Ordem política e fundamento social: o lugar do povo como elemento legitimador de uma
Constituição no pensamento político de Raymundo Faoro
Elton Bruno Amaral de Oliveira1
Resumo: Este trabalho tem o objetivo de verificar, no estudo de Raymundo Faoro sobre o constitucionalismo em sua
acepção moderna, especificamente no caso brasileiro, as formulações do autor no que diz respeito ao fundamento que
garante a legitimidade de uma Constituição. Acompanhando de bem perto a tipologia constitucional que faz o autor,
verificamos que, segundo ele, uma Constituição verdadeiramente política é aquela capaz de articular o elemento popular
– o povo –, entendido como fundamento social, a Constituição – a ordem política –, entendendo-a como o documento
pelo qual um regime democrático representativo é manifesto.
Palavras-chave: Raymundo Faoro; constitucionalismo; legitimidade; povo.
1. O descompasso entre país real e país legal
É no ensaio Assembleia Constituinte: a Legitimidade Resgatada (1981) que encontramos as
formulações de Raymundo Faoro a respeito da legitimidade do poder constitucionalmente
constituído, numa reflexão que se considera, segundo Fábio Konder Comparato, como “um dos
mais instigantes estudos sobre a tradicional disfuncionalidade das constituições entre nós”2. O
objetivo de Faoro, nesse texto, será mostrar que a legitimidade de um regime constitucional em sua
feição moderna fundamenta-se no Poder Constituinte quando originário do povo.
É importante lembrar que, em 1978, Faoro profere um discurso como presidente da OAB
cujo título é “O Estado não será o inimigo da liberdade3” que, segundo Márcio Thomaz Bastos,
trata-se de “uma das peças mais altas da oratória brasileira”, por nele estar presente o “discurso
republicano” (BASTOS, 2009, p. 28), uma vez que sua preocupação central repousava na causa da
liberdade, da democracia e do Estado de Direito. Após deixar a OAB, Faoro publica Assembleia
Constituinte: a legitimidade resgatada que, para Giselle Cittadino, passa a ser texto fundamental,
pois
1
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba, mestre em Sociologia pela mesma
instituição e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa
Catarina. Email: [email protected]. Bolsista Cnpq.
2
COMPARATO, “Prefácio”, in _____. A República Inacabada. São Paulo: Globo, 2007, p. 18.
3
Publicado em: FAORO, Raymundo. “O Estado não será o inimigo da liberdade”. In: Anais da VII Conferência
Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil: o Estado de Direito. Rio de Janeiro, OAB/Conselho Federal, 1978, p. 4651.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 representa, no período que antecede a convocação da Assembleia, o texto de
referência dos constitucionalistas brasileiros. Todas as discussões sobre forma de
convocação, processo de funcionamento e eficácia da Constituinte estarão
balizadas por esse texto. Por meio dele, Raymundo Faoro colabora para que não
prospere a ideia de que uma grande reforma ou revisão constitucional permitiria a
reconstrução do Estado de Direito no país. “Não se remenda roupa podre com pano
novo”, dizia Faoro, nos recordando que nenhuma das reformas constitucionais
feitas no passado havia contribuído para a garantia da liberdade e da legalidade
(CITTADINO, 2009, p. 36).
De fato, é comum na bibliografia referida à instalação do Estado moderno no Brasil a
insistência em denunciar o descompasso entre o “Brasil real”, aquele a que estamos constrangidos
em nossas relações sociais de existência, e o “Brasil legal”, feito para “inglês ver”. O último
consagraria constituições escritas em que vigoram valores como a igualdade e a liberdade apenas
como ficções e abstrações jurídicas, de caráter meramente formal, apartando-se por completo do
primeiro, o “Brasil real”, em que a letra da lei só vale como justificativa jurídica de dominação
política de uma minoria privilegiada. A cisão entre os dois “Brasis”, no dizer de Faoro, equivaleria
a
construir com a lei bem elaborada num momento e, noutro, vítima de pressupostos
diversos, com o planejamento, tão decorativo, em certos casos, como a ordenança
meticulosa [o “Brasil legal”]. A legalidade teórica apresenta [...] conteúdo diferente
dos costumes, da tradição e das necessidades dos destinatários da norma [o “Brasil
real”] (FAORO, 2008, p. 832-33).
É o jurista ainda quem fala em tom crítico, referindo-se à leitura que se faz dos “dois brasis”:
A oligarquia esclarecida, sobranceira aos extremos, de boas maneiras, emoldurada
no poder Moderador, com um chefe neutro e superior às facções internas, contra,
na outra ponta, a tirania potencial, popular na origem, anárquica no fundo. Um
terceiro termo, territorial e federal, seria inexequível e resvalaria para o segundo
termo, se não sustentado por um centro nacional e dirigente, educador e de
autoridade, sobrepondo ao país real – o inorgânico – o país oficial do patronato,
aristocratizante ou elitista (FAORO, 2007, p. 163, grifos nosso).
Esse descompasso tem raízes históricas.
Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves afirmam que, por ocasião
da restauração da monarquia portuguesa iniciada em 1640, houve a predominância da “linguagem
de um constitucionalismo antigo”, apoiada pelos jesuítas ligados a vertentes da segunda escolástica
(NEVES e NEVES, 2009, p. 66).
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Essa concepção antiga de constitucionalismo4, próxima aos princípios cristãos, passaria a ser
influenciada pela linguagem absolutista. É por essa ocasião que teria sido substituída a antiga ideia
de pacto, fundamentada no direito divino dos reis, pelos “imprescritíveis direitos do soberano, até
mesmo diante da Igreja, sob a forma de uma razão de Estado” (NEVES e NEVES, 2009, p. 66).
Afirmam os autores: “Essa foi a linguagem do absolutismo, que, ao reservar para o soberano o domínio da
política, relegou as questões morais para o foro íntimo do indivíduo, estabelecendo uma divisão entre homem
e súdito” (NEVES e NEVES, 2009, p. 66).
Em Portugal, seguem os autores, essa linguagem absolutista permanece envolta na tradição do
antigo constitucionalismo. Assim, não teria sido por meio de eleição, nem tampouco por vontade
popular, que o rei chegara ao reinado, antes através de conquista e sucessão. Neste caso, o pacto
social seria entendido como apenas existente na imaginação dos filósofos, “não havendo, entre o
súdito e o monarca, senão a ‘eventual humilde e modesta representação’ do primeiro ao segundo”
(NEVES e NEVES, 2009, p. 67).
A ideia de constituição, no curso desse longo período, entendida como “a unidade política de
um povo”, demonstra a pobreza “lexicográfica luso-brasileira”. Alegam ainda os autores que
no início do século XVIII, a palavra [constituição] significava “um estatuto, uma
regra”, na perspectiva de um ordenamento político, pautado nas leis fundamentais
do reino, resultado das disposições legais e da prática do direito consuetudinário,
corporificadas na “antiga constituição”, que deviam ser respeitadas pelo soberano
(NEVES e NEVES, 2009, p. 69).
Assim, esses indícios sugeririam outro uso do vocábulo ‘constituição’, principalmente no
plural e mais difundido na época. O termo, correntemente utilizado nos meios eclesiásticos, servia
para “designar o conjunto de leis, preceitos e disposições que regulavam uma instituição como seu
estatuto orgânico” (NEVES e NEVES, 2009, p. 69).
O constitucionalismo moderno estabeleceu-se, segundo os autores, com a Independência dos
Estados Unidos e a Revolução Francesa. Neste momento, o termo Constituição passou a “significar
a garantia dos direitos e deveres, estabelecidos por um novo pacto social, elaborado entre o rei e o
indivíduo” (NEVES e NEVES, 2009, p. 70). Desse modo, o termo constituição teria adquirido a
4
Vários sentidos da palavra Constituição na tradição luso-brasileira, são discutidos por Lúcia M. Bastos Pereira
das Neves e Guilherme Pereira das Neves, em “Constituição”, verbete do Léxico da história dos conceitos políticos do
Brasil, organizado por João Feres Júnior. Editora UFMG, 2009, p. 65-90.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 “forma de um 'sistema fechado de normas', que designa uma unidade que não existe concretamente,
mas apenas de maneira ideal” (NEVES e NEVES, 2009, p. 70).
Tal concepção de constituição teria ingressado no Brasil por volta de 1820, com a revolução
do Porto. Foi então que novas ideias e novas práticas políticas, ainda desconhecidas na colônia
portuguesa, introduziram-se no país, emprestando à palavra constituição novos significados
anunciando princípios, e definindo direitos e deveres do cidadão (NEVES e NEVES, 2009, p. 70).
Só uma constituição era considerada capaz de tornar efetivas as práticas liberais, constituir fazendose um “instrumento de ideário político” (NEVES e NEVES, 2009, p. 70). A palavra constituição,
então, traduzia o que os membros das elites – política e intelectual – brasileiras e portuguesas
almejavam. A elaboração da constituição – “lei fundamental de um povo” – ficava a cargo de uma
assembleia formada pelos representantes da nação. Em Portugal, seria feita pelas Cortes Gerais e
Extraordinárias de 1821. No Brasil, aguardava-se a ação de uma Assembleia Legislativa e
Constituinte, convocada após a Independência, em 1823.
