-te a ti mesmo” a partir de três formulações teóricas: a primeira indica uma forma de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro; a segunda orienta a voltar os olhos para si mesmo, ter atenção com seus próprios pensamentos; a terceira fo rmulação instrui a assumir ações que promovam modificações, purificações, transformações e transfigurações no ser. 37 (ibid., p. 14-15) Acerca dessas proposições, conclui Foucault: Temos, pois, com o tema do cuidado de si, uma formulação filosófica precoce, por assim dizer, que aparece claramente desde o século V a.C, e que até os séculos IV-V d.C. percorre toda a filosofia grega, helenística e romana, assim como a espiritua lidade cristã. Enfim, com a noção de epiméleia heautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade. (ibid., p. 15) Vemos, assim, que Foucault chama atenção para o fato de que, após o século V d.C, o “cuidado de si” foi substituído pelo “conhece-te a ti mesmo”. Explica-nos o autor que tal proposição viria de uma moral condenatória da atitude de voltar-se para si como um comportamento que representaria “uma espécie de desafio e bravata, uma vontade de ruptura ética, uma espécie de dandismo moral, afirmação-desafio de um estádio estético e individual intranspo- 37 Esse processo, segundo Foucault, é conseqüência de algumas técnicas a serem exercidas, como, por exemplo, “as técnicas de meditação; as de memorização do passado; as de exame de consciência; as de verificação das representações na medida em que elas se apresentam ao espírito, etc.”( FOUCAULT, ob. cit., p. 15) 207 nível”. (ibid., p. 16). Uma segunda hipótese para o problema colocado seria a admissão de uma incapacidade humana do ho mem para “sustentar, perante seus olhos, entre suas mãos, por ele próprio, uma moral coletiva (a da cidade, por exemplo), e que, em face do deslocamento da moral coletiva, nada mais então teria senão ocupar-se consigo”. (ibid., p. 16-7) Em todo o caso, qua lquer que seja a razão, o conceito sustenta-se como uma contradição relativamente ao princípio pregado por Sócrates, pois se inscreve como dado negativo, ao passo que o “ocupar-se consigo mesmo” foi instruído como princípio positivo. Seja pela moral cristã que estabelece a ética do não-egoísmo, seja pela pelas concepções modernas de que é necessário e “moral” ocupar-se com o outro, estabelecido individualmente ou como coletividade, o fato é que o “cuidado de si” é um conceito que permaneceu no esquecimento ou teve deslocado o seu sentido primeiro. Michel Foucault prossegue com suas hipóteses sobre os motivos que levaram o homem a desconsiderar o “cuidado de si”. Apresenta o autor uma outra razão, que é a instituição do princípio cartesiano, que requalificou o gnôthi seautón e desqualificou o epiméleia heautoû. Temos, neste caso, o domínio da consciência no conhecimento de si e no estabelecimento da existência do ser como sujeito, caminho de “acesso fundamental à verdade” (ibid., p. 19) e procedimento aceito e praticado a partir do século XVII. É nesse ponto exato, o da busca da verdade, que nos interessa particularmente o estudo de Foucault, pois ele estabelecerá o axioma que nos ilumina em direção àquilo que havíamos intuído quando se nos tomou de assalto ? por deleite e estranhamento ? a poesia que cons ideramos a mais subjetiva de Drummond e de Craveirinha, e que nos levou a enveredar por estas cons iderações acadêmicas. Retomamos o raciocínio. O homem, segundo Foucault, segue duas direções rumo à verdade: a espiritualidade, que postula que a verdade nunca será alcançada pelo sujeito atra- 208 vés do conhecimento, e que, para alcançá-la, é necessário que o sujeito se modifique, transforme e desloque a tal ponto que não seja ele mesmo; e o conhecimento, condição moderna que propõe o encontro da verdade apenas pelo caminho infinito do conhecimento. 38 (ibid., p. 20-3) Aí se forma um paradoxo que, mais uma vez, joga luzes sobre o que deduzíamos como efeito de deslumbramento: O conhecimento se abrirá simplesmente para a dimensão indefinida de um progresso cujo fim não se conhece e cujo benefício só será convertido, no curso da história, em acúmulo instituído de conhecimentos ou em benefícios psicológicos ou sociais que, no fim das contas, é tudo o que se consegue da verdade, quando foi tão difícil buscá-la. Tal como doravante ela é, a verdade não será capaz de salvar o sujeito. Se definirmos a espiritualidade como o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o suje ito. (ibid., p. 24) O que vimos até aqui foi a sobrelevação do “outro” ante o “eu”. E todas essas formulações explicam o pensamento humano que resultou na “poesia de intervenção” investigada, neste estudo, pelas vozes poéticas de Drummond e de Crave irinha. Depreende-se, então, que o “cuidado de si” não prescinde da relação com o “outro”. Sob tal proposta, identificamos no corpus desta pesquisa as diversas relações firmadas entre o “eu” e o “outro”, mesmo quando se propunha a elisão do primeiro para a fixação do segundo. Evidenc iamos, dessa forma, uma via de interpretação do “conhece-te a ti me smo” e do “cuidado de si” que nos leva tanto ao objeto quanto ao sujeito, e assim compreendemos que tanto Carlos Drummond de Andrade quanto José Craveirinha constituem-se exe mplos dessa teoria filosófica. Todavia, ao citarmos Foucault nesse ponto de nossos estudos, pretendemos 38 Neste ponto da discussão, entre os postulados da espiritualidade e do conhecimento, Foucault insere a gnose, à qual não nos dedicamos na investigação da tese, visto tratar-se de uma corrente filosófico-religiosa-esotérica surgida nos primeiros séculos da era cristã, rejeitada tanto pelos Padres da Igreja Cristã quanto pela filosofia de inspiração platônica. O gnosticismo admitia a possibilidade de o homem iniciado alcançar a verdade pela revelação de um conhecimento sobrenatural, o que levaria à liberação da alma e à vitória sobre um poder cósmico maléfico. (ibid., p. 33) 209 relevar uma posição do sujeito que nos parece fundamental para compreender a trilha que seguiremos dorava nte: a do sujeito que se fala na poesia de Drummond e de Craveirinha. O “cuidado de si”, seguindo a tese de Michel Foucault, transforma-se em “conversão de si”. Por este movimento, o sujeito se volta para si e se consagra a si mesmo. Das muitas expressões em latim e em grego que conferem sentido ao “retornar a si” 39 , Foucault elege duas proposições que ressalta na discussão. A primeira idéia destacada é a de que existe um “movimento real do sujeito em relação a si mesmo. (...) O sujeito deve ir em direção a alguma coisa que é ele próprio. Deslocamento, trajetória, esforço, movimento: é o que devemos reter na idéia de conversão a si”. (ibid., p. 302) A segunda proposta apresenta o “tema do retorno, tema também importante, difícil, pouco claro, ambíguo”. (ibid.) Se ao homem é dado o direito de voltar-se para si mesmo em diferentes esferas da existência ? ainda que não tenha obtido sucesso senão pela arte, afinal, o que de fato nos interessa como objeto de pesquisa ? , não seria menos meritório o desejo do poeta de descansar da alteridade à qual se dedicou intensamente por longos anos de produção literária. O que pretendemos relevar é o sujeito poético que se traduz inteiramente em subjetividade, para além dos esboços desenhados que foram objeto de nossa análise nos capítulos anteriores. Nesse sentido, entendemos que Carlos Drummond de Andrade e José Craveirinha convergem na mesma proposta de subjetividade: ambos vão configurar no discurso amoroso, em suas diversas formas, a mais intensa expressão do “eu”. O “outro”, por vontade e decisão conscie nte do sujeito, existe na medida em que constitui o “eu”. Ao propor o deleite à figura amada, o sujeito poético vivencia as delícias da existência amorosa; ao lamentar as dores de amar, mergulha profundamente em sua própria dor, incontida e amargurada. Se antes o “eu” existia em função do “outro”, agora o poeta se dá o direito de fazer o “outro” existir para que o “eu” possa, enfim, experimentar suas próprias emoções, no transbordamento de si mesmo. 39 As expressões destacadas por Foucault são: eph’heautòn epistréphein, eis heautòn anakhôreîn, ad se recurrere, ad se redire, in se recedre, se reducere in tutum (retornar a si, voltar a si, fazer o retorno sobre si etc.). 210 Antes, porém, é necessário mais um esclarecimento: não há a intenção de se discutir teoricamente, seja por qual for o campo do saber, os conceitos amor, erotismo e sexualidade. Não é propósito desta pesquisa, nunca é demais repetir, divagar por teses que nos levariam a afastar-nos de nosso objeto central: as expressões da subjetividade na poesia de Drummond e de Craveirinha. 7.2 - A experiência drummondiana de amar Não facilite com a palavra amor. Não a jogue no espaço, bolha de sabão. Não se inebrie com o seu engalanado som. Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro). Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra. Não a pronuncie. Carlos Drummond de Andrade As razões por que se fala de amor já foram todas apresentadas pelos muitos estudos que a respeito do tema se fizeram conhecer. Nada de novo pode ser acrescentado. Todavia, há muitos motivos que justifiquem uma investigação sobre o tema amoroso na obra de Carlos Drummond de Andrade e, mais ainda, por que agora discutir o amor em separado do erotismo, a ser investigado. Cabe, também, esclarecer porque debater o amor na obra do poeta, quando ao sent imento não foi dedicada nenhuma obra especial. 40 40 Em 2005 foi publicado, pela editora Record, o livro intitulado Declaração de Amor, homenagem a Carlos Drummond de Andrade feita por seus netos Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, mas a obra é uma coletânea de poemas anteriormente publicados, os quais têm como tema o amor. 211 Para iniciarmos o estudo sobre o percurso poético-amoroso de Carlos Drummond de Andrade, reproduzimos um argumento de Julia Kristeva que consideramos a tradução perfeita do projeto em curso: O amor é o tempo e o espaço onde “eu” se dá o direito de ser extraordinário. Soberano sem sequer ser indivíduo. Divisível, perdido, aniquilado; mas também, e pela fusão imaginária com o amado, igual aos espaços infinitos de um psiquismo sobre-humano. Paranóico? Eu estou, em amor, no ponto mais alto da subjetividade. (grifo nosso) (KRISTEVA, 1988, p. 25) O sujeito poético, convertido em sujeito amoroso pela poesia, intensifica todos os sentimentos contíguos ao amor: as dores, as alegrias, as surpresas, os medos, os suspiros e os gozos, os “segredos delicados, as “brandas horas”, os “suspiros magoados”. Falar de amor é, agora e sempre, uma necessidade, pois “o ‘amor’ aparece- nos como um imenso denominador comum, em função do qual tudo pode ser interpretado ? apenas variarão as interpretações de tudo e do próprio Amor”. (SENA, 1992, p. 26) E onde o amor, em Drummond? Disperso nos discursos e nos poemas, talvez disperso na proposição do sujeito poético, o amor pode ser deflagrado em meio aos muitos textos poéticos que se alimentam de outros temas. Poderiam muitos argumentar que não há razões para, ainda, se discutir o amor. Contra-argumentamos com “As sem-razões do amor”, para se discutir o amor: Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, E nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. 212 Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. (PC, p. 1238-9) Se o amor é um tema tratado por Drummond, muitas vezes, de maneira intelectualizada e racional em sua poesia, o que não raro provoca no leitor o estranhamento (O amor atinge raso, e fere tanto. / Nu a nu, / fome a fome, / não confiscamos nada e nos vertemos. E é terrivelmente adulto esse animal / a espreitar-nos, sorrindo, / como quem a si mesmo se revela.) (ibid., p. 436), outras tantas vezes inscreve-se sob o signo do desalento, da amargura e do desespero; da “Destruição”: (...) Nada, ninguém. Amor, puro fantasma que os passeia de leve, assim a cobra se imprime na lembrança de seu trilho. E eles quedam mordidos para sempre. Deixaram de existir mas o existido continua a doer eternamente. (ibid., p. 475) O amor justifica a sua inscrição nos discursos, porque é o único sentimento que resgata o sujeito do abismo que é para si mesmo: Eu te amo porque não amo / bastante ou demais a mim. O amor prescinde do corpo, do ser, da permanê ncia do “outro” no “eu”. O “amar o amor” é tema presente na teoria literária. Explica-se: não é a um “outro” que se ama, mas ama-se estar em embriaguez de amor. O amor que liga dois amantes, como Tristão a Isolda no exemplo de Denis de Rougemont, “não pertence a nenhum dos dois, mas deriva de uma força estranha, independente das suas qualidades, dos seus desejos, ao menos conscientes, e do seu ser, tal como o conhecem”. (ROUGEMONT, 1988, p. 33-4) Também Roland Barthes utilizou personagens da literatura para representar o “amar o 213 amor”: Werther não ama Charlotte, mas o amor que em sua figura se justifica: “é meu desejo que desejo, e o ser amado nada mais é que seu agente”. (BARTHES, 1995, p. 23) Enquanto houver a consciência de si e do “outro” no ato de amar, não haverá a plenitude amorosa. O sujeito poético sabe que o amor ainda é uma “Aspiração”: Tão imperfeitas, nossas maneiras de amar. Quando alcançaremos o limite, o ápice de perfeição, que é nunca mais morrer, nunca mais viver duas vidas em uma, e só o amor governe tudo além, todo fora de nós mesmos? O absoluto amor, revel à condição de carne e alma. (PC, p. 1239) Esse lamento de ainda não se amar na plena tessitura do amor é constante na poesia de Drummond. E é quando, entendemos, a subjetividade se intensifica para além dos limites da apreensão do leitor. Há uma dor que não se traduz, porque sentida tão vigorosamente que não nos é dado capturá-la na análise. A interrogação é uma queixa: “Por quê?”: Por que nascemos para amar, se vamos morrer? Por que morrer, se amamos? Por que falta sentido ao sentido de viver, amar, morrer? (ibid., p. 1242) O amor dito pelo poeta nem sempre é objetivado, matéria de experimentações teóric as e lingüísticas, ou de análise do real apreensível. Muitas vezes, é amor subjetivado, por isso mesmo quase inexplicável, quase intraduzível, mas dado ao sentir que se compartilha, porque participar da leitura é estar, também, em estado de subjetividade. Todavia, a subjetividade amorosa não exclui o estilo. Isso posto, retornamos a Gilberto Mendonça Teles, que apresentou um dos registros estilísticos mais importantes da poesia drummondiana, que é a repetição. Após questionar sob diversas propostas de criação literária o que representaria a repetição no texto poético de Drummond, o autor propõe ao leitor a seguinte reflexão: 214 Até que ponto uma análise estilística pode pretender dar respostas satisfatórias e/ou mais ou menos exatas às indagações acima, é fato que realmente pode ser discutido. Mas é fora de dúvida que só a análise concomitante de fundo e forma nos pode levar a esse ampliável horizonte da expressiv idade. (TELES, 1970, p. 67) Sigamos em frente: a repetição, que tanto serviu ao verso estético de experimentação lingüística e que às vezes cientificou o empírico e transformou tema sisudo em ironia brincante, nos aparece, agora, como recurso de subjetividade. Curioso, porém, é que, ao selecionar versos que atestassem a idéia, encontramos todas as propostas resumidas em “Quero”, poema que traduz a experiência de um sujeito amoroso inseguro frente ao objeto amado, incerto de sua exatidão e plenitude amorosa: Quero que todos os dias do ano todos os dias da vida de meia em meia hora de 5 em 5 minutos me digas: Eu te amo. (...) Quero que me repitas até a exaustão que me amas que me amas que me amas. Do contrário evapora-se a amação pois ao dizer: eu te amo, desmentes apagas teu amor por mim. (...) Se não me disseres urgente repetido Eu te amoamoamoamoamo, verdade fulminante que acabas de desentranhar, eu me precipito no caos, essa coleção de objetos de não-amor. (PC, p. 729) Compartilha-se a experiência universal de amar. A dor de amar e a angústia de não poder ou não saber amar, o medo de ser tarde demais o “Reconhecimento do Amor”: Amiga, como são desnorteantes os caminhos da amizade. Apareceste para ser o ombro suave onde se reclina a inquietação do forte (ou que forte se pensava ingenuamente). 215 Trazias nos olhos pensativos a bruma da renúncia: não querias a vida plena, tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida, não pedias nada, não reclamavas teu quinhão de luz. E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda. (...) (ibid., p. 1275) O sujeito poético, pelo amor, evidencia-se como sujeito e se dá a conhecer sem disfarces e sem pudores, compartilha a vivência amorosa. O que se realiza no verso é a máxima identificada por Octavio Paz: “o amor é desejo de completude e assim responde a uma necessidade profunda dos homens” (PAZ, 1993, 57): Como nos enganamos fugindo ao amor! Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar sua espada coruscante, seu formidável poder de penetrar o sangue e nele imprimir uma orquídea de fogo e lágrimas. Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu em doçura e celestes amavios. Não queimava, não siderava; sorria. Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso. Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor que trazias para mim e que teus dedos confirmavam ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro, o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava, quando por esperteza do amor senti que éramos um só. (...) (ibid., p. 1275-6) O sujeito do poema compreende, enfim, e aceita, que o sentimento que negou durante todo o tempo de sua vida é o que, de fato, lhe dá o sopro da vida. Negado por ser subjetivo demais, o amor cedeu lugar a sentimentos outros, à realidade que se imperava no existir para o mundo; mas, para regozijo do sujeito poético amoroso e do leitor amoroso, impõe-se e concebe a ligação eternal: Amiga, amada, amada amiga, assim o amor dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo com olhar pervagante e larga ciência das coisas. Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos, e a pura essência em que nos transmutamos dispensa alegorias, circunstância, referências temporais, imaginações oníricas, 216 o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal, as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos, todas as imposturas da razão e da experiência, para existir em si e por si, à revelia de corpos amantes, pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM. (...) (ibid., p. 1276) Tempo perdido, tempo resgatado pelo desejo de amar. O reconhecimento do amor consolida o sentimento e convoca os amantes à unidade: Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse à vacuidade de persistir, fixo e solar, e se confessasse jubilosamente vencido, até respirar o júbilo maior da integração. Agora, amada minha para sempre, Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar A melodia, a paisagem, a transparência da vida, perdidos que estamos na concha ultramarina de amar. (ibid.) O tratamento dado ao amor, em poesia, não tem continuidade. Cada poema, e mesmo cada verso, expressa uma visão particular do sentimento amoroso. Assim, surpreende-nos o resgate dos códigos de amor cortês ? pela razão de viver, pela sublimidade e pela nãocorrespondência amorosa ? que se estabelecem no texto denominado, de forma emblemática, “Amor”: O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo acha a razão de ser, já dividido. São dois em um: amor, sublime selo Que à vida imprime cor, graça e sentido. * “Amor” — eu disse — e floriu uma rosa embalsamando a tarde melodiosa no canto mais oculto do jardim, mas seu perfume não chegou a mim. (ibid., p. 1278) A ironia impressa em vários textos de Drummond, e que marca tão profundamente a sua obra ? estilo e subjetividade ? também andou burilando os poemas de amor: (...) O amor bate na porta 217 o amor bate na aorta, fui abrir e me constipei. Cardíaco e melancólico, o amor ronca na horta entre pés de laranjeira entre uvas meio verdes e desejos já maduros. (...) (ibid., p. 47) O amor, que em muitos poemas foi marcado em negativo, aparece pacificado quando associado à maturidade, fase em que o sujeito poético pode regozijar-se com o sentimento que lhe renova e o faz repousar na plena subjetividade: CAMPO DE FLORES Deus me deu um amor no tempo de madureza, quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. Deus — ou foi talvez o Diabo — deu-me este amor maduro, e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor. Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos e outros acrescento aos que amor já criou. Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou. Mas eu sou cada vez mais, eu que não me sabia e cansado de mim julgava que era o mundo um vácuo atormentado, um sistema de erros. Amanhecem de novo as antigas manhãs que não vivi jamais, pois jamais me sorriram. (...) (ibid., p. 268) As referências culturais sobre o amor compõem os versos de Drummond. Entretanto, não tratamos de uma poesia que se elabora em concepções intelectuais alheadas a qualquer subjetividade. Se localiza na filosofia ou na literatura canônica os conceitos constituídos sobre o amor, o poeta assim age para que possa melhor se expressar, para entendimento e alcance de muitos. Assim entendido, impossível se torna destituir da visão poética a subjetividade que expressa, porque os versos não se limitam a refletir os códigos amorosos; eles reinscrevem, na emoção mais genuína, a dor de amar sentida pelo sujeito poético. O amor é um mal: assim o é nas cantigas medievais e na concepção camoniana. O a- 218 mor é um mal que fere, “mata e não se vê”. A cura seria a impossível unificação dos corpos e das almas, desejo de completude perdido na Antigüidade: PORQUE Amor meu, minhas penas, meu delírio, aonde quer que vás, irá contigo meu corpo, mais que um corpo, irá um’alma, sabendo embora ser perdido intento o de cingir-se forte de tal modo que, desde então se misturando as partes, resultaria o mais perfeito andrógino nunca citado em lendas e cimélios. Amor meu, punhal meu, fera miragem consubstanciada em vulto feminino, por que não me libertas do teu jugo, por que não me convertes em rochedo, por que não me eliminas do sistema dos humanos prostrados, miseráveis, por que preferes doer-me como chaga e fazer dessa chaga meu prazer? (ibid., p. 1426) A poesia de amor de Drummond manifesta-se em muitos escritos, dispersos entre seus livros. Mas a poesia subjetiva amorosa pertence a uma outra esfera de criação, a qual nos interessa particularmente. Por esse motivo, excluíram-se do trabalho: o amor narrativizado através de uma lírica que evidencia o “outro” ( O amor determina hoje que se casem / minha amiga Matilde e meu amigo Mário. Sua lei é sagrada) (ibid., p. 1284); a lírica posta em termos de uma linguagem lúdica, amor como brincadeira feliz (Reloginho, reloginho, / embora apenas suplente, / bate bate direitinho, / bate bem rapidamente / a hora de meu bem chegar.) (ibid., p. 1500); e as experimentações estéticas ( Trocaica te amei, com ternura dáctila / e gesto respondeu. / Teus iambos aos meus com força entrelacei.) (ibid., p. 1189) Destacaram-se todos os versos que lançaram, pela dor, pelo êxtase, pelo arrebatamento, o sujeito no sentimento amoroso. Evidenciaram-se os versos que pungiam de forma latente a subjetividade de um poeta que, por quase toda a sua vida, manteve o “outro” real e objetivo no centro de sua criação. E que, mais subversivo do que se pensava antes, soube falar de amor 219 sem a formatação intelectual e racional que fez de sua poesia arte de interve nção. 7.3 - Carlos Drummond de Andrade: o corpo em êxtase Ele tenta desenvolver um discurso que não se anuncie em nome da Lei e/ou da Violência; cuja instância não seja nem política, nem religiosa, nem científica; que seja, de certa forma, o resto e o suplemento de todos esses enunciados. Como chamaríamos esse discurso: erótico, sem dúvida, pois ele tem a ver com o gozo; ou talvez ainda: estético, se previrmos submeter pouco a pouco essa velha categoria a uma ligeira torção, que a afastará de seu fundo regressivo, idealista, e a aproximará do corpo, da deriva. Roland Barthes À obra de Carlos Drummond de Andrade soma-se um livro intitulado O Amor Natural, publicação póstuma de 1992, que reúne poemas eróticos, cujos versos dão conta de um sujeito poético que se inscreve em outras estâncias discursivas, ausentes de toda poesia lírica que investigamos até aqui. Entretanto, é com esta obra que pretendemos elucidar, em fins de investigação, a constituição do sujeito dummondiano. A obra teve publicação póstuma, porque Carlos Drummond não aceitava levá-la ao conhecimento do público. E a explicação do poeta para ter tomado essa decisão justapõe-se à análise que empreenderemos: até hoje perdura uma onda de pornografia com a qual eu não queria que se confundissem meus versos ? que me parecem limpos, não têm palavras chulas e vulgares e exprimem um sentimento amoroso que se completa entre o elemento espiritual e platônico e o elemento físico. Eu quis fazer uma síntese de modo a enobrecer as relações eróticas do amor. (MORAES NETO, 2007, p. 31) 220 O amor e o erotismo conferem ao sujeito o direito de inscrever-se como tal. Mas, considerando que todo projeto se anuncia antes de sua consolidação, destacamos inicialmente o livro Corpo que Drummond publica em 1984. O título não deixa dúvidas quanto ao escopo literário que se apresenta. Estranha, então, que o poeta que havia universalizado seus temas em direção ao “outro”; o poeta das mais altas elaborações intelectuais; o poeta que, no dizer de Tristão de Athayde, “é ma is espírito do que corpo” (PC, p. LXXII) tenha se voltado para um tema que lhe seria tão pouco afeito ao longo de sua trajetória. O poema que inicia a obra denomina-se “As contradições do corpo”, e suas onze estrofes, cada qual com cinco ve rsos, falam apenas do corpo, “meu corpo”. Sobreposto ao ser, o corpo; alheio às vontades do ser, aprisionador e ocultador do ser, oposto mesmo ao ser e à sua essência, o corpo ganha vida própria: Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser. Sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta. Meu corpo, não meu agente, meu envelope selado, meu revólver de assustar, tornou-se meu carcereiro, me sabe mais que me sei. (...) (ibid., 1231) Rebela-se o corpo contra a sujeição que lhe foi imposta pelo ser; o corpo, agora, controla o “eu”: Meu corpo ordena que eu saia em busca do que não quero, e me nega, ao se afirmar como senhor do meu Eu convertido em cão servil. (...) Quero romper com meu corpo, 221 quero enfrentá-lo, acusá-lo, por abolir minha essência, mas ele sequer me escuta e vai pelo rumo oposto. (...) (ibid., p. 1232) Vencido após a luta inglória, o “eu” entrega-se à vontade do corpo: Já premido por seu pulso de inquebrantável rigor, não sou mais quem dantes era: com volúpia dirigida, saio a bailar com meu corpo.(ibid.) Essa estranha dualidade corpo/consciência foi pensada por Paul Ricouer, o qual compreende, a partir do conceito de “particulares de base”41 , que a noção primitiva de corpo associa-se à de pessoa, sendo- lhe, portanto, constitutivo e não inferior. Assim, para entender o estatuto do “si mesmo”, é necessário destacar o papel do corpo no conceito de pessoa: (...) dizer que os corpos são os primeiros particulares de base é eliminar como eventuais candidatos os acontecimentos mentais, digamos as representações, os pensamentos (...). Sua sorte como predicados específicos das pessoas é somente adiada. Mas primeiramente precisaria que fossem desalojados da posição dominante de referentes últimos que ocupam num idealismo subjetivista. (RICOUER, 1991, p. 47) O poema de Drummond restitui ao corpo o seu lugar de destaque, muito embora o eu poético não reconheça, de imediato, essa posição na constituição do sujeito. E somente após esgotados os recursos para que o pensamento lógico vo ltasse à sua atitude dominante, o “eu” cede ao corpo, e não o nega, envolvido por sua volúpia e por sua dança libertadora. O corpo, destituído do seu papel dominante a partir do século XVII, juntamente com a sexualidade, pela predominância de um discurso de pudicícia 42 , agora, pela voz drummondia- 41 O conceito de “particulares de base”, adotado por Paul Ricouer, foi apresentado por P. F. Strawson na obra Os indivíduos (1959), o qual propõe que, para fazer a identificação de um indivíduo em relação a outro indivíduo, seria necessário isolar, entre todos os particulares que poderiam fornecer dados sobre o indivíduo, alguns que se destacariam como de base, sendo os mais fundamentais os corpos físicos e as pessoas que somos ainda vinculados a uma noção primitiva (o que difere o conceito de pessoa do de sujeito da enunciação). (RICOEUR, 1991, p. 43-4) 42 Cf. Michel Foucault em História da sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro, 1985, p. 9. 222 na, desloca-se dos movimentos psíquicos e inteligíveis articulados pelo “eu” para impor sua vontade de expressão, desobedecer as regras, pôr, enfim, o sujeito a perder. O corpo assumiu um lugar de destaque na pós- modernidade, de acordo com a tese de Terry Eagleton, com o esvaziamento das ideologias revolucionárias: Como fenômeno obstinadamente local, o corpo combina muito bem com a desconfiança pós-moderna em relação às grandes narrativas, assim como a paixão do pragmatismo pelo concreto. Uma vez que posso a qualquer hora saber onde está meu pé esquerdo sem precisar de bússola, o corpo oferece um modo de cognição mais íntimo e interno do que a racionalidade iluminista de hoje tão escarnecida. Nesse sentido, uma teoria do corpo corre o risco de autocontradição, restituindo à mente muito daquilo com que se pretendeu esvaziá-la mas, se o corpo nos dá um pouco de certeza sensorial num mundo cada vez mais abstrato, ele é também uma questão elaboradamente codific ada, e assim também serve de instrumento para a paixão dos intelectuais pela complexidade. Ele é o ponto de junção entre a Natureza e a Cultura, oferecendo certeza e sutileza em igual medida. (EAGLETON, 1998, p. 73) O corpo sai vitorioso da disputa entre a razão que o pretende submeter e o instinto que o deseja libertar. Mas não sem a resistência do sujeito que ainda não se desfez das injunções que lhe foram impostas, porque ele prevê que a libertação do corpo representará, por conseqüência, a libertação de uma sexualidade oculta por muito tempo, com a qual não sabe lidar. Entretanto, um olhar atento sobre os versos deflagrará um movimento dialético entre um sujeito que se exige estar imune às predicações do corpo e a sua vontade de explorar as possib ilidades, que o corpo lhe promete, de existir para além do discurso reducionista do ser. Dessa forma, falar do corpo é expressar uma sexualidade que se ocultara na moralidade burguesa, como propõe Foucault: A afirmação de uma sexualidade que nunca fora dominada com tanto rigor como na época da hipócrita burguesia negocista e contabilizadora é acompanhada pela ênfase de um discurso destinado a dizer a verdade sobre o sexo, a modificar sua economia no real, a subverter a lei que o rege, a mudar seu futuro. (FOUCAULT, 1979, p. 13) Se, a princípio, o corpo e o sujeito vinculam-se no processo de estranhamento inicial e posterior aceitação (deste em relação àquele), em segunda instância caberá ao sujeito compreender a existência do corpo. Mais ainda: admitir que exista, rela tivamente ao corpo, uma me- 223 tafísica a ser perscrutada. “A metafísica do corpo” propõe, assim, um deslocamento das atividades mentais do “eu” de seus temas preferenciais (a realidade, o outro, a humanidade) para uma auto-centralização da pessoa que se constitui, antes de tudo, com seu elemento primitivo, o corpo: A metafísica do corpo se entremostra nas imagens. A alma do corpo modula em cada fragmento sua música de esferas e de essências além da simples carne e simples unhas. Em cada silêncio do corpo identifica-se a linha do sentido universal que à forma breve transitiva imprime a solene marca dos deuses e do sonho. (...) (PC, p. 1232-3) A seqüência dos versos explica- nos o que o sujeito poético compreende como a “metafísica do corpo”. Já desconfiávamos de signos como «música», «esferas» e «essências». Identificávamos, neles, a presença insinuada de um desvio da localização espaço-temporal destinada ao corpo no comum da existência. Prosseguem os versos e a proposta literária confirmase: “a solene marca dos deuses / e do sonho” não permite outra interpretação que não seja a da configuração do corpo no espaço mítico e primevo, onde ele ativa livremente suas propriedades intrínsecas, secularmente inibidas pelos muitos discursos de interdição que se voltaram contra tudo o que fosse expressão natural do homem. E nesse espaço mítico, no qual o corpo se instala com a anuência do sujeito, a sexualidade pagã se manifesta sem pudores. O que se descortina aos olhos e à compreensão do leitor é o mundo edênico, princípio universal da existência, processo demiúrgico em movimento: Entre folhas, surpreende-se na última ninfa o que na mulher ainda é ramo e orvalho e, mais que natureza, pensamento da unidade inicial do mundo: mulher planta brisa mar, o ser telúrico, espontâneo, 224 como se um galho fosse da infinita árvore que condensa o mel, o sol, o sal ,o sopro acre da vida. (...) (ibid., p. 1233) E o sujeito poético, compreendendo e aceitando a metafísica do corpo, permite que ele se cumpra em sua primordial função de investir-se de prazeres, em desluzimento do que se ocultou pela moralidade que o havia interditado a si mesmo: De êxtase e tremor banha-se a vista ante a luminosa nádega opalescente, a coxa, o sacro ventre, prometido ao ofício de existir, e tudo mais que o corpo resume de outra vida, mais florente, em que todos fomos terra, seiva e amor. Eis que se revela o ser, na transparência do invólucro perfeito. (ibid.) Ultrapassados os obstáculos iniciais, em que corpo e sujeito estranhavam-se, a ponto de o corpo fazer-se valer por ato de rebeldia; proposta a elaboração da metafísica do corpo; entregue o ser ao