Os autores ressaltam quatro vertentes importantes que inspiravam o conceito de constituição
por esse período: “a de um constitucionalismo histórico; a de Monstesquieu; a de Benjamim
Constant; e a de uma versão democrática” (NEVES e NEVES, 2009, p. 71). Vejamos.
A expressão de Hipólito da Costa (uma “excelente Constituição Antiga de Portugal”) dá bem
o tom do que seria esse constitucionalismo histórico. Essa vertente apelava para reformas que
fossem capazes de levar de volta à antiga ordem, corrompida pelo tempo. Seu fundamento residiria
no “direito comum do passado” que criara um “conjunto de instituições”, pelo qual se definiria, à
época, constituição.
A segunda vertente, de inspiração montesquieuriana, tem dois pés: 1) é calcada no princípio
da separação dos poderes, de um lado; 2) e, de outro, também é influenciada pela versão do
constitucionalismo histórico na visão de instituir um “corpo de leis” que nos antecede e que marcam
os costumes de uma nação. Para esta vertente, a constituição é o lugar onde se declaram as leis
fundamentais de um Estado, seu sistema de governo baseado na divisão dos poderes. Nela – na
constituição – também estariam definidos os direitos concernentes aos cidadãos, bem como os
princípios que regulariam as ações dos deputados do povo no legislativo.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 A terceira vertente baseava-se na defesa das garantias individuais, opondo-se a Rousseau5 e a
“interpretação jacobina de uma vontade geral” (NEVES e NEVES, 2009, p. 72). Para o folheto
publicado em 1821 (a Constituição explicada, sem autoria), citado pelos autores do verbete, a
“Constituição não era um ato de hostilidade, mas um ato de união que determina as relações
recíprocas do monarca e do povo, sancionando os meios de se defenderem e de se [apoiarem] e de
se felicitarem mutuamente” (NEVES e NEVES, 2009, p. 73).
Chegamos, por fim, à quarta vertente, chamada de democrática. Esta constituição democrática
não se definiria pela letra da lei ou por constituir um código de leis. Uma constituição exige,
pensavam seus defensores (Januário da Cunha Barbosa e Joaquim Gonçalves Ledo), algo anterior:
“era necessário que o povo existisse e estivesse constituído, antes de se organizar; que os homens já
tivessem se tornado ‘cidadãos por um pacto antes de se fazerem súditos pelo estabelecimento da
lei’” (NEVES e NEVES, 2009, p. 73, grifos meus). Para tanto, a proposta apelava para uma
convenção permanente e imutável, cujo objetivo seria o de assegurar aos membros desse corpo
político o pleno exercício de seus direitos. O que queriam os proponentes deste modelo
constitucional era a garantia de que a vontade do monarca não se sobrepusesse à dos cidadãos e,
para que isto não ocorresse, a lei deveria ser flexível.
Os princípios dessa vertente de teor democrático também se faziam presentes nas propostas de
Frei Caneca (Pernambuco), para quem a constituição era entendida como a “ata do pacto que fazem
entre si os homens, quando se ajuntam e [se] associam para viver em reunião ou sociedade”, de
modo a bem definir as relações entre governantes e governados, isto é, os direitos e deveres pelos
quais estariam garantidos a vida, a liberdade e a propriedade dos cidadãos (NEVES e NEVES,
2009, p. 74).
Para Neves e Neves, todas essas acepções estiveram presentes na elaboração de nossa
primeira Constituição. É sabido que a dissolução da Assembleia em 1823 e a outorga por D.Pedro I,
em 1824, da Constituição redigida pelo Conselho de Estado em 1824, e prometendo uma carta
ainda mais liberal que aquela ordenada pelos constituintes, foram justificadas alertando-se para um
suposto “perigo que rondava a pátria”.
5
Aproximaremos, mais adiante, alguns temas presentes em Rousseau que, também, estão presentes em
Raymundo Faoro.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 A Carta outorgada, não buscando origem na representação da nação, se aproximaria, para os
autores do verbete, da Carta francesa de Luís XVIII, de 1814. Também era significativa a influência
da Constituição francesa de 1791 e a espanhola de 1812. Como esta última, a brasileira iniciava
“definindo o Império, com seu território, governo, dinastia e cidadãos”, ao invés de começar
declarando direitos, como o fizeram as revoluções da segunda metade do século XVIII.
A Constituição de 1824 aceitava um “governo monárquico e hereditário, constitucional e
representativo (Artigo 3º)”, garantia a separação dos três poderes, tal qual proposto por
Montesquieu, e introduzia o poder moderador, ‘chave mestra de toda a organização política’,
denotando a influência teórica de Benjamin Constant. A soberania, embora o texto não seja quanto
a isso explícito, “era partilhada entre o soberano e a Assembleia Geral, o que indicava seu caráter
moderado”. Havia nela, também, um esboço relacionado à garantia dos direitos civis e políticos dos
cidadãos, no Artigo 179, princípios calcados na noção de liberdade, segurança individual e na
propriedade – marcas da presença do liberalismo francês.
De fato, é possível notar, segundo os autores do verbete, na Carta de 1824, em seus artigos 9 e
16, certa proximidade com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O Artigo 9
afirmava que “a harmonia dos poderes políticos aparecia como o meio mais seguro para fazer
efetivas as garantias que a Constituição oferecia” (NEVES E NEVES, 2009, p. 78), embora, no que
se refere aos direitos políticos, se introduzisse uma distinção entre os cidadãos eleitores, expressa
pelo voto censitário. Já no Artigo 16, definia-se a garantia dos direitos civis como atribuição da
Constituição.
Embora a Carta de 1824, seguem os autores, abolisse os privilégios, a questão da escravidão
permanecia intacta. Incluía indiretamente os “ingênuos ou libertos nascidos no Brasil como
cidadãos, excluindo-os, porém, da definição de eleitores” (NEVES e NEVES, 2009, p. 78).
Ademais, a religião católica permanecia sendo a religião oficial do Império, o que indicaria as
permanências do Antigo Regime, muito embora fossem autorizados permitido exercer outros cultos
em foro privado.
A Constituição outorgada de 1824 foi considerada o “código sagrado da nação brasileira”.
Apontou-se, porém, entre os políticos mais radicais, críticos da forma política que assumia a jovem
nação, seu caráter excessivamente moderado e o estabelecimento de uma administração fortemente
centralizada, de que a outorga era clara expressão. Posteriormente, algumas alterações foram feitas,
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 como a introdução do Ato Adicional de 18346, e mudanças relativamente significativas quanto à
forma do processo eleitoral, vigorando, porém, a mesma Carta por todo o período imperial, até a
promulgação da Constituição republicana em 1891.
2. A tipologia constitucional de Raymundo Faoro
Seguindo o referido artigo, iniciamos por apresentar os tipos de Constituição, para
acompanhar, em seguida, a questão proposta pelo jurista: o que é uma “verdadeira Constituição”?
Faoro busca compreender o que seria a essência de uma Constituição. Nos passos do socialdemocrata Ferdinand Lassalle7, que enfrentou o tema e tentou respondê-lo em conferência sobre os
problemas constitucionais prussianos, Faoro introduz seus argumentos buscando definir o que é
uma Constituição. Mas o que pretende o jurista brasileiro é destacar a disfuncionalidade do
constitucionalismo entre nós. O autor, então, destaca, então, cinco tipos de Constituição: 1)
Constituição em sentido social; 2) Constituição em sentido jurídico; 3) Constituição em sentido
semântico; 4) Constituição em sentido nominal; e 5) Constituição política.
A primeira, a Constituição Social – ou em sentido social -, tem sua origem na Antiguidade,
com Aristóteles. Segundo Aristóteles, a Constituição “diz: 1º de quem e de que espécie de pessoas
um Estado deve ser composto; 2º como deve ser governado para ser feliz e florescente”
(ARISTÓTELES, 2006, p. 105). Cada Constituição, relativa a cada forma de governo, influencia e
6
Para Faoro, a proposta do esquema visou “desmontar, pela descentralização, quase federativa, mas adversa à
federação, o centralismo bragantino, ao tempo que foge da fragmentação municipal. Obra de convicção liberal –
aproximar o governo do povo – e obra de contemporização – fugir do extremado federalismo, casado com ideias
republicanas. [...] Entre o fascínio norte-americano, que já cega muitos teóricos e parlamentares, e a pasmaceira lusomonárquica, prevaleceu a permanência do Poder Moderador, do Senado vitalício e a descentralização, esta a verdadeira
conquista dos moderados, descentralização que tocaria na estrutura política do edifício monárquico. Todas as reformas
teriam uma inspiração maior, que seria o seu limite: a união das províncias, desafogadas de opressivos freios, para
melhor garantir a integridade territorial. ‘Com muita cautela e até com muito medo’, as províncias não se volatizariam
num pacto, mas seriam departamentos de uma só unidade, sob o comando de um executivo forte, provisoriamente
concentrado na regência uma, filha da eleição popular. Os conselhos-gerais das províncias se elevam a assembleias
legislativas provinciais, mantida a nomeação dos presidentes. As províncias, embora desprovidas de autogoverno,
ganham o poder legislativo emancipado, com largas interferências e geral tutela sobre os municípios...” (FAORO, 2008,
p. 354-355).
7
Foi um precursor da social-democracia alemã, economista e advogado, ligado aos jovens hegelianos, membro
fundador da União Geral dos Trabalhadores Alemães (1863) que, embora inspirado nas ideias socialistas de Karl Marx,
apresentava um viés nacionalista que se distanciava da perspectiva internacionalista marxista. Foi defensor de uma
política de unificação alemã “a partir de cima” sob a hegemonia da Prússia reacionária. Sua política acarretou entraves à
ação da I Internacional, bem como à criação de um partido operário na Alemanha, posto que impedia o
desenvolvimento da consciência de classe dos operários. Participou ativamente da Revolução de 1848 em Düsseldorf,
tendo sido preso. Disponível em http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2074.html.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 modela o cidadão virtuoso8. Em Aristóteles, a constituição envolve assim um aspecto ético, a
origem da realização da felicidade do Estado e de cada homem em particular é a mesma9, e um
aspecto institucional: “A Constituição é a ordem ou distribuição dos poderes que existem em um
Estado, isto é, a maneira como eles são divididos, a sede da soberania e o fim a que se propõe a
sociedade civil” (ARISTÓTELES, 2006, p. 149). Para Faoro, tal acepção não esgotaria o sentido de
uma Constituição, pois apenas traduz e espelha fielmente as forças sociais e econômicas de um país,
mutilando a sua face moderna, pois não fixa um quadro de normas, coisa que só a Constituição
jurídica é capaz de fazer.
Embora assentada na Constituição social, a Constituição no sentido jurídico daria um passo
além da primeira. Caracteriza-se por ser hábil em ordenar, organizar e transformar uma realidade
em sistemas de valores, isto é, construir normas que controlam o poder dos governantes, ditam as
regras de funcionamento das relações entre os governados, e entre governantes e governados, e,
portanto, seria capaz de, a um só tempo, organizar a prática política e ditar as regras no campo do
dever ser: “A Constituição jurídica apela para o homem como agente da história, homem apto a
construir uma ordem política voluntária e consentida [...]”. Tal é o espírito, pensa Faoro, do
constitucionalismo moderno, “voltado para o controle do poder, com os freios impostos à discussão
dos governantes”. A Constituição no sentido jurídico, ao entender o homem como agente da
história, caracteriza-se como o “artifício despido de arbítrio”, marca da modernidade política
(FAORO, 2007, p. 172). Contudo, o sentido jurídico de uma Constituição é, para o jurista, ainda
insuficiente, pois nela apenas se inscreve uma formalidade jurídica nem sempre consonante com o
mundo social.
Um terceiro tipo de Constituição, a Constituição semântica não passa de um engodo,
Faoro.
segundo
Caracteriza-se por a) estabilizar e congelar o poder; b) não limitar, controlar ou frear o poder;
c) reduzir o poder em torno de grupos (na figura do ditador, junta ou partido).
A Constituição semântica “não é senão a formalidade escrita da situação de poder político
existente, para o exclusivo benefício dos detentores de fato do poder, que dispõem, para executá-la,
8
“Como é a própria virtude que, em nosso sistema, faz o bom cidadão, o bom magistrado e o homem de bem, e
como é preciso começar obedecendo antes de comandar, o legislador deve cuidar principalmente de formar pessoas
honestas, procurar saber por quais exercícios tornará honestos os cidadãos e sobretudo conhecer bem qual é o ponto
capital da vida feliz” (ARISTÓTELES, 2006, p. 65).
9
“É, portanto, claro que a fonte da felicidade é a mesma para os Estados e para os particulares”
(ARISTÓTELES, 2006, p. 64).
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 do aparelhamento coativo do Estado” (FAORO, 2007, p. 173). Ela não controlaria, limitaria ou
frearia o poder. Antes o concentraria, de forma centralizadora, nos “donos do poder” instalados na
pirâmide do mundo social. O que teríamos com esse tipo de Constituição, segundo a eloquente
metáfora de Faoro, é uma “roupa [que] não veste, mas esconde, dissimula ou disfarça” (Faoro, 2007,
p. 173).
Próxima ao sentido puramente “semântico” de certas Constituições, Faoro enxerga ainda a
Constituição nominal que, no dizer do jurista, possui o caráter de um manual educativo. No caso da
Constituição nominal, pode manifestar-se uma desarmonia entre a Constituição social e as normas
estabelecidas juridicamente. Vistas como prematuras, as normas serviriam, no presente, para educar
o povo; apenas com o tempo e, diante de condições reais, ela poderia vir a ser aplicada. O que está
implícito nesta concepção é a “menoridade do povo”, tido como incapaz de gerir a si mesmo. Neste
caso, o soberano é aquele responsável por ditar, por meio da Constituição, as regras pelas quais os
indivíduos deveriam alcançar a maioridade política. Eis a origem de um Estado tutelar: “o povo
quer a proteção do Estado, parasitando-o, enquanto o Estado mantém a menoridade popular, sobre
ela imperando” (FAORO, 2008, p. 832). Da Constituição nominal, afirma Faoro que a “roupa está
no armário, recortada e envolta em naftalina, pronta para ser vestida quando o corpo cresça e saiba
usá-la sem rasgá-la. Enquanto esse dia não chega, os detentores do poder mandam e desmandam...”
(FAORO, 2007, p. 173).
Na tipologia das Constituições apresentada por Faoro, há um último tipo, que aglutina dois
tipos anteriores (o social e o jurídico), dando-lhes feições apropriadas às constituições modernas: a
Constituição em seu sentido normativo, ou Constituição política. Nesta, não se trata de mera
formalidade jurídica, tampouco de uma falsa representação dos fatores reais do poder – as forças
políticas presentes na sociedade civil. Ela se aproxima do tipo nominalista de Constituição apenas
na medida em que estabelece um código jurídico. No entanto, o tipo normativo daria um passo
fundamental, qual seja o de se instituir na própria relação entre o fenômeno social e o jurídico,
numa ação recíproca, na qual as normas estabelecidas na Constituição garantiriam a sua
legitimidade. É ele quem nos diz:
A conjunção da face social à face jurídica da constituição, ao incorporar as
conquistas do constitucionalismo moderno, forma uma constelação moderna, que
dá a dimensão e a realidade de uma força política. Deve-se atentar, na relação entre
o fenômeno social e o fenômeno jurídico, para o que Hegel denomina ação
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 recíproca: a causa não só tem um efeito, mas o efeito se comporta para com ela
mesma como causa. A sintonia das normas constitucionais e a realidade do
processo do poder, entendido este na sua expressão real, asseguram a legítima
autenticidade da constituição normativa, distinguindo das constituições nominais e
semânticas (Faoro, 2007, p. 172).
Segundo o jurista, esse tipo de Constituição – normativa – estaria perfeitamente integrado à
sociedade, e seria juridicamente válida justamente por estar em consonância com a sociedade civil,
“em perfeita simbiose, sem discrepância na sua prática, entre os detentores e os destinatários do
poder, em leal observância” (FAORO, 2007, p. 172). Seria apenas neste caso que se poderia falar
em uma Constituição normativa, pois seus preceitos seriam capazes de dominar todo o processo
político. Este mesmo processo se adaptaria às normas da constituição, submetendo-se a elas. Nesse
caso, a Constituição, diz Faoro retomando a metáfora, “é a roupa que se ajusta bem e que realmente
veste” (FAORO, 2007, p. 173).
3. O Constitucionalismo Moderno em Faoro
É o “exercício real do poder revestido pela forma jurídica” que define e expressa a essência
do fenômeno político constitucional, para Faoro. Seu lado inverso seria a autocracia, cujo exercício
do poder se dá pelo arbítrio de um ou de alguns grupos, sem freio e sem nenhum controle por parte
dos subordinados. Portanto, o constitucionalismo moderno não é e não poderia ser “reduzido a mero
utensílio verbal, espécie de homenagem da força ao direito, da mesma maneira que a hipocrisia,
segundo um moralista, é a homenagem que o vício presta à virtude” (FAORO, 2007, p. 174).
Para a modernidade política, a ideia básica de constitucionalismo radica na concepção de
divisão do poder. A tese consiste na ideia de separação dos três poderes – Executivo Legislativo e
Judiciário –, adotando, assim, um sistema de freios e contrapesos, por meio do qual os poderes se
controlariam mutuamente. Por meio da divisão do poder, o constitucionalismo torna-se capaz de
regular e limitar a ação governamental, consagrando os seguintes princípios: a) a Constituição deve
funcionar como sistema de controle do poder, no qual cada poder exerce a função de fiscalização e
limitação dos demais poderes; b) a Constituição busca superar a oposição entre grupos, classes,
burocracia real e estamentos; e c) a Constituição deve assegurar um estatuto que permita autonomia
de ação aos diversos grupos sociais e que defenda a sociedade do despotismo arbitrário, por meio de
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 esferas separadas do poder, o que permite que o poder seja controlado por ser dividido em esferas
autônomas.
Tais tendências, diz Faoro, amadureceram na Inglaterra do século XVII e nos Estados Unidos
do século XVIII, com as conhecidas revoluções liberais (a Revolução Gloriosa de 1688-1689, e a
Revolução norte-americana de 1776), irradiando, ainda no mesmo período, pelo continente europeu
e, em seguida, chegando à América do Sul. Para ele, esse movimento “atesta um dos momentos
altos do constitucionalismo moderno, na implícita sugestão do controle do poder, pelo mecanismo
de sua divisão” (FAORO, 2007, p. 174).