desvendamento de si mesmo pelo que o corpo pudesse oferecer sem interditos, o sujeito poético passa a construir um caminho de subjetividade que se inscreve no corpo físico, atuante e voluntarioso, desfazedor de normas e revelador de segredos do amor, do erotismo e da sexualidade. Embora a discussão sobre o amor, tema mais constante na literatura ocidental, também se torne, na mesma proporção, a mais profícua; e por mais que nos entusiasme a idéia de discorrer sobre os vários modos de amar, suas acepções e conceitos, e sobre a práxis amorosa, limitamo-nos a deslindar as formas e expressões que configuram o amor — e suas varia ntes — na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Assim, registramos mais uma nota sobre o tema, desveladora do corpus poético em estudo, que é a oferecida por Octavio Paz em seu livro A Chama Dupla – amor e erotismo: A pessoa é um ser composto por uma alma e um corpo. Aqui aparece outro e grande paradoxo do amor, talvez o central, o seu nó trágico: amamos simul- 225 taneamente um corpo mortal, sujeito ao tempo e aos seus acidentes, e uma alma imortal. O amante ama igualmente o corpo e a alma. Inclusive pode dizer-se que, se não fosse pela atracção pelo corpo, o enamorado não poderia amar a alma que o anima. Para o amante o corpo desejado é alma; por isto fala-lhe com uma linguagem que está além da linguagem, mas que é perfeitamente compreensível, não com a razão, mas com o corpo, com a pele. Por sua vez a alma é palpável: podemos tocá-la e o seu sopro refresca as nossas pálpebras ou aquece a nossa nuca. Todos os enamorados sentiram esta transposição do corporal para o espiritual e vice-versa. Todos os sabem com um saber rebelde à razão e à linguagem. (PAZ, 1995, p. 94) Entretanto, o autor prossegue com o argumento e destaca um outro problema relacionado à questão amorosa: “ao ver no corpo os atributos da alma, os enamorados incorrem numa heresia que é reprovada igualmente pelos cristãos e pelos platónicos”. (ibid., p. 95) Assim, entramos no campo das interdições. A dicotomia corpo/alma, dessa forma designada, penetrará os discursos sociais e morais desde o advento do cristianismo, reforçado pelo ideário neoplatônico, chegando à idade moderna, não sendo elidida nem mesmo pelo realismo do século XIX e pelo naturalismo francês que impregnou a literatura moderna de cientificismo. Mas o “cuidado de si”, de que tratamos anteriormente, colocou o corpo no centro das discussões, ainda que fosse por tratados médicos que associavam moral e higiene ou sob a ótica nada permissiva dos filósofos. 43 Se a cada interdito se opõe a transgressão, e se a cada discurso limitador se retorna a si mesmo para contestação, afirmação ou renovação, o corpo permanecerá como foco de debates em diversas esferas do saber. Poderemos pensar, também, a atuação do corpo sexual como ato político, se consid erarmos que ao corpo cabe as transgressões aos interditos que lhe foram impostos, a ele e ao homem deflagrado a partir de sua fala corpórea. Ao corpo, portanto, a missão maior de transgredir, e para além dos limites já pensados, como projeta Roland Barthes: Liberação política da sexualidade: é uma dupla transgressão, do polít ico e do sexual, e reciprocamente. Mas isso não é nada: imaginemos agora que se reintroduzisse no campo político-sexual assim descoberto, reconhecido, percorrido, liberado... um toque de sentimentalismo: não seria a última 43 Cf. FOUCAULT , Michel História da Sexualidade III – o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 110ss. 226 das transgressões? a transgressão da transgressão? Pois, em fim de contas, seria o amor: que voltaria : mas num outro lugar. (BARTHES, 1975, p. 73) E nessa discussão cabe o debate sobre o estatuto do amor, pois que não se pensa a existência do corpo sem que ele esteja em relação com outro corpo, e sem que tal atuação de um sobre o outro se inscreva nas histórias de amor que se consolidaram com a própria história da humanidade. A alma, como única estância permitida para a realização do amor, prevalecerá sobre o corpo. Mas, como ao artista não é dado conhecer o limite de sua experiência e a materialização de seu talento e genialidade, alma e corpo irão se unir na consagração do ato de amar. Cônscio ou não da missão a que se vota, o artista falará de amor impunemente, pois, como constata Julia Kristeva, “o amor só entra na idade moderna como literatura”. (KRISTEVA, 1988, p. 83) O poema que inicia o livro O Amor Natural, de Drummond, não estabelece fronteiras entre o corpo e a alma no processo de amar. Pensado como palavra, o amor se apresenta nos versos de “Amor – Pois que é Palavra Essencial” penetrando todos os discursos e práticas, ilimitado em sua existência, laborando, no interior da imaginação, os versos de amor. Ao corpo, é restituído o seu lugar de direito na plenitude amorosa: Amor ? pois que é palavra essencial comece esta canção e toda a envolva. Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, reúna alma e desejo, membro e vulva. Quem ousará dizer que ele é só alma? Quem não sente no corpo a alma expandir-se até desabrochar em puro grito de orgasmo, num instante de infinito? (...) (PC, p. 1365) O amor surge da maneira como foi pensado primeiro, completude de corpos e de vida, o que está na gênese dos discursos amorosos: 227 (...) O corpo noutro corpo entrelaçado, fundido, dissolvido, volta à origem dos seres, que Platão viu completados: é um, perfeito em dois; são dois em um. (...) (ibid.) Julia Kristeva ressalta a importância da compreensão filosófica para os estudos sobre o erotismo : Atado a essa cumplicidade entre alma e amor, na paz da dor, sabedoria e escravidão, o discurso filosófico, ele próprio, é o terceiro rosto da mesma dinâmica, onde a dominação fálica se enobrece e se metamorfoseia em aprendizado do Bom e do Verdadeiro. Desligando-se da perversão que ela não obstante não desconhece, a filosofia é ao mesmo tempo uma psicagogia ? uma orientação amorosa das almas e uma doutrina do discurso. Do lado do amor-dominação, do amor-escravidão, do amor-logro professado por Lísias, Platão colocará a retórica ligada aos efeitos fáceis, de sedução e de enfeitiçamento que não busca a essência . Na maiêutica do discurso dialético, em contrapartida, ele verá o equivalente daquilo que, no plano de Eros, é moderação e tendência à perfeição. (KRISTEVA, 1988, p. 89) O amor conceitual, filosófico, amor platônico em sua primeira acepção, também orquestra-se nos versos drummondianos: O amor antigo vive de si mesmo, não de cultivo alheio ou de presença. Nada exige nem pede. Nada espera, mas do destino vão nega a sentença. (...) (PC, p. 1282) Se o amor é palavra, na concepção do poeta, a palavra fala o corpo sem disfarces e circunscreve em torno dele signos cosmogônicos: (...) Ao delicioso toque do clitóris, já tudo se transforma, num relâmpago. Em pequenino ponto desse corpo, a fonte, o fogo, o mel se concentraram. Vai a penetração rompendo nuvens e devassando sóis tão fulgurantes que nunca a vista humana os suportara, 228 mas, varado de luz, o coito segue. (...) Quantas vezes morremos um no outro, no úmido subterrâneo da vagina, nessa morte mais suave do que o sono: a pausa dos sentidos, satisfeita. Então a paz se instaura. A paz dos deuses, estendidos na cama, qual estátuas vestidas de suor, agradecendo o que a um deus acrescenta o amor terrestre. (ibid., p. 1365-6) Alijado dos discursos que dominaram a era cristã desde seu início, e se estenderam na idade moderna, o corpo erótico, o corpo amoroso, foi defenestrado e elidido do ser, em favor de uma alma amorosa que se direciona ou à Unidade, ou ao Pai, propostas que se conformam ao discurso evidenciado. Entretanto, como é impossível negar a existência do corpo, e como está ele irremediavelmente associado a conceitos eróticos 44 , vemos que, após a sua reabilitação durante o Renascimento, o corpo sofre novas interdições ligadas tanto aos imperativos sociais, religiosos e de higiene, quanto à sua experiência sexual. Ao artista caberá, então, uma revisão das diretrizes que se estabelecem para a expressão do corpo. Após o século XVI, veremos uma aceitação das interdições, na medida em que o artista passa a cobrir o corpo, formando-o com folhas, arbustos e véus. Ao mesmo tempo, cria-se uma ambigüidade que manterá, no centro do interesse humano, a fantasia sobre o que se oculta. Isso porque, ao ceder aos discursos religiosos e sociais moralizantes, o artista passa a evidenciar ainda mais, pela ação do que se imagina, o corpo erótico: A tentativa de pôr cobro à imoralidade reinante, a veleidade barroca de ordenar o caos, instigam ainda mais a imoralidade que mina toda a vida 44 Para nosso estudo, não faremos distinção entre erotismo e sexualidade, visto nosso trabalho não ter como objeto a investigação de tais conceitos. O que pretendemos, com o signo e suas aproximações semânticas, é investigar o corpo em atuação amorosa e o sujeito em relação com tal prática. Ainda, para reforço de argumento e adequação de linguagem, citemos Freud: “Os que consideram a sexualidade como algo que é motivo de vergonha para a natureza humana, e que a rebaixa, bem podem usar à vontade os termos mais elegantes de Eros e erótico. Eu próprio poderia ter-me poupado a muitas oposições se tivesse agido assim desde o início, mas não o quis porque me desagrada fazer concessões à pusilanimidade. É impossível saber até onde somos levados por esse caminho: começamos por ceder nas palavras e acabamos por ceder no próprio fundo da questão”. (LAPLA NCHE, J., PONTALIS, J-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 205) 229 social e que atinge o próprio catolicismo. A Igreja que ignora o Cântico dos Cânticos de Salomão é a mesma que produz os místicos, cuja união com Cristo é investida de uma enorme carga erótica, e a que, a fim de impressionar e cativar as massas, cria uma arte profusa, provocatória, aliciante, sedutora, com que embeleza seus edifícios e que exibe nos seus ostentosos rituais. (FIADEIRO, 2003, p. 60) O que temos buscado revelar com as propostas teóricas que evidenciamos até aqui? Consideramos, neste ponto do estudo, dois pólos que convergem para o que entendemos seja a fonte de um saber sobre a relação subjetividade-sexualidade. O primeiro é o corpo em si, ao qual vimos nos dedicando. O corpo, elemento central da interdição e do desejo, se ofe rece, sem recatos, à investigação teórica e à poesia erótica. O segundo pólo de análise é a linguagem, pois só por ela podemos instaurar, discutir e reelaborar o amor. A linguagem é o objeto de análise de todos os estudos que se empreendam sobre o amor, e o nosso. E é assim que voltamos a Foucault. Opondo o período de interdição máxima, quando o sexo ficou restrito a espaços específicos, ao momento de liberação do saber sobre sexualidade, Foucault releva a linguagem em suas duas faces: quando foi imposto um mutismo decorrente do puritanismo moderno e quando, pela “vontade de mudar a lei”, nos obstinamos a falar de sexo. Mesmo considerando que, exatamente por ser reprimido, os discursos sobre sexo adquirem um valor mercantil, o que mais interessa, destaca o autor, “é a existência, em nossa época, de um discurso onde o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um novo dia e a promessa de uma certa felicidade, estão ligados entre si.” (FOUCAULT, 1979, p. 13) Por esse viés de raciocínio, o sexo se mostra na poesia de Drummond como promessa de felicidades infinitas. A volúpia da existência ? cuja representação no verso se dá pela repetição dos signos ? faz fundir, num só espaço, o “eu” e o “outro” integrados no prazer absoluto dos corpos e do sentimento amoroso: SUGAR E SER SUGADO PELO AMOR Sugar e ser sugado pelo amor 230 no mesmo instante boca milvalente o corpo dois em um o gozo pleno que não pertence a mim nem te pertence um gozo de fusão difusa transfusão o lamber o chupar o ser chupado no mesmo espasmo é tudo boca boca boca boca boca sessenta e nove vezes boquilíngua. (PC, p. 1379) A linguagem sobre o sexo, a partir do século XVII, obedeceu a regras de controle. Falar o sexo só foi permitido sob certos códigos de metáfora e alusão; também foram definidos tempo e local permitidos para que o sexo fosse discutido, que interlocutores estavam autorizados a fazê-lo e em que situações poderiam expressar um vocábulo sobre sexo, previamente autorizado. 45 Causa de efeito inverso: após o século XVIII, proliferam os discursos sobre a sexualidade. O ato confessional, destaca ainda Foucault, agora atua no cerne da questão. Após a Contra-Reforma, não se deve mais confessar o sexo sob o manto da discrição. A fim de combatêlo sobre a penitência, é preciso evidenciar “todas as insinuações da carne: pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas, deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso deve entrar, agora, em detalhe, no jogo da confissão e da direção espiritual”. (FOUCAULT, 1979, p. 22-3) O ato confessional minucioso desperta o interesse pelo tema sexualidade, e como dissemos antes, se a cada interdição corresponde uma transgressão, fora do âmbito pastoral vão surgir discursos que, sob efeito da prática discursiva sugerida, mas fora dela e de sua moralidade, falarão do sexo sem pudores, como as narrativas de Sade. Então o poema revela não o pensamento obscuro, mas o ato em si. Fala inequívoca e reveladora do gesto, o corpo atua sobre outro corpo ou dele sofre o ato e sanciona o gesto. O sujeito poético, em deleite, sentese desprender, lentamente, das coisas reais, como o tempo e o espaço em que se inicia o rito sexual, e alcançar esferas a que se chega pelo prazer: 45 Cf. Michel Foucault. História da sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 21-2. 231 ERA MANHÃ DE SETEMBRO Era manhã de setembro e ela me beijava o membro Aviões e nuvens passavam coros negros rebramiam ela me beijava o membro O meu tempo de menino o meu tempo ainda futuro cruzados floriam junto Ela me beijava o membro (...) e me tornava disperso todo em círculos concêntricos na fumaça do universo Beijava o membro beijava e se morria beijando a renascer em setembro (PC., p. 1368) O que, seja em que âmbito se registre, nos chama atenção sobre o dizer o sexo é a inc itação do desejo. À fala corresponde a imagem, e o desejo desta alimenta-se. Aí, então, temos o desejo como orquestrador de uma subjetividade que se alia ao erotismo, idéia não negada seja pela psicanálise, seja pelos teóricos dedicados ao tema. O “eu” lírico transcende a si mesmo, posiciona-se muito além do indivíduo que se pensa, que se integra à realidade, que se ocupa com o “outro”. Subjetividade aclamada no que se consagra à existência incomum: EM TEU CRESPO JARDIM , ANÊMONAS CASTANHAS Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas detêm a mão ansiosa: Devagar. Cada pétala ou sépala seja lentamente acariciada, céu; e a vista pouse, beijo abstrato, antes do beijo ritual, na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado. (ibid., p. 1373) A linguagem serve ao propósito poético de libertação do dizer o sexo, impedimento que se concretizou tanto pelas prédicas sociais quanto pelo interesse em uma poesia realista e 232 objetiva, que lançava o “eu” para fora de sua subjetividade, exceto pelas intercessões estudadas anteriormente. E a linguagem é a expressão inegável da subjetividade. Situamos, aí, o cerne da questão que nos move. Ao compor versos eróticos, Carlos Drummond de Andrade, ou que melhor seja, o sujeito poético drummondiano, em ato confessional com o leitor, expõe a sua máxima subjetividade, “eu” devotado a si mesmo, porque o “outro”, agora, não se deflagra na realidade, mas se configura para a existência absoluta do sujeito. Por mais que o objeto de amor esteja incensado no poema, todos os seus caracteres inflamam o sujeito que se liberta no êxtase de amar: VOCÊ MEU MUNDO MEU RELÓGIO DE NÃO MARCAR HORAS Você meu mundo meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las. Você meu andar meu ar meu comer meu descomer. Minha paz de espadas acesas. Meu sono festival meu acordar entre girândolas.(...) Meu perder-me entre pêlos algas águas ardências. Meu pênis submerso. Túnel cova cova cova cada vez mais funda estreita mais mais. Meus gemidos gritos uivos guais guinchos miados ofegos ah oh ai ui nhem ahah minha evaporação meu suicídio gozoso glorioso. (ibid., p. 1388) E é na absoluta experiência sexual, contemplando a si mesmo em arrebatamento, que o sujeito poético de Drummond refaz o caminho da existência, lançando-se pleno e sem culpas na subjetividade. Os signos literários evidenciam o corpo. O que se percebe não é a presença do corpo como um todo, materializado na relação amorosa. Agora, o sujeito poético examina as formas que se desenham, sob o seu olhar atento, no “outro” desejado. O corpo, per si, é o “outro” que merece a atenção do “eu”, o qual, sob ele, suas formas e movimentos, liberta-se de todas as interdições que lhe foram impostas, deleita-se sem auto-recriminações, sem autopunições. Alguns dos poemas eróticos de Drummond levam- nos ao conceito de aphrosidia, estudado e definido por Foucault como um conjunto de “atos, gestos, contatos, que proporcionam uma certa fo rma de prazer”. (FOUCAULT, 1979, p. 39) A aphrodisia manifesta-se, então, quando tais movimentos entram em cena. “A atração exercida pelo prazer e a força do 233 desejo que tende para eles constituem uma unidade sólida com o próprio ato dos aphrodisia” (ibid., p. 41) Posteriormente, pelos discursos que impõem uma moral dos costumes, haverá uma dissociação desse conjunto que forma a aphrodisia. Mas o conceito (e o que dele decorre) permanece pelo desejo (epithumia). A “ética da carne” colocará em discussão não os atos, o desejo e o prazer, mas o resultado dessa associação. 