Neste sentido, o empreendimento constitucionalista representou, na modernidade, o combate
ao arbítrio, instaurando o governo da lei em substituição ao governo dos homens10. Um governo no
qual a lei não é apenas uma fórmula ou um rótulo vazio, antes a “expressão de um poder
independente – o Poder Legislativo”, originado em um pacto estabelecido entre indivíduos livres e
autônomos. De modo inverso, as leis instituídas por um tirano “seriam leis unicamente pela sua face
externa, por lhes faltar a legitimidade, que é a fonte da autoridade e não exclusivamente do poder,
legitimidade que procura responder, convincentemente à pergunta: por que obedecer?” (Faoro,
2007, p. 175).
É somente à medida que o poder é constituído em seu fundamento legítimo – o Poder
Constituinte –, que este se mostraria compatível, segundo Faoro, com: a) a paz social; b) a
regulação da sociedade por meio de lei autêntica; e o estabelecimento de c) controles e freios que
regulam o poder. Tais freios se pretendem de fato controlar o poder, deveriam, para Faoro,
10
Em texto publicado em 1983 e incluído no livro O Futuro da Democracia, intitulado “Governo dos homens ou
governo das leis?” (BOBBIO, N. O Futuro da Democracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2009, p. 165-185), Norberto
Bobbio opõe governo dos homens a governo das leis. O governo dos homens é o exercício pessoal do governante, ou
dos governantes. É uma forma autocrática de exercício do poder. A este se opõe o governo das leis, que, segundo
Bobbio, é característico das democracias. Ver, também, por exemplo, a conferência de Bobbio, publicada no Jornal da
Tarde, São Paulo, em 14/10/2000, disponível em http://www.academia.org.br/abl/media/memoria14.pdf.
“Formalmente, a lei distingue-se do comando pessoal do soberano pela sua generalidade (Aristóteles fala de
“prescrições gerais”): é a característica com base na qual a lei, quando é respeitada também pelos governantes, impede
que estes façam valer a própria vontade pessoal mediante disposições expedidas segundo as necessidades, sem
considerar os precedentes nem tampouco as disparidades de tratamento que o comando particular pode produzir.
Substancialmente, a lei, por sua origem, seja ela imediatamente derivada da natureza ou mediada pela tradição, ou pela
sabedoria do grande legislador, e pela sua duração no tempo, não está submetida ao transformar-se das paixões, e
permanece como um depósito da sabedoria popular ou da sapiência civil que impede as mudanças bruscas, as
prevaricações do poderoso, o arbítrio do “sic volo sic iubeo”. Essa oposição entre as paixões dos homens, em particular
dos governantes, e a ausência de paixão das leis está, além do mais, no fundamento do tópos não menos clássico da lei
identificada com a voz da razão, princípio e fim de toda a tradição jusnaturalista que, a meu ver, parte dos antigos e
chega, sem interrupções, não obstante autorizadas e respeitáveis opiniões em contrário, aos modernos, passando pelo
pensamento da Idade Média, que neste caso é realmente o elo de ligação entre nós e os antigos”.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 articular-se a partir do consentimento e das decisões dos destinatários do poder, fonte de onde
emana a legitimidade do mando, constitucionalmente constituído e organizado, sem os quais
estaríamos diante de regimes absolutistas, mesmo que estivéssemos cercados por leis e protegidos
pela força. O jurista brasileiro insiste:
Há uma ordem social que está na base da ordem política e da ordem jurídica. Ela
não reside no poder, como realidade auto-suficiente, muito menos na força, que
realiza, no plano da execução, as ordens derivadas das leis lato sensu. O poder está
sempre vinculado à força, por meio da qual se realiza e, não raro, conceitualmente
se confunde. [Mas] Na verdade, sua raiz está na legitimidade, de visibilidade mais
remota (FAORO, 2007, p. 191).
Em que consiste, afinal, a legitimidade a que se refere Faoro? Atentemos, especialmente, ao
que fundamenta a autoridade política, para o autor, capaz de conferir-lhe legítimo domínio.
4. A autoridade e o poder: o lugar da legitimidade
Seria por meio da legitimidade, de acordo com Faoro, que a comunidade social encontra sua
esfera de ação. O corpo social é assim dotado de autoridade concedida pelo apoio dos governados.
Dessa maneira, define-se o Poder Constituinte, articulado ao poder constituído por meio da
autoridade, cujo fundamento viria de baixo. Logo, a ideia de autoridade está imbricada na noção de
legitimidade, legitimidade baseada na participação popular, seu componente social.
Faoro distancia a noção de poder da noção de autoridade. Para ele, a autoridade se define tal
qual Weber propôs, isto é, como a possibilidade, em dada relação social, de impor a sua própria
vontade aos demais, sem sofrer resistência por parte destes, nem ainda ver questionada sua
legitimidade. No poder, puro exercício do mando, ao contrário,
não se cogita da aprovação ou consentimento, categorias inerentes à legitimidade.
[...] O poder vem do alto, do componente minoritário da sociedade, enquanto a
legitimidade vem de baixo, como reconhecimento em torno de valores (FAORO,
2007, p. 189-190).
Importante sempre ressaltar que, para o jurista, “o poder sempre existe de facto, na medida em
que se sustenta e opera com eficiência, enquanto a legitimidade se impõe de jure, não só pela lei,
mas pela densidade que está atrás e acima dela” (FAORO, 2007, p. 189-190).
De acordo com Faoro, a distinção fundamental entre a autoridade e o poder está no “momento
de crença na legitimidade” que a autoridade seria capaz de engendrar. Isto, se a autoridade for
entendida no sentido de obediência, por parte de um grupo, a um comando específico que possui
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 então a chave da dominação – a capacidade de impor a sua vontade –, seja através do costume, seja
por vínculos afetivos ou pelo cálculo racional orientado a fins almejados pelo grupo que os leva a
acatar a autoridade – racional com relação a valores. Desses tipos de ação social, na tipologia de
Weber, decorrem os tipos de dominação legítima: a tradicional, a carismática e a racional.
No que se refere à legitimidade racional, esta desdobra-se em dois tipos de ação social: 1) a
ação social com relação a fins e; 2) a ação social com relação a valores11. No caso da última – ação
voltada para valores –, a legitimidade reside na “validade buscada na ordem política”, isto é, “a
referência ao valor – a validade – se determina como aspiração e como fato, determinando a escolha
dos meios de seu exercício, condicionados a ela” (FAORO, 2007, p. 210). É desse modo que a
legalidade se torna compatível à legitimidade. Contudo, é preciso atentar, segundo Faoro, para o
fato de que a legalidade puramente formal não possui uma característica fundamental à autoridade
política: a legitimidade oriunda/provinda da vontade dos subordinados. (FAORO, 2007, p. 210).
Seria na racionalidade orientada por valores, entendidos por princípios políticos, que Faoro
enxerga a possibilidade da realização de uma legitimidade vinda de baixo, isto é, sua fonte seriam
as relações sociais. O autor segue:
Há, portanto, na legitimidade, um momento que permeia a própria legalidade forma
e se materializa em valores. O Estado pressupõe a existência de valores políticos
materiais, que prescindem, para se concretizar, do direito natural e para os quais é
insuficiente o direito positivo, que legitimam a comunidade política e a consolidam
internamente (FAORO, 2007, p. 211).
É dessa maneira na autoridade socialmente qualificada, que se funda a legitimidade do
mando. Seu caráter democrático, não prescindindo das noções de igualdade e de controle do poder
do governante, exige a participação popular nas decisões políticas12. Assim, prossegue o autor, é
que não haveria outra legitimidade possível, para o mundo democrático moderno, que não se
articule à participação e, por conseguinte, à ideia de um governo limitado, no qual estaria presente a
desconfiança do povo diante dos governantes e o espaço para a resistência, caso “violadas as
fronteiras que demarcam a democracia” (FAORO, 2007, p. 217).
11
É mais uma vez clara a inspiração weberiana de Faoro quando a noção de legitimidade e quanto aos tipos de
ação social.
12
Ao falar dos direitos dos cidadãos, Rousseau diz: “Os compromissos que nos ligam ao corpo social só são
obrigatórios por serem mútuos, e sua natureza é tal que, ao cumpri-los, não se pode trabalhar para outrem sem trabalhar
também para si mesmo” (ROUSSEAU, 2006, p. 40).
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Embora atuando em espaço predefinido, em geral na legalidade, o povo – ator da política -,
nos diz Faoro, não é alijado da participação no campo do poder, ou seja, não é retirado dele o direito
de se organizar e agir. A legitimidade, portanto, não se confundiria “com o direito legislado e
redutível a regras e a normas”, e transcenderia a maneira de exercício do poder. Em seu dizer:
Há, acima do legalismo e do exercício do poder, um modelo de imantação que
orienta todas as instituições sociais e políticas. Por isso, a legitimidade não é
apenas um conceito formal, que prefigura o quadro social e condiciona o
funcionamento do poder, com o apelo não só à adesão – também possível, embora
não mensurável na autocracia -, mas a pressupostos de racionalidade indissociáveis
da autonomia das pessoas, mediante regras fixas ou implícitas que não absolutizem
o poder, com a negação dos freios que o tornam razoável e alternativo. A
legitimidade não é sinônimo de imutabilidade só pelo fato de ordenar duravelmente
as relações de poder. Ao se sustentar pela confiança, que vem de baixo, renovável e
aberta, estimula a mudança, a inovação e o movimento (FAORO, 2007, p. 217218).
É interessante trazer à discussão o filósofo genebrino J. J. Rousseau. Observe-se que
Rousseau, ao tratar do estabelecimento da Lei no estado civil, afirma:
Quando todo o povo estatui sobre todo o povo, não considera senão a si mesmo, e
nesse caso, se há uma relação, é entre o objeto inteiro sob um ponto de vista e o
objeto inteiro sob outro ponto de vista, sem nenhuma divisão do todo. Então a
matéria sobre a qual se estatui é tão geral quanto a vontade que estatui. É a esse ato
que chamo uma lei (ROUSSEAU, 2006, p. 47).
Poder-se-ia dizer que, para Rousseau, o objeto das leis é sempre geral posto que considerase os súditos coletivamente e as ações como abstratas, nunca um homem como indivíduo ou uma
ação particular. Assim, todo Estado regido por leis, Rousseau considerará uma República pois nela
o interesse público governaria e a legitimidade estaria garantida, uma vez que as leis são as
condições da associação civil. E conclui que “o povo submetido às leis deve ser o autor delas;
somente aos que se associam compete regulamentar as condições da sociedade” (ROUSSEAU,
2006, p. 48).
Rubens Goyatá Campante dirá que, apesar de sua proximidade analítico-descritivo com
Weber,
será à maneira de Rousseau que Faoro irá fundamentar o poder político na
extensão, no espraiamento, e não na contenção e exclusão – o poder político é tão
mais legítimo quanto mais pessoas o possuam, um modelo baseado no
consentimento e na participação. Nesse entendimento, o que a exclusão e a
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 concentração social de poder veiculam não é bem um poder político legítimo, está
mais para a força bruta e liberticida (CAMPANTE, 2009, p. 138).
Os principais estudos acerca da obra de Faoro, como veremos mais adiante, giram em torno
do tema do patrimonialismo de Estado e do uso que fez dos tipos ideais weberianos. Assim, a
importância do estudo sistemático acerca do pensamento constitucional do autor, sua análise sobre o
caso brasileiro, carece de reflexão aos moldes da pesquisa acadêmica. É também relevante o fato de
que Faoro, diversamente dos intérpretes weberianos “estatistas” (VIANNA, 1999) e também dos
idealistas orgânicos (BRANDÃO, 2007), analisa o arcabouço burocrático-institucional não apenas a
partir dos fundamentos estatais normativos, mas principalmente focando o papel da sociedade e da
legitimidade por ela atribuída às instituições, analisando o constitucionalismo partindo do
pressuposto do Poder Constituinte, da soberania popular e da cidadania. O autor parte do Estado
sem perder o foco na raiz social da legitimidade das instituições, procurando uma mediação entre a
análise sociológica, histórica e institucional, isto é, observa o Estado a partir da sociedade e não
exclusivamente de sua estrutura burocrático-normativa e nisto consiste a relevância do estudo do
constitucionalismo em Faoro.
Embora os intérpretes da obra do autor privilegiem a noção de estamento burocráticopatrimonial, atentando para a dimensão institucionalista, pouco se detiveram no estudo do
constitucionalismo e da soberania popular, temas ausentes nos debates sobre ele. Quando Faoro
define a Constituição nominal, subjaz ao argumento uma crítica ao caráter idealista constitucional,
distanciando-o da linha utópica, na qual geralmente é incluído. Seria, de fato, Faoro um idealista
constitucional ou utópico, como na acepção de Oliveira Vianna e na classificação de Brandão? Esta
questão recoloca o pensamento de Faoro perante o conjunto do pensamento social e político
brasileiro, servindo de mote à revisão das abordagens clássicas e dos atuais paradigmas
interpretativos deste campo de reflexão. Renato Lessa argumenta que,
mais do que Weber, Faoro pensa ter estabelecido com maior força a presença dos
clássicos da ciência política na tessitura de sua narrativa. Com efeito, 'Maquiavel e
Hobbes; Montesquieu e Rousseau' aparecem em diferentes momentos da obra com
uma função análoga à do coro grego: uma voz externa que ora interpela, ora dá
sentido ao que os personagens fazem e dizem (LESSA, 2009, p. 65).13
13
É possível identificar alguns clássicos do pensamento político moderno ao longo das obras de Faoro, não
apenas na obra magna Os donos do poder, mas também em seus conhecidos artigos, Assembleia Constituinte: A
legitimidade recuperada e Existe um pensamento político brasileiro?. Observa-se que Faoro retira de Lassalle a ideia de
“fatores reais do poder” como a força ativa de uma Constituição. Já sua matriz teórico-metodológica tem inspiração
weberiana quanto ao conceito de poder, de autoridade e de legitimidade e, ainda, a construção dos tipos ideais de
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Dentre esses autores chamados clássicos do pensamento político moderno, poderíamos
destacar alguns aspectos e a presença de Rousseau no estudo de Faoro sobre constitucionalismo.
Em linhas gerais, de Rousseau, o autor resgata a noção de liberdade, presente no estado político na
noção de Lei. Isto é, quando os indivíduos particulares são transformados em cidadãos, por meio do
contrato de consentimento, obedecem à Lei, e, portanto, obedecem a si mesmos, sendo, assim,
livres. A legitimidade do poder político, desse modo, reside na participação dos cidadãos nas
decisões públicas que o pacto supõe, constituindo um corpo político com vistas a segurança e a
autoconservação.
Entendida a legitimidade como inerente ao Poder constituinte e fundamento do Poder
constituído e organizado em uma Constituição, haveria relativa correspondência, então, entre esta
última e os “fatores reais do poder” a que se referia Lassalle, e a quem Faoro segue de bem perto.14
Antes de passarmos a Lassalle para entender aquilo que este chamou de a verdadeira essência de
uma Constituição, é importante verificarmos a referência que Faoro retira de Max Weber quanto a
noção de dominação e o fundamento de sua legitimidade.
5. Legitimidade e dominação tradicional
De acordo com Weber, caracteriza-se como um tipo puro de dominação tradicional, quando
o mando se dá por meio de poderes senhoriais, isto é, quando o mando é exercido por um senhor
pessoal. Trata-se, aqui, de uma dominação cuja legitimidade repousa em princípios que tem
fundamento na tradição, nos costumes de dado grupo, a exemplo de suas crenças religiosas. Neste
caso, nos dirá Weber que
o dominador não é um “superior”, mas senhor pessoal; seu quadro administrativo
não se compõe primeiramente de “funcionários” mas de “servidores” pessoais e os
dominação com o objetivo de mostrar que por meio dessas noções é possível chegar à definição de uma Constituição
política. A noção de controle do poder pelo mecanismo de sua divisão vem de Montesquieu, e, de Kelsen, a noção de
liberdade natural como uma liberdade na qual não há nenhuma sujeição social e política.
14
No artigo Assembleia Constituinte: A legitimidade recuperada, identificamos algumas das fontes de Faoro
quanto ao tema do constitucionalismo moderno. Vejamos. O jurista brasileiro retira de Lassalle a ideia de “fatores reais
do poder” como a força ativa de uma Constituição. De Montesquieu, Faoro busca a noção de controle do poder, pelo
mecanismo de sua divisão, tomando a proposta do francês como um dos pontos altos do constitucionalismo moderno.
No que se refere a sua matriz teórico-metodológica, Faoro busca em Weber sua inspiração quanto ao conceito de poder,
de autoridade e de legitimidade e, ainda, a construção dos tipos ideais de dominação, com o objetivo de demonstrar que
por meio dessas noções, é possível chegar à definição de uma Constituição política. De Rousseau, o autor resgata a
noção de liberdade, presente no estado político na noção de lei, isto é, quando o cidadão obedece à lei, na verdade,
obedece a si mesmo, e, portanto, é livre Faoro também retira de Kelsen a noção de liberdade natural como uma
liberdade na qual não há nenhuma sujeição social e política.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 não são “membros” da associação, mas 1) “companheiros tradicionais” ou 2)
“súditos” (WEBER, p. 148, 2009, grifos do autor).
Esse tipo de dominação, baseada na tradição e nos costumes, se distancia daquele tipo de
dominação a que Weber denominou de “dominação racional-legal”, na medida em que esta última
se baseia na noção de que todo direito é estatuído de modo racional – referentes a fins ou a valores –
e que, este mesmo direito, é um conjunto de regras abstratas cuja administração é o “cuidado
racional de interesses previstos pelas ordens da associação, dentro dos limites das normas jurídicas”
(WEBER, p. 142, 2009). Quanto a este aspecto, o senhor legal ordena e manda mediante uma
ordem impessoal. Portanto, ele segue a deveres objetivos relativos ao cargo que ocupa na
administração.
No caso da dominação tradicional, é decisivo para o senhor a fidelidade de seu servidor,
posto que não obedeça a estatuto algum, mas à pessoa – ou senhor – definida tradicionalmente.