46 Se na vida submetemo-nos ao que é definido como chresis aphrodision (o uso dos prazeres), que regulamenta a aphrodisia 47 , a literatura restitui ao sujeito poético a expressão inequívoca de seus atos e prazeres, participando-os ao leitor. Sem pudores, dominando o discurso erótico que coloca em cena no verso, o sujeito poético também não se exime da leveza quase humor com que traduz a sexualidade e o prazer nela originado: SEM QUE EU PEDISSE, FIZESTE-ME A GRAÇA Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça de magnificar meu membro. Sem que eu esperasse, ficaste de j oelhos em posição devota. (...) Hoje não estás nem sei onde estarás, na total impossibilidade de gesto ou comunicação. Não te vejo não te escuto não te aperto mas tua boca está presente, adorando. Adorando. Nunca pensei ter entre as coxas um deus. (PC, p. 1376) A reafirmação da palavra erótica confere ao discurso do poeta a certeza de sua prática. Investe-se o autor do direito de expressar livremente, libertário que se sente, o signo que se conforma mais ao desejo que o move. Sem a prática da temperança, domínio do homem sobre seu desejo e, portanto, sobre seu corpo, o sujeito poético aventura-se no prazer máximo do corpo. Desconsiderando o controle do corpo, ao que Foucault chama de “dietética” em seu estudo sobre o uso dos prazeres, o sujeito poético drummondiano põe em risco a alma, pois “o 46 47 Cf. Michel Foucault. História da Sexualidade II – o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 42-3. ob. cit., p. 51-2. 234 regime físico deve-se ordenar ao princípio de uma estética geral da existência, onde o equilíbrio corporal será uma das condições da justa hierarquia da alma”. (FOUCAULT, 1979, p. 95) Se a prática sexual é comum a todos os humanos, eleger formas de amar, destacar partes do corpo que propiciem melhor o prazer, elaborar a linguagem com a qual se diz o desejo é prática subjetiva: A OUTRA PORTA DO PRAZER A outra porta do prazer, porta a que se bate suavemente, seu convite é um prazer ferido a fogo e, com isso, muito mais prazer. Amor não é completo se não sabe coisas que só amor pode inventar. Procura o estreito átrio do cubículo aonde não chega a luz, e chega o ardor de insofrida, mordente fome de conhecimento pelo gozo. (PC, p. 1380) O signo desloca-se do texto e adquire novas possibilidades, jeitos de reter o corpo transformados em verso: COXAS BUNDAS COXAS Coxas Bundas lábios cheiros bundas coxas coxas bundas línguas unhas vulvas céus terrestres infernais no espaço ardente de uma hora intervalada em muitos meses de abstinência e depressão. (ibid., p. 1373) Mas não se nega à poesia o lirismo que lhe é intrínseco. Assim, pleno da subjetividade que só o erotismo lhe é capaz de consagrar, o sujeito poético propõe o prazer iniciático, pelo qual a integração sujeito-objeto, homem- mulher se eleva à razão do desejo e do prazer: A LÍNGUA GIRAVA NO CÉU DA BOCA 235 A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único. O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu. Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipado de nós. A custo nossos corpos, iç ados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor. (ibid., p. 1375) O corpo, na poesia erótico-amorosa proposta por Drummond, escapa à estética em que sempre se enquadrou para emergir como sujeito atuante no ato amoroso e no ato poético. O “eu” que, em outras estâncias, havia dominado todas as coisas, cede às vontades que o seu corpo expressa com vigor e assume plenamente os prazeres que apenas a subjetividade exe rcida sem pudores oferece, repousada a alteridade que, por tanto tempo, havia lhe negado o direito de existir plenamente em si mesmo. 7.4 - Por ausência de Maria, o amor de Zé Craveirinha Em sofrimento, ele se deixa acalentar ao som de sua cruz, equilibrista em cima da corda: fechar-se ali morto -vivo ou fazer disso poesia? Julia Kristeva O livro Maria, publicado em 1998, reúne poemas de José Craveirinha dedicados à sua mulher, morta em outubro de 1979. Zé Craveirinha assina o “Pórtico”, que tem as seguintes 236 palavras finais: E encerro este pórtico, concordando com todos aqueles que, nesta colectânea, mais deparem com uma maneira intimista de render justo preito à memória de um ente muito querido e menos com um exercício de escrita literariamente conseguido ou poeticamente literário. Ingressamos, então, nessa jornada de memória em busca da compreensão de um sujeito em estado máximo de subjetividade, pelo amor e pela perda, e de alteridade, pela lembrança da pessoa amada. Submetemo-nos ao verso, como quer o poeta, para realizar a análise fundamentada no signo poético, único consentimento de uma voz autoral emocionada. Assim, declinaremos das concepções teóricas sobre literatura, devotando mais atenção aos conceitos desenvolvidos pela investigação das relações amorosas. Convocamos Julia Kristeva, então, a expressar as primeiras palavras na edificação de um projeto de reconhecimento da subjetividade/alteridade na poesia amorosa de José Crave irinha: “A identificação faz o sujeito ser no significante do Outro”. (KRISTEVA, 1988, p. 59) Tal axioma, ao par de sua fundamentação psicanalítica, encerra uma verdade que se ajusta perfeitamente à interpretação da poesia de Craveirinha dedicada a sua esposa. Porque entendemos a figura de Maria não como os oscilantes objetos de desejo que permearam a poesia de Craveirinha (Nos ilógicos parêntesis da vida / fúteis paixões não atraiçoam / um único amor / de sempre.) (M, p. 71) , mas como o “outro” que elabora a construção do sujeito. Projeto literário que assume dupla função ? a de resgatar a importância histórica da companheira de um homem político e a de afirmar o inconteste amor, tão pouco declarado em vida ? , Maria é, paradoxalmente, um exercício máximo de alteridade e de subjetividade. O signo poético informa ao leitor o ser de Maria e potencializa o amor que por ela sente o sujeito poético. Entretanto, chama a atenção o fato de que, nos poemas compostos em homenagem à amada, o poeta amador fixa seu sentimento sem que a palavra amo r se destaque, seja por conceito, seja por fala emocionada. Se consideramos, como propõe Edgar Morin, que “o amor enraíza-se em nossa corporeidade e, nesse sentido, pode-se dizer que o amor precede a pala- 237 vra” (MORIN, 1999, p. 17), compreendemos o amor não-dito na poesia de Craveirinha como uma expressão de sua existência para aquém e além do signo amoroso, porque o sentimento que dá a conhecer ao leitor não se apreende na representação da linguagem. Assim, alcançamos a dimensão da intenção poética. Ainda ma is: os poemas dedicados à Maria não se inscrevem pela estética erótica. Ao contrário, evidenciam-se, nos textos, elementos que assinalam a amada em espaços para aquém do saber erótico, porque fundados na relação materno-fraternal (Mas o Zé diz que tudo o que ele usa / não é ele mas a Maria / que o faz escolher / ao gosto dela.) (M, p. 86) , e para além do saber erótico, porque alçados ao estado de sublimação (Maria. / Volto à espécie de amor / que para além de marido e mulher / nos fazia também irmãos).48 (ibid., p. 155) Os poemas amorosos tratam de uma relação que tem alicerces nas exigências normativas da civilização: O amor, e as relações duradouras e responsáveis que ele exige, baseiam-se numa união de sexualidade com o “afeto”, e essa união é o resultado histór ico de um longo e cruel processo de domesticação, em que a manifestação legítima do instinto se torna suprema e sua partes componentes são sustadas em seu desenvolvimento. Esse refinamento cultural da sexualidade, essa sublimação do amor, tem lugar numa civilização que estabeleceu relações possessivas particulares separadas e, num aspecto decisivo, conflitantes com as relações sociais de posse. Enquanto, fora do privatismo da família, a existência do homem foi principalmente determinada pelo valor de troca dos seus produtos e desempenhos, sua vida no lar e na cama foi impregnado do espír ito da lei divina e moral. (...) a sexualidade tinha de ser dignificada pelo amor. (MARCUSE, 1975, p. 176-7) Não imprimimos, ao amor confidenciado em Maria, nenhuma moral religiosa. Caminhamos com mais segurança pela noção cultural dessa relação amorosa, advinda dos saberes antigos e fundada no casamento tradicional, pelo que propõe Foucault: A arte de ser casado não é simplesmente, para os esposos, uma maneira racional de agir, cada qual por seu lado, visando um fim que os dois parceiros reconhecem e onde se reúnem; trata-se de uma maneira de viver como casal 48 Recorremos, aqui, a conceitos psicanalíticos esstabelecidos por Freud. O primeiro diz respeito às propriedades do relacionamento amoroso feliz, dentre as quais, a atitude maternal da mulher em relação ao homem, o que satisfaria os desejos primitivos do homem. KLEIN, Melanie, RIVIERE, Joan. Amor, ódio e reparação. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1970, p. 110. Quanto ao segundo conceito, o de “sublimação”, é definido como a “capacidade de trocar o alvo sexual originário por outro alvo, que já não é sexual mas que psiquicamente se aparenta com ele”. LAPLANCHE, J., PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 638. 238 e de ser apenas um; o casamento exige um certo estilo de conduta em que cada um dos cônjuges leva a própria vida como uma vida a dois, em que, juntos, eles formam uma existência comum. (FOUCAULT, 1985, p. 161) Por esse princípio, é possível aproximarmo-nos mais, pela análise, da dimensão da dor nos versos de Craveirinha. A poesia amorosa postula o direito de expressar intensamente um corte profundo na existência, em sua parte constituída a partir do casamento, porque “a mulher-esposa é valorizada como o outro por excelência; mas o marido deve reconhecê-la também como formando unidade com ele”. (ibid., p. 165) O que se apresenta na poesia de Crave irinha, sendo Maria objeto do poema, é um sujeito que se projetou como tal no que o “outro” lhe permite ser em existência amorosa; e sem este “outro”, a dor da ausência se torna tão insuportável que se transforma em linguagem. Em decorrência, pela linguagem estabelece-se novamente o “eu”, ainda que falando do “outro”, porque, como compreende Barthes, o discurso amoroso não prescinde de “sua pessoa fundame ntal, que é o eu, de modo a pôr em cena uma enunciação e não uma análise”. (BARTHES, 1995, p. 1) A homenagem à ausente se inicia com “Maria. Salmo Inteiro”, poema em cujos versos Craveirinha reconstitui a mulher amada inteiramente, oração mais que sent ida: Aos cinquenta anos de idade toda a gente reconhece a Maria mas unicamente, só eu posso revelar a fútil narrativa da esposa Maria e do seu marido Zé. (...) Maria com os nossos filhos para se distrair. Maria dona de noites inteiras para não dormir. Maria uma sistemática viúva de tudo na Mafalala. (...) Minha tão simples esposa Maria incansável na quotidiana viuvez por mim nos imitigáveis quatro anos do meu ocioso falecimento numa exclusiva urna de óptimo ferrolho com uma clássica paisagem de ferros em quadrilátero na hipotética janela. 239 (...) (M, p. 9-11) A escolha do signo poético atende à experiência anterior àquela que se transformará em linguagem, comunicando uma vontade do sujeito. Os signos prevalentes no texto poético decorrem de um processo de subjetividade. Ao estudar o som do signo, Alfredo Bosi conclui: Essa radical subjetividade ou, se preferir, essa corporeidade interna e móvel da matéria verbal torna relativa, mediata, simbólica, jamais icônica, a representação do mundo pela palavra. Mesmo quando um signo lingüístico nos parece mais colado à coisa (o que acontece, tantas vezes, na fala poética), o que se dá é uma operação expressiva organizada em resposta à experiência vivida e, o quanto possível, análoga a um ou mais perfis dessa experiência. Nessa operação o som já é um mediador entre a vontade-designificar e o mundo a ser significado. (BOSI, 2000, p. 62) A linguagem adquire o ritmo do desespero, tambor-coração (tão-bela, tão-bela, tãobela) a ecoar da memória a existência perdida: Minha bela esposa Maria! Tão bela esposa no aneurisma sem respeito pelo seu drama. Tão bela esposa no realismo socialista do rústico fogareiro a carvão. Tão bela esposa cliente incorrigível das farmácias. Tão bela esposa de pé aos solavancos no machimbombo 13. Tão bela esposa madrugando na consulta externa. Tão bela esposa hoje... senha da Clínica Geral. Tão bela esposa amanhã... senha da Cirurgia Tão bela esposa depois... senha da Cardiologia. Tão bela esposa a seguir... senha do Raio X. Tão bela esposa também na Oftalmologia e tão bela esposa voltando mais neura da Neuropsiquiatria. (...) (M, p. 13) José Craveirinha apresenta em sua lírica a experiência autêntica de sua vida amorosa. Fazendo a exceção da teoria que considera a lírica uma forma inadequada à expressão da ve rdade, o sujeito poético não se diferencia do sujeito da enunciação. Por outro lado, pela forma literária que adota, também não se abstrai da condição subjetiva que define o texto. 49 É para o ser de Maria ausente que Zé Craveirinha semi-ausente se transfere como su49 Cf. Käte Hamburger. A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 224. 240 jeito e também se narra: Minha tão bela esposa Maria! Ninguém dela tão indigno como o seu único marido neste momento a redigir sua autobiografia de ex-falecido 4 anos inquilino onde o senhorio só cobra rendas50 do universo da solidão meus defeitos e suas qualidades exortando o insólito casal perfeito. (...) Foi 4 anos enviuvado de si mesmo de poéticas algemas atrás das costas com direito a um jipe militar, banal encenação de quem está preso e se ignora ainda vivo o mais mudo sotaque do último chão. (ibid., p. 14-16) Os textos poéticos sobre Maria revelam muito do sujeito que evoca as imagens amorosas, ainda que o movimento primeiro seja o de alteridade. A linguagem corporifica o “outro” amado, mas o dizer o “outro” é uma experiência inerente ao sujeito, no que se refere ao corpus que ora analisamos. O que sentiu o sujeito poético de Craveirinha pode adequar-se à tradução de Octavio Paz que define a experiência da outridade 51 “como duas notas extremas de um ritmo de separação e reunião”, sendo a experiência da separação sentida “quando caímos no sem- fim de nós mesmos e o tempo abriu suas estranhas e nos contemplamos como um rosto que se desvanece e uma palavra que se anula”. (PAZ, 2005, p. 109) A obra define-se por muitos poemas de lancinante dor. O que os versos evocam, todo o tempo, é um sujeito que, ao olhar as circunstâncias da morte da amada, expõe o sofrimento a que se consagra, féretro de si mesmo, ritual de morte expandido para dentro de sua consciência. A poesia também segue um ritual no livro Maria. Primeiro, vimos a descrição minuciosa da mulher que se torna ausente na voz de um sujeito poético que amarga remorsos e 50 Neste verso autobiográfico, Craveirinha refere-se ao período em que esteve preso, de 1965 a 1969, pela PIDE/DGS, primeiro na chamada Cadeia Civil de Maputo, capital de Moçambique, e posteriormente na Cadeia de Machava e, por fim, no Hospital Psiquiátrico do Infulene. 51 Octavio Paz discute a experiência da outridade como um conceito que liga o ser a si mesmo ante a vida, mas a definição, como o dissemos, cabe perfeitamente a experiência amorosa de José Craveirinha. 241 arrepend imentos por não ter podido amá-la como ela merecia. Depois, a obra se divide em livros, numerados de I a IV. Caminharemos, agora, pela dor de Craveirinha, poeta-amanteviúvo. No Livro I, os poemas vão do lamento de “Evocação” póstuma (Muito para lá do imaginário / bom seria que nunca houvesse / a mais ínfima razão / para esta maneira / de evocar Maria.) (M, p. 19) a “O Elogio”, desnecessário no momento final (Ninguém proferiu o Elogio. / O que é de mais torna-se desnecessário.) (ibid., p. 55) Entre eles, o poeta/sujeito poético perscruta todos os elementos que constituem o cenário da morte. As imagens: “tapete de roxas flores” por onde segue o cortejo; “extenso dia taciturno de nuvens”; “mãos que te levam”. Os sons e silêncios: “avejões corujas e corvos crocitando”; “drásticos evangelhos silenciados na urbe das lajes e das cruzes”; “sons cavos da terra sobre as tábuas”; “a litania das carpideiras”; o “dobre de sinos”; “um spiritual”; “violas de brisas nos ramos”. As presenças na ausência mais sentida: conhecidas que chegam, “despintados os cílios humedecidos”; “o circunstancial abraço e as conve ncionais expressões”. O que do instante o homem em dor apreende transforma-se em expressão da mais intensa subjetividade. As lágrimas dizem mais a respeito da dor que as palavras. A princípio, elas teimam em não cair, porque “Em vez de lágrimas” / Só um choro em seco / põe no vértice da minha dor / o mais intenso / auge do luto. (ibid., p. 24). A seguir, descem pela face, incontidas: A sotavento / colar aquoso / se desfia. (...) (ibid., p. 43). Voltado para si mesmo no intenso sentir que não se compartilha, o sujeito poético examina o pesar que se lhe manifesta: Lágrimas? // Ou apenas / dois intoleráveis / ardentes gumes de névoa / acutilando-me cara abaixo? (ibid., p. 44) A estesia da lágrima é a inegável constituição de um poeta que se conjuga na dor do sujeito: MISSANGAS 242 Do avesso das pálpebras gotejam missangas de sal. Penosa amargura escorrendo faz alcalino o rasto. (ibid., p. 45) O sofrimento se intensifica a tal ponto que as lágrimas reduzem-se a “Pingos” (E / na cinza / do meu bigode / em amaro santiámen / os pingos / perlam. (ibid., p. 46); depois cessam, e a dor chega ao “A uge”: Dor de olhos enxutos meu auge ............................................ de choro. (ibid., p. 47) O Livro II é o livro de Maria, plena em sua ausência, cotidiano de Zé sem sentido. É, verdadeiramente, um livro de alteridade, pois que o amado descobre ter sido “eu” some nte no que era o “outro”. O mundo de Maria permanece, Maria, não. O poeta desdobra-se também, cria um “outro” que lhe fale em substituição à voz suave que não ouve mais, “outro” que o convença da vida sem Maria: Monólogos de meu outro / comigo só falam / na voz do resíduo / que sou. (ibid., p. 59) Um “outro” reage à dor e propõe ao sujeito uma “Elegia”: Então meu caro Zé o que é isso? Paciência. Maria foi descansar. (...) Era assim a Maria sofrer por ti sofria mas as suas lágrimas remendavam enxutas os rasgões da alma. (...) 243 Quando um homem chora é uma ferida mal sarada que nos seus olhos sangra com pena dele. (ibid., p. 61-2) A vida recomeça sem Maria. Zé Craveirinha faz o “Inventário”: Cada coisa tua é um minucioso / capítulo do romance em que te releio / e guardo em parágrafos de carinho. (ibid, p. 63) Zé Craveirinha retoma o caminho da existência, mas sob o olhar atento de Maria: Nas mesinhas-de-cabeceira dos hotéis / no repreensivo olhar bom de Maria / acomodo e reacomodo na mala / minha babel de roupas e livros. (ibid., p. 64) O tempo sem Maria traz à memória os dias tão cotidianamente vividos, e que agora se refazem tão líricos: BIRRAS Quando uma das minhas camisas se extraviava somente Maria tinha absoluta certeza de ter sido a reincidente minha inata amnésia que me fazia perder as coisas que resolvia dar. (...) (ibid., p. 72) O tempo sem Maria conforma o Zé-amante-viúvo a uma dor ainda maior, porque já não se esvai em lágrimas: «OLHOS ENXUTOS» Olhos enxutos na dor de luto é suplício exclusivo de quem mais sofre quanto menos chora. (ibid., p. 73) O tempo reinsere Maria na lembrança, agora terna, de um Zé Craveirinha que ainda vive. O que se releva, então, das reminiscências do passado com Maria, é o amor que se consagra na absoluta fidelidade. Denis de Rougemont, analisando essa propriedade comum e desejável na relação amo- 244 rosa estável, conclui que a vida se engrandece, mesmo a mais humilde vida, quando o ser devota-se à pessoa amada com incondicional fidelidade. A relação amorosa, então, não se funda na paixão nem nos arroubos românticos, e ainda assim, representa a felicidade: Mas poderemos ainda imaginar uma grandeza que nada tenha de romântico? E que seja o oposto de um ardor exaltado? A felicidade de que falo é uma loucura, porém a mais sóbria e rotineira. Uma loucura de sobriedade que imita muito bem a razão ? e que não é um heroísmo, nem um desafio, mas uma paciente e terna aplicação. (ROUGEMONT, 1988, p. 215) O que vem à memória do sujeito poético de Craveirinha é a fidelidade de Maria, e a felicidade, do sujeito amoroso e do objeto cantado, por assim o ser: GOLA PUÍDA Primeiro a Maria revirou a gola. Depois cortou um pedaço da fralda reconcebeu um primoroso colarinho novo. Nostálgico rememoro esses nossos felizes maus tempos com a Maria consumando o prodígio ao fazer uma desgostosa camisa velha tornar-me um invejado Zé de camisa nova. A esses nossos ? agora tão saudosos! ? atribulados bons tempos retrocedo quando a Maria dava outra vida à minha agonizante camisa no fio pondo outra vez jovem a caquéctica gola puída. (M, p. 76) A memória insiste no episódio banal, mas pleno de beleza e lirismo, da camisa refeita pelas mãos amorosas de Maria: A GOLA DA CAMISA Eu não sabia a solução mas um dia sem me dizer nada a Maria pegou na fatigada camisa e numa tarde revirou-lhe a gola. (...) E a dita camisa e eu modernizados com mútuo gáudio estreámos-nos 3. a vez. 245 Simplicíssima feitiçaria das hábeis mãos de Maria foi essa esplêndida camisa vangloriando-me refeita. (...) (ibid., p. 87) O amor do tempo de viver o amor ganha sua mais esmerada tradução no amor sent ido no tempo de ausência do amor. É nele que o sujeito sai por completo de si mesmo e interpreta o “outro” em plenitude: MARIA ERA ASSIM Maria era assim simples no que dizia. O que ela pensava era também assim. Tudo à sua volta era mesmo assim. Enquanto um inconturbável fio de cabelo branco na bela cabeça enternecia lembranças e também era simplesmente assim. (ibid., p. 82) E a ausência de Maria encerra no tempo de viver a vida um Zé que se concebe vivo apenas porque além do presente que vive está a vida de viver com Maria: A NOSSA CASA Ambição minha e de Maria foi termos uma casa nossa onde nos contarmos os cabelos brancos. (...) Pelo menos envelhecer já não é problema. O resto na altura mais propícia surgirá por si. Parece que está por pouco. Na lista onde eu consto é injusto que tarde estarmos juntos. (ibid., p. 100) O livro III de Maria apresenta uma inconteste marca discursiva: a relação eu-tu que se exprime em todos os poemas. Maria lança o sujeito Craveirinha na existência dolorosa mas 246 factível, porque todas as coisas exigem a presença de quem não se foi. Os insondáveis presságios da ausente não são compreendidos à extensão da sabedoria de quem tudo vê, mas se pressentem na emoção da lembrança. Lembranças de Maria: dizeres e gestos, amuos e festas; imagens reais e abstrações; ilações e profecias. Os primeiros poemas revelam a morte. Ine xtricáveis versos refluem as coisas todas do universo na mesma voz poética. Representações de uma existência impenetrável só permitem ao leitor ter acesso ao signo estético, pois que o mundo tornou-se imperscrutável mesmo para o sujeito poético: CRISTAIS ABSTRUSOS AO TERCEIRO DIA Que espécie de cristais são estes paroxismos resvalando abstrusos pelos agrestes declives do meu rosto três dias imbarbeado? (...) Maria, o que é que se passa? O que é que se passa, Maria? (ibid., p. 104-5) O mundo possível é aquele em que Maria se faz Revelação. O sujeito poético quer habitar o inabitável, ser pleno no que excede a vida: DIAMANTES DE SONO Do máximo repouso o Mistério foi tua Revelação, Maria. Íncola da mesma Sorte quer-me também a Ténue pluma sombra de sombra ao longe nos longes poalha de poalhas ascéticas de nuvem ascese nebulosa leve no predestinado insacrílego oásis supremo na Distância. Que outra ambição de tesouro que não este Palácio? E na partilhada noite do Sempre que outro lugar de vigília, que não o derradeiro Átrio de Sono, do Grande Santuário, Maria? (ibid., p. 108) 247 A viagem que não se realiza, o lugar que não se compartilha, o esquecimento que não se cumpre são substituídos pelo simbólico encontro com a ausente: O IDÍLIO RECOMEÇADO Eu? Neste nosso idílio recomeçado posso não ser pontual mas faltar não falto no lugar aprazado. E tu? No novo amor que nos casa aceitas minhas prendas e flores sem falar como de costume. (ibid., p. 113) A sobrevida sem Maria tange no verso: Já não tenho quem me ature. / Mas eu cá me arranjo. / Eu cá me arranjo, Maria! (ibid., p. 119) Maria ausente não se ausenta do mundo pela vontade do sujeito poético, que lhe dá conta das coisas acontecidas: Ah, ia-me esquecendo de que fui / dizer à vizinha do lado / que de tudo que lhe ias emprestando / por sabermos o teu modo de ser / a vizinha nada nos deve. // Por hoje / é tudo, Maria. (ibid., p. 122) A conversa íntima fala de cenas fugazes: No orfanato das estantes / aos livros empoeirados / tuas queridas mãos de ausência / já não espanejam. (ibid., p. 126) E fala de sentimentos intensos: MEMÓRIA DOS DOIS Ambos juntos na mesma memória. Eu o Zé que não te esquece. Tu a Maria sempre lembrada. (ibid., p. 145) Zé Craveirinha vai se refazendo aos poucos, inventando jeitos de ser sem Maria. A inaptidão para ser só provoca o riso do verso: 248 A LINHA Fio de linha branca. Na mesinha-de-cabeceira teu compassivo olhar. Vou passajando abstracto. Pica-me o dedo a agulha. Nas minhas pretas peúgas rotas são reais as sarcásticas gargalhadas de linhas brancas. (ibid., p. 151) Os versos melancolizam o que era desespero e dor. Ainda é com Maria que se estabelece o diálogo em solidão, mas o sujeito poético afasta-se, pouco a pouco, da vida que se lhe ata cotidianamente aos afazeres domésticos, às relações afetuosas e aos interesses tênues sobre a realidade dos outros. A voz pressagia uma existência que se finda, o poeta revela a Maria o “Pressentimento” que teve: Desta vez Maria espera aí mesmo por mim. Exilado nos meus versos vou ter contigo. Sem falta! (ibid., p. 162) Tudo confirma o inexorável fim: Todos os dias / Vou-me despedindo / dos amigos nas estantes / e nas paredes. (ibid., p. 163) O fato não nega o mal augúrio, ressemantizado pelo poeta, por seu desejo de reencontro com a amada, em “Boa Nova”: O electrocardiograma promete reatarmos / nossos diálogos isentos de ilusões. / Disso te falo sem mórbido alvoroço. (ibid., p. 164) O sujeito poético se enternece no verso, e consagra-se e a si mesmo e a Maria, em derradeira construção de subjetividade. O último livro de Maria, o Livro IV, tem uma outra dinâmica enunciativa. Maria não se apresenta mais como o interlocutor imediato do sujeito poético, nem é mais o princípio vital de todos os versos. As referências à amada escasseiam, abreviam-se, mas isso não quer 249 dizer esquecimento. Na verdade, Zé Craveirinha acumula-se de solidão, e não há sentimento mais dolorosamente planeador da subjetividade: OS DOIS EUS E A SOLIDÃO Em mim a solidão é já uma pessoa. Onde a um eu que não chora um meu outro eu chora tudo pelos três. (ibid., p. 221) Uma nova expressão de alteridade se anuncia nos versos. O “eu”, não suportando a solidão que o oprime, atribui a um “outro” a insistência de existir; e a própria solidão, tangível e fria como mármore, cortante como faca afiada, transforma-se em entidade para além de qualquer compreensão de subjetividade e de alteridade. Mesmo a linguagem torna-se escassa, porque a imensa dor da ausência da amada parece ind izível para o poeta. A alegria de amar, pela ausência, se transforma em dor de amar. O sujeito poético, que antes elaborava o discurso amoroso frente à pessoa amada, e nesse discurso consagrava-se como sujeito, agora, pelo vazio que se faz, percebe a impossibilidade de definir, a si mesmo e ao objeto do seu poema, a dor que sente pela ausência da figura amada. Os signos não correspondem à emoção. Foucault, ao analisar a formação dos objetos no discurso, entende que há limitações internas e externas o discurso, as quais dificultam estabelecer de forma precisa as propriedades dos objetos. Reconhece o autor que, na formação de um discurso, não se volta, no seu dizer, ao aquém do discurso para se compreender o objeto antes de qualquer signo formulado; como também não se vai ao além do discurso para encontrar as formas que ficaram para trás. Fica-se no próprio discurso, daí o risco da relação entre “as palavras e as coisas”, pois que, na análise dos discursos, essa relação, que se pensava apenas fundada no entrecruzamento de signo e objeto, se desfaz. Conclui Foucault: Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que u- 250 tilizar esses signos para designar coisas. E é esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato de fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer que é preciso descreve”. (FOUCAULT, 2005, p. 55) Sendo o objeto do poema não o “eu” nem o “outro”, mas a ausência da relação amorosa, a construção do discurso poético encontra a imprecisão da relação entre o significante e o significado. O sujeito da enunciação vaga entre o “aquém” e o “além” do discurso, porque não consegue forjar as regras discursivas, fixar um vocabulário para o que sente. A dor se transforma em linguagem, mas a linguagem não consolida um dis curso que sustente a significação da dor; ela se repete, cria lacunas, recorre a signos não inerentes ao objeto: PLENONASMOS A dor mais dolorida. (...) Nem uma efémera vírgula a reticência de um pão seco reticência de um grito sufocado soluço soterrado no deserto da sua própria vírgula abrevia meus semânticos pleonasmos de Maria. (M, p. 242) A ausência do “outro”, para o sujeito amoroso, é assim compreendida por Julia Kristeva: Quando a morte intrínseca à paixão amorosa produz-se na realidade e arrebata o corpo de um dos amantes, ela é o auge do intolerável; o amante que sobrevive avalia então o abismo que separa a morte imaginária 52 , que vivia em sua paixão, da realidade implacável de que o amor o tinha sempre afastado: salvado... (KRISTEVA, 1988, p. 57-8) Diante da morte, da perda e da ausência, o sujeito narra o ser amado. Elabora-se, no cerne da dor, o discurso que traz de volta a ausente. Essa disposição de linguagem cria um 52 Kristeva refere-se ao fato de que, em estado de amor, o sujeito desloca-se de tal forma para o outro, “que é efetivamente do porte de um Senhor”, que o sentimento amoroso passa a representar uma morte para aquele que ama, mas somente dessa forma adquire existência: “O amor é uma morte que me faz ser”. (KRISTEVA, 1988, p. 57) 251 paradoxo assim definido por Barthes: “Devo infinitamente ao ausente o discurso da sua ausência; situação com efeito extraordinária; o outro está ausente como referente, presente como alocutário”. (BARTHES, 1995, p. 29) O sujeito poético multiplica-se para dar conta de uma existência erma: CAFÉ Muito de manhã ajunto à xícara o respectivo pires uma colherinha e o café. A mim mesmo peço Que vá buscar o açucareiro. Uma. Duas. Três colheres de açúcar. Mexo. Provo. Está doce. E na incongruente imensidão da casa lacónico vou sorvendo ............................................................. Tudo amargo. (M, p. 192) Objetos e circunstâncias ganham vida somente para compartilhar a «solidão», signo que resvala por toda a casa e ressoa na voz poética: SOLITÁRIOS Primeiro uma injuriosa nódoa nas calças. Depois a falta de um botão na camisa. E no desmazelo da noite eu e o almoço encostados ao tédio um do outro. (ibid., p. 197) A extrema solidão é mais extrema dor por não ser compreendida, compartilhada, desvanecida pela falta de compaixão de quem não adivinha que a dor se estende para além do tempo: 252 ... E EX .MA ESPOSA Um só momento situem-se na minha carne ao ler os convites endereçados ao casal Sr. José Craveirinha e Ex.ma Esposa. (ibid., p. 232) E, por fim, expressa toda dor, lamentada toda solidão, o sujeito Zé Craveirinha volta a sua Maria, repouso de si mesmo, consolo dos erros e dos infortúnios, “Memória” que não se finda: Em suma: / Mesmo não estando / é inevitável a eterna / presença de Maria! (ibid., p. 243) E só Camões, a quem o poeta recorre, “exausto de insónias”, oferece-lhe o mote lúgubre, o mote amoroso, o verso da dor mais intensa que o Poeta Zé Craveirinha já não consegue exprimir sozinho, e canta em uníssono com o Poeta Luís Vaz : Louvada seja a Dinamene / e Maria louvada seja também. // E ambos entoamos. (ibid., p. 241). 7.5 - José Craveirinha: a subjetividade erótica e a boneca de jagre Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia. Mi sed, mi ansia si límite, mi camino indeciso! Oscuros cauces donde la sed eterna sigue, y la fatiga sigue, y el dolor infinito. Pablo Neruda A publicação, em 2004, da obra póstuma de José Craveirinha denominada Poemas Eróticos, organizada por Fátima Mendonça, apresenta questões relevantes para o entend imento 253 do texto erótico do autor. Primeiro, diz a organizadora ter intuído que somente deveria publicar os poemas dos quais era a “fiel depositária” após a morte de Craveirinha. Esclarece a autora ter adivinhado um caráter autobiográfico na escritura erótica. A análise dos poemas leva à confirmação de que eles se destinam a um só objeto, a “boneca de jagre”. Fátima Mendonça ainda argumenta que a personagem feminina boneca de jagre “ia para além da pessoa física que inspirava essa poesia e se transformava em arquétipo da juventude eterna”. 