Sendo assim, Weber afirma que a legitimidade se dá de duas maneiras: 1) por um lado a
legitimidade é definida pela tradição que determina o próprio conteúdo das ordens, haja vista a
crença e o sentido de seu alcance; e, também, 2) devido ao livre arbítrio de que dispõe o senhor,
também dado pela tradição. Tal “arbítrio tradicional baseia-se primordialmente na ausência de
limitações que por princípio caracteriza a obediência em virtude do dever de piedade” (WEBER, p.
148, 2009).
Segundo Weber, neste tipo ideal de dominação qualquer forma de orientação com vistas a
decisões jurídicas se dá por meio do que diz a tradição, isto é, o que tem de registro de casos e
sentenças anteriores. Sendo assim, o senhor pode dominar com um quadro administrativo formado
por pessoas que estejam ligadas a ele pela tradição, o que Weber irá chamar de “recrutamento
patrimonial”, por membros do clã, funcionários domésticos em situação de dependência, escravos
etc. Ou, ainda, o senhor poderá exercer seu domínio sem esse quadro administrativo.
Neste quadro administrativo de dominação tradicional, entendida em seu tipo puro, Weber
dirá que não há: 1) “a ‘competência’ fixa segundo regras objetivas; 2) a hierarquia racional fixa; 3)
a nomeação regulada por contrato livre e o acesso regulado; 4) a formação profissional (como
norma); e 5 (muitas vezes) o salário e (ainda mais frequentemente) o salário pago em dinheiro
(WEBER, p. 149, 2009). De acordo com o autor, na ausência de um quadro administrativo pessoal,
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 do senhor, estamos diante de tipos primários de dominação tradicional, a exemplo da gerontocracia
e do patriarcalismo primário – estes não serão detalhados por fugir do objetivo deste trabalho.
É apenas com a existência de um quadro administrativo e militar sobre o qual a figura do
senhor tem domínio pessoal irrestrito que, para Max Weber, podemos falar de patrimonialismo. Em
seu dizer:
Os “companheiros” tornam-se “súditos”; o direito do senhor [...] converte-se em
seu direito próprio, apropriado por ele da mesma forma (em princípio) que um
objeto possuído de natureza qualquer, valorizável, [...] em princípio, como outra
oportunidade econômica qualquer. Externamente, o poder do senhor patrimonial
apoia-se em guardas pessoas e exércitos formados de escravos, [...] colonos ou
súditos forçados ou [...] de mercenários. Em virtude desse poder, o senhor amplia o
alcance de seu arbítrio e de sua graça, desligados da tradição, às custas da
vinculação tradicional patriarcal e gerontocrática. Denominamos patrimonial toda
dominação que, originariamente orientada pela tradição, se exerce em virtude de
pleno direito pessoal” (WEBER, p.151-152, 2009).
Faz-se pertinente, neste ponto, trazer a noção de dominação estamental.
Neste tipo de dominação, que pode ser entendida como um subtipo da dominação tradicional
patrimonial, tanto os poderes de mando quanto a economia estão apropriados por um quadro
administrativo. Tal apropriação pode ser operada por alguma associação ou categoria de pessoas;
por um indivíduo que possua caráter vitalício ou hereditário. Desse modo, a dominação estamental
implica limitar a
livre seleção do quadro administrativo pelo senhor, em virtude da apropriação dos
cargos ou poderes de mando [seja de uma associação ou de uma camada social
qualificada estamentalmente] [...] apropriação dos cargos e, portanto,
(eventualmente) oportunidades aquisitivas proporcionadas pela detenção destes e
apropriação dos meios materiais da administração, e apropriação dos poderes de
mando: por parte de cada membro individual do quadro administrativo (WEBER,
p. 152, 2009).
No tocante ao detentor estamental, no momento em que se apropria de poderes de mando,
segundo Weber, ele paga os custos da administração (pública) com seus próprios recursos. Já com
relação aos possuidores de poderes de mando militares, estes provêm-se de suas próprias armas,
ocasionalmente tanto aos contingentes patrimonialmente ou estamentalmente recrutados. Ou ainda,
dirá Weber, o “provimento de meios administrativos e o recrutamento do quadro administrativo são
apropriados como verdadeiros objetos de uma atividade aquisitiva, em troca de pagamento global a
partir do armazém ou da caixa do senhor” (WEBER, p. 152, 2009).
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Segundo Weber, o poder global divide-se regularmente entre “senhor e membros
apropriadores do quadro administrativo”, no caso da dominação estamental, tendo em vista o direito
próprio destes membros. Ou ainda, continua o autor, existiriam poderes próprios que estariam sob a
regulação de ordens particulares do senhor e ou, também, por compromissos específicos com as
pessoas apropriadas.
Weber afirma que tanto a dominação patrimonial quanto a dominação patrimonialestamental, em seu tipo puro, tratam de forma igual os poderes de mando e os direitos senhoriais
econômicos. Em princípio, os direitos senhoriais e as oportunidades econômicas daí advindas, de
qualquer espécie, são tratados da mesma maneira que as oportunidades privadas.
6. O patrimonialismo em Faoro
Faoro, em A aventura liberal numa ordem patrimonialista (1993), mostra que, na história
brasileira, prevalece sobre qualquer forma de liberalismo o tipo patrimonial de Estado que ele bem
definiu em Os donos do poder. O Estado tutelar, ancorado no estamento burocrático15, antecede e
ordena a vida social e a própria economia de mercado. Para bem entender a afirmação do jurista, é
importante recuar um pouco na história – como o próprio autor faz -, e voltar ao mundo português
da Revolução de Avis em 1385, percurso que Faoro faz para chegar ao Brasil e o momento da
independência brasileira quando se tentava construir e formar no país um Estado-Nação, bem como
a discussão acerca do liberalismo entre nós.
O liberalismo que impera, de acordo com Faoro, não se nutre da sociedade, mas da
ideologia, e como tal, receia a sociedade civil, a quem acredita dever controlar. O liberalismo com o
qual se identifica Faoro é aquele da limitação constitucional do poder, aquele que reconhece as
liberdades públicas e os direitos e garantias individuais, ao contrário deste que vive das benesses do
poder e dele se alimenta. O “povo” é entendido como “um vulcão adormecido que é preciso
dominar e temer” (FAORO, 1993, p. 27). O liberalismo político entra no Brasil como uma ideologia
pensada no sentido de sistema de crenças e valores que influi no comportamento popular e orienta-o
para uma determinada direção, cujo objetivo é obter um consenso que justifique o poder. Da mesma
forma, o liberalismo econômico no Brasil não se identifica com o mercado livre, pois não se arrisca
como uma empresa capitalista (liberal) faria, mas caminha desde que assegurados seus lucros, seu
15
A noção de estamento burocrático, Faoro retira de Max Weber. Para este, o patrimonialismo caracteriza-se
como um subtipo de dominação tradicional, na qual um grupo se assenhoreia do poder e, desse modo, conduz a ordem
política de forma privada.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 empreendimento e seu patrimônio. Em qualquer dos casos, portanto, é a partir do alto que se
fomenta o liberalismo entre nós.
7. A Matéria: Lassalle e o problema do poder em uma Constituição
Em conferência proferida no ano de 186216, em Berlim, para intelectuais e operários da
Prússia, posteriormente publicada como A Essência da Constituição, Ferdinand Lassalle lançou a
seguinte indagação: o que é e qual é a verdadeira essência de uma Constituição?
Segundo Lassalle, uma Constituição, ou melhor, a essência de uma Constituição, se verifica
em seu conteúdo propriamente político, o que, para ele, se dá na medida em que os “fatores reais do
poder”, de que tratarei mais adiante, nela se vejam expressos. Portanto, noções jurídicas, mesmo
precisas, não esgotariam, ou mesmo de nada serviriam para definir uma Constituição – que não
passaria então, ironiza Lassalle, de uma folha de papel –, pois poderiam “ser aplicadas a todos os
papéis assinados por uma nação ou por esta e o seu rei, proclamando-as Constituições, seja qual for
o seu conteúdo sem penetrarmos na sua essência” (LASSALLE, 2006, p. 11).
O que se faz necessário, em primeiro lugar, seria buscar a fonte de onde emana esta essência
da Constituição, para então sabermos se uma Carta Constitucional contém e/ou acomoda
concretamente as exigências substanciais. Neste ponto, as seguintes indagações nos guiarão no
percurso: a que exigências substanciais o autor se refere? O que ele queria dizer quando afirmou ser
necessário verificar se dada Constituição de fato expressa e nela estão contempladas concretamente
tais exigências?
7.1. A força ativa: Lei e Constituição
Lassalle busca identificar as diferenças entre lei e Constituição.
Toda Constituição, para ser legítima, isto é, para reger uma coletividade, necessita da
aprovação legislativa, diz Lassalle. Isto equivaleria a dizer que ela - a Constituição – logo também
seria uma lei. No entanto ela seria bem mais que uma simples lei, pois “entre os dois conceitos não
existe somente afinidades; há também desassemelhança” (LASSALLE, 2006, p. 12). Façamos o
exercício de aproximação a estas distinções.
16
Para a data, ver http://www.marxists.org/history/etol/newspape/fi/vol03/no01/lassalle.htm
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Sendo assim, se trataria então de bem compreender a distinção entre uma lei comum e, como
admite o autor, denominar a Constituição de uma lei fundamental – passo ainda assim insuficiente e
expressão vazia. Lassalle estabelece, então, três critérios básicos para que se possa distinguir uma
lei fundamental de uma lei comum.
Sigamos de bem perto o que nos diz Lassalle.
1º - Que a lei fundamental seja uma lei básica, mais do que as outras comuns, como
indica seu próprio nome ‘fundamental’.
2º - Que constitua – pois de outra forma não poderíamos chamá-la de fundamental
– o verdadeiro fundamento das outras leis, isto é, a lei fundamental, se realmente
pretende ser merecedora desse nome, deverá informar e engendrar as outras leis
comuns originárias da mesma. A lei fundamental, para sê-lo, deverá, pois, atuar e
irradiar através das leis comuns do país.
3º - [...] Somente as coisas que carecem de fundamento, que são as casuais e as
fortuitas, podem ser como são ou mesmo de qualquer outra forma; as que possuem
um fundamento não, pois aqui rege a lei da necessidade. [...] A ideia de
fundamento traz, implicitamente, a noção de uma necessidade ativa, de uma força
eficaz que torna por lei da necessidade que o que sobre ela se baseia seja assim e
não de outro modo (Lassalle, 2006, p. 14-15).
Agora já podemos iluminar melhor o objetivo de Lassalle ao distinguir uma lei comum de
uma lei fundamental (admitindo tal nomenclatura para designar uma Constituição). Ele nos diz:
Sendo a Constituição a lei fundamental de uma nação, será – e agora já começamos
a sair das trevas – qualquer coisa que logo poderemos definir e esclarecer, ou,
como já vimos, uma força ativa que faz, por uma exigência da necessidade, que
todas as outras leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que realmente
são, de tal forma que, a partir desse instante, não podem decretar, naquele país,
embora quisessem, outras quaisquer (LASSALLE, 2006, p. 15-16).
Desta feita, vemos que, para o autor, a essência de uma Constituição, sendo ela entendida
também como lei fundamental – diferenciando-se de lei comum produzida por um código
legislativo – consistiria na capacidade de dizer os rumos e as regras pelas quais determinada
sociedade deva funcionar e ser regida. Poderíamos inferir, portanto, que a Constituição, para o
autor, constitui o princípio que faz mover o viver em comum de um dado país porque alicerçado no
que Lassalle chama de força ativa. Cabe agora responder o que, para ele, seria essa força ativa e de
onde ela emerge tornando uma Constituição uma lei fundamental.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 7.1.2. Os “fatores reais do poder”: onde reside a força ativa
Segundo Lassalle, a força ativa de uma nação se encontraria no que denominou “fatores
reais do poder”. Estes fatores estariam presentes na sociedade, de modo a regulá-la, e seriam
compostos pela disputa dos diversos interesses dos grupos (ou classes) que nela atuam. Sendo
assim, essa força ativa seria constituída por grupos que se moveriam em busca de ter seus interesses
representados e garantidos pelo poder político constituído – o Estado, este advento de uma
convenção pactuada. Não só isto: essas forças em ação seriam também eficazes quanto a “informar
todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em
substância, a não ser tal como elas são” (LASSALLE, 2006, p. 17). Dito de outra forma, os fatores
reais do poder seriam as classes em luta em busca de terem assegurados os seus interesses.
Em essência, a Constituição, de acordo com Lassalle, seria a síntese ou, em seu dizer, “a
soma dos fatores reais do poder que regem um país” (LASSALLE, 2006, p. 30). O que propõe
Lassalle é: uma Constituição real e, por isso, política. Não uma Constituição jurídica, a qual, como
já dito, ele chama de uma mera folha de papel17.
Usando de um exemplo, que ele mesmo indica ser hipotético e absurdo, de valia apenas pelo
aprendizado que poderia trazer, Lassalle pede aos seus interlocutores, ouvintes ou leitores, que
considerem a possibilidade de ter ocorrido um grande incêndio em toda a Prússia, onde todas as leis
escritas tenham desaparecido, incluindo a Constituição. Então ele lança a pergunta: pode o
legislador, nesse caso, formular novas leis ao seu bel prazer? Tendo tal questão como ponto de
partida, o autor avalia um a um os fatores reais do poder, isto é, as classes e as frações de classes, os
monarquistas, os aristocratas, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia e a classe
operária. Uma Constituição, no seu dizer, seria a soma dos fatores reais do poder imperantes em um país e se daria na
medida em que
Juntam-se esses fatores reais do poder, escrevêmo-lo em uma folha de papel, dá-selhes expressão escrita e a partir desse momento, incorporados a um papel, não são
simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito, nas instituições jurídicas
e quem atentar contra eles atenta contra a lei, e, por conseguinte é punido. Não
desconheceis também o processo que se segue para transformar esses escritos em
17
No contexto em que escreve o autor, sua inquietação se dá devido ao fracasso das revoluções de 1848 em
Düsseldorf, das quais participou ativamente, inclusive sendo preso. O socialista ali enxerga, na experiência prussiana,
nada mais que Constituições jurídicas, isto é, fictícias.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 fatores reais do poder, transformando-os desta maneira em fatores jurídicos
(LASSALLE, 2006, p. 30).
O processo consiste na tentativa de transformar os fatores reais do poder, pela norma escrita,
em fatores jurídicos. Desse modo, estes fatores reais do poder passariam ao estatuto de direito,
cristalizado o direito nas instituições jurídicas e, portanto, protegidos pela lei que, por sua vez,
puniria a quem tentasse violar os direitos assegurados na Carta. Esta seria a relação existente entre o
que, segundo o autor, comumente se chama Constituição real e o que ele entende por Constituição
jurídica.
Lassalle critica a Constituição jurídica na medida em que ela não passa de uma mera
formalidade. O poder organizado instituiria o modo de operar na e da sociedade de tal modo que,
como diz Lassalle, esses fatores reais do poder não se fazem agentes, isto é, não formulam, criam
nem estabelecem as regras de como deveria funcionar o corpo social. Dessa maneira, para o autor,
não haveria serventia alguma o que fosse escrito na folha de papel, posto não haver fundamento e
justificação nos “fatos reais e efetivos do poder” (LASSALLE, 2006, p. 59). Uma Constituição
escrita só pode ser considerada real quando tiver “suas raízes nos fatores do poder que regem o
país” e quando adaptar-se ao poder organizado da sociedade (LASSALLE, 2006, p. 52).18
Como podemos observar, a preocupação de Lassalle reside em assegurar aos grupos, de
interesses diversos e em conflito, que existem no interior da sociedade – os fatores reais do poder -,
a sua soberania, através da Constituição. Esta, de modo algum, poderia se confundir com um código
jurídico pré-estabelecido por uma casa legislativa pura e simplesmente. Antes, deve conter e
expressar fielmente a dinâmica das relações sociais, tal qual aparecem na sociedade. É somente
quando está contemplada e assegurada a participação dos fatores reais do poder na Constituição,
que podemos falar de uma Constituição verdadeira para o autor.
8. Faoro e Lassalle: fundamento social e ordem política
De olho nas lições de Lassalle, Faoro reconhece a relevância do fundamento social, que
deve ser o alicerce do processo constitucional entendido em sua feição moderna. Entretanto, o
exercício dos “fatores reais do poder”, adquirido pela forma jurídica, indica, segundo Faoro, além
18
Os problemas constitucionais não são problemas de Direito, mas do Poder; a verdadeira Constituição de um
país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não
têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis
aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar (LASSALLE, 2006, p. 63).
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 da fidelidade dos fatores que imperam na realidade social, “a pedra angular de todo processo de
constitucionalismo”: a Constituição existe para assegurar o controle ou a limitação do poder
político.
Para o alemão, uma Constituição, para ser considerada verdadeira, basta expressar fielmente
as relações sociais de existência na sociedade, denotando assim uma relação das forças políticas em
combate. Também Faoro faz dos grupos em luta na sociedade, isto é, das relações sociais, a base, o
fundamento da Constituição. A sociedade tomada em conjunto, ou para usar os termos do jurista
brasileiro, o “povo”, verdadeiro ator da política, confere legitimidade à formulação de um corpo
jurídico-normativo quando se faz autônomo e independente das castas dominantes. A Constituição,
assim, não seria apenas juridicamente válida, mas teria validade efetiva por estar integrada à
sociedade civil.
Também para Faoro o poder constitucional assenta-se em relações concretas de existência
social, como dito anteriormente, na qual uma “uma ordem social que está na base da ordem política
e da ordem jurídica” (FAORO, 2007, p. 191) confere legitimidade ao poder constituído, organizado
sob a forma de uma Carta Magna. Pois sem um poder legitimamente constituído, sobra o arbítrio da
força, ainda que envolta pela lei. Eis onde residiria sua face nefasta:
Uma vez instaurado, o arbítrio penetra em todas as instituições, desfigura o quadro
governamental, sem que resguarde, dentro dele, uma ilha onde se abrigue a
liberdade. É de sua natureza a capacidade de se alastrar e contaminar todo o corpo
social, corrompendo os mecanismos burocráticos engendrados para evitar que ele
se expanda (Faoro, 2007, p. 176).