53 (PE, 2004, p. 7) Antes de nos dedicarmos à análise dos textos que compõem a obra erótica de Craveirinha, convém ressaltarmos que signos ligados ao erotismo sempre foram utilizados pelo autor. Entretanto, estavam eles inseridos no universo cosmogônico onde participam também signos associados à africanidade, como em “Canto do nosso amor sem fronteira”, da obra Karingana ua Karigana: (...) Mas bem no fundo das almas e dos corpos tatuados de esperança o clitóris das montanhas nos sexos das nuvens pátria do nosso desespero mais desesperado pátria dos pés descalços na brancura do algodão pátria de beijos e promessas de mais beijos é o nosso genuíno grito mais gritado a levantar no cosmos a beleza do nome não renegável de Moçambique! (OP, p. 138) A obra Poemas Eróticos reúne quatro conjuntos de poemas entregues por José Crave irinha a Fátima Mendonça na década de 90, os quais têm as seguintes denominações: “Rezas de Amor”, “Arte Barroca”, “Frenesi dos Zangãos” e “25 Unhadas às Gatas”. Cada uma das partes do livro tem propostas semânticas muito claras, as quais aproximam os poemas na mesma compreensão literária, mas decidimos por fazer a análise seguindo a divisão proposta pelo 53 Fátima Mendonça indica ainda, no texto que apresenta a obra, mais uma razão para só ter publicado os poemas eróticos de José Craveirinha postumamente: a morte trágica da jovem “musa inspiradora”, em Marselha, o que teria abalado profundamente o poeta. CRAVEIRINHA, José. Poemas eróticos. Maputo: Moçambique Editora, Lisboa: Texto Editores, 2004, p. 7 254 poeta. “Rezas de Amor”, primeira parte do livro, compõem-se de quatorze poemas. Como não há uma fixação em suas formas estruturais, vamos nos ater às propostas que se apresentam através dos signos. Aí temos, de fato, uma conformidade que se faz notar de imediato. Inseridos no mesmo campo semântico do título, saltam do texto signos que se compreendem pela semântica da religiosidade: «culto», «altar», «igreja», «santo», «hossanas», «catequeses», «cântico», «anjo», «sagrado» etc. Tais signos, e muitos outros, porém, participam de um contexto erótico, ferindo seus princípios fundamentais, alterando- lhes a configuração que lhe foi outorgada pela moral religiosa. Antes de iniciarmos uma discussão sobre o erotismo nos textos que integram “Rezas de Amor”, achamos necessário empreender uma discussão sobre o uso dos signos no texto literário, o que nos parece de fundamental importância para a análise da obra erótica de José Craveirinha. Segundo Paul Ricouer, em A Metáfora Viva, a teoria da palavra garante à mesma a existência de um primado não ambíguo, organizado pela ideologia, e também pelo processo analítico à ideologia atrelado. A correspondência da palavra com a idéia a que ela conduz é o princípio de fundamental da análise, porque dele decorre a orientação para a compreensão de uma outra correspondência, qual seja a da elaboração da figura instituída como metáfora. 54 Destacamos, primeiramente, a constituição de uma “ideologia da palavra”. Aqui, fo rçosamente, voltamos à proposta de Mikhail Bakhtin sobre o signo ideológico, visto que, segundo o autor, “tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. (...) Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e refratar, numa certa medida, uma outra realidade”. (BAKHTIN, 2004, p. 31) Sob tal formulação, e retornando ao trabalho poético, precisamos estabelecer que 54 Cf. Paul Ricouer. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 83-93. 255 os signos doravante destacados para análise ? e outros que marcam os poemas iniciais da obra erótica de Craveirinha ? inscrevem-se, primeiramente, na ideologia religiosa, mais precisamente no cristianismo. 55 A moral cristã, largamente discutida neste trabalho sob a ótica de Nietzsche e de Auerbach, é também apresentada por Michel Foucault em A Hermenêutica do Sujeito. Ao tratar do “cuidado de si”, o filósofo identifica os postulados da espiritualidade na relação subjetividade/verdade. Assim, concebe que a espiritualidade não permitiu ao sujeito o acesso à verdade pelo conhecimento, mas por uma série de práticas e procedimentos que iam da renúncia de si mesmo à modificação da própria existência. Resume o autor: (...) para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, consumado por certas transformações do sujeito, não do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito. (FOUCAULT, 2004, p. 21) Entrando na idade moderna, o homem consid era, todavia, que somente o conhecimento cartesiano lhe permitirá o acesso à verdade. Entretanto, a recompensa não se dará na plenitude do sujeito, como propõe e promete a espiritualidade, recompensa pelo sacrifício e renúncia. A verdade, agora, será uma busca infinita que se dá pelo conhecimento. 56 É sob tais conceitos, emprestados de Foucault, que pretendemos analisar a poesia erótica de José Craveir inha. Os signos religiosos são indubitáveis; sabemo- los frutos de uma ideologia que confere à palavra toda uma predicação instituída para a salvação do sujeito; entendemos que, por tal abstração, a verdade é dada ao sujeito como recompensa pelo sacrifício de abandonar a si 55 Considerando o risco de nos desviarmos demais do objeto de análise a que se consagrou esta pesquisa, não discutiremos, aqui, a relação do poeta com a doutrina religiosa cristã, imposta pela colonização. Ainda que consideremos essa relação constituinte do processo de criação da poesia erótica, não convém nos atermos a uma investigação que confira ao discurso erótico uma rejeição à filosofia cristã. Tal suposição não seria de todo despropositada por dois motivos: primeiro, porque sabemos que o poeta não foi criado sob a égide do cristianismo; segundo, porque há poemas de Craveirinha que evidenciam posições análogas do sujeito poético. Porém tais informações, além de não garantirem, neste caso, uma estabilidade analítica, não são relevantes para nossa análise. 56 Cf. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 24 256 mesmo. Agora, resta- nos compreender como o sujeito da poesia promove o deslocamento do signo religioso para constituí- lo como metáfora; a que verdade ele teve ou pretendeu ter acesso; até que ponto sua salvação ? caso ele a tenha almejado ? ficou comprometida pelo conhecimento; e, por fim, de que conhecimentos ele dispôs para alcançar a verdade. No primeiro poema de “Rezas de Amor”, os signos religiosos não parecem destituídos de sua semântica primeira, ou seja, não se elaboram metáforas que lhes dêem novas significações. O que chama a atenção é a relação do sujeito poético com tais signos que representam, não há dúvida, uma realidade extralingüística da qual o sujeito participa, mas que nela não se consagra: CULTO Sábio altar de rezas tua nudez minha sedosa madre igreja de culto. (PE, p. 14) Um signo, «nudez», não se conforma às práticas religiosas cristãs; outro signo, «sedosa», propõe uma relação de intimidade entre o sujeito poético e o objeto do poema, a madre igreja, que não atende aos procedimentos estabelecidos pelo “culto” tradicional. E, por fim, «sábio» identifica uma proposta de conhecimento que se distancia da salvação pela espiritualidade. Exigindo análise mais complexa, o poema “Santo Excomungado” não somente apresenta signos religiosos em desvio, como alude às práticas do “eu” lírico, as quais, distanciadas que se encontram das prédicas cristãs, não deixam de ser contextualizadas como religiosas. Entretanto, o que se entende, neste caso, como prática de devoção espiritual mescla-se com práticas carnais, portanto, contrárias às atividades místicas e incorpóreas: Herege sei-me crente 257 quando te rezo desde o fremir das amaras [sic]57 às trincadas catequeses das bocas. E me sei suspenso entre o sumo dos gemidos e hierovulvas de chipendanas58 entoando mil hossanas a rebate. Deuses excomunguem os que desdenham orar à Vida desta maneira. (ibid., p. 15) Aventuramos- nos na interpretação deste poema pelos signos escolhidos pelo autor, o que foi apresentado antes como proposta de análise para a composição poética de Craveirinha que ora investigamos. O signo «herege» define a situação inicial do sujeito do poema, e consideramos estar ele, o signo, associado a um contexto social. Neste caso a palavra, ainda que elaborada ideologicamente, valida-se pelo seu sentido primeiro e único. Em oposição, temos o signo «crente». Aí, sim, dá-se o deslocamento do sentido da palavra, estabelecendo a metáfora. “Sei- me crente”, diz o sujeito. Dessa forma, articula-se um conhecimento sobre si mesmo que se afasta ainda mais do sentido religioso ao ser indicada a condição dessa mudança no 57 Quanto ao vocábulo “amaras”, Fátima Mendonça considera ser sinônimo de “amargas”, embora também reconheça a possibilidade de significar “amarras”. 58 Os textos poéticos de José Craveirinha na obra em análise apresentam muitas palavras do léxico moçambicano. A organizadora da obra, Fátima Mendonça, esclarece, em nota introdutória do livro, que optou por não fazêlas figurar em glossário, por entender que eles são facilmente compreendidos no contexto. Concordamos com autora, mas consideramos que, no caso deste poema, saber o significado da palavra «chipendanas» amplia a compreensão do texto, pois refere-se o vocábulo a um instrumento unicórdio tocado com uma vareta e modulado com a boca. Esse sentido, a nosso ver, confere novas possibilidades interpretativas aos signos anteriormente destacados. 258 “eu”, de herege a crente. Completa o sujeito poético: “sei- me crente quando te rezo”. A relação eu-tu não permite quaisquer dúvidas a respeito da ressemantização do signo religioso. Confirmação que não tarda a se identificar pelos signos carnais que se sucedem: «bocas», «gemidos», «hierovulvas». E se revela, ainda, no texto, um posicionamento do sujeito poético de quem não pretende a salvação e o alcance da verdade pela renúncia de si mesmo. Ao contrário, identificamos a atitude de quem desafia as normas impostas pela espiritualidade cristã: primeiro, pela evocação aos «deuses», o que já seria, em si mesma, uma proposta pagã; segundo, por atribuir a esses deuses um direito consignado pelos códigos cristãos, que é a excomunhão; e, por fim, pela ousadia de considerar fora da salvação — segundo a doutrina do sujeito poético — todos os que não cons ideram a sua idéia de oração e louvação. Neste ponto do estudo, achamos por bem trazer novamente à discussão as concepções apresentadas por Paul Ricouer em seu livro A Metáfora Viva. Ao estabelecer a relação entre a poesia e o leitor, o autor investiga a “construção do sentido” que se pode projetar pelo leitor a partir do signo selecionado pelo poeta. Dá-se, assim, o trabalho com a metáfora. De acordo com a proposta de Ricouer, há dois princípios que regem a lógica da “construção do sentido”: o princípio de conveniência ou congruência, que leva o leitor a decidir que conotações convêm ao tema; e o princípio de plenitude, que possibilita a utilização, pelo le itor, de todas as conotações aplicáveis ao tema. Segundo o autor, o segundo princípio, o da plenitude, corrige o primeiro, pois a leitura poética não exige, como o faz a leitura técnica, a escolha entre duas significações que se ajustem ao contexto. “O que seria ambigüidade em outro discurso denomina-se aqui precisamente plenitude.” (RICOUER, 2004, p. 151) Mais uma vez está explicado, caso tenha sido necessário, o porquê da opção pela análise do signo na poesia erótica de Craveirinha. A própria estrutura do poema ressalta a palavra, e cabe ao leitor, apenas e tanto, procurar desvendar que significações possam ser atribuí- 259 das ao signo de forma que ampliem a proposta poética. 59 A relação erótico-amorosa dá-se em plenitude. A busca pelo real, pelo que está fora de si, encerra-se no momento em que os corpos amantes encontram-se no ato de amar. Mais uma vez, não cabe às concepções cristãs de amor a conversão do sentimento em palavras. Os deuses conformam-se melhor ao prazer intenso e, por conseguinte, à sua expressão, porque libertários, intensos, integrados em si mesmos. Se os deuses invocados pelo sujeito poético de Craveirinha são os olímpicos ou os que se congregam ao logos africano, não importa. Fato é que esses deuses, tenham que aparência lhes for atribuída, libertam o ser e o lançam na totalidade dos desejos. Em A Origem da Tragédia, há uma proposição de entendimento da presença dos deuses na vida humana pela qual nos parece, a nós leitores, estar mesmo o filósofo entregue ao devaneio, tal a força dos deuses, pois que tomam de assalto a linguagem que pretende explicar sua natureza: Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea espiritualização, misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá logo de lhes dar as costas, desalentado e decepcionado. Aqui nada há que lembre ascese, espir itualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau. E assim é possível que o observador fique realmente surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso de Helena ? a imagem ideal, “pairando em doce sensualidade”, da própria existência deles. (NIETZSCHE, 2005, p. 35-6) Por essa representação, entendemos o sujeito poético de Craveirinha. O que ele propõe é o delírio dos deuses ? que nos arriscamos a interpretar mais como expressão dionisíaca ? , pelo qual intensifica as suas manifestações eróticas. O sujeito do poema, como que em estado 59 Não pretendemos nos demorar em teorias da palavra e da interpretação para justificar a análise que temos desenvolvido sobre os poemas eróticos de Craveirinha, como se a própria obra já não fosse justificativa suficiente. Entretanto, não é demais lembrar que Umberto Eco, autor já destacado neste estudo, elabora uma importante teoria a respeito da interpretação, especialmente no que concerne à compreensão da palavra, através do que ele ressalta a cooperação textual, que compreende diversos recursos a serem utilizados pelo leitor-modelo na compreensão de um texto. ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo:Perspectiva, 2004, passim. 260 de alheamento, vê os corpos que se envolvem, narra o que vê, mas, estranhamente, vive o mesmo delírio, sabe as intenções, adivinha as delícias. De quem os corpos? Onde o sujeito? Em que espaço se conciliam os signos «Céu» e «Sade»? A quem ou a que se devota o crente ou o idólatra? O TIMBRE DOS DEUSES Vivo um delírio de corpos enovelados tangendo seus próprios cânticos. Dedos e bocas em manuais de Sade. Desencantados dos outros confidenciando-se néctares portas adentro dos favos do Céu. Exaustos corpos encontram o timbre dos Deuses.60 (PE, p. 17) Os signos cristãos elevam o ser à espiritualidade; os signos eróticos concedem ao ser o direito ao Desejo. Tal como um nono Cântico dos Cânticos, o poema faz um “Louvor aos Louvores”: uma exaltação a todos os atos de louvação. O homem, ao louvar a natureza, louva a si mesmo, pois que com ela religa-se na sede e na fome saciadas. O homem, ao lo uvar a mulher, louva a si mesmo, pois que com ela retorna à origem da existência e à conjugação 60 Talvez tenha causado certa inquietação o fato de os primeiros poemas terem a mesma estrutura formal. Haveria, na estruturação dos versos, um sentido a ser explicado? Fátima Mendonça, organizadora do livro, não faz referência ao assunto. Poderíamos atribuir à estrutura dos textos uma inversão no processo de elevação espiritual, visto que os poemas, fartos em signos cristãos, atribuem aos mesmos sentidos que, para a moral cristã, representariam uma queda. Entretanto, tal hipótese interpretativa, que não se confirma teoricamente, em nada acrescentaria ao estudo. Além disso, em “Rezas de Amor” há poemas de estruturação estrófica mais simplificada, e em outros conjuntos de poemas, a mesma elaboração formal retorna, sem que encontremos analogias ou oposições que sustentem uma hipótese. 