Para Faoro, o constitucionalismo moderno, lutando, em sua gênese, contra o poder absoluto,
não foi democrático. Um exemplo disto está na compreensão meramente formal, sem incidência
real, da Declaração de Independência dos Estados Unidos e da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão (França), ambas no século XVIII. As duas proclamaram a igualdade entre os homens.
Foi com a emergência de novas classes sociais e novos grupos, após um longo espaço de tempo,
dirá Faoro, que essa igualdade se ampliou e ganhou corpo numa crescente participação, a exemplo
do direito de votar e intervir nas decisões públicas.
Antes de entrarmos propriamente no que entende Faoro por constitucionalismo moderno,
façamos um curto apanhado das teses a respeito desta concepção moderna.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 De acordo com Matteucci, poder-se-ia falar, basicamente, em duas vertentes de
entendimento acerca do constitucionalismo em sua feição moderna: a) o constitucionalismo
caracterizado pela divisão do poder com vistas a impedir o arbítrio; e b) o constitucionalismo
afirmado pelo governo das leis e não dos homens, isto é, por meio da racionalidade jurídica
(MATTEUCCI, 2010, p. 248). Este último, o primado da lei, constituir-se-ia, para o autor, como a
característica fundamental das democracias constitucionais modernas, muito embora já presente nos
Estados medievais.
A diferença que existe entre a concepção de lei na Idade Média e em tempos modernos
consistiria em que, no medievo, a lei “era uma espontânea e livre expressão da sociedade, [...] onde
não podia intervir o arbítrio criador do legislador”; enquanto, na modernidade, ela expressa a
“vontade soberana do povo, explicitada por meio de um órgão ad hoc, a assembleia representativa”
(MATTEUCCI, 2010, p. 255). Disto se apreende que, no mundo medieval, o direito não era outra
coisa que não a expressão da vida social, “quase um fato natural e espontâneo”; já no mundo
moderno, o direito se constitui como um instrumento utilizado pelo Estado democrático, cujo
objetivo estaria em garantir a paz. Constitui, ainda, a vontade da maioria, não se confundindo,
portanto, com a ideia de justiça, como se dava na Idade Média.
A primazia e o princípio da lei (“todo poder político tem de ser legalmente limitado”) têm
suas raízes ainda no medievo. Faltava-lhe, no entanto, segundo o entendimento moderno, um
elemento fundamental, a saber, a legitimidade fundada no povo soberano e que obriga o governante
a prestar-lhe contas. É próprio do constitucionalismo moderno a introdução do mecanismo que foi
capaz de dar aplicabilidade concreta ao controle do exercício do poder político, de modo legítimo,
por meio do direito, cuja função, também, consistiu em garantir aos cidadãos o respeito à lei por
parte dos órgãos governamentais. É aos ingleses, ainda no século XVII, no momento em que se deu
a proclamação da superioridade das leis fundamentais sobre as do Parlamento, e aos americanos, no
final do século XVIII, “quando iniciaram a codificação do direito constitucional e instituíram aquela
moderna forma de Governo democrático” (MATTEUCCI, 2010, p. 255) que se deve isto.
Acompanhemos as três características de aplicabilidade do atual princípio do controle do
poder que o autor atribui ao constitucionalismo moderno, e que o faz distinto da herança medieval.
Segundo Matteucci, em primeiro lugar, na modernidade, a Constituição escrita é o meio pela
qual este princípio do controle do poder atua, contendo fórmulas jurídicas diversas, mas
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 “organicamente vinculadas entre si” (MATTEUCCI, 2010, p. 255). Estas fórmulas consagrariam,
além dos direitos dos cidadãos cujo objetivo é limitar o poder do Estado, a regulamentação do
funcionamento dos órgãos estatais. Isto seria possível tendo em vista que a
Constituição baseia sua legitimidade em um duplo fundamento: no próprio
conteúdo das suas normas, que se impõem por sua intrínseca racionalidade e
justiça, e em sua fonte formal, isto é, em sua emanação da vontade direta e
soberana do povo, manifesta por meio de uma Assembleia Constituinte e/ou
referendum (MATTEUCCI, 2010, p. 255).
Outra questão fundamental que distingue a Constituição moderna de sua herança medieval,
para Matteucci, está no fato de que suas normas não poderiam ser nem modificadas nem
interpretadas pela vontade do legislador, haja vista que o poder constituinte seria superior ao poder
legislativo. Desse modo, ela possuiria um caráter mais rígido que as constituições medievais, sendo
necessário, portanto, que haja um procedimento específico para modificá-la, para o qual se exige
uma maioria qualificada.
Por fim, uma terceira e mais importante característica da Constituição moderna, posto que
torna “eficaz a supremacia da lei, ou melhor, da Constituição”, é a existência do poder judiciário.
Este poder seria capaz de arbitrar os conflitos entre os órgãos do Estado e, principalmente, zelar
“pela justiça das leis, isto é, pela sua conformidade com as normas fundamentais” (MATTEUCCI,
2010, p. 256). Seria a existência do poder judiciário o remédio contra qualquer tentativa de violar a
Constituição por parte do Governo.
Voltando para Faoro, vemos, assim, que ele se insere nessa corrente de pensamento que
entende o constitucionalismo moderno como o controle do poder, isto é, o banimento do arbítrio
como a base de todo o processo constitucional próprio à modernidade. Este processo supõe, para o
autor, a separação dos poderes, como mecanismo de controle do poder do soberano, articulando-se
a partir do consentimento e das decisões daquele a quem se destina e de quem emana o próprio
poder – o povo. Sem os contrapesos impostos ao poder, não se pode falar em governo
constitucional, mas em mera distribuição de privilégios garantida pelo pacto excludente e elitista do
poder.
Contudo, tais controles, ao se pretenderem eficazes, precisam ainda tornar viáveis
procedimentos permanentes, a exemplo da participação do poder constituinte, por meio de seus
representantes. A Assembleia Constituinte consistiria um momento específico, quando de crise do
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 poder constituído, na qual o povo elegeria os seus representantes, para reordenar “a sociedade civil,
preocupada em ajustar os fatos à legitimidade, sem atuar no vazio ou por meras fórmulas políticas”
(FAORO, 2007, p. 241). Mas, no caso da Assembleia Constituinte não se trata de um procedimento
permanente, durando apenas o momento necessário à elaboração da nova Constituição do país.
As características do constitucionalismo moderno, para o autor, cuja concepção radica na
ideia de divisão do poder, são: Constituição como sistema de freios e controles do poder (origem no
direito natural); Constituição em oposição a grupos, classes, burocracia real e estamentos e;
Constituição que permita autonomia de ação e defenda a sociedade do despotismo, por meio de
esferas separadas do poder pelo mecanismo de sua divisão, com vistas ao seu controle. O
constitucionalismo moderno possibilitou a instauração do governo da Lei em substituição ao
governo dos homens, no qual a Lei não é apenas uma fórmula, mas a “expressão de um poder
independente – o Poder Legislativo –, decorrente de uma convenção pactuada e livremente
estabelecida pelos destinatários do poder” (FAORO, 2007, p. 175)19. Esse poder legítimo, emanado
desse pacto, mostrar-se-ia compatível, para Faoro, com: a paz social; a regulação da sociedade por
meio de lei autêntica; e o estabelecimento de controles e freios que regulam o poder. Seria o
indivíduo a fonte primária de onde emanaria a legitimidade do poder, constitucionalmente
constituído e organizado.
Palavras Finais
Desse modo, a conclusão a que chega Faoro leva à noção de Constituição essencialmente
política, que se caracteriza por fazer a junção da Constituição em sentido social à Constituição em
sentido jurídico. Nesse caso, a Constituição não é a “mera síntese das condições reais de poder, nem
um conjunto esparso de regras jurídicas” – como indicado por Lassalle –, mas emana do
intercâmbio de ambos os fatores (social e jurídico), sempre orientados pela vocação inerente ao
povo de controlá-lo.
Por fim, dado o exposto acima, a Constituição para Faoro é a soberana força política de uma
nação, sendo, portanto, capaz de coordenar e arbitrar os conflitos existentes na sociedade, por meio
das normas e valores que estabelece. Esta a função de uma constituição essencialmente política,
19
Em Rousseau, lembremos que o corpo político é uma “criação voluntária de indivíduos determinados a
promover uma comunidade que nada deve à ‘natureza’ e tudo à ‘arte’”, cujo objetivo é “encontrar uma forma de
associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um,
unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes” (ROUSSEAU, 2006, 20-21).
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 desde que seja “sempre fiel ao Poder Constituinte legitimamente expresso” (FAORO, 2007, p. 178),
de que o povo, entidade política chave nas democracias, é o único detentor.
Como vimos, Faoro faz assentar o fundamento que confere legitimidade ao poder
constituído constitucionalmente no elemento social. Dito de outra forma, seria apenas quando a
Constituição alicerça-se na soberania popular, garante os direitos individuais e garante mecanismos
de fluxo e diálogo constantes com a sociedade civil, que podemos falar em uma cidadania ativa, em
um liberalismo democrático, ou melhor, em um Estado de Direito verdadeiramente democrático.
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