261 carnal sagrada ? a família ? diante do pão que os alimenta. Mas na origem da existência, os corpos conjugam-se, também, no amor erótico: Louvada seja a água que satisfaz minha sede. Louvado o milho maduro da nossa bela farinha. E louvada seja a mulher que louva a génese do seu ventre e nos concebe bem vivos perante o mútuo pão fresco. E louvados os lábios no mútuo beijo e mútuo pão da mesma fome. (ibid., p. 19) A despeito de todos os códigos e signos, é pelo encontro amoroso que se dá a máxima subjetividade: Deste agora para todos os amanhãs merencório estado de graça alça-me contigo em mim. (ibid., p. 22) E no último poema de “Rezas de Amor”, o sujeito poético de Craveirinha, instituindose da prerrogativa de ser humano e, por essa qualidade, conhecer o amor, e por esse amor alcançar a divindade, restitui a Deus o que não Lhe foi, por sua própria decisão, consagrado: o amar como um Homem. DEUS À SEMELHANÇA DO HOMEM 262 A inata qualidade de amar uns chamam vício. É defeito a redondeza do Mundo? É crime gostar do aroma da rosa? Valho-me do amor e nele me exalto e me redimo tal como Deus quando se liberta invocando-se alter-ego do Homem. (ibid., p. 27) “Arte Barroca”, o segundo conjunto de poemas da obra de poesia erótica de Craveirinha, sugeriria uma compreensão ideológica dos textos, seguindo as trilhas da moral ascética e da dicotomia corpo/alma. Entretanto, não identificamos o regimento moral e ascético proposto pelos discursos que vigoravam à época seiscentista. Não há, nos poemas, salvo raras exceções, signos que se contextualizem diretamente com o Barroco. Então, pensando a obra como arte que se configura sob uma proposta estética, e seguindo a trilha de investigação dos signos, entendemos logo tratar-se de uma outra acepção do Barroco. O sujeito poético constituise como um artista e a relação erótico-amorosa como sua obra de arte. Dois elementos de expressão da arte barroca, a escultura e a música, fazem a alegoria do amor. Mais um intervalo se faz necessário no raciocínio linear: como o que está agora em questão é a subjetividade, convém fazer a relação entre a criação estética e a proposta poética que se funda no sujeito. Assim, recorremos à tese sobre estética desenvolvida por Herbert 263 Marcuse, com base na filosofia kantiana a qual designa, para a estética, o espaço intermediário entre os pólos moralidade e sensualidade: A natureza da sensualidade é a “receptividade”, a cognição obtida por meio de sua afetação por determinados objetos. É em virtude da sua relação intrínseca com a sensualidade que a função estética assume a posição central. A percepção estética é acompanhada do prazer. Esse prazer deriva da percepção da forma pura de um objeto, independentemente de sua “matéria” ou de seu “propósito” (interno ou externo). Um objeto representado em sua forma pura é “belo”. Tal representação é obra (ou, melhor, o jogo) da imaginação. Como imaginação, a percepção estética é sensualidade, ao mesmo tempo, mais do que sensualidade (...): dá prazer e, portanto, é essencialmente subjetiva; mas na medida em que esse prazer é constituído pela forma pura do próprio objeto, acompanha universal e necessariamente a percepção estética ? para qualquer sujeito que percebe. Embora sensual e, portanto, receptiva, a imaginação estética é criadora: numa livre síntese de sua própria criação, ela constitui beleza. Na imaginação estética, a sensualidade gera princípios universalmente válidos para uma ordem objetiva. (MARCUSE, 1975, p. 159) Engenho e habilidade, imaginação e sensualidade transformam-se em arte estéticoamorosa: PÍNCAROS Cílios em moldes de cerâmica. Tema de colibri asas abertas na pétala saboreando dois píncaros de voo. (PE, p. 32) Considerando o sujeito poético de Poemas Eróticos como sendo masculino, a partir da informação de que o objeto amoroso é a “boneca de jagre”, temos em “Arabescos de Giz” uma relação que se dá pela construção do amado por quem o ama no ato mesmo de amar. E neste ato, a dor e o gozo, gemidos de um e de outro se destinam na comunhão da carne. Os versos libertam o sujeito da razão a que ele mesmo se vinculara por ideais que o roubaram de si mesmo, e o forjaram como “eu” na existência do “outro”. Agora, pela estética erótica, pode 264 voltar ao gozo da subjetividade, porque “a reconciliação estética implica um fortalecimento da sensualidade contra a tirania da razão, e, em última instância, exige até a libertação da sensualidade, frente à dominação repressiva da razão”. (MARCUSE, 1975, p. 161) Giz de unhas na lousa do meu dorso giza arabescos de gemidos que se gostam. Teu giz. Minha lousa. Gemidos teus inseridos nos meus. (PE, p. 33) Todo ato amoroso representado nos poemas é acompanhado por sons musicais. Constantes, os signos que elaboram a idéia de música conduzem cada gesto e refletem o êxtase amoroso, o que se apresenta de imediato nos títulos dos poemas, que alternam ou mesclam denominações européias e palavras moçambicanas: “Ópera de Xirossanas”, “Xingombela”, “Sonatas na Areia”, “Sonatas de Caniços” e “Timbila”. Os poemas de “Arte Barroca” seguem a mesma estrutura formal da maioria dos que compõem “Rezas de Amor”. Entretanto, há uma redução da linguagem que faz evidenciar as imagens propostas pelo poeta. Em êxtase erótico, o sujeito poético não forma enunciados que dêem conta da experiência que vivencia. São muitas as lacunas que se formam entre signos imagéticos, como se a fala tivesse sido suspensa pelo êxtase. A palavra, manifestação elementar da poesia, parece não conseguir representar a totalidade da emoção poética. O que se afigura como um paradoxo é assim explicado por Octavio Paz: A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só a palavra a exprime. A imagem reconcilia os contrários, mas esta reconciliação não pode ser explicada pelas palavras ? exceto pelas da imagem, que já deixaram de sê-lo. Assim, a imagem é um recurso desesperado contra o silêncio que nos invade cada vez que tentamos exprimir a terrível experiência do que nos rodeia e de nós mesmos. O poema é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser até o extremo. Extremos da palavra e palavras extremas, voltadas sobre as suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fa- 265 la: o silêncio e a não-significação. Mais aquém da imagem, jaz o mundo do idioma, das explicações e da história. Mais além, abrem-se as portas do real: significação e não-significação tornam-se termos equivalentes. Tal é o sentido último da imagem: ela mesma. (PAZ, 2005, 48-9) Reduzido em sua linguagem, o poema “Crisântemos” não é contido; ao contrário, o sujeito poético, através das imagens que o envolvem, mostra-se em estado de expansão do desejo: Azul de lençol perfumado. E crisântemos de mamilos meus lábios florindo. (PE, p. 31) A imagem é a máxima experiência do sujeito poético quando a idéia que pretende elaborar, por sua intensidade erótica, afirma-se para além da adequação conceitual. “A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós”. (BOSI, 2000, p. 19) A imagem poética, por seu deslocamento da idéia primeira que leva o signo ao objeto, traduz a fantasia erótica do sujeito poético que aproxima universos tão distantes como o corpo da amada e o mar, sem que sejam em presença um do outro: MUSGO E MAR Tactos no poiso de seu musgo. Sigilos de concha sussurrando seu segredo no âmago da ostra. Tudo nos fofos signos da concha. (PE, p. 34) 266 Por fim, há um jogo dialético nesta segunda parte do livro, cuja síntese é o desejo de rejuvenescimento do sujeito poético. No poema também intitulado “Arte Barroca”, o sujeito descreve-se fisicamente, pelo que realça caracteres associados à velhice; à arte barroca é atribuída a juventude de que ele necessita. Fátima Mendonça vê nesse poema uma composição autobiográfica, um “dramático monólogo de fim de vida de uma personagem fáustica, buscando na juventude alheia o elixir impossível da imortalidade”. (ibid., p. 7) Meu tipo avoengo de ralos cabelos grisalhos. Mesmo tom embranquecido lauto bigode recobrindo o lábio. Sua fresca sexta dezena primavera minha antiquada arte barroca peremptória ainda mais a rejuvenesce. (ibid., p. 30) O último poema desta segunda parte do livro revela o objeto de desejo do sujeito poético. “Boneca de Jagre” é texto melancólico, doloroso. O corpo e a alma se ressentem de uma ausência de ser após uma vida inteiramente preenchida pelo desejo: Tristes em minha cara sinuosas são as veredas. Pressago lusco-fusco na alma. Linda boneca de jagre caboverdiana-me 267 a vida. Na ante-sala do Adeus a boneca faz-me doce a Despedida. (ibid., p. 42) A terceira parte do livro Poemas Eróticos, denominada “Frenesi dos Zangãos”, elabora uma nova proposta: nos poemas coligidos, há um movimento de alternância entre subjetividade e alteridade, o que leva o leitor a empreender uma outra via interpretativa. Que subjetividade se expressa no verso que apresenta a visão objetiva do sujeito poético sobre as coisas circundantes? Que alteridade se postula nos signos que expressam o “eu”? Ou, mais precisamente, através de que recursos de linguagem o “eu” e o “outro” fundem-se na mesma proposição? Seja a que resultado chegarmos pela análise, não devemos esquecer que, fundamentalmente, todos os signos instauram-se no desejo erótico, pressuposto da subjetividade. 61 O primeiro poema leva o sujeito poético ao encontro que se objetiva nos versos, porque o integra na experiência que se constrói em alteridade: Adoro a respiração das multidões. É perdido lá no meio que as deusas das urbes me inculcam o solitário frenesi peculiar dos zangãos. (ibid., p. 44) Também investido de alteridade, o sujeito poético identifica um erotismo que não seja manifesto exclusivamente no “eu”, mas em todos que se prometem os mesmos prazeres: BAGOS DE AMORA 61 Consideramos necessário esclarecer que o sujeito poético abandona, em “Frenesi dos Zangãos”, a disposição formal que marcava os poemas anteriores. Os versos, agora, são lineares e se fixam em estruturas sintáticas. 268 Tesouro de homem é uma rapariga nua. Aos deliciosos bagos de amora que homem não os morde? Que dentes não rangem preciosos nesse gosto? Néctar dos néctares mais antiqüíssimo dos homens é este néctar. E o nosso ouro o êxtase glorioso no arrepio das femininas amoras. (...) (ibid., p. 50) Entretanto, nos versos subseqüentes, o eu do poema toma-se de novo em subjetividade, ao participar a experiência que nem todos comungam: Isto no regresso do longo exílio. Isto no términus daquele féretro de cimento. Isto no retorno aos carinhos da mulher sagrada. Quem delirou tudo isto quem delirou não sabe se sonha ou não sonha mas pressente e sente na carne o feitiço dos beijos de amora bem mordidos. (ibid.) O sujeito poético, então, desloca a cena de uma situação erótica comum para uma situação política incomum. Como nos foi dado saber pelos diversos estudos que empreendemos, o discurso político é a representação da alteridade, mas o resultado de uma ação política reflete-se na subjetividade. Por outro lado, a experiência erótica é subjetiva, porém o que dela decorre é universal. Assim, entre alteridade e subjetividade, o sujeito poético expõe suas emoções. No entanto, a alteridade que se estabelece mais vivamente nos textos é a que tematiza o ser amado. Eu-outro, na conjugação perfeita do verbo, do verso e da carne, estabelecem a harmonia dos contrários, iluminam as imagens antes ofuscadas pelo desalento ? do sujeito do poema e do leitor ? , extasiam os sentidos na promessa erótica: ARIDEZ Teu fogo de lábios por mais apaziguados de beijos aos meus ósculos mordidos que seja uma aridez ateada.(ibid., p. 46) Há poemas em que o “outro” fixa-se em nome de mulher. Neles, o sujeito poético consagra a existência feminina que permitiu o saber erótico, por suas qualidades físicas e disposi- 269 ções amorosas. Em “Pausa com Cassilda”, a união entre o homem e a mulher molda-se na natureza: Um pudim de fogo / da cor do nosso íntimo desespero / sobre as índicas águas da baía. (...) (ibid., p. 64); em “Nádia”, a vertigem do corpo e da existência: Em / tépido caudal / de velho rio / me fluo. // Na cálida praia / nenúfar deságuo / em tua foz (ibid., p. 58) O “eu” existe na consistência da carne e na diáfana sedução, uma “Ode à Laura”: Minha ode nasce da maravilhosa curva mágica de um céu langoroso no ritmo moreno das belas ancas femininas de Laura. Aonde a ternura de uma pomba a não ser a suave linha do teu ventre dançando nas retin as dos homens a dança mais feiticeira da música poética das tuas pernas? (...) (ibid., p. 63) Na última parte do livro Poemas Eróticos, denominada “25 Unhadas às Gatas”, José Craveirinha amplia, em seus versos, três imagens prevalecentes: a dos gatos em libertinagem; a dos corpos em lascívia adâmica; a da velhice que não aniquila o desejo. A propriedade dos gatos é enaltecida pelo sujeito poético: No tempo do cio invejo dos gatos a sorte. Ao uivar das gatas Qualquer bichano fá-las miar. (ibid., p. 88) O encontro, nos poemas, entre o homem e os gatos viabiliza o erotismo proposto por Craveirinha. O homem potencializa-se na animalidade que exalta, libertando-se dos interditos que estabelecem um comportamento sexual doutrinário para o ser humano. Essa primeira manifestação corpórea do homem é assim definida por Georges Bataille: O erotismo é, de forma geral, infração à regra dos interditos: é uma atividade humana. Mas ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade não deixa de ser o seu fundamento. Desse fundamento a humanidade se desvia com horror, mas ao mesmo tempo o conserva. A animalidade é 270 mesmo tão bem conservada no erotismo que o termo animalidade ou bestialidade não deixa de lhe estar ligado. Foi por exagero que a transgressão do interdito ganhou o sentido de volta à natureza, de que o animal é a expressão. Entretanto, a atividade à qual o interdito se opõe é parecida com a dos animais. (BATAILLE, 1987, p. 88) Vencendo os interditos que a moralidade e a sua atividade coletiva impunham à expressão subjetiva de sua sexualidade, o sujeito poético de Craveirinha aproxima-se da animalidade que funda a condição primigênia de ser macho e ser fêmea: (...) Submissos ao cúmulo do impurismo macho e fêmea voam puros ao timbre do arco duplo de rins. (PE, p. 68) O que se consagra no amor erótico é a fa culdade de ser animal; o que se identifica no sujeito e no objeto é a propriedade de ser “Gato e Gata”: Só queria que minha huri me visse tão belo como um velho gato no miar dos cios da sua gata. E dos inevitáveis miaus fazer as unhas da gataria em irrefutáveis ilações arranhar telhados (ibid., p. 87) Assumindo plenamente a animalidade que justifica a existência do sujeito erótico, o sujeito poético desfaz-se das metáforas e expõe o corpo e os corpos no encontro amoroso e na realização do desejo: Na geometria das tuas nádegas minhas unhas aprendem o ritmo da arquitectura natural da curva. Deslizo nela s meu júbilo. Quem inventou a magia desse lado? E a quem cabe extinguir as nádegas se nelas há a geometria do mundo o homem busca os tons da parábola e a mulher não ignora esse destino? De nádegas o que o homem aprende 271 é estar nelas onde elas sabem jungi-lo no que são: amuleto nos olhos liturgia das mãos ou estar-lhes em cima. (ibid., p. 74) O jogo entre interdito e transgressão, definido por Bataille como um “paradoxo da liberdade sexual”, torna-se interessante na medida em que a transgressão revela o interdito; o que, antes, era mistério, declara-se nos atos transgressores: Somos admitidos no conhecimento de um prazer em que a noção de prazer se mistura ao mistério que expressa o interdito determinando do prazer ao mesmo tempo em que o condena. (...) a essência do erotismo é dada na associação inextricável do prazer sexual e do interdito. Nunca, humanamente, o interdito aparece sem a revelação do prazer, nem o prazer sem o sentimento do interdito. (BATAILLE, 1987, p. 100) Individualizando-se no verso, processo inequívoco de reconhecimento da subjetividade, o sujeito poético/ poeta transgride códigos morais e revela, pela vontade e ação de transgressão, o que se reprimia ou ocultava pelo interdito: SEXTO ANDAR Zé querido Não te esqueças de alugar um novo apartamento dizia a carta dela. Aluguei-lhe uma nova flat e comprei-lhe um jogo de lençóis para estender na cama nova. Fui lá com a sua melhor amiga e os dois no sexto andar do prédio minuciosamente estreámos também os lençóis. (PE, p. 72) Ao se estabelecer como sujeito erótico, o sujeito poético evidencia o objeto do desejo, o qual, segundo ainda Bataille, “não é todo o erotismo, mas é atravessado por ele”. (BATAILLE, 1987, p. 122) À mulher, fonte de desejos e prazeres, dedica o poeta certo lirismo, em que o erotismo 272 reinaugura-se como gênese: Após a grande tarefa maior dilema de Deus era a obra inacabada. Ante o stress divino a monotonia celestial e a lengalenga dos homens uma silhueta de mulher completou a lacuna do Universo. (PE, p. 82) José Craveirinha insere a velhice na temática do erotismo. Uma recusa ao tempo e à idade que desgasta o ser se revela no desejo que não arrefece. Em “25 Unhadas às Gatas”, são três os poemas que anunciam a incômoda verdade: a chegada da velhice. Em “Que se Lixe”, os versos especulares do rosto participam ao leitor que o sujeito, agora, defronta-se com o tempo nas marcas do seu rosto: Os caracteres hieroglíficos inscritos no papiro do meu rosto todos os dias contam histórias ao meu ouvido. (...) A bigodeira grisalha arrelvando o lábio de cima enquadrava-se no nariz em jeitos de exórdio como pô-las aos berros até baterem os joelhos no tecto. (ibid., p. 83) (...) De forma surpreendente, o poema não se conclui em melancolia. Ao contrário, o sujeito poético rebela-se contra sua própria enunciação, pela qual construía uma subjetividade fundada no pesar de si mesma: (...) Porra para a poesia! Que se lixe se não acabo agora mesmo esta merda! Acabei ou não acabei? (ibid.) Que atitude decorre destes versos? De que forma nos será anunciado, a partir de então, o sujeito de Craveirinha que se reconhece velho, mas parece, a supor pela voz insurrecta, que 273 não aceita a proscrição do sujeito erótico? As dúvidas cessam com o poema “Coitadinho deste Velho”, o qual contrapõe a incontestável velhice com o desejo pela promessa sexual das mulheres jovens, sem esconder a ironia e irreverência com que trata a matéria de sua suposta angústia : Soturno atlas orográfico similar de rugas é meu ex-líbris de avô. Em abusos do débil ancião belas adolescentes argutas sempre que podem corrompem a paz deste velho. (ibid., p. 84) Por fim, o sujeito lírico de Craveirinha, em Poemas Eróticos, não deixa dúvidas sobre a recusa ao envelhecimento. E parece ser mesmo a ironia seu recurso para não ceder à inexorabilidade do tempo: AINDA Me recuso a ser um solitário aposentado ancião cabisbaixo na foz do rio da vida. Eu aquele jovem ainda corrompível sessentão 274 a ciciar às meninas subentendidos «até logo» de despedida. O sigiloso etcetra vem depois. (ibid., p. 85) Interstícios de José Craveirinha, seus poemas eróticos dão-nos uma outra imagem do poeta revolucionário, e surpreende- nos, por ser, também este Zé, admirável e encantador 275 8. FIM DA TRAMA POÉTICA: O QUE FICOU DO “EU” E DO “OUTRO” Palavras? Sim. De ar e perdidas no ar. Deixa que eu me perca entre palavras, deixa que eu seja o ar entre esses lábios, um sopro erramundo sem contornos, breve aroma que no ar se desvanece. Também a luz em si mesma se perde. (Octavio Paz) Alguns signos, em especial, planearam a realização do estudo que empreendemos sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha. Percorreram o texto científico elaborado os sons e as formas da alteridade e da subjetividade. “Eu”, “Outro” e diversos signos que derivam dessa relação e imprimem vida ao fazer literário foram identificados, categorizados, redimensionados para além de seu estatuto original. E, não raro, escaparam à compreensão primeira, exigindo uma revisão da idéia proposta. Um longo percurso se anunciava. A realidade, o caminho mais seguro, inicia a jornada. A revisão da teoria proposta por Erich Auberbach forneceu, mais do que a segura e confiável pesquisa da fortuna crítica sobre Drummond e sobre Craveirinha, possibilidades de leitura dos poemas que se aliam a um pensamento político-ideológico. O homem e suas experiências formaram os textos realistas. Os temas mais comuns e a expressão da vida cotidiana possibilitaram que figurassem na poesia de caráter realista o homem do povo e os sonhos de que se nutriu sua parca existência. Todavia, mais do que revelar o “outro” no texto poético, a percepção literária desses seres mundanos revelaram o “eu”. Surpreendente paradoxo: o criterioso desenho de quem está à parte do sujeito, constituído na realidade que se observa, acaba por revelar a subjetividade de quem se pensava oculto no ser alheio. E se não se identifica, na leitura isenta de perscrutação, o sujeito que dá escopo ao verso, é porque, na forma e no método, no conteúdo e na dinâmica, o poema se consagra ao 276 “outro”. Assim é a poesia de Drummond, poeta que, durante décadas, consolidou a primazia da alteridade. E tal compromisso, inúmeras vezes, o fez desistir até mesmo das ideologias que precipitaram o texto na conformação da insurgência dos discursos, somente para realizar a identificação do ser único que necessitava de sua voz poética para existir. Muitas outras vezes, no entanto, na poesia drummondiana constata-se o desejo, a fo rça revivescente de um sujeito poético que parece acreditar ser possível modificar a realidade, refazer o mundo; e que promete ajudar a destruí-lo, mesmo que tenha de recorrer à elaboração estética do verso e da existência. Então, este sujeito deixa-se apreender mais facilmente no ato de leitura. Craveirinha traçou um caminho similar para sua poesia realista. No entanto, deve-se destacar que um dado diferencia os dois autores, e que não pôde ser desprezado na investigação de seu projeto literário: a realidade que expressa foi vivenciada, intensamente, pelas condições sociais que lhe foram impostas. Assim, Craveirinha não precisou outrar-se com a mesma gravitação intelectual que delineou a poesia de Drummond. Foi o próprio objeto de seus textos. Portanto, a subjetividade que engendra o verso nasce espontânea das formas literárias. Fala do “eu” quando fala do “outro”. Se a estesia dos versos está presente na poesia de Drummond, reconstruindo a realid ade para trazer à luz o homem comum, em Craveirinha a própria realidade se define por uma estética que se impõe ao poema. A oralidade, os ritmos e as cores várias pertencem ao unive rso que o escritor africano resgata. A repetição estilística, que em Drummond é objeto de estudo, em Craveirinha é percepção sensorial. Todas essas vias de estruturação da realidade exigem do leitor que ele seja partícipe dos elementos tangíveis ou apreensíveis pela capacidade intelectual. É necessário um conhecimento da realidade que se tematiza, com suas referências históricas, sociais e políticas, e da 277 subjetividade que joga com essas referências, possibilitando novas interpretações do signo fundado na realidade. O recurso de que dispõe o leitor para o exercício de interpretação que se impõe à leitura é a linguagem utilizada pelo poeta. O signo que se agrega à realidade, que lhe parece inerente, na verdade assim o é porque antes houve uma consciência sócio- ideológica que investiu esse mesmo signo de realidade, quando, por efeito dessa consciência, estabeleceu-se uma oposição com outro signo apreendido do real. A palavra, portanto, assegura a análise que leva à compreensão das ideologias ? e, especificamente no caso de Drummond e de Craveirinha, segundo o estudo que propomos, à ideologia marxista ? que conferem ao poema o estatuto de literatura realista e, em decorrência, o de poesia social.A consciência sócio-ideológica de que falamos, entretanto, somente se vincula à realidade porque, antes, houve a intervenção de uma consciência individual. E é essa consciência que permite, mais uma vez, que a subjetividade estruture a linguagem que produz o texto poético e elabore a representação da realidade. Caminhos vários são, por conseguinte, traçados pelos dois poetas. Alterid ade/subjetividade, não obstante fossem, por si só, conceitos deveras complexos, a genialidade dos poetas estudados planificou atalhos que poderiam passar despercebidos em uma leitura menos atenta. O “eu” e “outro” em configuração dialética; o “eu” e o “outro” que converge m em “nós”; o objeto que se constrói no sujeito; o apagamento do sujeito para elaboração do “outro” e, em movimento contrário, o alijamento do “outro” para a consagração do “eu”: vias de percepção e análise que exigiram não apenas o amparo de teorias diversas como também um entendimento do texto que se estendesse para além dos saberes formalizados. Palavras entretecidas e conceitos explanados, o estudo da subjetividade e da alteridade na poesia de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha revelou mais do que prometiam as primeiras análises. Muitos brasis e muitos moçambiques foram surgindo como os desenhos de uma trama que se constrói lentamente, seguindo o ritmo das mãos artífices: geo- 278 grafias, gentes, formas, culturas. Muitos carlos e muitos zés se apresentaram em versos que usaram todos os recursos de linguagem para se tecer: meninos, mulheres, homens, operários, guerreiros, guerrilheiros, memórias, corpos. Partindo do conceito estabelecido de “poesia de intervenção” ou “poesia revolucionária”, foi possível identificar um Drummond consciente de seu tempo e de seu espaço social. Atento aos fatos e aos homens, o poeta elaborou sua arte na realidade que perscrutava, mas que não aceitava em sua plena exatidão. Então, faz-se o verso desterrado do sonho, desabitado dos palácios do lirismo, desnudo dos véus utópicos. Por outro lado, se uma utopia é, de fato, um sonho ainda não realizado, o verso insiste na denúnc ia, e por conseqüência, na esperança; não desiste, não se aliena. Quanto à Craveirinha, traduziu a palavra possível para desfazer o que nem conseguia apreender como realidade, de tão insólito e violento era o mundo que lhe fora apresentado. Difícil se tornava, assim, espelhar-se no verso empreendido. A realidade, por demais pesada, obstruía intenções subjetivas, porque o poeta mesmo teve impossibilitados os projetos de elaboração do eu. Criado entre duas nacionalidades, entre duas realidades, duas mães, dua s línguas, Craveirinha precisaria de tempo para construir a própria identidade. Até porque, quase todos os dias de sua existência foram dedicados a ajudar a construir a identidade de seu país. Assim, à complexidade da poesia uniu-se o intrincado processo histórico vivenciado por cada um dos autores. O “outro”, por diversas vezes, constituiu-se como aquele que deveria ser aniquilado, homem ou ocorrência, político ou miséria, colonizador ou guerra colonial. Nesses casos, o sujeito poético distanciou-se do “outro”, e, não raras vezes, fez valer o “eu” com todo o vigor de sua enunciação. Assim, a identidade do sujeito poético reclama no verso a vigência a que tem direito. Outrossim, há que se notar que, mesmo nesse movimento de criação ocorre alteridade, porque o “eu” que surge, muitas vezes autobiográfico, representa uma voz coletiva. 279 Aprazimento maior, porque exercício de análise mais dificultoso, foi desvendar a ambígua relação entre o “eu” e o “eu” que se coloca, em diversos momentos, na posição de “o utro”. O duplo, figura tão fértil em toda literatura, surge quase sempre para contestar o “eu”, rever suas ideologias, criticar suas posições políticas, desmitificá- lo no que se pensava excelente. O sujeito poético torna-se por vezes cruel e ameaçador, por vezes sereno e fraternal, mas sempre instigador da consciência de um “eu” que adejava entre o sonho e a frustração do sonho. De que ideologias se nutriram os autores para consolidar sua s vozes poéticas, talvez seja o que de menos fundamental se nos apresentou no exercício de análise. Evidentemente, sendo necessário partir de um lugar na História do pensamento, o marxismo, de imediato, afigurou-se como mais apropriado aos falares poéticos. Isso, deixemos claro, porque na poesia de Drummond e de Craveirinha estão os que foram relegados historicamente e que os poetas, por consciência social e política, resgataram e elege ram como objetos de seus textos. Todavia, nem de longe tal projeto se consolidou como transição entre o fazer literário e o fazer políticorevolucio nário. Em nenhum instante, o verso cedeu o lugar da beleza estética ao discurso engajado. Por isso, o “outro” que se fez no poema é belo em sua feiúra; magnífico em sua insignificância; esplendoroso em sua obscuridade; sublime em sua vileza. O “outro” que se fez no poema pôde expressar suas dores sem o medo de ser tolhido pelo gesto impaciente; pôde expressar sua indignação sem o medo da censura. O poeta nem bem se projetou como sujeito poético e já decantou-se para elevar no texto a voz do “outro”. Libertou-se o “outro” por sua voz? Talvez sim, talvez não. Adquiriu consciência o “outro” por sua palavra? Possivelmente, não. O que ficou do “outro”? O enriquecimento do leitor, certamente; e a beleza sem par de se descobrir, na imagem que se nega, cotidianamente, aos olhos, existências de insuspeitado valor. O poeta revelou-se pelo “outro” que pretendeu revelar. Porque, intrinsecamente ligado 280 a esse “outro” que se intentava no poema, estava um sujeito que, ao não se pensar, subliminarmente registrava em cada signo escolhido para descrever ou evocar seu objeto a sua mais verdadeira emoção. Coube, então, à análise, edificar esse sujeito que se pensava em isenção: em Drummond, o intelectual comovido; em Craveirinha, o revolucionário afetuoso. Em ambos, um sujeito disposto a se ausentar da própria existência para sobrelevar o “outro” que se ausentara da realidade. A linguagem acedeu aos ditames da ideologia e fez a trama de signos que notificaram um mundo perverso, no qual as diferenças sociais determinam todas as angústias e, por dor extremada, a morte. No entanto, os poetas Drummond e Craveirinha condicionaram à palavra ideológica o engenho com que transformaram o texto em arte de som, de imagem e de vontades insurretas. Ficarão do “outro”: a dor e a dignidade; o medo e a perseverança; a torpeza e a nobreza; a infâmia e a sublimidade. Ficará do “outro” a criação poética que pensou a existência mais justa, mais verdadeiramente humana. Porém, longe de pôr termo à aventura analítica, eis que surgem, das figuras tenazes de Carlos Drummond de Andrade e de José Craveirinha, insuspeitados sujeitos. Em seu percurso poético, os dois autores houveram por bem olvidar do signo o discurso contundente e arriscarse nos sinuosos caminhos do discurso erótico-amoroso.Nesse momento, o investigar se acautela, o leitor estranha e se encanta. Somente a agudez do pensamento científico evitaria que o estudo se desviasse pelos caminhos do deleite. Conhecer a si mesmo, cuidar de si mesmo. Tal proposta de retorno à subjetividade revivesce o labor científico ao apresentar possibilidades outras de reconhecimento da literatura de Drummond e de Craveirinha. Curiosamente, os dois poetas, entre tantos percursos literários que poderiam ter servido a um sujeito que necessita colocar-se em evidência, escolheram o sentimento amoroso e seus códigos de construção ideológica e representação tangível. Vis- 281 cerais, alma e corpo engendram o amor que se impõe e reinventa o sujeito. Uma voz melancólica, manifesta na poesia de Drummond e de Craveirinha, se faz notar de imediato. Falar de amor exige tom baixo, nuances delicadas, matizes suaves nas tramas sígnicas. O amor evidencia-se sem disfarces: traz dores e delícias. O leitor fica perplexo; o analista, cauteloso. Todavia, o texto desvela o sentimento, sem qualquer possibilidade de engano. A experiência poética alia-se à experiência humana e os enérgicos poetas entregam-se à comovente criação de um sujeito que vive com intensidade todos os estados amorosos, gradativamente, até aportar na plena idade, na maturid ade. É quando um sujeito conhecedor da vida avalia seus erros, mas não abre mão das esperanças. Expõe uma perturbadora subjetividade, aniquiladora das formas e conceitos identificáveis pelo estudo teórico. Dissipam-se dúvidas renitentes em relação à subjetividade, porque o corpo surge em plena nudez e aspiração à condição de sujeito do poema. O texto erótico, assim, revela o desejo ocultado e as delícias até então não experimentadas no fazer poético. O corpo em Drummond e em Craveirinha nomeia-se, impõe-se, decifra-se. O corpo é sujeito do poema e exige toda a encenação de seus atos e manifestação de suas vontades. Erotismo, sexualidade, animalidade latente; interdição e transgressão; conhecimento de si e do outro amado; disposições mentais e saberes intelectuais. As teorias todas se completam para dar conta das tramas do corpo, das quais emerge um sujeito erótico. O que ficará do sujeito que se intentou nos poemas de Drummond e de Craveirinha? Libertaram-se os poetas pela revelação amorosa? Refizeram-se os homens no exercício da subjetividade? A atitude refratária propõe ao leitor a consagração de um outro Carlos Drummond de Andrade? de um outro José Craveirinha? Certamente, não. Nossos poetas continuarão sendo aquelas vozes de luta e consciência social a que já nos acostumamos. Nós os teremos sempre nas prateleiras das estantes e da memória e nos estudos acadêmicos como os poe- 282 tas maiores de seus respectivos países, vozes emblemáticas que souberam, como ninguém, ceder sua existência ao “outro” e transformar sua arte em ato de resistência. No entanto, restará sempre a vontade de saber um pouco mais sobre o interstício na vida de cada um deles, proposto no desenho do corpo e na liberdade da mente. Um sujeito que se desvela ao leitor sem os escudos ideológicos a que estiveram submetidos ao longo de suas vidas literárias. Em Drummond e em Craveirinha encontram-se caminhos de alteridade e subjetividade; delineiam-se espaços da realidade e do desejo; reconstroem-se saberes que não devem permanecer cristalizados no comum do pensamento crítico. De Carlos Drummond de Andrade: “O que eu escrevi não conta. O que desejei é tudo”. De José Craveirinha: “A minha culpa é ter no meu íntimo a fraternidade dos homens invocando a religião do amor e da igualdade”. De Drummond e de Craveirinha a lição maior: ser “outro”, quando não é possível desligar-se do mundo; ser “eu”, quando é necessário religar-se à própria existência. Ser um poeta que se sabe o “outro”, e ser sujeito que clama, de sua essencialidade, o direito de amar e de desejar. 283 BIBLIOGR AFIA ⋅ Corpus 1. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 2003. 2. CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980. 3. ______. Maria. Lisboa: Caminho, 1998. 4. ______. Obra poética I. Lisboa: Caminho, 1999. 5. ______. Poemas da prisão. Lisboa: Texto Editora, 2004. 6. ______. Poemas eróticos. Maputo: Moçambique Editora, Lisboa: Texto Editores, 2004. ⋅ Obras Gerais 1. ABDALA JUNIOR, Benjamin. “Antônio Jacinto, José Craveirinha, Solano Trindade – o sonho (diurno) de uma poética popular”. in: I encontro de professores de literaturas afr icanas de língua portuguesa – repensando a africanidade. Laura Cavalcante Padilha (org.). Niterói: Imprensa Universitária da UFF, 1995. p. 77-86. 2. ______. De vôos e ilhas – literatura e comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. 3. AGUESSY, Honorat; DIAGEE, Pathe. 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